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GLEICE AMÉLIA GOMES LEMOS Os Sentidos da Paz: o mesmo e o diferente Brasília 2007 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília, como requisito para a obtenção de título de Licenciado em Letras – Habilitação Português e Suas Respectivas Literaturas Orientadora: Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva.

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Page 1: Os sentidos da paz: o mesmo e o diferente - ucb.br · processos de constituição de sentidos sobre a paz na sociedade brasileira e os processos de individualização do sujeito que

GLEICE AMÉLIA GOMES LEMOS

Os Sentidos da Paz: o mesmo e o diferente

Brasília

2007

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília, como requisito para a obtenção de título de Licenciado em Letras – Habilitação Português e Suas Respectivas Literaturas

Orientadora: Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva.

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BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva

______________________________________________

Profa. MSc. Dalva Del Vigna

______________________________________________

Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan

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À minha avó Maria Amélia.

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Agradeço a minha orientadora, Professora

Dra.Mariza Vieira da Silva, que me auxiliou

intensamente para a realização desse Trabalho de

Conclusão de Curso.

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“...Acordo num tenho trabalho, procuro trabalho,

quero trabalhar... O cara me pede diploma, num

tenho diploma, num pude estudar... E querem q'eu

seja educado, q'eu ande arrumado q'eu saiba

falar..Aquilo que o mundo me pede não é o que o

mundo me dá...”

(Gabriel o Pensador)

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Resumo

Este Trabalho de Conclusão de Curso teve como objetivo principal compreender os

processos de constituição de sentidos sobre a paz na sociedade brasileira e os processos de

individualização do sujeito que chamaremos de “pacífico”, tendo como referencial teórico e

metodológico a Análise de Discurso e como corpus de descrição e análise três dicionários da

língua portuguesa – Michaelis, Aurélio e Houaiss – e textos retirados de sites que tinha como

tema e objetivo a paz. Buscamos apreender nessas análises a existência de sentidos

estabilizados, mas também a possibilidade de rupturas, de deslocamentos. Nesse sentido, o

TCC estruturou-se em torno de três Capítulos: um sobre o referencial teórico e a constituição

do corpus; outro, centrado na análise de verbetes dos dicionários e, um terceiro, com foco na

análise dos sites selecionados. Os resultados obtidos permitiram perceber que o sentido de paz

só se produz em relação ao de violência: o positivo pelo negativo; que há um apagamento,

silenciamento do que torna inviável a paz, ou seja, as diferenças econômicas, sociais,

culturais. Quanto à construção dessa posição de sujeito pacífico – um sujeito social, urbano,

escolarizado -, também se faz por silenciamentos e por uma ênfase no individualismo.

Palavras-chave: Paz - Discurso – Sujeito - História.

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Abstract

This final project had as its main goal comprehend the constitution process of the

significations about the peace in the Brazilian society and the citizen individualization process

that will be called “peaceful”, having as theoretical and methodological reference the

Discourse Analysis and as description and analysis corpus three dictionary of the Portuguese

Language – Michaelis, Aurélio and Houaiss – and texts from websites that had as theme and

objective the peace. We intended to apprehend with these analyses the existence of stabilized

signification, but also the possibility of breakage it, dislocate it. In this context, this project is

structured on three Chapters: one about the theoretical reference and the corpus constitution;

another, showing the entries of the dictionaries analysis and, the third, with focus on the

selected websites analysis. The gained results allow us to perceive that de peace signification

is only visible against the violence signification: the positive for the negative; that there is

neutrality, the leashed arguments that make peace impracticable, so, the economics, socials

and cultural differences. About that construction of the peaceful citizen – a social, urban,

lettered citizen - , also is made by leashed arguments and by an individualization emphasis.

Key-words: Peace – Discourse – Citizen – History.

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Sumário

Resumo _________________________________________________________________________________ 6

Abstract _________________________________________________________________________________ 7

Introdução _______________________________________________________________________________ 9

Capítulo 1 - Paz: uma análise discursiva ______________________________________________________ 12

Capítulo 2 - A Dicionarização da Paz _________________________________________________________ 19

Capítulo 3 - A Administração da PAz__________________________________________________________ 33

Conclusão ______________________________________________________________________________ 50

Referências Bibliográficas___________________________________________________________________52

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Introdução

Este Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) dá continuidade a uma pesquisa sobre a

“paz no trânsito” realizada no semestre anterior, na disciplina de Análise do Discurso, tendo

como corpus um folheto distribuído em uma via pública de Brasília, por uma Organização

Não-Governamental (ONG) denominada Rodas da Paz, e como recorte de análise um texto

denominado “10 mandamentos para uma convivência pacífica”. Neste trabalho, uma questão,

contudo, chamou particularmente nossa atenção: a da pluralidade e dispersão (aparente?) do

termo e do tema da paz: paz no trânsito, paz na escola, paz na família, paz no trabalho, paz no

futebol, paz no casamento. Observamos, ainda, que o tema da paz trazia para a cena

enunciativa os temas da violência e da guerra em termos internacionais, nacionais e locais,

pelas relações entre o dito e o não-dito, entre a polissemia e a paráfrase.

Por outro lado, um poema de Orides Fontela (1940-1998), a que tivemos acesso,

naquela época, trazia novos sentidos para a palavra “paz”, evidenciando a existência de

sentidos estabilizados, mas também a possibilidade de rupturas, de deslocamentos. Ele nos

permitiu entender melhor o que a Análise de Discurso diz sobre a não transparência do tema,

da linguagem, dos sentidos e dos sujeitos, sobre a possibilidade de o sentido sempre ser outro,

sobre o fato de não haver ritual sem falha, pois nem a língua, nem os homens são máquinas,

são autômatos.

Nesse sentido, nos dispusemos a prosseguir por esse caminho e elaboramos este TCC

tendo como objeto de estudo o discurso sobre a paz, com o objetivo de compreender os

processos de constituição de sentidos e de individualização do sujeito que aí se dão. Partimos

da seguinte questão norteadora: Como se dá a formulação e a circulação dos sentidos da paz

na sociedade brasileira?

Para uma melhor organização e desenvolvimento, este TCC foi estruturado em três

capítulos. No primeiro Capítulo, explicitamos o nosso referencial teórico, a Análise do

Discurso, e delineamos o modo como construímos nosso dispositivo de análise, uma vez que

em Análise de Discurso (AD) este não está antecipadamente pronto. Ele vinha se construindo

no trabalho de formulação e discussão do tema, de uma questão norteadora, de contato com a

bibliografia da área e da compreensão do dispositivo teórico da AD. Isso nos permitiu

delimitar o nosso corpus em torno do discurso do dicionário e do discurso de sites sobre a

paz, nas suas relações com outras discursividades.

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No Capítulo seguinte, procedemos à descrição e análise do discurso do dicionário, a

partir dos verbetes sobre a “paz” de três dicionários: Aurélio, Michaelis e Houaiss. Seguindo

o funcionamento do dicionário, que nos remete de um verbete a outro, pudemos ir

apreendendo os sentidos e as posições de sujeito produzidas neste instrumento de descrição e

normatização de uma língua.

No terceiro e último Capítulo, descrevemos e analisamos a outra parte de nosso

corpus; os sites que têm como tema ou objeto de ação a “paz”. Considerando o tempo de que

dispúnhamos para a realização deste TCC, fizemos alguns recortes dentre todos os sites

visitados.

Os resultados obtidos evidenciaram que a multiplicidade e a dispersão do tema da

“paz” eram aparentes e serviam como forma de apagamento (dicionários) e de silenciamento

(sites) de questões outras aí implicadas, como a diferença e os interesses em jogo de

diferentes grupos sociais. Pudemos ainda perceber como se dá o processo de individualização

do “sujeito pacífico”: esse sujeito, moderno, urbano e escolarizado que vive em uma

sociedade capitalista.

Pudemos, então, concluir que o discurso da paz que recortamos para nossa análise se

constitui a partir do oposto do que é proposto, como no caso das ONGs que falam em paz,

mas usando como base de seus argumentos a violência. Também concluímos que a paz que os

dicionários descrevem não é a mesma paz possível de acontecer na nossa sociedade.

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Capítulo 1 Paz: uma análise discursiva

O referencial teórico e metodológico deste TCC é a Análise de Discurso (AD),

fundada por Michel Pêcheux na França da década de 60, tendo como base epistemológica os

campos da Lingüística, do Materialismo Histórico e da Psicanálise, o que permitiu

deslocamentos nas noções de língua, de sentido e de sujeito na leitura e interpretação de

textos. Para se fazer a AD, deve-se levar em consideração o simbólico, o social e o histórico

do sujeito praticante da linguagem. No Brasil, essa teoria chegou, se difundiu e ganhou suas

especificidades, principalmente, com os trabalhos de Eni P. Orlandi e de um grupo de

pesquisadores a ela relacionados.

Para o desenvolvimento deste TCC, gostaríamos de mencionar alguns textos que

sempre estiveram presentes em nossas reflexões, descrições e análises: Lexicografia

Discursiva, de Eni P. Orlandi, que se encontra em um livro chamado “Língua e conhecimento

lingüístico: para uma história das idéias no Brasil” (2002), um texto de Marilena Chauí, feito

para a Folha de S. Paulo, denominado “Uma ideologia perversa”, e o texto de José Horta

Nunes, denominado Lexicologia e lexicografia, que se encontra no livro “Introdução às

ciências da linguagem: a palavra e a frase” (2006).

A AD define-se como uma teoria e um instrumento de/para leitura e interpretação de

textos. A Análise do Discurso, segundo Orlandi (1999), não trata da língua nem da gramática,

embora esses estudos lhe interessem, mas, sim, do discurso - a prática da linguagem, a

observação do homem falando, ou seja, o discurso como efeito de sentido entre locutores. A

Análise do Discurso questiona as diversas maneiras de ler, de interpretar, de compreender as

manifestações da linguagem pela relação que se estabelece entre o dito e não-dito, mas

também entre o dito e o já-dito (histórico). Em outras palavras: “Problematizar outras

maneiras de ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se colocarem questões sobre o que

produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da linguagem.” (p. 9).

É importante saber que a AD não trabalha com a língua como um sistema abstrato,

autônomo, mas como um sistema com autonomia relativa, pois existe a história, pois como já

foi dito antes, a Análise do Discurso está interessada na prática da linguagem do homem e

essa prática está ligada ao mundo. Por sua vez, essas significações e práticas se encontram, ou

melhor, se constroem em um contexto social, cultural e histórico em que também constitui o

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sujeito. Assim, para que se interprete, compreenda um discurso é necessário levar em

consideração as suas condições de produção:

Levando em conta o homem na sua história, considera os processos e as condições de produção da linguagem, pela análise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos que falam e as situações em que se produz o dizer. Desse modo, para encontrar as regularidades da linguagem em sua produção, o analista de discurso relaciona a linguagem à sua exterioridade. (ORLANDI, 1999, p. 16)

O estudo que interessa à AD é a língua funcionando, através das condições de

produção “em diferentes épocas e segundo diferentes perspectivas.” (idem, p.17)1. Nesse

sentido, a AD não trabalha como a análise de conteúdo, que procura extrair do texto o que ele

quer dizer, mas, sim considerando a linguagem como não transparente, devendo o analista

dispor de uma teoria para lidar com essa opacidade da linguagem. Portanto ela não está

procurando um sentido por trás do texto, ou nas entrelinhas, ela parte da materialidade do

texto, da forma como ele se construiu lingüisticamente, para indagar como o texto significa,

quais são as condições de sua existência. A AD encara o texto como objeto de descrição e

análise, “uma materialidade simbólica” do discurso. (ORLANDI, 1999)

Outro ponto da Análise de Discurso que gostaríamos de considerar aqui é a noção de

sujeito como “posição”, posição essa considerada como um lugar de fala. A AD não lida,

pois, com o indivíduo empírico ou com o sujeito intencional, que controla a linguagem e a

língua plenamente, e acredita ser a fonte e a origem do que diz. Pêcheux (1990), desde sua

primeira proposta de AD, em 1969, a partir do esquema de comunicação, faz esse

deslocamento. Ele diz:

Fica bem claro, já de início, que os elementos A e B [do esquema de comunicação] designam algo diferente da presença física de organismos humanos individuais. Se o que dissemos antes faz sentido, resulta pois dele que A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação social. [....] Nossa hipótese é a de que esses lugares estão representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo. (p. 82)

A posição sujeito acontece quando o indivíduo fala de uma posição determinada.

Quando a professora está ministrando aula ela está falando na posição de professora, e quando

ela fala com o filho que chega tarde em casa “Isso são horas?” (ORLANDI, 1999) está na

posição de mãe. Trata-se de posições construídas historicamente em que já existe aquilo que

pode e deve ser dito a partir de tal posição. Não se trata de algo mecânico, em que a

1 Fazem parte das condições de produção do discurso os interlocutores, a situação imediata (aqui-agora) e o contexto histórico mais amplo.

