os senhores da injustiça · tura democrática mediante a imposiçom da ii restauraçom...

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Vozeiro de Primeira Linha www.primeiralinha.org Ano XII • Nº 43 • Segunda jeira • Janeiro, Fevereiro e Março de 2007 Sumário Editorial 3 A pobreza na Galiza Raúl Asegurado Peres 4 Neoliberalismo contra serviços públicos: o caso galego Maurício Castro 5-6 Marxismo e geografia ou a ilegalizaçom do mapa Xosé Constenla Veiga 6 Livros 7 O Che, o degrau mais alto da espécie humana Justo de la Cueva 8 Che Guevara, presente ou passado? A democracia burguesa está indissoluvelmente ligada à eco- nomia de mercado. A propriedade privada dos meios de produçom e a exploraçom da força de trabalho baseada no lucro que o Ca- pital extrai em mais-valia necessitam umha legitimaçom política- ideológica que facilite a sua reproduçom e, por sua vez, contenha o desenvolvimento da luita de classes. Deste jeito, a democracia representativa que o capitalismo promove no Ocidente procura reduzir ao mínimo e disciplinar ao máximo as forças políticas, em base a um artificial eixo direita-esquerda, conservador-pro- gressista, na procura do bipartidarismo mediante a construçom de partidos interclassistas de massas que aparentem defender interesses antagónicos e, portanto, gerem essa virtual realidade da “democracia”. Os partidos Republicano e Conservador norte- americanos, ou os Laborista e o Conservador británicos som para- digmas do modelo perfeito que promove o Capital. As modernas e desenvolvidas “democracias ocidentais” sem- pre tentárom evitar contar nos parlamentos com representaçom de forças genuinamente operárias e populares e, naquelas forma- çons sociais que padecem opressom nacional, impedir a presença do independentismo ou soberanismo. Durante o processo de esta- bilizaçom e consolidaçom do regime pluripartidarista, contribuírom para o acesso da esquerda reformista, com o intuito de facilitar a legitimaçom entre os sectores mais conscientes da classe traba- lhadora, e simultaneamente evitar o desenvolvimento de movimen- tos de massas que empregassem a rua como espaço de acçom e a utilizaçom de formas de luita à margem do que o sistema per- mite, mas à medida que os eficazes mecanismos de alienaçom de massas iam logrando os seus objectivos de anular a capacidade de luita operária e popular, fragmentando a classe trabalhadora, introduzindo os valores do individualismo, o exercício do consumis- mo compulsivo, o reformismo nas suas diversas variantes deixou de ser útil e passou a ser, portanto, prescindível. No Estado espanhol, o PCE foi determinante para atingir os pactos que perpetuárom a reforma do franquismo nesta carica- Os senhores da injustiça

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Page 1: Os senhores da injustiça · tura democrática mediante a imposiçom da II Restauraçom bourbónica. A partir de um determinado momento, a início da década de oitenta do século

Vozeiro de Primeira Linha www.primeiralinha.org Ano XII • Nº 43 • Segunda jeira • Janeiro, Fevereiro e Março de 2007

Sumário

Editorial

3 A pobreza na GalizaRaúl Asegurado Peres

4 Neoliberalismo contra serviços públicos: o caso galego

Maurício Castro

5-6 Marxismo e geografia ou a ilegalizaçom do mapa

Xosé Constenla Veiga

6 Livros7 O Che, o degrau mais alto da

espécie humanaJusto de la Cueva

8 Che Guevara, presente ou passado?

A democracia burguesa está indissoluvelmente ligada à eco-nomia de mercado. A propriedade privada dos meios de produçom e a exploraçom da força de trabalho baseada no lucro que o Ca-pital extrai em mais-valia necessitam umha legitimaçom política-ideológica que facilite a sua reproduçom e, por sua vez, contenha o desenvolvimento da luita de classes. Deste jeito, a democracia representativa que o capitalismo promove no Ocidente procura reduzir ao mínimo e disciplinar ao máximo as forças políticas, em base a um artificial eixo direita-esquerda, conservador-pro-gressista, na procura do bipartidarismo mediante a construçom de partidos interclassistas de massas que aparentem defender interesses antagónicos e, portanto, gerem essa virtual realidade da “democracia”. Os partidos Republicano e Conservador norte-americanos, ou os Laborista e o Conservador británicos som para-digmas do modelo perfeito que promove o Capital.

As modernas e desenvolvidas “democracias ocidentais” sem-pre tentárom evitar contar nos parlamentos com representaçom de forças genuinamente operárias e populares e, naquelas forma-çons sociais que padecem opressom nacional, impedir a presença do independentismo ou soberanismo. Durante o processo de esta-bilizaçom e consolidaçom do regime pluripartidarista, contribuírom para o acesso da esquerda reformista, com o intuito de facilitar a legitimaçom entre os sectores mais conscientes da classe traba-lhadora, e simultaneamente evitar o desenvolvimento de movimen-tos de massas que empregassem a rua como espaço de acçom e a utilizaçom de formas de luita à margem do que o sistema per-mite, mas à medida que os eficazes mecanismos de alienaçom de massas iam logrando os seus objectivos de anular a capacidade de luita operária e popular, fragmentando a classe trabalhadora, introduzindo os valores do individualismo, o exercício do consumis-mo compulsivo, o reformismo nas suas diversas variantes deixou de ser útil e passou a ser, portanto, prescindível.

No Estado espanhol, o PCE foi determinante para atingir os pactos que perpetuárom a reforma do franquismo nesta carica-

Os senhores da injustiça

Page 2: Os senhores da injustiça · tura democrática mediante a imposiçom da II Restauraçom bourbónica. A partir de um determinado momento, a início da década de oitenta do século

Nº 43. Janeiro, Fevereiro e Março de 2007�

tura democrática mediante a imposiçom da II Restauraçom bourbónica. A partir de um determinado momento, a início da década de oitenta do século passado o carrilhismo e as suas posteriores orientaçons já nom eram necessárias, o que fijo com que promovessem a sua debacle até o converterem no actual testemunhalismo de IU.

Na Galiza, o sistema, após ter fracassado na tentativa de evitar o acesso da esquerda nacionalista ao parlamentinho autonómico em Outu-bro de 1981, promoveu umha modificaçom do regulamento interno com carácter retroactivo que provocou a expulsom dos deputados eleitos do soberanismo de esquerda, condenando ao ostracismo umha parte qua-litativamente significativa do movimento popular que, coerentemente, questionava e nom assumia a estrutura jurídico-política do regime. Esta decisom, unida a umha forte campanha de pressons mediáticas e políti-cas, debilitou o movimento, quebrou a unidade interna, acelerou as con-tradiçons que mais tarde provocárom a ruptura e um novo processo de recomposiçom organizativa sobre novas bases político-ideológicas que posteriormente fôrom determinantes na deriva regionalista e social-democrata, junto à plena integraçom no sistema, que caracteriza hoje o BNG.

Porém, o sistema pluripartidarista, um dos dog-mas da “superioridade” da economia de mercado ocidental sobre as experiências socialistas, pode ser reduzido à mínima expressom e mesmo ser prescindí-vel, sempre e quando os interesses do grande capital industrial, comercial e financeiro estiverem em perigo polo desenvolvimento da luita de classes promovida polo proletariado organizado. Os fascismos no período de entreguerras, o levantamento militar franquista de 1936, as mais próximas ditaduras do cone sul latino-americano, ou a recente tentativa de golpe de Estado na Venezuela, som exemplos indiscutíveis do carácter meramente instrumental da democracia representativa para a burguesia.

Quem realmente manda hoje no País?É umha pergunta que muitas vezes formulamos,

escuitamos em inumeráveis ocasions e da qual temos obtido respostas díspares. Logicamente, numha naçom como a Galiza, carente de um Estado próprio por nom ser soberana, o poder político formalmente instituído apresenta uns evi-dentes défices que imposibilitam adoptar decisons numha boa parte das competências naturais de um governo. Mas também a incorporaçom for-çada da Galiza à Uniom Europeia por mor da nossa dependência do Esta-do espanhol merma umha considerável parte da soberania característica de um povo livre e soberano.

Mas, se a Galiza contasse com Estado próprio e nom estivesse incor-porada numha superestrutura imperialista como a que hoje representam os 27 estados da Uniom, mantendo no entanto a economia de mercado

som mais do que simples fantoches dos grandes grupos económicos e financeiros que contribuem implicita ou explicitamente para pagar as suas campanhas eleitorais e, portanto, influem posteriormente nas suas políticas para defenderem os seus interesses. O grande capital é quem condiciona no capitalismo as políticas do conjunto das forças parlamen-tares, salvo que exista um amplo e sólido movimento popular com repre-sentaçom institucional cuja estratégia revolucionária de transformaçom defenda a superaçom do sistema.

O capitalismo do tijolo e do cimento está a agir com absoluta impuni-dade e descaramento na hora de traçar as políticas urbanísticas da imen-sa maioria dos concelhos galegos: mudando planos gerais de ordenaçom municipal; requalificando terrenos; promovendo a apresentaçom de mo-çons de censura perante as resistências ou divergências no momento de concretizar o suborno; destruindo o património arquitéctónico, etnográ-fico, ambiental e paisagístico da Galiza. Mas isto é possível porque conta

com o activo consentimento ou a passsividade cúmplice das forças políticas institucionais.

Alguém que responda com sinceridade e sem con-dicionantes é capaz de negar que Unión Fenosa, Pes-canova ou Fadesa nom marcam o rumo da política de ordenaçom do território, ambiental, urbanística do Go-verno bipartido?, que PSA-Citroën nom condicionam a política urbanística de Vigo?; Que Amáncio Ortega ou os magnatas de Caixanova e Caixa Galicia tenhem mais peso nas decisons estratégicas em matéria energética, de comunicaçons, na política económica da Junta que tod@s @s conselheir@s junt@s?

É necessário e urgente reagirA actual democracia burguesa é umha farsa. Os

partidos que a alimentam e legitimam (PSOE, PP, BNG, IU) som responsáveis pola actual situaçom de caos que o conjunto do País vive em todos os aspectos. As vin-douras eleiçons municipias de 27 de Maio tam só vam significar umha leve recomposiçom interna do mapa po-lítico das forças que, áctiva ou passivamente, permitem a desfeita ambiental que padecemos, a destruiçom ace-lerada do nosso património e a cada vez maior sobre-exploraçom e empobrecimento que padecem a classe

operária e a Naçom.Perante a dispersom e dificuldades na hora de criar umha platafor-

ma sócio-política eleitoral que incorpore no seu interior o conjunto das forças e organizaçons de esquerda anticapitalista e soberanista e atin-ja representaçom nas Cámaras Municipais, salvo naquelas localidades onde sim foi possível avançar nesta direcçom, –as candidaturas Ponte Areas e Vigo de Esquerda, o comunismo galego chama a classe operária, a juventude e as mulheres a nom apoiar nengumha das forças que com um discursos aparentemente de esquerda se apresentam às eleiçons de 27 de Maio. Nom se deve votar nem no BNG, nem em IU, pois as suas políticas som semelhantes às do PP-PSOE: privatizaçom de serviços pú-blicos, desgaleguizaçom social e espanholizaçom das festas, restriçom das liberdades e aumento do controlo social, urbanismo ao serviço das promotoras, construtoras e imobiliárias, perpetuaçom das agressons ambientais; ou seja, mais neoliberalismo e mais projecto espanhol.