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singularidade não possa ter espaço. Mas, ao mesmo tempo, não é possível negar todos os

sentidos ali já construídos e significados para os sujeitos. Dessa forma, a noção de posição de

sujeito se dá a partir do lugar social que esse indivíduo ocupa. E é a partir dessas posições que

o sujeito produz sentidos, Orlandi (2005) em seu texto “do Sujeito na História e no

Simbólico” explica melhor:

O sujeito, na análise de discurso, é posição entre outras, subjetivando-se na medida mesmo em que se projeta de sua situação (lugar) no mundo para a sua posição no discurso. Essa projeção-material transforma a situação social (empírica) em posição-sujeito (discursiva). (p. 99)

Pêcheux (1990) nos alerta que “seria ingênuo supor que o lugar como feixe de traços

objetivos funciona como tal no interior do processo discursivo; pois este se encontra aí

representado, isto é, presente, mas transformado”. Nesse sentido, esses lugares estão

determinados pelos processos discursivos, mas transformados de acordo com as chamadas

formações imaginárias que:

Designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. Se assim ocorre, existem nos mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as relações entre as situações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas definições). (p.82)

Para exemplificar sua teoria sobre formações imaginárias criou um quadro para

esboçar “a maneira pela qual a posição dos protagonistas do discurso intervém a título de

condições de produção do discurso” (idem, p.83):

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Em nossa pesquisa realizada em sala no semestre anterior, pudemos compreender esse

funcionamento do processo discursivo, ao vermos que interlocutores estavam presentes no

folheto sobre a paz, que estava sendo analisado, e as imagens ali construídas. Na análise dos

textos de nosso corpus, tivemos oportunidade de novamente observar esse imaginário

funcionando nos verbetes de dicionários e nos sites sobre a paz.

Pêcheux (1990) também considera o “referente” (aquilo sobre o que falamos, o ponto

de vista do sujeito) como um objeto imaginário.

Nesse sentido, é interessante pensar que não estamos falando da mesma coisa quando

falamos de paz, nem de sujeito pacífico. O que reafirma que o sentido não está nas palavras,

mas na relação entre sujeitos. Daí a noção de discurso da AD: “efeito de sentidos entre

locutores”.

Cabe acrescentar que o sujeito e o sentido andam juntos na articulação da língua com a

história e que nessa articulação está presente o imaginário e a ideologia. O discurso

materializa a ideologia, constituindo-se no lugar teórico em que se pode observar a relação da

língua com a história.

Esse deslocamento da noção de indivíduo para a de sujeito irá sendo desenvolvida pela

AD, evidenciando cada vez mais que o sujeito para se constituir deve se submeter à língua, ao

simbólico. Antes do indivíduo chegar ao mundo, a língua de um povo já estava estruturada e

significando. É, portanto, o indivíduo que é pego pela linguagem. Daí a AD recusar o conceito

de linguagem como instrumento de comunicação; não se trata de algo pronto que o homem

pega e usa como quiser. Diz Orlandi (2005, p. 103):

É isso que significa a determinação histórica dos sujeitos e dos sentidos: nem fixados ad

eternum, nem desligados como se pudessem ser quaisquer uns. É porque é histórico (não

natural) é que muda e é porque é histórico que se mantém. Os sentidos e os sujeitos

poderiam ser sujeitos ou sentidos quaisquer, mas não são. Entre o possível e o

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historicamente determinado é que trabalha a análise de discurso. Nesse entremeio, nesse

espaço de interpretação. A determinação não é uma fatalidade mecânica, ela é histórica.

Para AD, somos sempre sujeitos. Somos como indivíduos interpelados pela ideologia

em sujeitos; submetemo-nos à linguagem. Uma vez falantes, enquanto sujeitos de uma

sociedade determinada, somos afetadas pelas instituições que fazem parte dessa sociedade. Aí

é que temos o que chamamos de processos de individualização, de subjetivação. No caso

desse TCC, queremos ver como os dicionários, os sites constroem, no movimento do sentido

estabilizado e do sentido novo, esse sujeito individualizado, concreto: o sujeito pacífico.

As condições de produção que constituem os discursos devem levar, ainda, em conta

outras noções da AD, a saber: as relações de sentido, as relações de força e a antecipação. As

relações de sentido se referem a relações que os sentidos têm com outros sentidos já

existentes, portanto todo discurso faz parte de um outro mais amplo. Quando se fala na

posição de mãe, os sentidos que ali se produzem, já existem, apenas os retomamos em nossa

fala, ou seja, “não há, desse modo, começo absoluto nem ponto final para o discurso. Um

dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis.” (ORLANDI, 1999,

p.39). O dicionário se constrói estabelecendo de um modo próprio essas relações,

possibilitando a estabilização de alguns sentidos, considerados como verdadeiros, literais.

Teremos oportunidade de observar isso no próximo Capítulo.

Já no mecanismo de antecipação, o sujeito se coloca no lugar do seu interlocutor, ou

seja, ele antecipa o sentido que suas palavras produzem (idem, 1999). É o caso de quando se

faz um comercial e se procura atingir um certo tipo de consumidor, o sujeito, com a intenção

de vender seu produto, irá colocar-se no lugar do consumidor e tentará prever quais as suas

necessidades para que este lhe oferte. Os sites que analisamos operam muito com esse

mecanismo.

Temos também as relações de força que se definem como “o lugar a partir do qual fala

o sujeito é constitutivo do que ele diz.” (idem, p.39). O sujeito-mãe fala de um lugar em que

as suas palavras têm autoridade determinada, como o sujeito-polícia, ou um sujeito-professor

em relação aos seus alunos. Ou ainda, o sujeito autor de dicionário. Por isso que “nossa

sociedade é constituída por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no

poder desses diferentes lugares, que se fizeram valer na ‘comunicação’.” (idem, p.40).

Pêcheux (1990, p. 77) exemplifica trazendo uma cena enunciativa para reflexão: o

plenário de uma Câmara de Deputados, dizendo que:

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“o deputado pertence a um partido político que participa do governo ou a um partido da oposição; é porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou tal interesse, ou então está ‘isolado’ etc. Ele está, pois, bem ou mal, situado no interior da relação de forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado...”.

Uma das noções teóricas que também foram usadas nesse TCC foi a de silenciamento,

proposta por Orlandi em seu livro “As formas do Silêncio” (1993). Ela afirma que para se

falar do silêncio é necessário colocar-se na “relação do dizível com o indizível” (p.11), nos

fazendo correr o risco dos seus efeitos que é o de não saber caminhar entre o dizer e o não

dizer. Nisso, Orlandi (1993) destacou, no estudo sobre o “silêncio”, duas partes que

considerou como mais importantes:

1.há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido e, de certa maneira, as próprias palavras transpiram silêncio. Há silêncio nas palavras; 2. o estudo do silenciamento (que já não é silêncio mas “pôr em silêncio”) ... nos mostra que há um processo de produção de sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensão do não-dito absolutamente distinta da que se tem estudado sob a rubrica do “implícito”. (p.12)

Ao falarmos sobre o silêncio, é importante acrescentarmos que, Orlandi em seu

trabalho, fala de duas formas de silêncio: o silêncio fundante e a política do silêncio (o

silenciamento). No caso da política do silêncio, teríamos o silêncio local, “que é a censura,

aquilo que é proibido dizer em certa conjuntura (é o que faz com que o sujeito não diga o que

poderia dizer: numa ditadura não se diz a palavra ditadura não porque não se saiba mas

porque não se pode dizê-lo.)” (ORLANDI, 1999, p.83); e silêncio constitutivo que é o que nos

interessa em nossa análise e se define pelo fato de que “uma palavra apaga outras palavras

(para dizer é preciso não-dizer: se digo “sem medo” não digo “com coragem”)”(idem).

Determinado pelo caráter fundador do silêncio, o silêncio constitutivo pertence à própria ordem de produção do sentido e preside qualquer produção de linguagem. Representa a política do silêncio como um efeito de discurso que instala o antiimplícito: se diz “x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido a se descartar do dito. Por aí se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo de uma “outra” formação discursiva, uma “outra” região de sentidos. (ORLANDI, 1993, p. 75-76)

Pensar o silêncio é pensar que não há sentido sem silêncio, este é necessário à

significação. O silêncio não aparece como o dito, ele se mantém como tal: em silêncio. De tal

forma que “não podemos observá-lo senão por seus efeitos (retóricos, políticos) e pelos

muitos modos de construção da significação.” (ORLANDI, 1993, p.47) Quando se trata do

silêncio não temos seus sentidos prontos, temos pistas, através de falhas, fissuras, rupturas

que ele se mostra, mas “mesmo se o silêncio está lá, ele é efêmero em face do homem, no que

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diz respeito à observação. Assim, sem teoria não se atinge o seu modo de existência e de

funcionamento na significação.” (idem, p. 48)

A partir do nosso dispositivo teórico, da questão norteadora e de nosso objetivo neste

TCC, além do trabalho anteriormente realizado com o discurso sobre a paz no semestre

anterior, pudemos construir nosso dispositivo de análise em AD, a metodologia se constrói

nesse ir-e-vir entre a teoria, o objeto de estudo e os contatos com os textos em que esse

discurso se materializa. A construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas, como

diz Orlandi (1999, p. 63).

Nesse sentido, construímos nosso corpus em torno dos discursos de dicionários e de

sites de Organizações Não-Governamentais que tratam da paz. Selecionamos três dicionários

brasileiros: o de Aurélio Buarque de Holanda, por ser o dicionário monolíngüe mais utilizado

no Brasil; o de Michaelis por se dizer politicamente correto (ORLANDI, 2002); e o de

Houaiss, por ser o mais moderno, e alguns sites dessas ONGs, que permitiram estabelecermos

certos agrupamentos, regularidades.

Para fazer a análise dos dicionários, seguimos o padrão de análise que Orlandi (2002)

usou para trabalhar o dicionário como discurso, e que aparece descrita e interpretada no artigo

“Lexicografia discursiva”. Dessa forma, na análise dos três dicionários, nós “consideraremos

assim não a função, mas o funcionamento do dicionário na relação do sujeito com a língua,

incluindo, sua relação com a memória discursiva.” (p.103) Ainda em relação ao trabalho de

Orlandi, também nos cabe acrescentar que lemos os dicionários como “textos produzidos em

certas condições tendo seu processo de produção vinculado a uma determinada memória

diante da língua.” (idem, ibidem)

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Capítulo 2 A Dicionarização da Paz

A palavra “paz” tornou-se um lugar comum em nosso dia-a-dia: estamos sempre

ouvindo falar dela e também falamos dela em várias circunstâncias de nossa vida social,

acadêmica, religiosa; enfim, estamos cercados de discursos sobre a paz. Como compreender a

proliferação desses discursos e seus diferentes ou mesmos sentidos? Como se dá o processo

de individualização do sujeito nesses discursos? Quem é o sujeito pacífico? Como ele se

constrói em diferentes discursividades?

No semestre passado, tivemos contato com um poema de uma autora candanga, Orides

Fontela (1940-1998), que fala da paz. A poesia é o espaço por excelência de rupturas, de

transgressões, de possibilidade de emergir sentidos outros. Achamos que seria interessante

trazê-lo logo de início para a análise de nosso corpus, para que ele ficasse ressoando em

nossos ouvidos como um contraponto de uma outra discursividade que, talvez, fizesse com

que “escutássemos” melhor os sentidos presentes no dicionário: o lugar do sentido certo e

verdadeiro. No momento, então, o convite é para que o leitor leia apenas o poema de Fontela.

A Paz não reconstrói: elide a trama e o verbo.

A Paz não organiza: explode o núcleo-tempo

A Paz Não é letal: vivifica.

A paz não apazigua: fere.

A Paz não acalma: renova o ser e o sangue.

O dicionário é considerado como obra de referência de uma língua (no caso, o

Português do Brasil) normatizada e, também, como um “objeto histórico e de representação

da relação do falante com sua língua, na necessidade de um imaginário de unidade da língua

nacional” (ORLANDI, 2002, p.103). Assim ao analisarmos o significado da palavra “paz”,

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procuramos investigar o seu funcionamento no dicionário e remeter os significados ali

presentes ao sujeito e à história.

Não nos esqueçamos de que o léxico de uma língua é um fato social e está sujeito a

forças sociais, criando relações entre sujeitos e possibilitando que as palavras tenham sentidos

diferentes (NUNES, 2006). É importante lembrar também que a língua é a base do

funcionamento do discurso e apresenta uma autonomia relativa, e que, além disso é um

sistema aberto, podendo ter falhas, no sentido de criar possibilidades de novos sentidos. Em

se tratando de se pensar no léxico, na falha, uma palavra pode ser substituída por outra,

sinônima, mesmo que não seja um sinônimo perfeito. E se as palavras são sujeitas a falhas,

equívocos e contradições, então vamos apreender e compreender, através dessa pesquisa,

como esse discurso sobre a “paz” está funcionando nos dicionários.

Tomamos como objeto de trabalho três dicionários de língua portuguesa: o de Aurélio

Buarque de Holanda, por ser o dicionário monolíngüe mais utilizado no Brasil; o de Michaelis

por se dizer politicamente correto (ORLANDI, 2002); e o de Houaiss, por ser o mais

moderno. Antes de iniciarmos nossa descrição e análise dos verbetes, lembremo-nos de que o

dicionário “é organizado ideologicamente de determinada maneira. Há uma estrutura geral:

indicação da categoria, da pronúncia, da escrita e dos sentidos, em geral organizado a partir de

um sentido posto como principal que seria o literal, e suas variações.” (ORLANDI, 2002,

p.107). No decorrer de nossa análise poderemos perceber que cada um dos três dicionários

analisados tem “um sentido posto como principal que seria o literal” (idem), e isso irá ser

determinado pelo contexto histórico em que cada um foi elaborado, como parte de suas

condições de produção.