Primeira Linha manifesta novamente a sua firme determinaçom de avançar mediante passos firmes e sinceros na recomposiçom dumha esquerda socialista e soberanista que, respeitando a pluralidade ideoló-gica e a independência de classe, logre representar esse cada vez mais amplo sector do povo trabalhador que já nom acredita nas promessas das forças políticas tradicionais.

Editorial

PubLiCidAdE

Quiroga Palácios, 42 (rés-do-chao)15703 Compostela-Galiza

[email protected]

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Tel.: 981 566 980Tel./Fax: 981 571 373

Rúa Nova, 36 • Santiago

R/ Camélias, 1036860 Ponte Areas

Tel 986 661 970

e a democracia burguesa, quem realmente incidiria na orientaçom das políticas do governo? As pessoas que votárom em determinado partido político seguindo as promessas de um programa eleitoral? O conjunto d@s deputad@s do parlamento após a síntese atingida em debates construtivos e sinceros? Obviamente nom. Aqui radica um dos cernes da democracia real, da democracia socialista frente à pseudodemocracia que nos imponhem.

As forças políticas, na democracia burguesa, salvo contadas excep-çons, representam os interesses das diversas fracçons da burguesia, e no seu interior contam com lobbies de poder que representam interesses concretos das grandes empresas, bancos, companhias, e também de ám-bito local, em muitas ocasions com contradiçons específicas. Mas nom só, estes partidos som testas-de-ferro e garantes da estabilidade do regime, dos inquestionáveis dogmas em que alicerça: economia de mercado, uni-dade indivisível da “pátria”, divisom social em classes disfarçada sob

“diferenças na renda da cidadania”, porque a prática totalidade dos seus dirigentes, altos funcionários, cargos públicos com responsabilidades di-rectas de gestom mantenhem por origem de classe umha inquestionável adesom ao sistema, ou bem porque se desclassárom, fôrom cooptados mediante elevadas retribuiçons e privilégios que corrompem os superfi-ciais princípios político-ideológicos.

Na Comunidade Autónoma da Galiza, Tourinho e Quintana nom só possuem umha reduzida margem de manobra para aplicarem políticas de esquerda e soberanistas caso tivessem vontade de o fazerem, nom

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�Nº 43. Janeiro, Fevereiro e Março de 2007

“Ter nom é sinal de malvado / e nom ter também nom é prova / de que acompanhe a virtude / mas quem nasce bem parado / em procurar aquilo que anela / nom tem de investir saúde”

(Sílvio Rodríguez)

... Mas é certo que o que nasce bem parado em procurar aquilo que anela, nom tem de investir saúde.

Tenho que dizer já nestas primeiras linhas, que o tema que nos ocupa, o da po-breza, se torna para mim umha questom constituinte da minha militáncia: a pobre-za como desafío (dar cabo das desigual-dades, as injustiças, etc...); como marco moral (moral obreira de assumir a austeri-dade como forma de vida); como questom alienante (a pobreza-marginalidade como escravatura); como questom filosófica; como praxe; como sociológica; como tra-balho e intelectualidade (sou trabalhador social) etc...; portanto, a pobreza constitui tanto que sinto nom poder dar resposta a todo o que de facto ela é e expressa.

Mas, neste artigo, o objecto se bem nom seja só avaliar os resultados do re-centemente apresentado informe sobre “A pobreza e a exclusom social na Galiza”, mas valer-nos destes para nos achegar-mos à compreensom deste fenómeno e da sua assimilaçom e convivência com um sistema baseado no lucro, no consumo, etc..., em definitivo, na assimilaçom de um tipo de pobreza (e nom só dos pobres) por parte do neoliberalismo, tomando como quadro referencial a naçom galega, como naçom integrante do núcleo (ainda que pe-riférica) ocidental onde, centrifugamente, se expande este sistema de dominaçom.

Por razons de operatividade e do ob-jectivo que pretendo, nom vou explicar a minha disconformidade com aspectos me-todológicos na realizaçom deste trabalho, mas sim assinalar e pontualizar a defini-çom de pobreza deste informe; conside-ra-se pobre aquela pessoa que vive num lar onde os rendimentos disponíveis por adulto/a equivalente se situam abaixo do limiar de pobreza, fixado em 60 por cen-to dos rendimentos médios galegos, e na pobreza extrema ou severa, o limiar baixa até 40 por cento do rendimento médio.

É certo que a pobreza tem um carác-ter multidimensional mui amplo, e o infor-me, para tratar de atalhar estas dimen-sons, aborda outros aspectos além dos rendimentos. Mas deixemos no ar umha questom; se tomássemos como quadro referencial, quer dizer, como universo, umha populaçom pobre, e figéssemos este estudo, também obteríamos umha percen-tagem de populaçom nom pobre, umha percentagem de populaçom pobre e umha outra percentagem de populaçom mui po-bre; fai sentido isto? Nom fazer alusom al-gumha ao contexto internacional nem aos números em dados relativos parece, polo menos, “estranho”.

Os dados revelados por este informe mostram-nos umha realidade segundo a qual a incidência da pobreza na Galiza1 no período de análise (2001-2004) se moveu entre os 14 e os 15 por cento da popula-çom, quer dizer, umhas 400.000 pessoas que vivem na Galiza som consideradas po-bres polos seus baixos rendimentos. Isto em termos brutos, quer dizer, que para um lar formado por um casal e dous nenos su-pom disporem de uns 1.000 euros (já que os rendimentos médios som 1.600 euros). Também deve assinalar-se que, na forma mais extrema de pobreza, estaria umha quarta parte desta populaçom, concreta-mente 104.000 pessoas. E, na sua expres-som mais severa, aparece o dado de que 1.500 pessoas nom tenhem teito na Galiza.

Pois bem, perante este panorama, e sem entrarmos muito a avaliar os dados e a forma de obtençom dos mesmos, terí-amos que pretender embrenhar um pouco no conceito de pobreza que se transluz daqui. Ei-lo:

1 O uso do termo Galiza corresponde, ao longo do presente texto, com o território e populaçom da Comunidade Autónoma da Galiza, ao ficar fora do estudo as comarcas galegas excluídas do actual Estatuto de Autonomia.

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A pobreza nom é só umha questom material, a premissa marxiana enunciada na Ideologia alemá: “Nom é a consciência a que determina a vida, mas a vida a que determina a consciência”; quer dizer, é o ser social, a pessoa em relaçom ao seu meio, com a sua realidade, como ser de realidades que é, que condiciona a sua consciência, o seu ser individual.

Isto é fundamental para compreen-dermos a populaçom de que estamos a fa-lar. Levo cinco anos de trabalho num lar de acolhimento para menores e com contínuo contacto com as famílias deles, com a en-volvente social deles, etc...; só no contacto directo com a pobreza, com a marginalida-de, um pode compreender até que grau é que a condiçom material já condicionou de tal jeito as aspiraçons vitais da gente, que já nom é o problema fundamental. Quer dizer, há vários tipos de pobreza emanada da injustiça.

Há populaçom pobre que tem umhas aspiraçons vitais que vam além do mal-es-tar económico, da injustiça distributiva e, portanto, participa, rebela-se, luita... Esta populaçom que, sendo pobre, polos seus baixos rendimentos, luita heroicamente por chegar a fim de mês e que tem outras aspiraçons na vida, e pertence a esta clas-se de obreiras –e menos obreiros-, com as suas múltiplas contradiçons, em que neste artigo nom havemos de reparar, porque cumpre um monográfico à parte, pola sua importáncia e complexidade de análise, já que nos situaríamos no que se conhece como o sujeito histórico impulsor da mudança social. Como digo, sería im-possível fazer aqui o que tal requer mas, umha grande parte desses outros pobres que vivem e se reproduzem dentro das sociedades ocidentais estám sumamente “separadas” das aspiraçons e assimila-çom de aquilo que entendemos por umha “vida normalizada”.

Excepto umha pontualizaçom: só há umha aspiraçom coincidente, o consumo ilimitado, sem senso. A isto chamei há um par de anos “ideal convergente”. Breve-mente explicado, significaria que há um mesmo ideal convergente a partir de rea-lidades divergentes, inevitáveis e antagó-nicas. E isto apenas pode dar-se a partir da manipulaçom das consciências, da ma-nipulaçom da interpretaçom da realidade. Um exemplo disto é a percepçom de que, mediante o consumo de um produto (por exemplo um refrigerante), se reduzem as desigualdades, e este é o motivo polo qual nos países do mal chamado Terceiro Mundo, tal como nas nossas sociedades ocidentais, entram com muitíssimo êxito produtos que nom colmatam necessida-des materiais, reais e primárias dessa po-pulaçom. Um exemplo claro disto é a boa imagem pública, o respeito e a admiraçom que tenhem entre a populaçom pobre fi-guras como os “Ortegas”, os “Méndez”, e demais gentalha açambarcadora desta Galiza nossa, e responsáveis directos pola exploraçom e injustiça social.

Esta populaçom que é a utilizadora freqüente dos serviços socias básicos das cámaras municipais, que recebem pen-sons nom contributivas, a risga –Renda de Inserçom-, ou o que se conhece como sistema de protecçom social, (questom que merece o simples esclarecimento que responde este sistema a ideia genuína do Estado Providência quando foi configurado para combater as contradiçons internas do capitalismo, mas com o objectivo de o fortalecer e impulsionar, nunca de o ultra-passar, e, portanto, sempre vai criar estas bolsas de pobreza inevitavelmente), está, segundo o informe, ligada ao desemprego e à inactividade económica, especialmente naquelas situaçons que suponhem priva-

total de 27,3 milhons”.Com a simples operaçom matemática

da divisom, por curiosidade estabelecim aquilo de que para estes seis anos a po-pulaçom pobre poderá beneficiar-se; quer dizer, dividir o orçamento total entre o número de pobres determinado por este plano. Assim o enunciado (para que nom haja qualquer batota) e o resultado é: 181.000.000: 400.000 = 452,5 Euros per cápita em seis anos..., suficiente? Vocês podem julgar. Um pode dizer, é certo que é insuficiente, mas a quantidade total de 181 milhons de euros é mui elevada, po-deríamos olhar duas questons; umha, o capital açambarcado polo cidadao galego Amancio Ortega; e outra, os gastos públi-cos investidos em armamento, macroin-fraestructuras de quinta ou sexta neces-sidade, etc...

Mas gostaria de fazer um ponto pará-grafo com este informe e falar de umha outra forma de entender a pobreza, com a sua dupla face de sacrifício e humilda-de. A pobreza como honradez política, pois é simplesmente assumir a situaçom em que vive mais de 85% da humanidade, como luita contra o neoliberalismo e a sua pretensom de alimentar a tendência a açambarcar e consumir ilimitadamente, como austeridade e contra o apego mate-rial, como forma de ter pouco lastro para

opiniom

o caminho...Sacrifício: nengum governo do mundo

actualmente, e menos do Primeiro Mun-do, quer eliminar a pobreza; o que fazer, entom? Aguardar que mudem essa forma de actuar ou promover mecanismos cria-tivos que ajudem à libertaçom das socie-dades empobrecidas?, a nossa coerência de vida, a nossa praxe diária (filosofía da praxe gramsciana) é a que forjará umha forma de entender a vida além de vitórias e derrotas: face ao pessimismo da razom, o optimismo da vontade, ou em linguagem mounieriana: o optimismo trágico. O mun-do, a nossa sociedade, está necessitada, urgentemente, nom de teorias da revolu-çom, senom de vontades revolucionárias, de militáncias encarnadas, de maos sujas. As ideias que nom se experimentam mor-ren, dizia Rovirosa. “Pola causa, nengum esforço me parecia suficiente. Os dias, as noites, os minutos, os segundos, todo foi dado pola causa. Nem para os meus filhos e minha companheira tinha um momento de atençom nem de intimidade. Estava cer-to de que, trabalhando por todos, trabalha-va por eles também. Que se o meu esforço contribuía para o advento de um pouco mais de justiça social, dela participariam também os meus”. Ángel Pestanha

A humildade: Dizia Rosa Luxemburgo, “a urgência da revoluçom nom nos deve fazer espezinhar as flores de Berlim”, porque o pequeno é fermoso. Porque som tantas as frentes e tantas respostas, por-que toda acçom do ser humano é imper-feita, porque erramos e aprendemos dos erros, porque é umha disposiçom constru-tiva para o diálogo e a recepçom revolu-cionária, porque nunca se é mais, porque ao pôr-nos maos à obra, as nossas maos vam sujar-se, e entom os e as companhei-ras deverám corrigir-nos e nós aceitarmos humildemente a sua ajuda.

O neoliberalismo invade até os espa-ços mais íntimos do ser humano, nom só a esfera social, mas toda a vida, do berço à cova; portanto, a vida converte-se em mi-litáncia, em milícia contra a malícia de um sistema perverso, encarnando os valores da austeriadade, a humildade e o sacrifí-cio como únicas molas de defesa da nossa liberdade individual. Sartre dizia, (tal como quase todo o existencialismo) que somos inevitavelmente seres livres (eu e tu, me-ninha, somos feitos de nuvens, mas quem nos amarra? mas quem nos amarra?). Ora, esta liberdade, polo que ficou ex-posto anteriormente, está continuamente ameaçada.

A luita social e a vida pessoal som expressons naturais da própria vida do ser humano, vida nom enquadrada, mas umha e única, a fraternidade como con-ceito emancipador do ser humano chama com as suas novas exigências a assumir o protagonismo esquecido. Irmaos e irmás, irmandinh@s tod@s (da nossa tradiçom galega), em palavras do Zeca: é o povo quem mais ordena, porque assim no-lo ensinou a história. Levemos novos me-canismos de transformaçom, ponhamos o nosso sacrifício e a nossa humildade a disposiçom do novo amanhá, e só a von-tade nos levará além das vitórias e das derrotas, é mais, como dizia Luxemburgo, só assim poderemos incluso amar as der-rotas, porque som parte necessária para esse amanhá que anelamos. E a pobreza? A marginal, a que escraviza a que é impos-ta e nom livremente aceite, há que com-batê-la, há que evidenciá-la, porque é um ataque contra a dignidade do ser humano e é produto da injustiça, esta pobreza nom tem pátria nem raça; é internacional e as-sim deve ser combatida. A pobreza liber-tadora, a assimilaçom da austeridade, é um desafío pessoal para o qual todo ser humano inserido numha sociedade neo-liberal e consumista tem de tender, para a sua vida ser coerente e rica em valores socialistas, humanos. Ánimo, saúde, e um abraço fraternal na luita comum.

Raúl Asegurado Peres é trabalhador social e

sociólogo

Tabela 1. A renda dos lares na GalizaRendimentos médios mensais (€)

Por lar Por pessoa

GalizaPor tamanho do concelho

2001 2002 2003 2004 2001 2002 2003 2004

Pequenos 1.189 1.292 1.434 1.462 396 435 492 510

Médios 1.285 1.508 1.664 1.623 401 476 538 560

Grandes 1.422 1.629 1.747 1.799 492 570 616 636

0

7

14

21

28 Composiçom da populaçom pobre por idade 2004

Composiçom da populaçom pobre por sexo 2004

16,3%

Men

or d

e 15

16-2

9

30-4

4

45-6

4

65 o

u m

ais

16,1%

19,4%

25,5%

22,7%

Homem46,2%

Mulher53,8%

çom de rendimentos monetários, como no caso do trabalho doméstico, e onde a quarta parte deste colectivo é pobre, ou das pessoas incapacitadas

Podemos recorrer a estas gráficas para ilustrar algumhas das conclusons do informe: a maioria das pessoas pobres na Galiza vive no rural, há mais mulheres do que homens, quase metade tem mais de 45 anos, e vive fundamentalmente em la-res formados por um casal com filhos, em-bora aumentem cada vez mais as pessoas que vivem sozinhas ou com um casal, sem filhos e onde a pessoa que contribui com mais rendimentos tem mais de 65 anos.

Bem, estes dados e outros estám todos recolhidos no informe e, portanto, nom vou continuar a mostrá-los, para além desta conclusom mencionada, que vale como resumo do mesmo. Outro as-pecto importante que emana deste infor-me é que foi apresentado como o diagnós-tico que serve de “ponto de partida” para orientar o II Plano Galego de Inclusom Social; assim, quando se –segundo Euro-pa Press- “explicárom o vice-presidente da Junta, Anxo Quintana, e a secretaria Geral do Bem-estar, Maria Xesús Lago, com motivo da presentaçom do citado Pla-no que estará vigente entre 2007 e 2013, com um orçamento global de 181 milhons de euros. Neste ano, investirám-se já um

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� Nº 43. Janeiro, Fevereiro e Março de 2007análisE

A orientaçom da política económica e social do novo Go-verno bipartido está a supor um sério questionamento da exis-tência de um verdadeiro “turnismo” no tipo de políticas, nome-adamente económicas e sociais, aplicadas polo bipartidarismo imperfeito em que se acha instalada a Galiza autonómica das quatro províncias. No papel, é suposto cada força política –re-ferimo-nos às ditas “responsáveis” e “de governo”– defender umha orientaçom parcialmente diferente, sempre dentro da ló-gica capitalista correspondente a um país dependente da Europa ocidental. A realidade questiona cada vez mais essa premissa.

Já sabemos que a crescente indistinçom entre as opçons eleitoralmente maioritárias parte da progressiva extensom do modelo neoliberal a partir da década de 80, quando Margaret Tatcher importou à Europa a experiência pinochetista do Chile pós-Allende. O apagamento dos traços definitórios do chamado Estado-Providência seria mais marcado a partir da crise final do modelo soviético na URSS, que encorajou umha universali-zaçom do neoliberalismo mais selvagem, empapando já aberta-mente os programas e, sobretodo, as políticas concretas, dos partidos social-democratas, progressivamente evoluídos para social-liberais desde aquela altura e até hoje mesmo. Estamos a pensar nos Felipe González, Tony Blair ou Gerhard Schröder, para nos limitarmos ao ámbito europeu.

Nom é, portanto, no fundo, assim tam novidosa a cada vez mais evidente confluência das políticas socioeconómicas do bipartido em relaçom aos 16 anos de fraguismo. Foi já o PSOE que aplicou a receita neoliberal das privatizaçons, das recon-versons industriais e as sucessivas contra-reformas laborais durante o chamado felipismo (1982-1996). Na altura, a esquer-da mais conseqüente, de que fazia parte o movimento politica-mente representado polo BNG, explicou o papel do PSOE como a melhor opçom dos poderes económicos espanhóis para su-perar o marasmo resultante da crise do petróleo de 73. Esses poderes soubérom ver que, recém saída de quatro décadas de franquismo, a direita espanhola teria tido maiores dificuldades para aplicar o programa que, nos mesmos anos, o republicano Ronald Reagan marcava na principal potência do capitalismo mundial, e começava a ser aplicado na Europa pola Gram-Bre-tanha de Tatcher. Daí parte a incorporaçom de facto do PSOE à nascente onda neoliberal.

Assim as cousas, a verdadeira novidade situa-se hoje na incorporaçom da terceira força com presença institucional na Galiza, o BNG, ao mesmo esquema desse grande “centro po-lítico” que as três reivindicam. Historicamente comprometido com o emprego e os serviços públicos, a sua evoluçom durante polo menos a última década culminou, com o acesso ao poder autonómico, na aberta convergência com o programa do PSOE no que a política económica e social di respeito.

A onda de desmantelamento dos serviços públicos no ámbito europeu

O protagonismo dos estados e as suas instituiçons na prestaçom de serviços públicos, segurança social e outros in-vestimentos em políticas sociais, junto ao recurso aos impostos como meio de financiamento estatal, caracterizou os modelos compensatórios da lógica liberal, sendo os mais conhecidos e ambiciosos os aplicados durante décadas no norte da Europa (a referencial social-democracia sueca).

Sem chegarem ao grau escandinavo –que por sua vez fica-va longe de um modelo alternativo ao capitalismo– os estados da Europa ocidental praticárom políticas de compensaçom ins-piradas no keynessianismo com que os EUA reagírom à crise de 29, originada polo extremismo liberal. Porém, o que podíamos chamar “capitalismo de baixa intensidade” passou à história, sem que podamos responsabilizar o BNG, nem sequer o PSOE, pola teorizaçom ou inspiraçom originária do novo liberalismo em vigor, pois responde antes a umha tendência global do capitalismo como modo de produçom na fase actual, do que às escolhas particulares de umha ou outra dirigência de umha dada formaçom sócio-económica.

Se o tatcherismo se encarregou de espalhar a semente nos anos 80, a própria Uniom Europeia foi o quadro institucio-nal encarregado de estabelecer a estratégia a nível continental nas décadas seguintes. Consoante os princípios da vaga globa-lizadora em curso, a pobreza tem alastrado nas duas últimas décadas, alargando o abismo que separa a minoria rica das grandes maiorias empobrecidas em todos os continentes, com destaque para amplas áreas dos continentes africano, asiático e americano. Eis a autêntica natureza devastadora desta nova fase do capitalismo global.

Mas, a pesar dos claros precedentes acima referidos, para localizarmos o início do assalto mundial e sistemático ao chamado Estado-Providência e, sobretodo, aos serviços públi-cos, devemos remeter-nos para a fundaçom da Organizaçom Mundial do Comércio (OMC), em 1995. A aprovaçom imediata do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (AGCS) marcou a aposta da OMC no sector serviços, em forte expansom a nível mundial, com umha perspectiva de extremismo liberalizador.