Em Michaelis (1998, p.1574) encontramos:

paz sf (lat pace) 1. Estado de um país que não está em guerra; tranqüilidade pública. 2. Tratado que mantém ou restabelece esse estado; Assinar a paz. 3. Repouso, silêncio. 4. Tranqüilidade da alma. 5. União, Concórdia nas famílias. 6. Sossego. Paz armada: respeito recíproco das nações mantido pelos exércitos e esquadras que elas conservam. Paz-de-alma: pessoa bonacheirona, inofensiva, pacífica. Paz-otaviana: grande quietação e sossego, como gozou o mundo romano no tempo de Otávio. Fazer as pazes: conciliar-se.

O primeiro e o segundo enunciados definidores estão relacionados ao referente Estado

e a uma situação de guerra, estando isso associado a “tranqüilidade pública”.

Logo vem outra definição que nos traz a idéia de paz num sentido estático – “repouso,

silêncio”. Poderíamos dizer, então, que a paz existe quando não há movimento nem barulho.

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Um repouso e silêncio que vem precedido de “tranqüilidade pública” e seguido do enunciado

4: “Tranqüilidade da alma”. Temos, então, o social e o individual, o público e o privado

unidos de uma certa maneira, indicando uma direção ideológica2

Se pensarmos a posição do sujeito que se forma nessas definições, veremos que ao

definir a paz como “tranqüilidade pública” e, ao mesmo tempo, como “repouso, silêncio”,

podemos supor que haja uma sociedade em que não exista nenhuma forma de agitação.

Haveria aí, parece, um paradoxo, pois um lugar público deve ter necessariamente algo como

carros nas ruas fazendo barulho com seus motores e buzinas, camelôs gritando e vendendo

seus produtos nas ruas, crianças brincando nas praças e cantando músicas de roda, por

exemplo. Temos, então, uma definição de paz/tranqüilidade pública difícil de imaginar em um

espaço público. Mas, contudo, de acordo com o próprio sistema de construção dos

dicionários, vejamos como o próprio Michaelis define “tranqüilidade”, “repouso”:

tran.qüi.li.da.de sf (lat tranquilitate) 1 Estado de tranqüilo. 2 Paz, sossego. 3 Quietação, serenidade. 4 Repouso do corpo ou do espírito. Antôn: agitação, desassossego. T. pública: estado de segurança, ordem e bem-estar, no seio da coletividade social, que resulta da ação eficiente da polícia preventiva.

re.pou.so sm (der regressiva de repousar) 1 Ação ou efeito de repousar. 2 Cessação de movimento ou de trabalho. 3 Descanso, sossego, tranqüilidade. 4 ant V ancoradouro. R. absoluto: imobilidade real sem translação no espaço. R. eterno, Rel: o estado que se segue à morte. R. relativo: imobilidade de um corpo relativamente a outros que com ele estão sujeitos a um movimento de translação. Perturbar o repouso dos mortos: a) desenterrá-los; tirá-los da sepultura; b) injuriar-lhes a memória. Var: repoiso.

Ao lermos o verbete referente à “tranqüilidade”, encontramos que “tranqüilidade

pública” (que também faz parte do verbete que define a paz) é “estado de segurança, ordem e

bem-estar, no seio da coletividade social, que resulta da ação eficiente da polícia preventiva.”

A tranqüilidade pública funciona, pois, através da ação da polícia, de forma “preventiva”, ou

seja, pela exclusão do “seio da coletividade social” os causadores da “agitação, do

desassossego”. Só assim poderá existir “segurança, ordem e bem-estar”. Há, pois, um sujeito

a ser excluído (silenciado) para que tenhamos a paz; um sujeito marcado pela agitação, pelo

desassossego. Que sujeitos serão esses? A agitação se dará em que direção? Ele provocará o

desassossego de quem? Para quem?

2 Ideologia em AD não se refere a algo oculto, mas a direção de sentidos produzidos, desse modo, o trabalho da ideologia é “produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência.” (ORLANDI,1999, p.46)

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Segundo Nunes (2006, p. 163):

Ao tomarmos o dicionário como um objeto histórico e social, pensamos sua produção no interior de um complexo de formações discursivas. O recorte operado pelo lexicógrafo será sempre permeado de exclusões, de silenciamentos, devido ao fato de que o discurso se produz com mecanismos de esquecimento e de que a relação entre sujeito e mundo é marcada pela incompletude. Saber disso é um primeiro gesto do lexicógrafo que seleciona uma nomenclatura e formula definições. É sabendo que o sentido pode ser outro que lidamos melhor com a incompletude.

Continuando, no verbete referente ao “repouso”, chama, ainda, nossa atenção, a

presença da “morte” ao associar “repouso”, logo, a “paz”, a “descanso” “repouso absoluto”

interpretando, então a expressão “Descanse em paz”, em lápides nos cemitérios, como um das

definições de paz. Assim, sendo possível “repouso (paz) absoluto/a” apenas na morte.

Lembremos com Nunes (2006, p. 154), que “a sinonímia é estabelecida por meio de relações

na horizontalidade da língua, remetendo-se uma unidade a outra e atribuindo-se traços de

identidade e de diferença”. O verbete “repouso”, proposto pelo Michaelis, evidencia esse fato.

O verbete “silêncio”, contudo, traz alguns novos dados pra se pensar nesse processo de

individualização do sujeito pacífico em uma sociedade determinada, desse sujeito que não

será excluído, que não irá atrapalhar a tranqüilidade pública. Os enunciados definidores estão

centrados no individual, no sujeito. Leiamos, cuidadosamente, o verbete que se segue.

si.lên.cio sm (lat silentiu) 1 Ausência completa de ruídos; calada. 2 Estado de quem se cala ou se abstém de falar; recusa de falar. 3 Abstenção voluntária de falar, de pronunciar qualquer palavra ou som, de escrever, de manifestar os seus pensamentos. 4 Taciturnidade. 5 Discrição. 6 Interrupção de um ruído qualquer. 7 Abstenção de publicar qualquer notícia ou fato, de comentar o que é geralmente sabido. 8 Descanso; estado calmo; estado de paz, de inação. 9 Interrupção de correspondência epistolar. 10 Mistério, segredo. 11 Ausência de menção; omissão em uma relação verbal. 12 Suspensão que faz no discurso o orador ou a pessoa que fala. 13 Toque de corneta nos quartéis, e de sineta, nos colégios, para que não se fale nem produza qualquer ruído depois de certa hora da noite. 14 Mús Pausa em que os cantores ou os instrumentos deixam de executar. Antôn (acepção 1): barulho, ruído. interj Voz para mandar cessar o discurso ou a bulha. S. da lei: a) omissão da lei acerca de qualquer circunstância; b) circunstância que, sobre um dado ponto da lei, não foi prevista ou mencionada pelo legislador. S. moral ou S. sepulcral: silêncio absoluto, completo. Passar em silêncio: omitir. Reduzir ao silêncio: obrigar a calar por meio de argumentos convincentes.

Certos termos aí presentes parecem muito fortes: “recusa de falar”; “abstenção

voluntária de manifestar os seus pensamentos”; “abstenção de publicar qualquer notícia ou

fato, de comentar o que é geralmente sabido”; “passar em silêncio: omitir”; “reduzir ao

silêncio: obrigar a calar por meio de argumentos convincentes”. Que paz será esta que se

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obtém a custa de tantos silenciamentos? Os argumentos convincentes procedem de quem?

Que posição de sujeito pacífico será daí resultante?

Voltemos, então, ao verbete “paz”, nosso principal objeto de análise, que para facilitar

a descrição e análise, transcrevemos novamente.

Paz sf (lat pace) 1. Estado de um país que não está em guerra; tranqüilidade pública. 2. Tratado que mantém ou restabelece esse estado; Assinar a paz. 3. Repouso, silêncio. 4. Tranqüilidade da alma. 5. União, Concórdia nas famílias. 6. Sossego. Paz armada: respeito recíproco das nações mantido pelos exércitos e esquadras que elas conservam. Paz-de-alma: pessoa bonacheirona, inofensiva, pacífica. Paz-otaviana: grande quietação e sossego, como gozou o mundo romano no tempo de Otávio. Fazer as pazes: conciliar-se.

Ainda em relação ao sujeito, vamos encontrar “tranqüilidade da alma” e “paz-de-

alma”, sendo que esta aparece como “pessoa bonacheirona, inofensiva, pacífica”. E quem é

esse sujeito que tem “paz-de-alma”? O dicionário responde como sendo “uma pessoa

bonacheirona, inofensiva, pacífica”, que para ele significa:

i.no.fen.si.vo adj (in+ofensivo) 1 Que não ofende, que não é ofensivo. 2 Que não escandaliza. 3 Que não faz mal.

pa.cí.fi.co adj (lat pacificu) 1 Amigo da paz. 2 Que procura a paz. 3 Sem agitações; sereno. 4 Pertencente ou relativo ao Oceano Pacífico. 5 Que é aceito sem disputa ou contestação: Ponto pacífico.

bo.na.chei.rão adj +sm (bom+acho+eiro+ão2) V bonachão. Fem: bonac e heirona.

Os silenciamentos têm a ver, parece, com “ofender”, “escandalizar”; “fazer mal a”. A

quem essas ações se dirigem? O sujeito deve ser inofensivo em relação a quem e a quê?

A definição “paz-de-alma” nos chamou a atenção no aspecto de individualização do

sujeito que vai se formando sobre o discurso da paz. Esta “pessoa inofensiva”, segundo o

dicionário, não ofende, nem escandaliza e não faz o mal; e a “pessoa pacífica” é aquela que

aceita sem disputa ou contestação, que não faz agitações, que é serena. Essa “pessoa” que

possui a “paz-de-alma”, que aparece nesse verbete, está silenciando algo que é inevitável em

qualquer “pessoa”: a diferença. Nós somos sujeitos diferentes, com ideologias diferentes.

Mas, para se ter paz é preciso homogeneizar, apagar essas diferenças que se mostram nos

conflitos, nos confrontos, na relação com o outro, com o diferente: não ofender, não

escandalizar, não fazer o mal.

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A “paz-de-alma” parece mostrar um sujeito inoperante em relação a tudo e todos; uma

“pessoa inofensiva”, ou seja, um sujeito que não age, não luta por seus ideais ou por algo em

prol da sociedade, ou até mesmo, por interesses individuais, enfim, um sujeito passivo que

aceita todas as situações de vida sem reagir. Só assim ele pode ser definido como portador da

“paz-de-alma”: tipo de cidadão ideal para qualquer governo.

Esse foco no sujeito e na relação com o outro, irá se expandir no enunciado (5) em que

diz “União, Concórdia nas famílias”. É interessante de se notar, que a questão da paz na

família aparece apenas no dicionário Michaelis (dentre os selecionados para essa pesquisa).

Para o Michaelis, a palavra “união”, possui outros sinônimos como: “juntamente, união,

ligação, junta, emenda, concórdia, aliança, pacto, acordo, laço, vínculo, sociedade, reunião

associação”. “Concórdia nas famílias” vem no mesmo enunciado de “união”, separado apenas

por uma vírgula, que por sua vez é especificado pelo espaço em que ocorre a concórdia para

que seja sinônimo de paz: nas famílias. A palavra “união” não está acompanhada de nenhum

complemento, podendo assim remeter essa palavra a vários sentidos; mas a palavra

“concórdia” está restrita, “a famílias”. A concórdia de que fala o sujeito autor desse dicionário

só funciona dentro da família e a união pode servir para as outras categorias da sociedade.

Gostaríamos de voltar ao enunciado (6), pois ali aparece uma palavra composta de

termos aparentemente antitéticos: “Sossego. Paz-armada: respeito recíproco das nações

mantido pelos exércitos e esquadras que elas conservam”. A definição de “sossego” que o

dicionário Michaelis nos mostra, traz sinônimos como: “tranqüilidade, calma, quietação”. A

palavra “paz-armada”, na sua definição no dicionário Michaelis começa pela palavra

“respeito” (“respeito recíproco...”), e tal palavra, ao procurarmos seu verbete no mesmo

dicionário, encontramos que pode ser sinônima de “obediência, acoitamento”, ou “sentimento

de medo”. E se pesquisarmos historicamente de onde surgiu a expressão “paz-armada”,

também descobrimos que foram duas potências militares que se armaram para um

enfrentamento que poderia acontecer a qualquer momento, mas que não acontecia, pois

existia o “medo” do ataque do adversário. O que podemos pensar? Que a paz acontece entre

as sociedades imposta pelo medo? Através da obediência ao mais forte? Pelo acoitamento???

Às imposições do outro? A paz-armada parece contradizer todos os outros conceitos que

aparece no verbete, nos mostrando uma paz imposta por regime militar, repressão, medo,

explicita o que está sendo silenciado nos outros. Nessa expressão “paz-armada”, acontece o

que Nunes (2006, p. 57) aponta como uma contradição, por existirem vários campos lexicais

aí funcionando: “O lexicólogo traça os critérios de delimitação dos campos lexicais e coloca

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em prática certos procedimentos de identificação. Na fronteira entre os campos, são

explicitadas as relações de aliança, contradição, oposição e silenciamento”.

Vamos passar, agora, para a descrição e análise do verbete “paz”, conforme se

apresenta no dicionário Aurélio, em sua edição de 1999.