Com a liberdade individual como princípio reitor, despre-zando a colectividade e o bem comum, apelando à livre con-corrência e ao mercado como único regulador da vida social, a estratégia neoliberal tem tido já ocasiom de demonstrar os seus efeitos um pouco por todo o mundo: deterioraçom dos serviços, dificuldade para o acesso aos mesmos por parte de crescentes sectores sociais, encarecimento generalizado e maiores desigualdades na oferta em funçom do poder aquisi-tivo dos utentes.

A Argentina de Carlos Menem ou o Brasil de Henrique Car-doso, na década de 90, som dous exemplos claros em contextos de países da periferia capitalista, enquanto a continuidade do desmantelamento dos sistemas da saúde ou a educaçom es-tado-unidenses ou británicos na última década sob governos democratas e republicanos (EUA), conservadores e trabalhis-tas (GB), constituem aríetes neoliberais no centro do sistema, sobretodo a partir da fundaçom da OMC como cérebro cinzento do comando central capitalista em matéria de serviços.

Neoliberalismo contra serviços públicos: o caso galego

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Os planos da Organizaçom Mundial do Comércio concreti-zam-se, no nosso continente, no projecto de Constituiçom Euro-peia e, mais concretamente, na chamada Directiva Bolkestein, orientadora estratégica do sector serviços. Em nome do livre comércio, a estratégia em curso conduz para o desmantela-mento dos aspectos mais sociais dos estados capitalistas e, nesse objectivo, o total desaparecimento dos serviços públicos. Educaçom, saúde, cultura, energia, água… nada escapa à pla-nificada liquidaçom dos sistemas de parcial protecçom social pré-existentes. Lembremos apenas como o Tratado constitu-cional para a UE suprimia, nesse caminho, na sua redacçom a referência aos serviços públicos, substituídos no artigo II-96 polos eufemísticos “serviços de interesse económico geral”. Até a linguagem é posta ao serviço da mudança de paradigma. Hoje sabemos que o nock out nos referendos francês e holan-dês em 2005 nom impediu as grandes burguesias europeias de manterem o rumo marcado, o que pode ser verificado já na realidade concreta das políticas socioeconómicas aplicadas em cada país… a Galiza incluída.

A Galiza na ofensiva global contra os serviços públicos

Saindo de um regime ditatorial que durante décadas optou por um modelo autárquico e só na última fase se abriu às cor-rentes desenvolvimentistas, o Estado espanhol aderiu tarde ao capitalismo avançado, representando a Galiza umha formaçom social ainda mais atrasada quanto à implantaçom do capitalis-mo industrial, se comparada com outras áreas do Estado como a catalá, a basca ou a historicamente construída em torno da capital.

As pretensons dos poderes fácticos de incorporar-nos ao Mercado Comum Europeu (mais tarde Uniom Europeia) determinou para a Galiza a imposiçom de políticas de brutal reconversom dos sectores estratégicos, com destaque para a construçom naval, as pescas ou a económia agrária. Desde a existência da autonomia administrativa representada pola Junta da Galiza, que os sucessivos governos autonómicos e estatais tenhem aplicado, sem nengumha excepçom, políticas neoliberais com esse objectivo. O Partido Popular e o PSOE revezárom-se na responsabilidade por umha estratégia subs-tancialmente comum, correspondendo sobretodo à esquerda nacionalista contestar nas ruas as medidas concretas e tam-bém a estratégia global oculta atrás de cada agressom a cada sector social galego.

As décadas de oitenta e noventa fôrom palco de nume-rosos conflitos, com as reconversons, as privatizaçons e as contra-reformas legislativas como pano de fundo. Sendo cer-to que o motor fundamental desse processo foi a estratégia prevista polas oligarquias financeiras e industriais espanhola e transnacional para a Galiza, nom menos certo é que a grande burguesia galega participou de forma tam activa como subsidi-ária no processo. Junto à precarizaçom do mercado laboral e a perda de peso das massas assalariadas na renda galega, o enriquecimento das entidades financeiras (Caixa Galicia, Cai-xanova…) e o crescimento de grandes firmas industriais (In-ditex, Pescanova, Fadesa…) constituem a mais clara pegada do neoliberalismo na economia galega nestes anos, como mais um tentáculo do grande capital internacional nesta naçom do extremo ocidental europeu.

Sob esta óptica, conflitos como o actual entre as multi-nacionais alimentares Pescanova e Stolt Sea Farm, de umha parte, e a Junta da Galiza de outra, pola ocupaçom de áreas protegidas de Tourinhám e Baronha para a exploraçom piscíco-la, é apenas umha boa metáfora da farisaica atitude neoliberal em relaçom às identidades e ao meio natural. Enquanto discu-tem sobre qual é “mais galega” como fundamento para a sua exploraçom do nosso território, ambas firmas se empenham em instalar indústrias agressivas com o meio em paragens na-

turais de referência histórica para a Galiza. A atitude pussiláni-me do Governo completa o quadro, mostrando-se rendida aos interesses dos poderes mais predadores do capitalismo.

A contínua privatizaçom de empresas e serviços públicos é, portanto, umha das manifestaçons dessa estratégia neoli-beral em curso ao longo do planeta nas últimas décadas que sumariamente vimos descrevendo. No caso da Galiza, podemos dizer que o nosso país ficou enquadrado no esquema espanhol sem qualquer capacidade de decidir, através de um poder auto-nómico limitado e, ainda por cima, comprometido nesse mesmo programa concebido polo grande capital internacional.

Foi em meados da década de oitenta, com o PSOE no po-der em Madrid e o PP à frente da Junta, que começárom as privatizaçons parciais no sector industrial galego. A chegada do Partido Popular ao Governo do Estado, em 1996, significou um aprofundamento na mesma orientaçom, contando com o apoio necessário da burguesia catalá politicamente representada por CiU (protagonista estelar da política de alianças estatais do BNG na actualidade).

Das grandes indústrias públicas, passa-se às de infra-estruturas e do sector serviços (comunicaçons, sanidade, se-gurança social, estradas,...) chegando-se numha etapa ainda mais avançada a serviços fundamentais como o energético, a água ou os correios. É aí que nos achamos.

Alguns exemplos significativos na Galiza actual

Como dixemos, achamo-nos na actualidade em plena ofen-siva contra os serviços básicos, em cumprimento das directri-zes marcadas pola OMC e a Uniom Europeia, e num contexto especialmente grave por nom existir um grau suficiente de re-sistência entre as principais forças políticas tradicionalmente reconhecidas como de esquerda, cooptadas polas instituiçons, e inclusive entre as forças sindicais, cujas direcçons fôrom também, em grande parte e com honrosas excepçons, direc-tamente compradas.

Assim, temos vivido na última década, logo a seguir ao desmantelamento e privatizaçom encoberta do sector naval, a entrega a maos privadas da gestom da sanidade, através das famosas fundaçons criadas polo PP; o crescimento do peso do capital privado no sector eléctrico; a privatizaçom da telefonia da mao da entrada do telemóvel, da televisom e a rádio com a escusa da digitalizaçom; e das estradas, devido à disponibilida-de do grande capital para assumir um investimento em asfalto que as portagens fam render em pouco tempo.

Mas nom só. No nível municipal, todo o tipo de serviços som cedidos ao que chamam “iniciativa privada”, vendendo-nos a falaz “maior eficácia” do capital privado e o ainda mais falso efeito benéfico da concorrência para a melhoria da pres-taçom de serviços. Desde a manutençom dos jardins à limpe-za das ruas ou a recolha de lixo, passando polo fornecimento e cobrança da água ou inclusive a programaçom cultural e a contrataçom de pessoal para os empregos na Administraçom pública. Em só duas décadas, o grande capital conseguiu fa-zer-nos ver todo como susceptível de ser privatizado e, de maneira complementar, conseguiu que seja considerado fora da realidade quem nom assumir a inevitabilidade da estratégia privatizadora.

Ajuda a afirmar essa orientaçom a possiblidade de conver-ter a Administraçom em agência de colocaçom irregular através de empresas paralelas, dando grande poder de influência aos políticos como cobradores de favores às empresas e entidades financeiras, por seu turno convertidas em sustentadoras, com juros mais do que favoráveis, das campanhas e actividades dos grandes partidos de ordem.

A maquinaria mantém-se assim oleada por todo um flu-xo de interesses e dependências que esbatem as diferenças políticas, reduzidas a questons de pormenor e discursivas, nu-

mha concorrência por comprovar quem consegue vender fume a melhor preço a umha populaçom desactivada, que assiste passiva ao decadente espectáculo da política institucional e mediática.

De facto, nom há diferenças substanciais entre os pa-rámetros da política aplicada polo PP, o PSOE e o BNG, por referirmos os três principais partidos actuantes na Galiza, em relaçom ao papel que reservam aos serviços públicos.

Se o PSOE e o PP tenhem já longa trajectória privatizadora, o BNG entregou-se às mesmas práticas, sobretodo a partir do momento em que atingiu significativas quotas de poder munici-pal, nas eleiçons de 1999, mantendo as privatizaçons impostas polo PP em Vigo, assinando novos contratos privatizadores em Ferrol (por exemplo, o da água) e de todo o tipo, incluída a exploraçom de espaços públicos, na capital galega. Políticas explicitamente abençoadas polo novo porta-voz, Anxo Quinta-na, que se comprometeu a fomentar o emprego nos concelhos através da sacrossanta “iniciativa privada”.

Apesar da surpresa de alguns, a ninguém devia estranhar que a chegada ao Governo da Junta –e a Deputaçons como a da Corunha– servisse ao BNG para acelerar a sua estratégia de assimilaçom às políticas neoliberais no que toca aos serviços públicos. O próprio Quintana encarrega-se pessoalmente de dar continuidade à entrega às fundaçons privadas dos servi-ços sociais a pessoas idosas, através da recente assinatura de acordos com Caixanova e Caixa Galicia para a construçom e gestom de residências. Ou mediante a criaçom do chamado Consórcio Galego de Serviços de Igualdade e Bem-Estar (SO-GASERSO), em cuja cabeça foi situado, por eleiçom “digital”, o ex-presidente da Cámara de Vigo, Lois Peres Castrilho.

As contrataçons arbitrárias e de elementos afins ficam também garantidas na área de Meio Rural, onde o conselheiro do BNG emula a “via Tragsa” do PP com a criaçom de empre-sas paralelas (Empresa Pública de Serviços Agrários Galegos S.A) que evitem o acesso controlado e com direitos laborais do pessoal contratado para apagar fogos.

A nova Lei de Emergências anunciada pola Conselharia da Presidência é outro exemplo da liquidaçom dos serviços públicos por parte do actual Governo bipartido, tendo provo-cado a resposta dos trabalhadores e trabalhadoras já antes da sua aprovaçom, polas perspectivas privatizadoras que se abrem num sector tam importante e até hoje indiscutivelmente ligado ao sector público. A actual Junta, em colaboraçom com as Deputaçons, dá assim continuidade à iniciativa privatizadora do PP no ámbito dos parques de bombeiros, situando-se em vanguarda a nível do Estado espanhol no que eufemisticamente chamam “externalizaçom” de um serviço de primeira necessi-dade social.

Tampouco a Cultura fica à margem da febre privatizado-ra do bipartido. A situaçom criada na longa etapa de Fraga no poder polo megalómano projecto da Cidade da Cultura foi a escusa perfeita para PSOE e BNG lançarem umha nova funda-çom com participaçom de entidades financeiras e empresariais encarregadas da gestom cultural. A Fundaçom Galega para a Sociedade do Conhecimento, formada por banqueiros e empre-sários junto a políticos autonómicos, já foi apresentada como a próxima gestora privada das políticas culturais que desenvolva a instituiçom autonómica.

O mesmo pode ser dito em relaçom ao ensino, com os bancos situados no centro de operaçons financeiras das uni-versidades galegas, e os centros concertados tam subsidiados com dinheiro público como durante o fraguismo, apesar de que a rede de centros públicos nom abranja, nem de longe, a totali-dade da oferta educativa a que a populaçom estudante galega tem direito inclusive nos termos da actual legalidade capitalista e espanhola.

Serviços municipais, sanidade, emergências, cultura,… completam o programa de imersom da Galiza num neolibera-lismo sem barreiras, sem esquecermos a mais avançada libe-ralizaçom de sectores industriais que ainda ameaça os restos do sector naval que as sucessivas reconversons nom dérom liquidado por completo. Lembremos que, novamente, é umha Conselharia em maos do BNG (a da Indústria), com o apoio do PP, que defende a soluçom privatizadora como saída à situa-çom de Navantia na comarca de Trasancos (“privatizaçom fiá-vel”, em palavras de Francisco Rodrigues), descobrindo, contra a que tinha sido a sua posiçom histórica, que os problemas do naval galego nascem da sua condiçom pública, e nom das restriçons à construçom de buques paradoxalmente impostas polas instáncias europeias mais comprometidas com o “livre mercado”.

Diante de semelhante maré reaccionária, os discursos su-perficialmente favoráveis aos serviços públicos por parte das forças ditas de esquerda, tipo PSOE ou BNG, longe de evitarem a aplicaçom das mesmas políticas neoliberais que definem os governos do PP, produzem o necessário efeito enganador de que há diversidade de opçons na oferta eleitoral, o que supom um grande serviço à manutençom do estado de cousas actu-ais.

Avança assim o desmantelamento de uns serviços sociais públicos cuja conquista tanta luita custou a geraçons de traba-lhadores e trabalhadoras, de luitadores e luitadoras que nos precedêrom na mesma causa histórica. Umha causa que hoje devemos manter com mais firmeza do que nunca, pois também a ameaça é maior do que já foi no passado.

O combate ao neoliberalismo e às forças que o assumem na sua prática política diária no nosso país, para além dos dis-cursos genéricos, é umha obrigaçom para qualquer pessoa, co-lectivo ou organizaçom que ainda reclame para si a condiçom do que sempre consideramos esquerda. A sua defesa é, sem dúvida, causa suficiente para um amplo acordo das forças polí-ticas, sindicais e sociais realmente comprometidas nos valores do outro mundo possível.

Maurício Castro é membro do Comité Central de Primeira

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Page 5: Os senhores da injustiça · tura democrática mediante a imposiçom da II Restauraçom bourbónica. A partir de um determinado momento, a início da década de oitenta do século

�Nº 43. Janeiro, Fevereiro e Março de 2007

Imaginai, por um momento que seja, que nos achamos num dos mais de umha dúzia de restaurantes turcos que hoje existem em Compostela. Imaginai, concretamente, que vos achades no mais próximo da catedral de Compostela. Através da sua janela, pode ver-se a Berenguela. A catedral, centro de peregrinaçom secular de milhares e milhares de católicos. Hoje mercadoria da indústria cultural para o turismo de todas as raças, etnias, religions e géneros. E também a Berenguela. Símbolo da ocupaçom árabe no Reino da Galiza. Roubada com sacrilégio polo seguidores mussulmanos de Alá, capitanea-dos polo Almançor, com o mesmo sacrilégio com que o modo de produçom capitalista trata agora do conjunto arquitectóni-co e histórico da catedral, confundindo os ritos sagrados com o ócio turístico e fútil. Continuamos no restaurante turco, e entre bocado ao kebab e olhar à Berenguela, enxergamos na televisom do estabelecimento as imagens do julgamento do 11-M através do sinal da CNN+. Tu, que vinhas passeando pola rua, à espera de arranjar um lugar na paisagem urbana para poderes ler um bocado, de repente reparas na contradi-çom que supom este contexto. Todo agrandado polo segundo tomo do Capital pousado sobre a mesa.

De outra parte, tratai de elaborar umha cartografia mun-dial tam rigorosa quanto possível, sabendo que Wall Street continua a ser umha instituiçom central no sistema mundo e, porém, em torno de 40 por cento das acçons e transacçons que lá quotizam correspondem a estrangeiros, e metade da dívida estado-unidense está em maos da China e do Japom. O capital -os seus mecanismos, a súa lógica e o seu processo de acumulaçom- nom tem pátria, mas supom o mais eficaz dos factores que vertebram a configuraçom histórico-geo-gráfica das nossas sociedades.

Se quigéssemos realizar com êxito umha geografia do capitalismo ou, entom, analisar a economia espacial, tería-mos de partir da base de que o processo de acumulaçom de capital aparece como algo perpetuamente expansionista e, portanto, permanente fugidio de qualquer género de equi-líbrio. Por exemplo, o importante para compreendermos o funcionamento do sistema é a possibilidade de mover de um lugar a outro mercadorias, capacidade produtiva, pessoas e dinheiro, para o que fôrom e som decisivas as condiçons que prevalecem nas indústrias do transporte e das comunicaçons. É sabido, que, durante toda a história do capitalismo, as ino-vaçons tecnológicas nesse campo alterárom espectacular-mente as condiçons de espacialidade (a fricçom da distáncia, de que Harvey fala), gerando todo o tipo de instabilidades na economia espacial do capitalismo. O que Marx denominou “a aniquilaçom do espaço mediante o tempo” (consoante o registo histórico-geográfico do capitalismo), que poderia ser hoje substituído pola “aniquilaçom do espaço mediante o ca-pital” (com toda a responsabilidade dos anos 1980) —muito em relaçom com a releitura elaborada tempo depois por Mar-shalh Bergmam, materializa-se no impulso para a reduçom ou eliminaçom das barreiras espaciais, junto dos impulsos igual-mente incessantes face à aceleraçom da rotaçom do capital. Entom, dando isto por válido, a reduçom nos custos (excepto no transporte de pessoas) e a duraçom do deslocamento de-monstrárom-se como necessidades imperiosas do modo de produçom capitalista. Logo, a sua espacialidade possui umha tendência para a mundializaçom intrínseca e, em conclusom, a evoluçom do panorama geográfico da economia neoliberal está a ser impulsionada sem folga por umha quase contínua compressom espaço-temporal.

Por outras palavras, a paisagem geográfica da activi-dade capitalista está a ser atravessada por contradiçons e tensons que a convertem numha natureza perpetuamente inestável. As tensons entre competência e monopólio, entre a concentraçom e dispersom, entre dinamismo e inércia, entre diversas escalas de actividade derivam todas elas dos de-nominados processos moleculares de acumulaçom de capital no espaço e no tempo, e todos eles se inserem na lógica ex-pansionista geral de um sistema económico em que domina a acumulaçom incessante de capital e a procura interminável de lucro. Isto dá lugar à pretensom de gerar umha envolven-te geográfica favorável às actividades capitalistas num lugar e momento determinados, tam só para ter que o destruir e ter que edificar um contexto (também sociocultural, nom só arquitectónico) totalmente diferente num momento posterior, sem poder saciar nunca a sua perpétua sede de acumulaçom. Deste jeito, vai-se escrevendo a história da destruiçom cria-tiva na envolvente da geografia histórica real da acumulaçom de capital.

Partindo destes imaginários instáveis e contraditórios (geografia da contradiçom e dialéctica da dúvida), quereria fazer neste artigo umha breve disseçom sobre as relaçons que existem hoje entre o espaço, como categoria de análi-se social, e o capitalismo. Duas questons, polo menos, fam referência à cartografia e à geografia nesta temática de ac-tualidade.

Primeiro. A longa sobrevivência do capitalismo supom um fenómeno largamente estudado pola literatura marxis-ta nas últimas décadas. Porém, as explicaçons oferecidas apresentam conflitos de engrenagem epistemológica e nom deixam fechada por completo a problemática. Tanto Lenine como R. Luxemburg -esta última com o seu fascinante tra-balho sobre o processo de acumulaçom de capital- ainda por distintas razons e empregando argumentaçons diferentes, considerárom que o imperialismo (ou certo jeito de produ-çom e utilizaçom do espaço global) era a resposta ao enigma da longa supremacia do capitalismo (ainda que em ambos os casos parece que essa soluçom era finita e, portanto, carre-gada das suas próprias contradiçons terminais). A sociologia, com o contributo de H. Lefevbre através da ideia de que o capitalismo sobrevive graças à produçom de espaço, pensou

opiniom

Marxismo e geografia ou a ilegalizaçom do mapa

Xosé

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que dera com a chave. No entanto, a geografia crítica ou ra-dical tem repetido desde a década de 1960 que o espaço é um produto social. O que significa isto realmente? Ou noutro senso, o que é que pode proporcionar, que importáncia tem a espacialidade, como categoria de análise, para o debate social da emancipaçom das classes desfavorecidas do sis-tema?1

No ano 1982, na obra The Limits to Capital, David Har-vey propom a teoria de umha soluçom espacial (com maior precisom, umha soluçom espaço-temporal) às contradiçons internas da acumulaçom de capital e às crises que gera. O núcleo dessa argumentaçom, derivada teoricamente da re-formulaçom da teoria marxiana da queda tendencial da taxa de lucro, refere-se a umha tendência crónica do capitalismo para as crises de sobreacumulaçom. Estas crises manifes-tam-se tipicamente como excessos de capital (mercadorias, dinheiro ou capacidade produtiva) e de força de trabalho, sem que pareça existir nengum meio de os amoldar rendivel-mente para levar a cabo tarefas socialmente úteis2. Entom, dado que o núcleo da dificuldade para assimilar o excesso de capital reside na ausências de oportunidades rendíveis de in-vestimento; o problema económico fundamental (a diferença do social e político) tem que ver com o capital propriamente dito. Portanto, que jeitos encontramos para evitarmos a des-valorizaçom, estabelecendo formas rendíveis de absorçom de excesso de capital? A expansom geográfica e a reorga-nizaçom espacial oferecem essa possibilidade, que nom se podem separar, porém, de dilaçons temporárias em que o excesso de capital é investido em projectos a longo prazo que