1. Ausência de lutas, violência ou perturbações sociais; tranqüilidade pública; concórdia, harmonia. O respeito às leis assegura a paz de uma comunidade. 2. Ausência de conflitos entre pessoas; bom entendimento, entendimento, harmonia: vive em paz com os vizinhos e colegas. 3. Ausência de conflitos íntimos; tranqüilidade de alma, sossego: goza de paz absoluta. 4. Situação de um país que não está em guerra cm outro: grandes são os benefícios das épocas de paz. 5. Restabelecimento de relações amigáveis entre países beligerantes; cessação de hostilidade: breve foi a paz entre os dois países. 6. Tratado de paz: assinar a paz. 7. Ausência de agitação ou ruído; repouso, silêncio, sossego: a paz do campo. Paz podre sossego profundo. Fazer as pazes: reconciliar-se; Jogar à paz: jogar bastante a fim de saldar as contas com o parceiro. Ser de boa paz: ter índole pacífica. (FERREIRA, 1999, p. 1520)

O verbete começa fazendo referência à violência, às lutas e perturbações sociais

diferentemente do anterior que começa com a paz entre os Estados. Há, pois, uma inversão na

topicalização dos enunciados definidores das palavras – fato a ser notado nos três dicionários

- onde o social é tido como sentido principal. Tais referências (violência, lutas,

perturbações...) andam sempre com o discurso da paz, pois para se falar em paz é necessário

falar da violência3 e, vice-versa. Esta dualidade está sempre presente nos discursos sobre a

paz como veremos neste TCC.

Em (1) “ausência de perturbações sociais”, temos uma definição que nos leva a

entender que a “paz”, em um foco social, pode ser, por exemplo, a ausência de manifestações

estudantis, de lutas por direitos da população, por qualquer tipo de manifestação social. Isso

pode ser corroborado pela “Tranqüilidade pública” que também aparece nesse verbete e que

nos remete ao mesmo sentido de não haver manifestações públicas. Em seguida vem a palavra

“concórdia” que, segundo o próprio Aurélio, é a “harmonia de vontade e/ou de opiniões.” Mas

“Concórdia” no Michaelis define-se: “paz e harmonia entre pessoas que possuem espírito de

compreensão e tolerância.” E de acordo com sua etimologia (concórdia): inteligência, acordo.

Mas, no verbete que define a “paz”, do dicionário de Michaelis, a palavra “concórdia” vem

especificada como “concórdia nas famílias” o que a diferencia do Aurélio que a define com

foco no social. Pensemos assim, se a palavra concórdia pode ser sinônima de inteligência,

3 Também podemos perceber que os acontecimentos horrendos e traumáticos em certas sociedades, ou melhor, o discurso de violência/lutas é mais instigante do que o da paz. E percebemos isso ao pesquisar na internet sobre a “paz” e o que mais se encontra é sobre a violência.

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então os sujeitos que não têm a “concórdia nas famílias” também não têm inteligência e logo

não têm a paz.

Temos agora o enunciado (2), o foco é no indivíduo: “ausência de conflitos entre

pessoas; bom entendimento, entendimento, harmonia: vive em paz com os vizinhos e

colegas.” Este enunciado, restringe vários sentidos, a começar pela palavra “conflitos” que

remete a “entre pessoas”. Na palavra “entendimento”, podemos perceber dois tipos: o “bom

entendimento” e simplesmente “entendimento”, assim a paz é sinônimo de bom entendimento

e de um entendimento qualquer independentemente se é bom ou não. Outro termo que

restringe o sentido de paz é “harmonia”, que vem seguido de uma frase: “ vive em paz com os

vizinhos e colegas”. Tal definição de harmonia, logo de paz, restringe seu sentido a : haver

harmonia/paz apenas entre vizinhos e colegas, pensando dessa maneira que o dicionário nos

direciona a entender que o resto da sociedade não vive em harmonia/paz. É apagado nesse

enunciado outros fatores necessários para se viver em paz, pois a paz não se resume em viver

em harmonia apenas com vizinhos e colegas, mas sim com todos, considerando as diferenças

e aprendendo a lidar com elas.

Aparece em seguida, o enunciado (3), mas com relação ao (2) na definição “ausência

de conflitos” que está divido em dois: ausência de conflitos entre pessoas (2) e ausência de

conflitos íntimos (3). Mais uma vez apagando o que podemos questionar: Como um sujeito

pode não ter conflitos se este existe até consigo mesmo? Como não ter conflitos íntimos? Os

conflitos fazem parte do ser humano, pois não pensamos nem agimos da mesma forma. Criam

definições para paz em que não existem possibilidades para que ela se concretize. Se a paz for

definida de maneira que ninguém consegue alcançá-la, como conseguir promovê-la?

Continuando nossa análise. Ainda no enunciado (3), temos a definição: “tranqüilidade

de alma, sossego: goza de paz absoluta”, como no caso do verbete analisado anteriormente no

dicionário Michaelis: “repouso” que pode ser associada a morte, portanto, à “paz absoluta”

que aparece neste verbete do Aurélio reforçando a idéia de que a paz absoluta existe apenas

na morte, porque somos sujeitos de conflito e nunca conseguiremos, em vida, ter essa paz que

foi definida nesses dicionários.

O enunciado que vem em seguida (4) é uma sentença “Situação de um país que não

está em guerra com outro: grandes são os benefícios das épocas de paz” (grifo nosso).

Colocamos o termo “épocas” sublinhado para que possamos trabalhar esse novo sentido da

paz que encontramos e que está associado a um “estado” ou “período” de tempo, ou seja, a

paz é situada historicamente. Por que será que a paz não pode ser algo contínuo? Absoluto em

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todos os sentidos em que ela aparece? Ou melhor, a paz pode ser contínua no sentido de não

haver nenhum conflito? Pode haver união em tudo? O que queremos dizer é que não

conseguimos ter uma paz contínua porque o homem é um ser histórico em toda a sua relação

consigo mesmo, com o outro e com o mundo – pode-se ter ou não conflito em relação a algo,

isso irá depender das ideologias e da história em que o sujeito se constitui e se individualiza.

Na definição (5), temos: “Restabelecimento de relações amigáveis entre países

beligerantes; cessação de hostilidade: breve foi a paz entre os dois países.” Notemos que

quando o Aurélio usa os termos “restabelecimento de relações amigáveis”, percebemos – no

não dito - que há outros tipos de relações existentes e que, provavelmente, deve ser o oposto

das relações amigáveis. Portanto, o restabelecimento de relações amigáveis se dá a partir do

seu oposto. A próxima “cessação de hostilidade” nos levou a analisar um outro verbete, por

não ser sido ainda mencionado e acarretar vários sentidos para nossa análise: aquele centrado

no sujeito.

hostil

(i) Adj2g 1. Que se opõe claramente a alguém ou a alguma coisa. 2. Que age como inimigo; agressivo. 3. Próprio de inimigo, pouco amistoso. [Pl.:-tis] hos.ti.li.da.de sf.;hos.ti.li.men.te adv.

Ao vermos o enunciado (5) definindo a paz como “cessação de hostilidade” e ao

procurarmos, no mesmo dicionário (Aurélio), o verbete “hostil”, conseguimos criar uma nova

imagem desse termo, pois foi encadeado à descrição outros termos definidores que levam a

outros sentidos, considerando que “hostil” seja sinônimo de: “que se opõe claramente a

alguém ou a alguma coisa; que age como inimigo; agressivo; próprio de inimigo, pouco

amistoso.” Pensemos em uma paz que existe com cessação de hostilidade – essa hostilidade

definida pelo Aurélio. E temos então, um sujeito que não se opõe a nada, que não é inimigo de

ninguém, que não é agressivo, um sujeito que o Michaelis define como “pacífico”.

Outro enunciado definidor desse verbete é o da “ausência de agitação ou ruído;

repouso, silêncio, sossego: a paz do campo”. Reparemos que “repouso” e “silêncio”

aparecem, também, no verbete do dicionário Michaelis, mas diferentemente do dicionário

Aurélio aparece com uma especificação marcada pela pontuação “:” e seguida de “a paz do

campo”, trazendo uma nova dicotomia para a nossa reflexão cidade X campo, urbano X rural,

e direcionado o sujeito a entender que encontramos repouso e silêncio apenas no campo.

Já o sentido de “ausência de agitação ou ruído” nos traz a idéia de ausência de alguma

coisa: um vazio e, assim, tornando seu sentido negativo. Pois quando se pensa em ausência,

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logo se pensa em não-presença. Acontece então o que Orlandi, em sua obra intitulada “As

formas do Silêncio”, (1993) chama de silenciamento, termo que dentro da teoria de AD tem

como definição:

O silêncio é assim a “respiração” (o fôlego) da significação; um lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido. Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é “um”, para o que permite o movimento do sujeito. (ORLANDI, 1993, p. 13)

E ela prossegue (p.14) quando diz que o silêncio “atravessa as palavras, que existe

entre elas, ou que indica que o sentido pode sempre ser outro, ou ainda que aquilo que é o

mais importante nunca se diz, todos esses modos de existir dos sentidos e do silêncio nos

levam a colocar que o silêncio é ‘fundante’”. (grifo nosso) Nisso, podemos perceber que

quando o dicionário dá um sentido a uma palavra ele logo silencia outros sentidos, no caso, a

diferença. Somos diferentes porque somos sujeitos históricos e ideológicos. E o papel da

ideologia é “produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas

condições materiais de existência.” (ORLANDI, 1999, p. 46).

Quando aparece, fazendo parte do enunciado (7), “Ser de boa paz: ter índole pacífica”

já está em um sentido mais “naturalizado”, pois a palavra “índole” é o mesmo que “caráter”

algo com que já nascemos. Então para que um sujeito seja “de boa paz” é preciso que já esteja

geneticamente traçado.

Em relação ao termo “pacífico”, termo esse que já foi analisado no dicionário

Michaelis, vale a pena retomá-lo: “Adj.1.amigo da paz; tranqüilo, pacato. 2. aceito sem

discussão ou oposição.” (FERREIRA,2001, p.507). Como já discutimos antes, o sujeito

pacífico que o dicionário descreve é aquele passivo que “aceita sem discussão ou oposição”

os acontecimentos ao seu redor. No Aurélio, um pouco diferente do Michaelis, esse sujeito

pacífico não adquire esse caráter, mas nasce com ele.

Ao termos uma visão geral do dicionário Aurélio percebemos que é constante a

presença do termo “ausência”, nos fazendo pensar que a paz não é isso ou aquilo. Na verdade

a paz parece ser a ausência de algo, algo é silenciado, mas faz parte desse discurso e Orlandi

fala que “ao invés de pensar o silêncio como falta, podemos, ao contrário, pensar a linguagem

como excesso.” E o que está em excesso nesse verbete é a presença da palavra “ausência” que

se complementa com os termos “violência/ lutas/conflitos/perturbações/agitação”.

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Passemos, então, para o verbete do dicionário Houaiss (2007, p.2158):

1. Relação entre pessoas que não estão em conflito; acordo; concórdia < a p. vigora naquela casa > < é uma pessoa que vive em paz>. 2. Relação tranqüila entre cidadãos; ausência de problemas, de violência < o bom funcionamento da justiça garante a paz> 3. Situação de uma nação ou um Estado que não está em guerra; relação dos países que desfrutam dessa situação < tempos de paz> 4. Cessação total de hostilidade entre Estados mediante celebração de tratado; armistício < os países beligerantes finalmente vão assinar a paz> 5. Estado de espírito de uma pessoa que não é perturbada por conflitos ou inquietações; calma; quietude, tranqüilidade < encontrou a paz na devoção religiosa><sua consciência está em paz> 6. Estado característico de um lugar ou de um momento em que não há barulho e/ou agitação, calma sossego < a paz de um mosteiro> paz podre tranqüilidade resultante da falta de ação, da indiferença ou da estagnação. Paz pública estado de tranqüilidade e harmonia de uma coletividade assegurada pela ordem jurídica; paz social. Jogar à paz. LUD jogar numa só parada (‘lance’) tudo que se ganhou do parceiro para que este tenha oportunidade de recuperar o perdido e ficar em paz. Ser de boa paz temperamento tranqüilo, pacifico. ETIM lat. pax, pãcis’paz, estado de paz, tratado de paz. SIN/VR ver antonímia de confusão, desinteligência, fúria e rebelião. ANT guerra; ver também sinonímia de confusão, desinteligência, fúria e rebelião.

O verbete do dicionário de Houaiss refere-se, diferentemente dos dois primeiros

dicionários, à relação entre pessoas, não mais à relação entre Estados ou entre pessoas de uma

comunidade. No enunciado (2), o verbete, mais uma vez, faz referência à relação entre

cidadãos (indivíduos), e os termos “acordo” e “concórdia” que estão no enunciado (1),

também fazem parte do mesmo sentido que é o “sentido principal que seria o literal” para o

qual ORLANDI (2002, p.107) chama a atenção. Nos outros dicionários – Michaelis e Aurélio

-, os enunciados estavam voltados para a paz entre Estado, País, Nação, e a paz no espaço

social urbano, respectivamente. Podemos perceber, então, que as condições de produção do

dicionário do Houaiss, o mais moderno, estão relacionadas ao sujeito urbano, um sujeito cada

vez mais individualista, pelo efeito do capitalismo em que o que importa é o aqui-e-agora.

Outro aspecto, que também aparece no Houaiss, são os exemplos, que servem para

restringir/delimitar os sentidos. No enunciado definidor 1, temos: “1. Relação entre pessoas

que não estão em conflito; acordo; concórdia < a p. vigora naquela casa > < é uma pessoa que

vive em paz”, o dicionário coloca dois exemplos que irão produzir determinado efeito-leitor:

ao lermos o verbete podemos, ou não, nos identificar com tal definição, embora na maioria

das vezes nos identifiquemos.

No enunciado (2), “relação tranqüila entre cidadãos; ausência de problemas, de

violência<o bom funcionamento da justiça garante a paz>”, aparecem três definições que, por

estarem no mesmo enunciado e por terem apenas um exemplo para os três, possuem relação

entre sim. Tais definições resumem-se ao “funcionamento da justiça”, então a relação

tranqüila entre os cidadãos, a ausência de problemas e a ausência de violência se resumem em

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um bom funcionamento da justiça para, finalmente, assim, termos a garantia da paz. Mas,

pensemos na tranqüilidade. Será que apenas a justiça garante isso? E a ausência de

problemas? Será que é possível a ausência de problemas tanto entre cidadãos quanto em uma

sociedade desigual como a brasileira?

O enunciado (5) que também faz referência ao interior do indivíduo acontece também

nos outros dicionários analisados: “Estado de espírito de uma pessoa que não é perturbada por

conflitos ou inquietações; calma; quietude, tranqüilidade < encontrou a paz na devoção

religiosa><sua consciência está em paz>”. Novamente podemos pensar no aqui e agora de

uma sociedade que não suporta limites, dor e a busca da felicidade, da vida sem sofrimento é

uma constante. A depressão é o mal do século. A paz de espírito de uma pessoa acontece

quando ela não é “perturbada por conflitos ou inquietações”. E seus exemplos nos levam ao

sentido de que a paz de espírito será encontrada na devoção religiosa – aspecto que não fora

mencionado nos outros dicionários. Vemos, pois, o discurso religioso fazendo parte, então,

dos enunciados da paz 4. O outro exemplo já transforma a paz em estado de consciência, ou

seja, a “...pessoa que não é perturbada por conflitos ou inquietações” possui a consciência em

paz.

Quando chegamos à definição (6), “Estado característico de um lugar ou de um

momento em que não há barulho e/ou agitação, calma sossego< a paz de um mosteiro>”, o

sujeito desloca o significado de paz para o “de um lugar ou um momento”; a paz passa a

existir em uma localidade – geograficamente (um mosteiro – funcionando, mais uma vez, o

discurso religioso) e, também, algo que acontece através do tempo – como minutos, horas,

segundos de paz. Ao colocarmos esse sentido em prática podemos imaginar que a paz tem

lugar e hora para existir.

Retomemos o primeiro enunciado, que diz: a paz é “relação entre pessoas que não

estão em conflito”; o exemplo: “é uma pessoa que vive em paz"; e o terceiro enunciado:

“Situação de uma nação ou um Estado que não está em guerra”. Nesses e em outros

enunciados desse verbete há, analisando sintaticamente, a presença da oração subordinada

adjetiva restritiva, onde, por exemplo, o sentido de “relação entre pessoas” se restringe

apenas as pessoas que não estão em conflito. Outro aspecto a se notar é a presença constante

da negação nos enunciados definidores. E se ao definir a paz, aparece constantemente a

4 É interessante saber que muitas das ONGs e sites sobre a paz usam o discurso religioso como poderemos perceber no segundo capítulo desse TCC.

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restrição e a negação, então a paz é (atualmente) aquilo que restringe e nega alguma coisa.

Portanto, a individualização do sujeito se dá pela negação e restrição. Chegamos então, mais

uma vez, ao que já foi dito anteriormente: o silenciamento de outros sentidos.

Esse silenciamento funciona de diferentes formas. Alguns enunciados definidores

aparecem em um dicionário e não aparecem em outros. O Michaelis é o único em que há uma

relação entre “União, concórdia nas famílias.” A palavra “união” não está no dicionário mais

atualizado (Houaiss). Que sentidos são esses que vão mudando a casa instante, mas que não

estão perto da realidade em que vive a sociedade que necessita encontrar uma forma de viver

a paz? Na teoria de Análise de Discurso, tais questões são respondidas pelo fato de que os

sentidos funcionam através da história e:

...a Análise de Discurso pressupõe o legado do materialismo histórico, isto é, o de que há um real da história de tal forma que o homem faz história mas esta também não é transparente. Daí conjugando a língua com a história na produção dos sentidos....”(ORLANDI, 1993,p.19)

Depois desse percurso, talvez seja interessante retomarmos o poema de Orides Fontela

que transcrevemos no início do Capítulo e observarmos como ela sabe falar tão bem do que

foi silenciado, apagado.

A Paz não reconstrói: elide a trama e o verbo.

A Paz não organiza: explode o núcleo-tempo

A Paz Não é letal: vivifica.

A paz não apazigua: fere.

A Paz não acalma: renova o ser e o sangue.Ao lermos o poema, já percebemos que é um discurso diferente do que encontramos nos dicionários: a autora inverte toda a concepção de paz que vimos até agora. Essa nova discursividade reconstrói o conceito de paz e esses novos conceitos podem ser conhecidos como efeito metafórico que, segundo Pêcheux (1969) em uma citação de Orlandi (1999), é “o fenômeno semântico produzido por uma substituição contextual, lembrando que este deslizamento de sentido entre x e y é constitutivo tanto do sentido designado por x como por y.” (p.78) Assim a metáfora não é vista como

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substituição de sentido, mas sim de transferência, ou seja, um sentido vai passando para outro diferente,

“mas essa diferença é sustentada em um mesmo ponto que desliza de próximo em próximo, o que nos leva a dizer que há um mesmo nessa diferença... Tanto o diferente como o mesmo são produção da história, são afetados pelo efeito metafórico.” (ORLANDI, 1999, p.79)

O que acontece é o resultado do “mesmo e o diferente” sendo que, aqui prevalece o

diferente, a polissemia, evidenciando o que foi silenciado. O que aconteceu foi o

deslocamento para outros possíveis sentidos. Vemos aí, também, funcionando o silêncio e não

nos esqueçamos de que para a AD “o silêncio não fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor:

no silêncio o sentido é.” (ORLANDI, 1993, p.33) Portanto o sentido mostrado pela autora

pode não aparecer nos dicionários, mas ele existe.

Quando ela começa o poema dizendo que a paz “não reconstrói” - está em nossa

memória o discurso que a paz reconstrói, pois após as duas guerras mundiais para que se

pudesse reconstruir as cidades destruídas, até mesmo as vidas das pessoas, era necessário que

a guerra cessasse e fosse declarada a “paz”. A autora reescreve essa história/memória ao

acrescentar : “elide a trama e o verbo”, onde além de negar essa memória de “reconstrução

que a paz nos traz, ela dá uma nova significação para tal conceito.

Outra palavra que a autora nega é “apaziguar” que tem como sinônimo “pacificar” que

também deriva da palavra latina que significa paz; a poeta diz que “fere.” Podemos pensar em

pacificar como tendo o sentido de acalmar o comportamento infantil, mas também de

repressão militar. E aí fere.

Quando ela diz que a paz não “organiza: explode”, podemos pensar no sujeito que os

dicionários analisados descrevem como pacífico: aquele que não causa perturbações sociais,

aquele que não está em conflito consigo mesmo. Pois um sujeito assim jamais iria se alterar:

“explodir”, de acordo com os dicionários. Fontela, nesse verso, nos anuncia que esse sujeito

pacífico iria explodir, pois não somos máquinas e somos diferentes uns dos outros.

A poesia, um outro espaço simbólico de individualização do sujeito feito de negação,

mas agora significando diferentemente: a paz não reconstrói, não organiza, não é letal, não

apazigua, não acalma. Uma outra possibilidade de significar o mundo e a si mesmo. Um outro

sujeito pacífico.

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CAPÍTULO 3 A administração da Paz

Depois de uma nova prática de leitura de dicionários, mediada pela AD, por meio de

verbetes que nos ajudaram a compreender os sentidos da “paz” em nossa sociedade, podemos

passar para outra etapa de nossa pesquisa, de acordo com o corpus construído: a descrição e

análise de, alguns sites sobre a paz, por onde, na verdade, iniciamos um trabalho na disciplina

da Análise do Discurso no semestre passado e onde descobrimos que a paz pode se desdobrar

em vários tipos de paz como: a paz na escola, na família, no trabalho, no futebol, no trânsito.

Enfim, um tipo de paz para cada necessidade do cidadão da nossa sociedade.

Marilena Chauí, em uma matéria feita para a Folha de S. Paulo, intitulado “Uma

ideologia perversa”, em seu Caderno Mais!, de 14 de março de 1999, trata da questão da

violência em relação à ética na sociedade brasileira. Ali, ela fala que existe também uma

multiplicidade de éticas – “ética política, ética familiar, ética escolar, ética de cada categoria

profissional, ética do futebol, ética da empresa” -, o que leva a uma negação de qualquer

universalidade e a considerar a ética como “competência específica de especialistas”. Parece

que o mesmo ocorre com a paz. Além disso, ela diz que:

Aqui, confunde-se ética e organização administrativa, isto é, a ética é tomada como um código de condutas que define hierarquias, cargos e funções, das quais dependem responsabilidades funcionais para o bom andamento de uma organização. Além de confundir-se com a funcionalidade administrativa, a pluralidade de éticas também exprime a forma contemporânea da alienação, isto é, de uma sociedade totalmente fragmentada e dispersa que não consegue estabelecer para si mesma nem sequer a imagem da unidade que daria sentido a sua própria dispersão. (grifo nosso)

Pêcheux, em seu livro “Discurso: estrutura ou acontecimento” (1990, p. 30), também

irá falar de um outro modo, dessa administração do que ele chama de espaços discursivos

logicamente estabilizados em que se faz a gestão social dos indivíduos através de uma

multiplicidade de técnicas, marcando-os, identificando-os, classificando-os, colocando-os em

ordem, em colunas, em tabelas, reunindo-os e separando-os segundo critérios definidos, “a

fim de colocá-los no trabalho, a fim de instruí-los, de fazê-los sonhar ou delirar, de protegê-

los e de vigiá-los, de levá-los à guerra e de lhe fazer filhos...”.

E ele prossegue, dizendo que as coerções não são impostas ao sujeito somente por

algo/alguém externo a ele, mas pelo próprio sujeito que ele chama de sujeito pragmático, “isto

é, cada um de nós, os ‘simples particulares’ face às diversas urgências de sua vida”. (p. 33)

Podemos, então, nos perguntar como esse desdobramento da paz reflete um modo de gestão

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desse sujeito moderno, urbano, escolarizado da sociedade capitalista? Que sentidos aí se

produzem? Até que ponto temos o mesmo sob a forma do diferente nesses espaços

discursivos da paz?

A grande maioria dos sites a que tivemos acesso, pertence às ONGs – Organizações

não Governamentais, evidenciando uma pluralidade, também, dessas organizações, que vêm

crescendo de forma assustadora. Os sites foram os que se seguem.

1. www.educapaz.org.br 2. www.soudapaz.org 3. www.calendariodapaz.com.br 4. www.rodasdapaz.org.br 5. www.riodepaz.org.br 6. www.pazagora.com.br 7. www.gabrielasoudapaz.org/ 8. www.londrinapazeando.org.br 9.Estudos para a paz: http://www.ces.uc.pt/nucleos/nep/apresentacao.php 10. Programa Paz na Escola: http://www.mj.gov.br/sedh/paznasescolas/ 11. A paz na família: http://my.hobi.com.br/albano/mandamentos.html 12. Paz no casamento: http://humor.stupidnews.com.br/viewtopic.php?t=182&sid=adbf550a 677ccf509fb9 e516dbf86b80 13. A paz no trabalho: http://www.crabauru.org.br/noticia.php?news_id=303&acao=ler 14. Projeto paz no futebol: http://www.procon.sp.gov.br/noticia.asp?id=373 15. Paz no trânsito: http://www.revelacaoonline.uniube.br/a2002/cidade/transito.html 16. Origens religiosas da palavra paz: http://www.hermeneutica.com/estudos/paz_2.html 17. Site de palavras de paz: www.palavradepaz.com.br 18. 10 mandamentos do Papa-http://g1.globo.com/Noticias/0,,PIO54741-5602,00.html

A lista acima contém sites de ONGs sobre a paz e sites em que, independentemente de

seu conteúdo, tratam de algum tipo de paz, como acontece no site da “paz na família”, que

pertence a uma empresa que atua no fornecimento de equipamentos para indústria de

processamento de carnes. Portanto, é importante sabermos as condições de produção que se

dão em tais “tipos de paz”, para que se compreenda os sentidos e sujeitos que aí se

constituem.

Os discursos das ONGs, voltados para a paz, têm como contraparte necessária a

violência, mostrando, por exemplo, exemplos de atos de violência contra as pessoas, como

acontece com o discurso do dicionário, em que não se pode falar de paz sem falar de

violência. No Aurélio, por exemplo, a estrutura e o funcionamento do verbete “paz” é

marcado pela palavra “ausência”: ausência de luta, de violência, de perturbações, de conflitos,

de agitações, de ruídos.