1 Durante décadas, a geografia foi considerada a irmá pobre das ciências sociais. Em ocasions, o ostracismo social e académico mesmo lhe outorgava um papel reduzido ao campo estrito do campo das humanidades e do conhecimento geral, descritivo e universalista em geral. Contodo, o território e a cartografia –como expressom visual/material do mesmo- (apesar dos avanços nos campos do SIX ou da teledetecçom) continua a ser considerado como um suporte das relaçons socieconómicas. O pró-prio X. M. Beiras, no seu Por unha Galiza liberada (1984), concretamente no trabalho “Miséria da ciência económica regional” adverte que “via de regra, o pensamento económico teorizava à margem das coordenadas espaciais da realidade objecto da pesquisa” e continua, “na economia aplicada (...) rara vez se prestava atençom ao facto de as fontes estatísticas subministrarem magnitudes relativas a fenóme-nos localizados, que quase sempre variam se muda o espaço a que se referem”. Eis a questom chave. O espaço constitui umha categoria de análise em si mesma, superadora das concepçons descritivas e corológicas, que confire pontos de apoio concretos para compreender a lógica do capitalismo e enriquece a argumentaçom do materialismo dialéctico, sendo histórico, mas também geográfico. A falsidade parcial de muitas das teorias económicas que partiam da base desse jeito de determinismo, radica precisamente na desterritorializaçom da sua proposta conceitual/epistemoló-gica. O próprio Beiras refere aquela velha ideia da chaira isotrópica com certa ironia, um lugar onde os condicionantes geográficos nom existem e, portanto, nom influem no desenvolvimento do pensamento económico através de modelos, teorias e leis infalíveis. “Deste jeito, cobrava certeira veracidade a afirmaçom de Henri Guittom de que os economistas construíam um mundo pontiforme, ou, segundo a feliz expressom de Walter Isard, a wonderland of no spatial dimensions, um país das maravilhas sem dimensons espaciais” (Beiras, 1984).

2 O exemplo mais ilustrativo e óbvio que propom Harvey sucedeu durante a depressom em escala mundial dos 1930, quando o emprego da capacidade existente caiu a um mínimo histórico, as mercadorias existentes nom se podiam vender e o desemprego atingiu quotas jamais igualadas. Aquilo conduziu à desvalorizaçom e, nalguns casos, até a destruiçom de excesso de capital, ao tempo que os trabalhadores sobrantes ficabam reduzidos a umha situaçom miserável.

tardam moitos anos a devolverem o seu valor à circulaçom mediante a actividade produtiva que promovem. A expansom geográfica supom com freqüência investimentos em infraes-truturas materiais e sociais de longa duraçom (em redes de transporte e comunicaçons ou no ensino e na investigaçom) e, além disto, a produçom e a reconfiguraçom das relaçons espaciais proporcionam umha potente alavanca para mitigar, se nom resolver, a tendência ao surgimento de crises no ca-pitalismo3. “A lógica imperialista do capitalismo (à diferença da territorial) deve ser entendida no contexto da procura de soluçons espaço temporais para o conflito do excesso de ca-pital” (Harvey, 2003). É por isso que é no excesso de capital, mais do que no de força de trabalho, que deve centrar-se e concentrar-se a atençom analítica.

Em todo o caso, a referência que quero oferecer para compreender a relaçom entre a necessidade de implemen-tar a concepçom diacrónica para perceber o funcionamento do modo de produçom capitalista, centra-se no trabalho do David Harvey. Provavelmente nengum teórico marxista sério consideraria Harvey marxista no mais mínimo. O problema está em que a maioria deles nom presta nengumha atençom às questons espaciais e tam só centram os seus esforços na análise e conhecimento da produçom. Assim e todo, pensar no funcionamento do mundo a partir dos instrumentos de ordenamento territorial: os processos através dos quais o capital gera paisagens, as cidades como lugares em que se dirimem conflitos sociopolíticos, a sua cidadania como arqui-tecta do futuro urbano.

A virtude de ligar geografia, história, economia e políti-ca, e face às versons espaciais da tese do gotejamento, do contributo fundamental situa-se no conceito de “acumulaçom por despossessom”: umha remoçada dinámica de cercamen-to da propriedade colectiva fundada em privatizaçons que habilitam a acumulaçom de capital e deslocam, no desenvol-vimento territorial, os dereitos colectivos por direitos indivi-duais de propriedade e lucro.

Em conclusom, a relaçom entre geografia e marxismo estabelece-se a partir da necessidade que existe por com-preender as situaçons de conflito que se dam nos lugares determinados –nesse contexto– aqui, em Nova Iorque ou onde quer que seja. Depois há que tratar de compreender as forças que criárom essa situaçom, quem estivo a cargo dessa construçom, como a elaborou e quais som as conseqüências de ter disposto esse ambiente tal como é. Para a geografia

3 Deste modo, durante a década dos 1930, o governo estado-unidense tratou de res-ponder ao problema da sobreacumulaçom emprendendo obras públicas orientadas para o futuro em lugares até entom subdesenvolvidos, com clara intençom de reduzir o excesso de capital e força de trabalho entom existentes (Harvey, 1982 e 2003).

crítica, isto supom a peça chave e resulta o que vse ê que fai Marx quando estuda O Capital. Parece duvidosa a opiniom que defende que o agente da história (sujeito histórico) seja a fábrica proletária. Talvez a mutaçom implique também umha espacializaçom do conceito. Devemos pensar, antes, na combinaçom e as alianças entre os bairros, os movimentos sociais em matéria de habitaçom, saúde e educaçom, e os movimentos da classe trabalhadora. O marxismo nunca fijo geografia. Nunca entendeu os desenvolvimentos geográficos nem as cidades. Quando os “marxistas” tivérom poder, nom soubérom que fazer com o desenvolvimento geográfico de-sigual. Temos atravessado no último século –um período de enormes transformaçons– de umha urbanizaçom que passou de 7% para 50% da populaçom mundial, e os marxistas actu-árom como se essa enorme mudança dinámica da populaçom em toda a organizaçom da superfície da Terra nom marcasse nengumha diferença. Assim e todo, seria falso dizer que o marxismo e a geografia nom conjugam olhares atinados para a análise e a diagnose da realidade.

E segundo. O espaço é um producto social. Pode-se admitir que os comportamentos e os processos sociais -in-dividuais e colectivos- influem directamente sobre a confi-guraçom e a lógica espacial dos territórios. Esta afirmaçom responde ao domínio e à hegemonia exercida ao longo do tempo, no contexto das ciências sociais, pola sociologia, mais sobretodo, pola história. Deste jeito, o espaço constitui umha construçom que responde a umha série de critérios de ca-rácter social [estilo(s) de vida, percepçom ou educaçom]. No entanto, face a esta formulaçom, existe umha outra que situa a importáncia sobre os elementos espaciais na configu-raçom dos territórios e das sociedades. Neste senso, é doado identificar que, face à metodologia sociologista que define ao território como umha construçom social, existe umha outra que entende a sociedade como umha construçom territorial. Por outras palavras, através de umha construçom natural, libertadora e consciente do espaço, poderemos configurar marcos territoriais que tendam para o equilíbrio das relaçons sociais e para o crescimento económico integral, equitativo e convergente, assim como para a protecçom do facto diferen-cial das minorias nacionais.

Esta ideia toma corpo pragmático na vertebraçom espa-cial da Galiza. Na construçom social do mapa do País, deve in-fluir de jeito notável umha condiçom similar de aquilo que su-pom o conceito de identidade territorial. Joam Nogué (1998) entende que “a transferência do sentimento de identidade do

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Nº 43. Janeiro, Fevereiro e Março de 2007� opiniom

grupo para o território” recolhe um fenómeno histórico de humanizaçom do espaço. Em todo o caso, até existir umha vocaçom institucional de gerir os recursos do território, a lógica espacial do noroeste atlántico ibérico, entendeu-se como umha conseqüência directa do termo de iden-tidade territorial, enquanto processo mediante o qual umha comunidade social diferenciada impinge carácter a um território através de um jeito genuíno de ocupaçom e humanizaçom do espaço vivido. Eis o vector fundamental que de-veria servir para traçar os mapas das naçons.

Em todo o caso, se atendermos à história, existem precedentes na historia recente de mo-dificaçom dos limites político-administrativos do território que dam para pensar. Nom é lugar nem momento de os recordarmos aqui; porém, lanço as seguintes hipóteses:

1. Se calhar, cumpre observar devagar dous factos que tendem a homogeneizar os comportamentos espaço-temporais no modo de habitar o território na Galiza. Por um lado, o território passou de ser aquilo de que a populaçom tinha consciência glo-bal, a se converter em algo que se parece desconhecer, objecto de inevitável e per-manente degradaçom e, produzindo-se tal cousa em companhia do desvanecimento dos recursos. No nosso território, estamos a sofrer o efeito combinado de mais de um “desastre”: umha urbanizaçom anárquica e irracional do litoral e do sistema de assen-tamentos; umha especializaçom productiva exagerada e, as mais das vezes, pouco meditada (exploraçons pecuárias de vacum ou repovoaçons florestais generalizadas de nula diversidade); um duro controlo dos re-cursos financeiros por parte de um sistema alheio às necessidades reais do País; umha miopia política por parte dos responsáveis públicos, excessivamente preocupados por contentarem Madrid, esquecendo-se de exercerem as competências que lhes som exclusivas a partir da divisom autonómica; assim como umha cegueira permanente en-tre os profissionais da geografia, incapazes (tanto estes como os anteriores) durante

décadas de combaterem os riscos negati-vos de um sistema doente e convalescente.

2. Talvez cumpra analisar, para compreen-dermos de vez a nossa identidade territo-rial homogénea, o jeito multissecular de habitarmos o espaço, com independência do poder político estabelecido, e que se vê reflectido em construçons político-adminis-trativas de condiçom histórico-geográfica. Neste senso, ninguém pode negar a existên-cia e importáncia da freguesia portuguesa ou da comarca galega na vertebraçom das realidades nacionais. De aqui tiramos que o território nom é algo que nos vem dado ou imposto, senom que se constrói, que se fai e que se delimita em funçom dos compor-tamentos cívico-sociais diferenciados entre eles, mas homogéneos em si mesmos. Este segundo factor deve ser compreendido par-tindo do conceito de territorialidade huma-na. De novo Joam Nogué (1998) recorre a

Sack (1985) para apresentar umha noçom precisa deste termo. Assim, a territoria-lidade humana seria umha forma de com-portamento espacial, um acto de intencio-nalidade, umha estratégia com tendência para afectar, influir ou controlar as pessoas e os recursos de umha área, através do seu controlo territorial. Face à situaçom de controlo tributário, fiscal ou militar exercido polos poderes políticos do Estado espanhol, a territorialidade converteu-se no único fac-to diferencial, levado a cabo mediante umha humanizaçom do território genuína. Deste modo, o território elevou-se a um grau de conhecimento popular, algo de que a po-pulaçom tinha consciência global e local, e, além do mais, era compreendido como um elemento próprio e identitário.

No caso da Galiza, aliás, esta transforma-çom supujo umha grave ameaça contra um dos

principais factos diferenciais. O território, a Ter-ra –num sentido mais amplo, conforma um dos principais elementos de contruçom identitária. Para a doutrina nacionalista na Galiza, o espa-ço natural vivido guarda umha forte relaçom com a ideia essencial da existência de umha consciência de identidade colectiva diferencia-da com vocaçom espontánea4. Com a chegada dos estados democráticos, a situaçom no mu-dou em profundidade. O território continua sob um controlo e umha gestom desnaturalizadora, principalmente porque nom se compreende a identidade territorial homogénea no noroeste atlántico ibérico, mais também porque as divi-sions administrativas do espaço, bem como a construçom de infraestruturas viárias, tenhem

4 No Sempre em Galiza, Castelao recorre à concepçom stalinista do termo de naçom. Neste senso, admite que nom há nacionalidade sem território próprio, ou nas suas palavras, “Para nós, os gale-gos, a Terra (assim, com maúscula) é a Galiza. O que nos junta numha comunidade espiritual é, principalmente, o amor à Terra. E quando dizemos –a nossa Terra- queremos dizer –a nossa Naçom-. A Terra é a Mátria” (Sempre em Galiza, 1943, páx. 40).

um interesse centralizante, mas preocupante para os territórios periféricos.

Ilegalizar um mapa, como plasmaçom visual e gráfica de comportamentos sociais e culturais legítimos de comunidades humanas que temos comentado, supom, ao tempo, per-seguir olhares diferentes sobre a lógica espa-ço-temporal, criminalizar distintos usos e jeitos de ocupar o espaço, pôr em questom a orga-nizaçom territorial multissecular de um povo e lançar umha ofensiva/missiva contra umha das linhas de flutuaçom do surgimento e apariçom da consciência nacional espóntanea na Galiza: a Terra, com maiúscula, que debulhara Castelao no Sempre em Galiza. Além disto, a persegui-çom aberta volta a ser umha deturpaçom das regras de jogo e umha explicitaçom das diferen-tes medidas que subsistem. Enquanto opinável, a divisom territorial nom pode constituir umha realidade imutável nem inamovível.

Assim sendo, na actualidade, na Galiza existe umha divisom espacial nom vertebrada na realidade do País, reflectida no mapa político ad-ministrativo da actual Comunidade Autónoma da Galiza e, o que é pior, umha estrutura alienante para o indivíduo e que combate directamente a construçom da nossa identidade nacional. É mester que a cidadania galega entenda que nom se pode continuar com o esbanjamento do seu mais estimado património: o território da naçom, –elemento conformador essencial dos nossos sinais de identidade como povo. Neste senso, como cidadaos do comum, livres e conscientes do nosso jeito genuíno de habitarmos e usarmos o território, devemos saudar com agrado e aga-rimo aquelas propostas que tratarem de natura-lizar as relaçons sociais sobre o espaço.

bibliografiaBEIRAS, X.M. (1984): Por unha Galiza liberada.

Editorial Galaxia, Vigo.CASTELAO, A.D.R. (1980): Sempre em Galiza.

Ediçons Akal, MadridHARVEY, D. (1982): The Limits to Capital. Bla-

ckwelh, Oxford.HARVEY, D. (2003): El nuevo imperialismo. Edi-

ciones Akal, Coleçom Cuestiones de Antagonismo, Madrid.

Xosé Constenla Veiga é geógrafo

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Marxismo e geografia ou a ilegalizaçom do mapa

LIVROS WEB

www.agal-gz.org/bloguesBlogues AGAL-GZ: umha plataforma digital para a expressom em galego

A Associaçom Galega da Língua vem fazendo nos últimos anos um magnífico trabalho de divulga-çom das teses reintegracionistas na Internet, atra-vés do Portal Galego da Língua, do qual falamos já nesta mesma secçom no número 30 do Abrente. Se no seu dia foi pioneira no lançamento da infor-maçom sobre o conflito lingüístico na Galiza, neste momento está a protagonizar a posta em comum do boom informativo e comunicativo que nos últimos tempos representam os blogues.

Para tal, a AGAL disponibiliza espaço às enti-dades que, utilizando a forma escrita tradicional e de futuro, a reintegracionista, quigerem contar com um meio de expressom próprio na rede, dando in-clusive assessoramento técnico e de maneira gra-tuita, como forma de dinamizar a presença galega e em galego na net.

Assim, no servidor de blogues do Portal Ga-lego da Língua podemos já aceder aos sítios de associaçons, entidades e iniciativas diversas que coincidem no uso do galego-português. Centros sociais como A Revira de Ponte Vedra, A Esmorga de Ourense, Artábria de Ferrol, Aguilhoar de Gin-zo, Henriqueta Outeiro e A Gentalha do Pichel de Compostela ou a Baiuca Vermelha de Ponte Areas contam já com blogues em que informam do de-senvolvimento das suas actividades praticamente a diário.

Também campanhas como a do Voluntariado pola Língua mantenhem informados os sectores mais interessados na defesa da língua num blogue específico, e recentemente inclusive AGIR e BRIGA se incorporárom ao servidor de blogues com um dedicado monograficamente à Escola de Formaçom que organizam anualmente desde 2004.

O Colectivo Gai de Compostela e o Viveiro e Observatório de Galescolas (nom as da Junta, aten-çom!) tenhem blogue próprio.

Além da vertente colectiva, o servidor dispo-nibilizado pola AGAL oferece blogues particulares a pessoas interessadas em comunicar directa e abertamente mediante essa via. Recomendamos conhecer este espaço horizontal e participativo de comunicaçom, que permite estar em dia de muita cousa feita na base de umha parte do movimento popular galego.

Carlos F. Velasco Souto1936. Represión e alzamen-to militar en Galiza. Edicións A Nosa Terra. Vigo, 2006. 376 páginas.

A última obra do his-toriador e professor de História Contemporánea na Universidade da Coru-nha, Carlos Velasco, dá continuidade à anterior aproximaçom divulgativa da Galiza da II República, publicada na mesma edi-tora e já comentada no seu momento nestas páginas.

Tal como acontecia no seu Galiza na II República, este novo tra-balho consegue conjugar o rigor histórico com o eminente teor divulgativo, resultando um produto que, sem dúvida, supera polo seu carácter abrangente os numerosos ensaios precedentres dedicados à mesma temática.

Coincidindo com o chamado “Ano da Memória”, A Nosa Terra publicou este novo título dentro da colecçom “Historia de Galicia”, deixando, mais umha vez, em evidência o desleixo da editora ao incluir, sem nengum rigor, na mesma capa os nomes espanhol e galego do nosso país.

A intensa repressom sofrida polo nosso povo em 1936, cuja verdadeira dimensom ainda nom pudo ser exactamente quan-tificada, acha nesta obra um altifalante que denuncia, depois de ordenados os dados e apresentados sectores sociais e ámbitos geográficos, o terror fascista que exterminou toda umha geraçom de luitadores e luitadoras galegas, e de cujos efeitos ainda hoje padecemos efeitos constatáveis em forma de amnésia histórica, castraçom ideológica e alienaçom colectiva.

Velasco parte do estudo dos nom poucos ensaios de ámbi-to local e comarcal dedicados a estudar a repressom franquista, publicados nas últimas décadas, compondo um olhar de conjunto sobre a naçom galega, e acrescentando a imprescindível análise histórica e política de uns factores que determinárom a maneira como decorrêrom os acontecimentos no nosso país a partir do golpe de Estado e nos meses que se seguírom: a rápida queda da Galiza no campo fascista, as fugidas, a brutal caça ao vermelho, o exílio, a luita antifascista no interior e no exterior, a repressom comarca por comarca... o exaustivo estudo do professor ponte-vedrês constitui, em definitivo, um referente imprescindível para quem quiger ter umha ideia global do que supujo o golpismo fran-quista e a guerra que se seguiu. Sendo aqueles anos determinan-tes na configuraçom da história da Galiza no século passado, os seus efeitos continuam a dar chaves para a interpretaçom de nom poucos mecanismos políticos vigentes nestes primeiros anos do século XXI. Mais um motivo para recomendarmos entusiastica-mente a leitura das quase 400 páginas que componhem este 1936. Represión e alzamento militar en Galiza. (Maurício Castro)

Aurora Marco Dicionario de Mulle-res Galegas, A Nosa Terra, Março 2007, 566 páginas.

Perto de dous milhares é o número de mulheres a que fai referência este pioneiro dicionário: trabalhadoras dos mais diversos ofícios, (impressoras, jorna-listas, prateiras, mer-ceeiras, cigarreiras, curandeiras, etc), artistas, desportis-

tas de muitas e variadas disciplinas (desde qualquer das modalidades do atletismo até desportos aquáticos como o caiaque ou a canoagem), milicianas, religiosas, verea-doras, bandoleiras, militantes de partidos e organizaçons políticas de amplo espectro idológico, sindicalistas, solda-deiras medievais, escritoras, mulheres que destacárom nas luitas labregas de início do século XX, e um longuíssi-mo etcétera. Estes nomes descobrem-nos umha outra re-alidade das nossas antecessoras, muito afastada da foto fixa que representa as mulheres galegas de antano como abnegadas maes e esposas que tinham no lar e na igreja o seu suposto “habitat natural”. Nomes de mulheres tam conhecidas como o de Rosalia de Castro, Maruxa Mallo ou Maria Casares, acompanham muitíssimos outros comple-tamente desconhecidos e sentenciados ao esquecimento se nom fosse por esta e outras imprescindíveis iniciativas.

Resultará surpreendente para a leitora e o leitor des-cobrir que no anos 30 já havia mulheres camionistas, como Maruja Martinez Cartamil, de Mugia; ou Chichona Patinho, primeira mulher galega a obter o diploma de aviadora na década de 10 do século passado.

O quadro cronológico estudado é extremamente am-plo, desde as origens até o ano 1975, e nele recolhem-se alguns dos dados disponíveis de centenas de mulheres que, de umha maneira ou outra, conseguírom que a sua pegada na sociedade galega sobrevivesse até os nossos dias. Numerosas fotografias acompanham estas mulheres, ajundando a pôr rostos a estes nomes.

Só um ingente e paciente trabalho investigador como o cá desenvolvido por Aurora Marco, permite recuperar-mos, embora seja às vezes com escassos dados, o nos-so passado colectivo e como mulheres, enchendo o vazio histórico a que séculos de dominaçom patriarcal nos tinha condenado.

Do Abrente, queremos parabenizar este importante contributo para a recuperaçom da nossa memória, como galegas, e como mulheres. (Noa Rios Bergantinhos).

José Gómez AbadComo o Che enganou a CIA. Edições Avante, Lisboa 2006, 566 páginas.

No quarenta aniversá-rio da morte do Che na Bo-lívia, fai-se necessário nom só estudar e reivindicar o seu exemplo de revolucio-nário integral, mas também desmontar as falácias sobre a sua trajectória e as refle-xons teóricas promovidas pola reacçom e a social-de-mocracia, mas também polo estalinismo.