Chauí, no texto anteriormente, mencionado, ao mostrar que a ética está sempre

vinculada também à violência, diz que esta significa:

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... 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressão contra o que alguém ou uma sociedade define como justo e como um direito. Conseqüentemente, a violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e intimidação pelo medo e o terror.

Podemos observar que o foco, nessa forma de conceber a violência, está centrado no

sujeito, apagando o econômico, o social e o político. Trata-se de um modo de individualização

desse sujeito moderno, urbano, escolarizado.

Por outro lado, a mesma autora chama a nossa atenção para o que é apagado,

silenciado, quando a violência, logo a ética, (no nosso caso, a paz), está centrada em ações do

e para o sujeito, apagando a violência estrutural da sociedade brasileira: uma sociedade que

estruturou suas relações sociais e intersubjetivas nos moldes da escravidão, seja dos índios,

seja dos africanos. Para ela, o que está sendo apagado nessa relação entre violência e ética,

seria o dispositivo em que a violência é caracterizada apenas como crime contra “a

propriedade e a vida”, seria o dispositivo jurídico. Fala também do dispositivo sociológico

que considera a violência como um momento de deficiência na sociedade em que os grupos

sociais menos desenvolvidos, ou melhor, “atrasados”, entram em atrito com os grupos sociais

mais desenvolvidos. Outro dispositivo é o da exclusão onde os sujeitos são divididos em os

violentos e os não-violentos e, por último, a violência como um acidente, ou como algo que

acontece do nada, e que percebemos isso quando os meios de comunicação “se referem à

violência com as palavras “surto”, “onda”, “epidemia” “crise”, isto é, termos que indicam

algo passageiro e acidental.” (CHAUI, 1999)

Em se tratando da relação entre violência e paz, o que estará sendo apagado, silenciado

nos discursos dessas ONGs? Orlandi, em seu livro as “As formas do silêncio” (1990), irá

mostrar como isso funciona em termos de Análise de Discurso: “O funcionamento do silêncio

atesta o movimento do discurso que se faz na contradição entre o ‘um’ e o ‘múltiplo’, o

mesmo e o diferente, entre paráfrase e polissemia.” (p.17). A autora prossegue sua análise

dizendo que “para se compreender a linguagem é preciso entender o silêncio para além de sua

dimensão política... chegando a hipótese de que o silêncio é a matéria significante por

excelência, um continuum significante. O real da significação é o silêncio” (p.31)

No decorrer desse capítulo vamos percebendo que esse silenciamento que, segundo

Orlandi, significa, e que também é discurso está silenciando coisas diferentes, como os

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interesses capitalistas e a presença constante da violência como sustentação para se promover

a paz. E dado o tempo que dispúnhamos para o trabalho, resolvemos selecionar alguns sites e

dividi-los em grupos que tivessem algo em comum. Analisamos, pois, três grupos: a) a paz na

relação entre o discurso religioso e o discurso social; b) a paz no discurso voltado para o

desenvolvimento financeiro: negócios/mercado. c) a paz tendo como foco a não-violência.

Fazem parte do primeiro grupo os seguintes sites: a paz na família: http://my.

hobi.com.br/albano/mandamentos.html; e paz no trânsito: http://www.rodasdapaz.org.br5.

Falamos da presença do discurso religioso pelo o fato de eles trazerem para a cena enunciativa

os 10 mandamentos de forma explícita. Como contraponto a estes sites, analisamos também

as “Diretrizes para o cuidado pastoral da estrada”, elaboradas pelo Papa Bento XVI:

http://g1.globo.com/Noticias/0,,PIO54741-5602,00.html

Para compreender a paz em relação aos negócios/mercado, trabalhamos os seguintes

sites: a paz no trabalho: http://www.crabauru.org.br/ noticia.php?news_id=303&acao=Ler; e a

paz no futebol: http://www.procon.sp.gov.br/ noticia.asp?id=373.

No terceiro grupo, trabalhamos com os seguintes sites: “http://www.gabrielasouda

paz.org”; “http://www.londrinapazeando .org.br” e, por último, uma nova discursividade: uma

piada tendo como referente a “paz no casamento”: http://humor.stupidnews.com.br/viewto

pic.php?t=182&sid=adbf550a677ccf509fb9e516dbf86b80, nos trazendo um outro sentido

que, mesmo no contexto da comédia, não deixa de ser fato que acontece na sociedade.

Comecemos nossa análise com o primeiro grupo, aqueles que se estruturam tomando

como referência explícita os “10 mandamentos”. Dez mandamentos para a paz na família e os

Dez mandamentos do Trânsito, produzindo um efeito de consenso nos que têm acesso a esses

discursos. No discurso religioso, os mandamentos são um conjunto de regras que devem ser

seguidas para que os fiéis alcancem a salvação eterna. No caso dos discursos que estamos

analisando, o objetivo está voltado para a vida social da população, mas de diferentes

maneiras.

Vamos começar nossa descrição e análise com os mandamentos para a paz na família.

Abaixo segue um quadro com os dez mandamentos para a paz na família:

5 Utilizamos neste TCC um folheto contendo os 10 mandamentos ... , que foi analisado em trabalho realizado para a disciplina Análise do Discurso no semestre passado. Naquela época, o folheto podia ser encontrado no site: www.rodasdapaz.org.br. Atualmente, ele já não se encontra ali.

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10 Mandamentos para a Paz na Família

1. Tenha fé e viva a Palavra de Deus, amando o próximo como a si mesmo. 2. Ame-se, confie em si mesmo, em sua família e ajude a criar um ambiente de amor e paz ao seu

redor. 3. Reserve momentos para brincar e se divertir com sua família, pois a criança aprende brincando e

a diversão aproxima as pessoas. 4. Eduque seu filho através da conversa, do carinho e do apoio e tome cuidado: quem bate para

ensinar está ensinando a bater. 5. Participe com sua família da vida da comunidade, evitando as más companhias e diversões que

incentivam a violência. 6. Procure resolver os problemas com calma e aprenda com as situações difíceis, buscando em tudo

o seu lado positivo. 7. Partilhe seus sentimentos com sinceridade, dizendo o que você pensa e ouvindo o que os outros

têm para dizer. 8. Respeite as pessoas que pensam diferente de você, pois as diferenças são uma verdadeira riqueza

para cada um e para o grupo. 9. Dê bons exemplos, pois a melhor palavra é o nosso jeito de ser. 10. Peça desculpas quando ofender alguém e perdoe de coração quando se sentir ofendido, pois o

perdão é o maior gesto de amor que podemos demonstrar.

O primeiro aspecto a se notar diz respeito às condições de produção em termos de seus

interlocutores. Esses mandamentos para a paz na família, como já dissemos foi encontrado em

um site de uma empresa que atua no fornecimento de equipamentos para indústria de

processamento de carnes de nome “Electra Tecnologia”. Tal site não tem nenhuma ligação

“aparente” com o que podemos chamar de “discurso sobre a família”, mas como já dissemos

que os sentidos não estão escancarados e que quando usamos um discurso apagamos outros e

também, que a linguagem funciona histórica e ideologicamente, então podemos afirmar que a

relação dessa empresa com o discurso da paz na família é o consumo6, pois quem compra

carne, quem consome, quem dá lucro é a família.

O site não tem logotipos, nem imagens; um site simples com o nome e telefone de

contato da empresa, mas que contêm os “10 mandamentos para a paz na família”.

Por que a família não está em paz? E se a família não está em paz é porque os

mandamentos que são listados não estão em prática. O mandamento (2), por exemplo, diz

“Ame-se, confie em si mesmo, em sua família e ajude a criar um ambiente de amor e paz ao

6 Nos comerciais de televisão sempre que o produto é alimentício os cenários são construídos com famílias que estão aparentemente felizes. Portanto, para se vender comida ou algo do gênero, é necessário utilizar no imaginário do público alvo desse consumo: a família.

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seu redor.” Se o dito significa em relação ao não dito poderíamos fazer uma paráfrase e dizer

que na família não se ama, algo que chocaria, pois no imaginário, família é sinônimo de amor.

O discurso da “paz na família” traz sentidos voltados para sujeitos que têm como

prioridade na vida a sua família; o pai, a mãe, responsáveis por adquirir o que há de essencial

para a família, como a comida. Conforme Orlandi (1999), a ideologia trabalha colocando o

indivíduo “na relação imaginária com suas condições materiais de existência”.

No mandamento (9), “Dê bons exemplos, pois a melhor palavra é o nosso jeito de

ser.”, é interessante os termos “jeito de ser”, pois está relacionado ao natural do homem, como

ele nasce. Se associarmos isso ao que é dito nos dicionários, podemos dizer que esse “jeito de

ser” está ligado ao sujeito pacífico, inofensivo, bonacheirão que o dicionário Michaelis define

como sendo o que não ofende, que não escandaliza, que não faz mal, ou, que é aceito sem

disputa ou contestação. Tal sujeito é aquele que permite que a família esteja em paz.

Podemos identificar, inicialmente, como discurso principal, o discurso religioso

servindo como principal efeito ideológico. Mas, ao caminharmos na análise, observamos que

ele está, na verdade, dominado pelo discurso econômico (vender carne).

Observamos, ainda, analisando o mandamento 3 – “reserve momentos para brincar e

se divertir com sua família, pois a criança aprende brincando, e a diversão aproxima as

pessoas”, a presença de uma discursividade que estimula o individualismo e não a

convivência coletiva. Teremos, então, cada família fechada em si mesma. Isso acontece no

discurso do dicionário Houaiss que tem como sentido principal o indivíduo e não a

convivência social. E se pensarmos o que diz Orlandi a respeito de que os sentidos funcionam

por paráfrase, podemos dizer que esse discurso da paz na família, mais uma vez, diminui o

que podemos chamar de humanização, ou seja, quando afunilamos certos conceitos, estamos

individualizando-os. Através do discurso religioso, o sujeito (pensando ser autônomo e livre

nas decisões) se submete aos interesses do mercado, no caso, aos interesses de uma indústria

de carnes.

Podemos concluir que esse discurso individualiza, restringe as ações do sujeito a

funcionar apenas dentro da família, assim excluindo a sociedade como algo mais amplo em

que exerceria sua cidadania.

Passemos agora para o folheto sobre a paz no trânsito que foi entregue nas ruas do

Distrito Federal e também estava disponível no site da ONG “Rodas da Paz”, uma ONG

“Rodas da Paz” voltada para os ciclistas: a “paz no trânsito” para os ciclistas.

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Por que o trânsito precisa de paz ou de convivência pacífica? Outra questão. No

trânsito só existem ciclistas e motoristas? E os pedestres? A ONG é voltada para a segurança

dos ciclistas no trânsito, então o seu discurso será sempre em benefício dos ciclistas, portanto

os pedestres e os próprios motoristas não têm vez nesse discurso.

Outra característica interessante presente no folheto, ou seja, mais uma fragmentação.

Ele é dividido em cinco “mandamentos” para os ciclistas e cinco “mandamentos” para os

motoristas. Se afirma, também, que para se ter “uma convivência pacífica no trânsito” deve-se

obedecer a tais “mandamentos” que aparecem no folheto, sustentados por uma chamada “É

LEI”, que está em um círculo pontilhado que nos lembra uma placa de trânsito. Tendo abaixo

uma frase “Com respeito, a gente vai longe”. Interessante lembrar que em nossa análise dos

dicionários, a palavra “respeito”, que aparece fazendo parte dos enunciados definidores de

“paz”, nos trazia outros sentido:”obediência”, “acoitamento”, ou “sentimento de medo”,

transformando essa frase-slogan em um discurso autoritário, levando-nos ao que Orlandi

(1999, p.31) chama de interdiscurso que “é definido como aquilo que fala antes, em outro

lugar, independentemente. Ou seja, “é o que chamamos de memória discursiva: o saber

discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, ou já-

dito que está na base do dizível sustentando cada tomada da palavra.”.

Discurso religioso, discurso jurídico, discurso da moral. Qual será o dominante? O

processo de individualização do sujeito que se dá no discurso da “paz no trânsito” estará

marcado principalmente por qual dessas discursividades? Será um sujeito jurídico, um sujeito

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da moral ou um sujeito religioso que se espera produzir para se ter uma convivência pacífica?

Uma convivência pacífica de sujeitos pacíficos.

O discurso da ONG “Rodas da Paz” silencia outros sentidos (carência de transportes

coletivos, lucro das empresas automotivas), de diferentes maneiras (dividindo os

mandamentos, vendo o trânsito da perspectiva só dos ciclistas, etc), individualizando e

restringindo as necessidades do sujeito que precisa da “paz no trânsito”, mas não como tendo

direitos e deveres – sujeito jurídico -, mas um sujeito religioso que deve seguir mandamentos

e ainda como um sujeito da moral, que deve transformar direitos e deveres em respeito

individual. Esse sujeito que aí se constitui pode ser comparado ao sujeito que os dicionários

que analisamos propõem: “pacífico, sem agitações, silencioso; harmonioso, tranqüilo”.

Como estávamos analisando sites que tinham como textualidade traços dos

mandamentos da Igreja, achamos interessante trazer para o trabalho, as “Diretrizes para o

cuidado pastoral da estrada”, lançadas em junho pela Igreja Católica, inspiradas nos dez

mandamentos da Bíblia. Além de sair em vários jornais, também apareceu em alguns sites de

notícias. Nós o retiramos do site de notícias da rede Globo de Televisão.

“Diretrizes para o cuidado pastoral da estrada"

1) Não matarás 2) A estrada seja para ti um instrumento de ligação entre as pessoas, não de morte 3) Cortesia, correção e prudência para te ajudar a superar os imprevistos 4) Ajudar o próximo, principalmente se for vítima de um acidente 5) Que o automóvel não seja um lugar de dominação e nem lugar de pecado 6) Convencer os jovens sem licença a não dirigir 7) Dar apoio às famílias que tenham parentes vítimas em acidentes 8) Reúna-se com a vítima com o motorista agressor em um momento oportuno para que possa viver a experiência libertadora do perdão 9) Proteger o mais vulnerável 10) Você é o responsável pelos outros

A partir do título, já podemos ir observando as diferenças em relação aos

mandamentos dos sites anteriores. Trata-se de “diretrizes” da Igreja e não do Papa, enquanto

parte de uma ação maior da Igreja: a ação pastoral. E o espaço não é mais o urbano, mas o das

estradas. Trata-se, ainda, de uma proposta dirigida aos cristãos de todo o mundo. São outros,

pois, os efeitos de sentido. A posição do sujeito nesse discurso religioso é a de um sujeito que

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se constituiu em uma doutrina religiosa determinada e que os sentidos fazem parte de uma

memória discursiva.

Notamos no desenvolvimento deste TCC, que o discurso religioso sobre a paz não é

homogêneo e vem articulado a outros discursos. Percebemos isso mais claramente quando

analisamos os mandamentos para a “paz na família”, que tem como principal objetivo vender

carnes; o da paz no trânsito, proposto pela ONG “Rodas da Paz”, com o objetivo de dar

segurança apenas aos ciclistas; o da “paz nas estradas”, proposto pela Igreja Católica, com o

objetivo de fazer com que as pessoas pratiquem no trânsito os preceitos religiosos. Portanto, o

discurso religioso, não aparece apenas de uma forma, ele dependerá das condições de

produção em que aparece. Assim, se for usado por uma empresa que tem como objetivo o

lucro, então o sujeito que será afetado por esse discurso é o consumidor; se for usado por uma

instituição religiosa que tem como objetivo a conversão, então seu discurso irá visar um

sujeito que necessita de conversão.

No segundo grupo, selecionamos dois tipos de sites: o da “paz no trabalho” e o da

“paz no futebol” em que o discurso dominante é o econômico de forma explícita.

Começaremos pela paz no trabalho onde selecionamos um artigo que explicava o porquê da

necessidade da paz no trabalho para uma empresa que quer crescer:

A Paz No trabalho é um bom Negócio 12/07/2007

"Quem vislumbrar o futuro e investir em um bom relacionamento entre as equipes terá mais produtividade e sucesso". A previsão é de Luciane Beretta, vice-presidente de marketing da Associação Brasileira de Recursos Humanos no Rio Grande do Sul. Ela lembra que os problemas de relacionamento entre os colegas de trabalho são as principais causas de demissões em empresas. Luciane entende que o investimento em um bom clima na empresa pode até gerar dividendos para as companhias – na medida em que reduz o índice de rotatividade entre os funcionários. "Se levarmos em conta questões como os gastos com rescisão, seleção e treinamento – além, é claro, da produtividade –, veremos que a rotatividade é muito prejudicial", explica.

A tese de Luciane é corroborada por dados de uma pesquisa da consultoria Produtive, de Porto Alegre. A empresa ouviu 146 executivos em processo de recolocação no mercado e constatou que 60% deles haviam sido demitidos por questões comportamentais. "São pontos como a alta de adaptação a mudanças, insubordinação, atitudes negativistas, instabilidade emocional e falta de comunicação", explica Luciana Saldanha, psicóloga da Produtive e responsável pela pesquisa. Segundo ela, a maior parte dos casos está associada a mudanças em cargo de gerência e diretoria. "Há resistência para as pessoas aceitarem novas chefias. É preciso rever a postura e evitar fazer juízo de valor antecipado", recomenda a psicóloga. A vice-presidente de marketing da ABRH–RS assina embaixo. "É necessário tomar pé da situação antes de implantar uma política de ordens, compreendendo o contexto de vida dos funcionários e do local". (http://www.crabauru.org.br/noticia.php?news_id=303&acao=ler

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Ao lermos atentamente esse artigo, podemos perceber qual o propósito da “Paz no

Trabalho”: lucro. É dito no texto que a principal causa de demissões em empresas está

relacionada aos “problemas de relacionamento entre os colegas de trabalho”, levando a

empresa a fazer novas contratações e perdendo dinheiro com isso. Pois bem, se lembrarmos

da nossa análise nos dicionários no Capítulo anterior, poderemos nos lembrar de que os

dicionários ao criarem conceitos para a paz, acabaram apagando outros, pois, segundo

NUNES (2006, p.56), na fronteira entre os campos lexicais:

...são explicitadas as relações discursivas, a abordagem do campo lexical pressupõe a

existência da polissemia, das contradições, das ambigüidades; dos efeitos de sustentação e de

silenciamento, enfim, de tudo aquilo que caracteriza o campo lexical como uma série de fatos

sociais.

O que os dicionários apagaram foram as diferenças entre sujeitos: sociais, econômicas,

culturais, políticas, raciais etc. Se não aprendermos a (com-)viver com a diferença do outro

não poderemos obter a paz possível de acontecer. Quando se fala em “problemas de

relacionamento entre os colegas de trabalho”, existe aí não a necessidade de um sujeito

pacífico como o dicionário descreve. Na verdade, o que é silenciado, neste caso, é que os

relacionamentos no trabalho se tornam cada dia mais difíceis, tendo em vista a

competitividade estimulada pelo próprio sistema, a ausência de empregos, o interesse das

empresas apenas em gerar lucro. Assim, as pessoas estão em constante pressão para conseguir

um emprego, ou mantê-lo, ou para subir de cargo.

Outro aspecto a ser analisado neste texto é a presença de dados quantitativos e

qualitativos, que produzem um efeito de objetividade e de legitimidade da argumentação.

O outro tipo de paz que analisaremos será a paz no futebol. Encontramos um artigo da

Câmara Técnica do Desporto, em que lança um “plano para a melhoria das condições dos

torcedores nos estádios”. Como esse texto é longo, fizemos alguns recortes, considerando o

que já vínhamos analisando, as regularidades sempre presentes nessas discursividades.

A atual realidade de insegurança, violência e vandalismo que cercam os eventos esportivos, especialmente o futebol, contribui para o esvaziamento dos estádios. Segundo dados da Comissão Paz no Esporte, do Ministério dos Esportes e da Justiça, 79% dos torcedores deixaram de ir aos campos de futebol devido à violência, além de outros 14% motivados pelo desconforto. Esta realidade é fruto de questões de ordem social e cultural, mas principalmente devido a impunidade. A apatia dos organizadores do evento e a falta de maior integração entre as entidades envolvidas nos espetáculos futebolísticos, agravam este quadro. (http://www.procon.sp.gov.br/noticia.asp?id=373)

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A “paz no futebol”, nesse discurso, está relacionada aos torcedores das arquibancadas

dos estádios durante os jogos: ao sujeito torcedor. Torcedores que significam uma boa

quantia em dinheiro para os empresários do futebol. Se não houver mais torcedores nas

arquibancadas será muita perda de dinheiro, então se deve tomar uma atitude. A principal

causa para se promover a “Paz no Futebol” é “o esvaziamento dos estádios”. Podemos dizer

que é a principal causa, porque foi o primeiro argumento usando pela “Câmara Técnica do

Desporto”. A “paz no futebol”, em outras palavras, é para que se continue a ter torcedores em

estádios de futebol, para se ter lucro.

Os motivos do esvaziamento dos estádios, segundo o texto, são: 79% da violência,

14% por causa do desconforto, “mas principalmente devido a impunidade”. Para se obter a

paz no futebol é necessário acabar com a violência, com o desconforto e com a impunidade.

Ao pesquisarmos sobre a violência em estádios encontramos em um site um trabalho de pós-

graduação de uma estudante da Universidade Federal de Viçosa (MG), intitulado “A violência

nos estádios de futebol: uma análise dos pontos de vista intrínseco e extrínseco” 7, que nos

mostra alguns motivos para a causa da violência nos estádios que variam de:

... no momento em que uma pessoa participa de uma torcida organizada, ela está sendo constituída de situações de expansão de várias emoções, muitas vezes reprimidas pelo meio social do cotidiano. Desta forma, é diante da torcida que essa pessoa demonstra sua identidade e começa a manifestar e agir de maneira que não faria isoladamente, colocando para fora todo sentimento de impotência e frustração pessoal, que foram diluídas no coletivo das arquibancadas.

Uma das formas mais cruéis de violência no futebol, presente tanto no campo quanto nas arquibancadas, é o racismo, que por sinal existe desde os primórdios do futebol, quando somente brancos e ricos aristocratas podiam praticar esse esporte.

...a agressividade está presente em nossas vidas desde as origens do mundo e da nossa história. Acreditam que a violência constitui um componente essencial da vida humana e, ainda, está inscrita no coração do homem e no ser do mundo... (copiado do site)

O que podemos perceber desses trechos da pesquisa que citamos é que a existência de

violência nos esportes, e, em particular, no futebol, é algo que vai além do que a Câmara

Técnica cita como a “falta de impunidade”. Aí estão presentes as emoções dos torcedores nas

arquibancadas, o contexto histórico em que se formou esse esporte, e principalmente, “a

agressividade [que] está presente em nossas vidas desde as origens do mundo e da nossa

história.” Portanto a “onda” de violência que está acontecendo em estádios de futebol, não é

algo passageiro que irá acabar apenas com punição.

7 O trabalho está disponível no site http://www.efdeportes.com/efd113/a-violencia-nos-estadios-de-futebol.htm.

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Agora vamos passar para o terceiro grupo, iniciando com o site:

http://www.gabrielasoudapaz.org/, que traz como incentivo para a filiação na ONG, a história

da tragédia da menina Gabriela, de quatorze anos, que foi atingida por uma bala perdida no

metrô do Rio. Após sua morte seus pais promoveram várias campanhas pela paz, criaram um

site com o nome “Gabriela sou da paz”, tendo como logotipo uma das últimas fotos da garota

fazendo um gesto como de um pombo com as duas mãos.

O discurso do site “Gabriela sou da Paz”, aparentemente de uma ONG que luta pela

paz, é na verdade, um site que tem como principal abordagem, a história do ato de violência

que matou a adolescente Gabriela: composto de galeria de fotos da garota, reportagens em

jornais sobre sua morte e, também reportagens feitas pela televisão. Além de ter uma música

em homenagem a Gabriela, e até, uma Avenida no Rio, que recebeu o nome da adolescente.

Na parte “notícias” do site, convidam as pessoas a participarem da comunidade no Orkut8 da

ONG “Gabriela sou da Paz” e pedem que comprem a camiseta da ONG para “dar visibilidade

à nossa campanha contra a impunidade”.

Uma das partes do site é o Blog9, onde aparecem as notícias atuais sobre fatos de

violência ligados à morte de inocentes. Na nossa última visita ao site, estava como

“manchete” no Blog o julgamento de um dos algozes da estudante Maria Cláudia, que foi

8 Orkut é um site de uma rede social que tem como objetivo ajudar seus membros a criar novas amizades e manter relacionamentos. 9 Blog é uma abreviação de weblog, qualquer registro freqüente de informações pode ser considerado um blog (últimas notícias de um jornal on-line, por exemplo).

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assassinada pelos caseiros e enterrada debaixo da escada da própria casa. Além de notícias do

tipo, também são acompanhadas todas as manifestações que os pais de Gabriela fazem com a

frase “diga não a impunidade”.

Para observamos o funcionamento da posição de sujeito no discurso dessa ONG,

selecionamos uma das partes do site em que é mostrado para quem é destinada essa ONG:

Nossa nova bandeira !

Os pais de Gabriela Prado Maia (assassinada por bala perdida), a mãe de Priscila Belfort (desaparecida), os pais de André Francavilla Luz (seqüestrado e assassinado), a mãe de Marcos José Aloise (assassinado num assalto), estão se unindo para fazer esta colcha de retalhos para, mais uma vez, chamar a atenção das autoridades, fazer uma homenagem às vítimas da violência de todo o Brasil e tentar mobilizar a sociedade para que outras famílias não sintam esta eterna dor! Se você sente essa dor de ter um ente querido desaparecido ou que tenha sido vítima fatal ou mutilada pela violência, participe dessa. (grifos nossos)

Notemos que as pessoas, que estão “unidas” para fazer a colcha de retalhos, estão

“unidas” por causa de algo em comum: a violência. Em outras palavras: eles estão “unidos”

não pela paz, mas, sim, pela violência; se não tiverem tido a experiência de violência, não

farão parte dessa comunidade. Uma comunidade que é uma colcha de retalho: o somatório de

casos pessoais, costurados pela violência. Os efeitos de sentido entre os interlocutores, neste

site, se darão do lugar da violência, mesmo que seja para negá-la. Poderemos dizer que temos

aí a posição de sujeito pacífico produzida pelos dicionários? O que move essas pessoas?