O livro de Pepe Gómez contribui para desvendar e esclarecer umha parte dos episódios menos conhecidos da biografia de Ernesto Guevara: os prepara-tivos da gesta internacionalista boliviana. Em 23 de Outubro de 1966, o Che partia, dando início a 11 intensos meses a tentar criar um foco guerrilheiro, tam bem plasmados no seu Diário. Anterior-mente, outros destacados quadros revolucionários cubanos tinham saído para o país sul-americano como avançada para preparar a logística, entre as quais destaca Tamara Bunke Bíder, mais conhe-cida como “Tánia”.

Em 1966-67, o daquela jovem José Gómez Abad –filho do inesquecível dirigente comunista galego José Gómez Gaioso, as-sassinado no garrote vil polo fascismo na Corunha a 6 de Novem-bro de 1948– já era um destacado membro da Direcçom-Geral da Informaçom do Ministério do Interior de Cuba, e posteriormente converteu-se no Ajudante Executivo do também galego Manuel Pi-nheiro Lousada “Barbarroja”, chefe da DGI.

Foi enviado a Praga, onde estivo destinado muitos meses na preparaçom política, ideológica e militar de Tánia e outros comba-tentes cubanos, e apoiando o Che –que se achava de passagem após a fracassada experiência do Congo– antes da sua partida para a Bolívia via Cuba. Pepe Gómez, tal como relata com mestria neste livro, fazia parte do reduzido grupo de pessoas responsabilizadas pola segurança e treino do Che, que conseguírom enganar a CIA e os serviços de espionagem europeus e latino-americanos. Partici-pou activamente na transformaçom física do Che, na elaboraçom do disfarce empregado para penetrar na Bolívia sem levantar as mais mínimas suspeitas rumo ao seu histórico objectivo.

Portanto, este livro, apoiado numha ingente documentaçom, inédita até o momento, está escrito por alguém que viveu directa e intensamente estes acontecimentos. Pepe Gómez Abad foi um activo protagonista de umha das maiores gestas revolucionárias de todos os tempos.

Novamente, pois tenho a honra de conhecê-lo, quero transmi-tir o que ele já sabe: muito obrigado, Pepe, por teres dedicado mi-lhares de horas a realizar este livro. Aguardo poder acompanhar-te no vindouro ano na homenagem do 70 aniversário de José Gómez Gaioso no cemitério de Santo Amaro, na Corunha. (Carlos Morais)

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�Nº 43. Janeiro, Fevereiro e Março de 2007 intErnacional

O , o degrau mais alto da espécie humana

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Morre em paz, velha luitadora.vás morrer, velha Maria;trinta projectos de mortalhadirám adeus com o olhar,num destes dias em que irás embora.Vás morrer, velha Maria,ficarám mudas as paredes da salaquando a morte se conjugar com a asmae copularem o seu amor na tua garganta.Essas três carícias construídas de bronze(a única luz que alivia a tua noite)esses três netos vestidos de fame,terám saudades dos nós dos dedos velhosonde sempre achavam um sorriso.Era todo, velha Maria.A tua vida foi um rosário de magras agoniasnom houvo homem amado, saúde, alegria,quase nem a fame para ser partilhada,a tua vida foi triste, velha Maria.Quando o anúncio de descanso eternoenturva a dor das tuas pupilas,quando as tuas maos de perpétua esfregonaabsorverem a derradeira ingénua carícia,pensas neles... e choras,pobre velha Maria.Nom, nom fagas isso!Nom ores ao deus indolente

Num dos momentos mais difíceis da sua derradeira campanha guer-rilheira, a boliviana em que o esperava a morte, o Che Guevara dixo aos seus combatentes que “este tipo de luita dá-nos o ensejo de nos con-vertermos em revolucionários, o degrau mais alto da espécie humana”. Falava assim, e com verdade, quem se achava já, alçado pola sua vida, os seus factos e os seus contributos, nesse degrau mais alto. Porque já tinha feito umha revoluçom, a cubana, que quase meio século depois da sua primeira vitória em 1959 ilumina ainda hoje este planeta tenebroso, conduzido para o desastre ecológico polos brutais derradeiros suspiros de um capitalismo endoidecido que, agudizadas e levadas quase ao limite as suas contradiçons genético-estruturais, demonstra de dia para dia a validade da Lei geral da acumulaçom capitalista enunciada por Marx nos capítulos finais do Livro Primeiro do Capital. De dia para dia, os dados evi-denciam o aumento incessante da exploraçom, da miséria, das doenças, do mal-estar vital, que som condiçom do também incessante aumento da acumulaçom de mais e mais riquezas em cada vez menos maos e de mais e mais destruiçons da ecologia do Planeta.

E de dia para dia, quando lemos na mentirosa imprensa capitalista, as contas minimizadas de desastres que nos dim, por exemplo, que 4.000 crianças morrem por dia devido à diarreia provocada por beberem água em mau estado, e 1.400 mulheres perdem a vida por dia durante a gra-videz ou o parto por falta de assistência médica, sabemos que falta um pormenor a essa notícia. Falta-lhe é acrescentar que “nengumha dessas crianças é cubana”. Quando a UNICEF calcula que existam, no mínimo, 100 milhons de crianças sem serem escolarizadas, sabemos que a essa notícia falta um pormenor. Falta-lhe acrescentar que “nengumha dessas crianças é cubana”.

Sim, quando o Che chegou à Bolívia, já se tinha convertido em re-volucionário, já tinha atingido “o degrau mais alto da espécie humana”. Porque a sua entrega pessoal se tinha unido à das e os camaradas que tinham posto em andamento a Revoluçom Cubana. Umha revoluçom que, em Fevereiro deste ano 2007, pudo proclamar com orgulho que, até este momento, mais de meio milhons de latino-americanos recuperárom a vi-som graças ao programa oftalmológico Operaçom Milagre, que desde 2004 desenvolvem conjuntamente Cuba e a Venezuela. Que nos últimos sete anos de colaboraçom, as brigadas médicas cubanas realizárom mais de 304 milhons de consultas médicas em 69 países e salvárom quase um milhom e 600 mil vidas. Que médicos cubanos intervinhérom quirurgi-camente um número superior aos dous milhons e 100 mil pacientes. E que, desde 1963, mais de 270 mil colaboradores cubanos prestárom os seus serviços em 154 países e Cuba contribuiu para a alfabetizaçom de mais de dous milhons de pessoas em 16 países, enquanto mais de 28 mil jovens de 120 estados estudam em universidades cubanas, a maioria a especialidade de Medicina.

Nem a minha companheira Margari Ayestarán nem eu esquecemos o agridoce sabor da noite, quase quarenta anos atrás, em que assistimos na Embaixada cubana naquele Madrid franquista de 1967 à homenagem ao Che, recém assassinado por ordem da CIA. Nom esquecemos que ali nos foi dito que NOM ia haver um minuto de silêncio, porque um revolu-cionário nom pode ser homenageado com umha inacçom. Que ia haver um minuto de aplauso. Que se prolongou durante o que parecêrom ser horas, enquanto aplaudíamos verticalmente, porque os braços, já dolori-dos, eram incapazes de continuar a fazê-lo horizontalmente.

Os estreitos limites de um artigo como este nom me permitem nem sequer gizar a importáncia que a figura e a vida do Che tivérom para a luita de Euskal Herria contra os estados opressores espanhol e fran-cês, e para a evoluçom da que é oficialmente denominada Organizaçom Socialista Revolucionária Basca para a Libertaçom Nacional Euskadi Ta Askatasuna. Vou limitar-me a lembrar que a ETA, que se proclamou sole-nemente comunista na sua VI Assembleia de 1973, foi umha das poucas organizaçons políticas comunistas que nom se murchárom nem desapa-recêrom abaixo do entulho da implosom da URSS em 1991. Sem dúvida, porque o seu comunismo bebeu mais dos frescos mananciais da teoria e a prática de revolucionários como o Che Guevara, do que das degenera-çons burocráticas do PCUS.

Sim. O Che tinha razom. Os revolucionários som o degrau mais alto da espécie humana. Som os que luitam (e muitas vezes morrem nessa luita) para que ninguém cuspa sangue para que outro viva melhor. E os que quebram as grades dos cárceres que oprimem a humanidade.

A 29 de Setembro de 2001, na aula especial e pública sobre a guerra imperialista da Universidade Popular das Maes de Praça de Maio, Hebe de Bonafini leu um poema inédito do Che. Ei-lo:

Velha MariaVelha Maria, vás morrerquero falar-che a sério:A tua vida foi um rosário completo de agonias,nom houvo homem amado, nem saúde, nem dinheiro,quase nem a fame para ser partilhada;quero falar da tua esperança,das três diferentes esperançasque a tu filha fabricou sem saber como.Segura esta mao que parece de criançanas tuas polidas polo sabom amarelo.Frega os teus calos duros e os nós dos dedos purosna suave vergonha da minha mao de médico.Escuita, avó proletária:Acredita no homem que chega,acredita no futuro que nunca verás.Nem rezes ao deus inclementeque toda umha vida mentiu a tua esperança;nem pidas clemência à mortepara veres crescer as tuas carícias pardas;os céus som moucos e em ti manda o obscuro,sobretodo terás umha vermelha vingançajuro pola exacta dimensom dos meus ideais.

que toda umha vida mentiu a tua esperançanem pidas clemência à morte,a tua vida foi horrivelmente vestida de fame,acaba vestida de asma.Mas quero anunciar-cheem voz baixa e viril das esperanças,a mais vermelha e viril das vingançasquero jurá-lo pola exactadimensom dos meus ideais.Segura esta mao de homem que parece de criançaentre as tuas polidas polo sabom amarelofrega os calos duros e os nós dos dedos purosna suave vergonha das minhas maos de médico.Descansa em paz, velha Maria,eescansa em paz, velha luitadora,os teus netos todos viverám o abrente,EU JURO.

Assim é que o Che escrevia, assim é que sentia, assim é que vivia e assim foi que morreu e venceu inclusive na sua derrota. O Che que reivindicam e fam seu os revolucionários. Os que exercem a fecunda, imprescindível e saudável, quirúrgica, cirurgiá violência dos oprimidos. Que é sempre legítima. E é a esperança dos párias da Terra. A que mu-dará o mundo a partir da base e fará dessa Terra um paraíso. A Pátria da Humanidade.

Justo de la Cueva é militante comunista basco

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Edita: Primeira Linha. Redacçom: Rua Costa do Vedor 47, rés-do-chao. 15703 Compostela. Galiza. Telefone: 616 868 589 / www.primeiralinha.orgConselho de Redacçom: Comité Central de Primeira Linha. Fotografia: Arquivo Abrente. Correcçom lingüística: Galizaemgalego. Maqueta: ocumodeseño. Imprime: Litonor S.A.L. Encerramento da ediçom: 28 de Março de 2007Correspondência: Rua Costa do Vedor 47, rés-do-chao. 15703 Compostela. Galiza. Correios electrónicos: [email protected] / [email protected] / Tiragem: 3.000 exemplares. Distribuiçom gratuíta.Permite-se a reproduçom total ou parcial dos artigos sempre que se citar a fonte. Abrente nom partilha necessariamente a opiniom dos artigos assinados.

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