Ao analisar os nomes dos que participam e o porquê de sua participação (que aparece

em parênteses), o sentido que aí aparece é o de que essas pessoas só estão unidas pela paz por

causa da experiência de violência que sofreram! Podemos perceber também que a partícula

“se”, que aparece grifado, funciona como condição, ou, até mesmo, como exclusão, pois nesse

discurso só “se você sente essa dor de ter um ente querido desaparecido ou que tenha sido

vítima...” poderá participar dessa comunidade. O sujeito que não passou por essa experiência

está excluído da participação, ou pelo menos, da confecção da colcha de retalhos. O sujeito

que nunca sofreu violência não necessita da paz? O sentimento de paz existe quando a

violência acontece com o sujeito, enquanto algo individual. Aqui parece se dar o que Chauí

(1999) chama de “vitimização”, fazendo com o que o agir e o pensar fiquem nas mãos dos

sofredores, das vítimas; fazendo com que a paz (no nosso caso) seja tomada como compaixão

pelos que sofreram a violência, apagando todo o lado social, econômico, político implicados

na paz-violência. Chauí acrescenta:

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Além disso, a imagem do Mal e a da vítima são dotadas de poder midiático: são poderosas imagens de espetáculo para nossa indignação e compaixão, acalmando nossa consciência. Precisamos das imagens da violência e do Mal para nos considerarmos sujeitos éticos.

Outro dispositivo a se analisar nesse site, que reafirma essa posição de sujeito pacífico

construída na e pela violência, é uma carta que o pai de Gabriela escreveu para quem entrasse

no site, em que para “nós” não esperarmos o desastre acontecer conosco para que possamos

lutar pela paz, como aconteceu com ele. Nós temos que ter uma experiência catastrófica para

que desejemos ter o oposto dela. Para que desejemos a paz temos que ter uma experiência de

não-paz.

O que o discurso da ONG “Gabriela sou da paz” silencia, o que ele não deixa de dizer?

Para se responder essa pergunta o analista deve não levar em consideração tudo o que não foi

dito em relação ao que foi dito (ORLANDI, 1999, p. 83), mas deverá ter um método de

análise, porque:

... partimos do dizer, de suas condições e da relação com a memória, com o saber discursivo para delinearmos as margens do não-dito que faz os contornos do dito significantemente. Não é tudo que não foi dito, é só o não dito relevante para aquela situação significativa.

Fizemos, então, um recorte dos não-ditos que nos ajudassem a compreender o discurso

“sobre” a paz, que é o objeto de estudo desta pesquisa. E ao recortar, descobrimos que o não

dito mais interessante é o da exclusão do sujeito que não possui experiência de violência;

também, silencia a busca da paz pela paz, a paz é necessária por causa do seu oposto. Temos

aí, como nos dicionários, discursivamente, a relação tensa entre o mesmo e o diferente, com o

mesmo prevalecendo.

O site da ONG “Londrina Pazeando” tendo como logotipo a imagem10 abaixo, traz

novamente a paz centrada no individual.

10 Não conseguimos copiar a imagem completa do logotipo do site “Londrina Pazeando” que tem como frase slogan: “Por uma cultura de paz e não-violência”.

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As condições de produção desse discurso são diferentes das do site “Gabriela sou da

paz”, pois o mesmo é destinado à promoção da paz independentemente de um acontecimento

específico de violência. Ele usa um discurso generalizado sobre a violência.

A pagina principal do site, além de ter o logotipo acima, tem em destaque os órgãos

que fazem parceria com a ONG, com uma barra de rolagem listando as últimas notícias do

“Londrina Pazeando”. Do lado esquerdo, há a listagem do conteúdo do site: leis, projetos,

artigos, jogos, rádio, vídeos os que eles já fizeram, os que já “pazearam”, entre outros. A frase

que o site usa como logomarca - “por uma cultura de paz e não-violência” -, já nos faz pensar,

mais uma vez, no discurso dos dicionários que tem a paz como a ausência de algo, no caso, a

violência. O não dito desse discurso continua sendo a violência.

Uma parte do site “eles pazearam”, lista uma porção de pessoas conhecidas que,

segundo o site promoveram a paz. Dentre os citados temos: Jesus Cristo, Dalai Lama, Chico

Mendes, Chico Xavier, John Lennon, Madre Tereza de Calcutá. Tais nomes causam no leitor

um efeito de consenso e de evidência entre diferentes discursos (religioso, político, jurídico),

pois, no fim todos estariam falando do mesmo referente, e o leitor de diferentes filiações

ideológicas poderá se identificar com esse discurso. Uma paz de todos e de ninguém; uma paz

para todos e para ninguém.

Trata-se de um site construído com características educativas, portanto, prevalecendo

um discurso pedagógico para se falar da paz. Usando frases como “aprender a educar para a

paz” ou “a paz se aprende jogando”, propondo também a confecção de gibis para o público

infantil, um curso para aprender sobre a cultura da paz, um prêmio chamado “mídia da paz”,

dirigido ao meio de comunicação que melhor promover a cultura da paz e a não-violência. O

sujeito para quem é destinado esse discurso é o que precisa ser ensinado para que pratique a

paz.

Poderíamos concluir, analisando esses dois sites, parafraseando Chauí, ao falar da

ética como ideologia, que a paz como ideologia (direção de sentidos para a AD):

... significa que em vez de a ação reunir os seres humanos em torno de idéias e práticas positivas de liberdade e felicidade, ela os reúne pelo consenso sobre o Mal, e essa ideologia é duplamente perversa: por um lado, procura fixar-se numa imagem do presente como se este não só fosse eterno, mas sobretudo como se fosse destino, como se existisse por si mesmo e não fosse efeito das ações humanas; em suma, reduz o presente ao instante imediato, sem memória e sem porvir. Por outro lado, procura mostrar que qualquer idéia positiva do bem, da felicidade e da liberdade, da justiça e da emancipação humana é o Mal.

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O último texto sobre paz que vamos analisar é o da “paz no casamento”, que

encontramos em um site de humor: uma piada, que tem como título “paz no casamento”.

Assim a encontramos:

Paz no casamento

Um casal foi entrevistado pelo Fantástico, porque os dois eram realmente um fenômeno: estavam casados há 50 anos e nunca tinham brigado! O repórter, curioso, pergunta a mulher:

- Mas vocês nunca brigaram mesmo? Nem uma discussãozinha? - Não, nunca!- ela responde, resoluta, enquanto marido só encara de rabo de olho. - Mas como isso é possível? - Questiona o jornalista. E a mulher conta a história:

- Bem... quando nos casamos, levávamos uma vidinha simples de interior. Meu marido tinha uma égua de estimação, a criatura que ele mais amava na vida. No dia do nosso casamento, fomos para a lua-de-mel de carroça, puxada pela egüinha. Andamos alguns metros e a coitada da égua tropeçou. Meu marido olhou bem firme para o animal e disse: "UM!!!". Mais alguns metros e a égua tropeça de novo. Meu marido volta a encarar o bicho e diz: "DOIS!!!". Na terceira vez que ela tropeçou ele sacou a espingarda e deu uns 5 tiros na bichinha. Fiquei apavorada e perguntei: "Mas porque você fez uma maldade dessas, homem?". Meu marido me encarou e disse: "UM !!!". Depois disso, nunca mais brigamos... Oinc!

Este site de humor é divido em categorias: piada de bêbado, velhos, crianças,

relacionamentos, sogras, religiosas, políticas. A piada “paz no casamento” está na categoria

“relacionamentos”. Como se percebe é uma nova discursividade sobre a paz, uma

discursividade que, até agora, ainda não fora mencionada. Mas será que esse discurso

realmente é diferente? Será que não há um “mesmo” nesse discurso? A individualização do

sujeito que aí acontece é através da imposição, do medo, como acontece, por exemplo, com a

“paz-armada” dos dicionários, que se caracteriza como “respeito recíproco das nações

mantido pelos exércitos e esquadras que elas conservam”. No caso do discurso da “paz no

casamento”, o respeito não é recíproco, pois quem teme é apenas a esposa. E essa palavra

“respeito”, mais uma vez, nos cabe lembrar, que pode ser sinônimo de “obediência”,

“acoitamento”, “sentimento de medo”. Essa piada evidencia o funcionamento de uma

memória discursiva, retomando já-ditos, sobre a forma de humor. E o interessante é que rimos

da piada, evidenciando também a nossa identificação, a nossa parte, enquanto sujeitos, nessa

memória.

Nessa perspectiva, o discurso da “paz no casamento” traz a marca do mesmo ou do

diferente? Podemos dizer que aí a questão fica mais ambígua pelo gênero textual utilizado: a

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piada. Assim, ao mesmo tempo em que afirma que “a paz no casamento” acontece pela

imposição, pelo medo, pela violência, há o humor, o sarcasmo criando condições para outros

sentidos emergirem.

Como o poema “Paz” de Orides Fontela, temos aí o discurso do diferente sobre o

mesmo. No caso do poema, usou-se o recurso literário que funciona através do estético, na

piada, temos também uma crítica, mas através do humor. Tanto no poema quanto na piada o

não-dito aparece para responder a algumas das indagações que fizemos no decorrer dessa

pesquisa. Também reafirmam a teoria de que o silenciamento também significa e faz parte do

discurso, mas que não está sempre visível para o leitor. Assim “o silêncio não é observável e

no entanto ele não é vazio, mesmo do ponto de vista da percepção: nós o sentimos, ele está

‘lá’ ( no sorriso da Gioconda, no amarelo de Van Gogh, nas grandes extensões, nas pausas).”

(ORLANDI, 1993, p.47)

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Conclusão

Estudar o discurso da paz, tendo como corpus os verbetes de três dicionários

respeitados e textos sobre a paz retirados de sites, foi um percurso cansativo, mas instigante; e

que precisou de muita persistência. À medida que a teoria ia se confirmando na análise e

descrição, conseguimos nos colocar na posição de analista, procurando compreender como

funciona a posição de sujeito, a ideologia, o sentido, a história no desenvolvimento de um

tema que estava disperso e que nos instigou justo por essa dispersão e multiplicidade,

levando-nos a questionar como se dava a formulação e a circulação dos sentidos sobre a paz

na sociedade brasileira. Como o nosso objeto de análise não está pronto e para se fazer uma

pesquisa percorremos caminhos pelos quais nem sempre esperávamos passar, mas que, para

se obter o que procuramos é necessário, acabamos descobrindo novos caminhos a percorrer.

Para não cair em armadilhas ideológicas de textos falando da paz, resolvemos

historicizá-la através dos verbetes dos dicionários; percurso cansativo, mas necessário para

poder compreender como funciona o discurso sobre a paz em um instrumento lingüístico

legitimado como contendo os sentidos verdadeiros. Depois de uma detalhada passeada pelos

verbetes, pudemos, então, partir para os “tipos de paz”, que os sites traziam, e que tanto

provocaram a nossa curiosidade. As posições de sujeito pacífico que encontramos nos

dicionários também apareceram nos discursos dos “tipos de paz”. No caso do sujeito que

freqüenta um estádio de futebol, agressivo e violento, pareceu-nos, a primeira estarmos diante

de uma nova posição, mas na verdade, ele deveria ser domesticado para se tornar um sujeito

pacífico.

Na análise dos dicionários, pudemos compreender melhor essa questão das condições

de produção em relação ao aqui e agora. A ênfase em cada um dos dicionários vai mudando

ao longo dos anos, conforme a forma que a urbanização vai tomando na sociedade brasileira e

o neoliberalismo, centrado no individualismo, vai crescendo: o foco da paz no Estado, País,

Nação, em Michaelis, o foco na comunidade como social, urbano, no Aurélio e o foco no

individual: pessoa, cidadão, em Houaiss.

Também percebemos no discurso dos dicionários analisados outros discursos,

apagados, silenciados, mas de grande importância para compreendermos o discurso sobre a

paz – a diferença, ou seja, os dicionários silenciam o fato da paz estar nas relações sociais

entre grupos estruturalmente desiguais; além disso, essas relações (de sentidos) significam

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inter-agir, e nessa interação deve-se levar em consideração que somos diferentes, temos

culturas, histórias diferentes. E como nós somos sujeitos históricos e como a história está em

constante transformação, então é inevitável que sejamos sujeitos diferentes. Os dicionários

descrevem uma paz que não se ajusta aos padrões reais, silenciando um importante fator

necessário para que esta se torne possível. Após esta pesquisa, podemos sugerir, um outro

enunciado definidor para paz “aprender a conviver com a diferença para que se possa

promover uma paz possível”.

Em nossa pesquisa sobre a paz descobrimos sujeitos que se constituem a partir do

oposto de que estão falando: as ONGs que tinham, no dito, um discurso contra a violência,

produzem na verdade um efeito sujeito oposto: para se querer a paz é necessário ter sofrido

algum tipo de violência; a paz para um interesse particular, individual, a paz como pretexto

para se conseguir algo. Um discurso em que esses interesses são silenciados para que o

leitor/ouvinte, tomado pela comoção, o tome como indispensável. A paz, nesse sentido, que

analisamos, pode ser considerada, como Chauí chama de “Uma Ideologia Perversa”.

Claro que essas conclusões que tiramos ainda são parciais, pelo fato de ser um TCC

feito em tempo tão restrito. De qualquer forma, acreditamos ter podido aprender muito em

relação à Análise de Discurso e aos processos discursivos sobre a paz na sociedade brasileira,

e termos nos tornado capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem. O trabalho

permitiu-nos, ainda, começar a desvendar esse mundo instigante do processo de produção de

conhecimento, e serviu de convite para prosseguirmos.

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