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OS SABERES E AS PRÁTICAS DE UMA PROFESSORA ALFABETIZADORA:
O ATENDIMENTO À HETEROGENEIDADE DE CONHECIMENTOS
Nayanne Nayara Torres da Silva1
RESUMO
O presente trabalho aborda os saberes e práticas mobilizados por uma professora
alfabetizadora no tratamento da heterogeneidade de conhecimentos dos alunos sobre a
leitura e escrita. Trata-se de parte de um estudo maior que tem como objetivo
compreender como professores do 1º ano do Ensino Fundamental concebem e praticam
o ensino de alfabetização em relação ao atendimento à heterogeneidade de
conhecimentos dos alunos sobre a escrita e a leitura. Para isso, trazemos uma discussão
teórica que versa sobre as concepções e práticas de alfabetização, tanto em uma
perspectiva “tradicional”, quanto em perspectivas “mais recentes”, e suas implicações
no tratamento da heterogeneidade de conhecimentos dos aprendizes. Apresentamos,
também, algumas reflexões sobre saberes e práticas docentes. Como caminho teórico-
metodológico, adotamos a abordagem qualitativa de pesquisa e recorremos ao uso de
entrevistas semiestruturadas e observações em sala de aula. Os dados resultantes do uso
desses procedimentos foram analisados por meio da análise temática de conteúdo, com
base em Bardin (1977). Como se trata de uma parte de um estudo maior, trazemos no
presente trabalho os dados de um de nossos sujeitos de pesquisa: uma professora do 1º
ano do Ensino Fundamental da rede municipal de ensino da cidade de Caruaru-PE. Os
resultados desta investigação evidenciaram uma prática docente pautada em concepções
tradicionais de ensino, mas que, em certa medida, atentava para o fenômeno da
heterogeneidade de conhecimentos sobre a leitura e a escrita dos aprendizes. Com isso,
percebemos o uso de procedimentos que, em meio às práticas homogêneas, atentavam
para as necessidades de aprendizagem de alguns alunos. As intervenções e atividades
diferenciadas que a professora realizava com alguns aprendizes, apresentaram-se como
procedimentos para o atendimento da heterogeneidade.
PALAVRAS-CHAVE: Alfabetização; Heterogeneidade; Saberes; Práticas.
1. INTRODUÇÃO
A presente pesquisa ocorreu no âmbito das discussões sobre saberes e práticas
de professores alfabetizadores, enfocando o atendimento à heterogeneidade de
conhecimentos dos alunos sobre a leitura e a escrita. Embora a apropriação da leitura e
da escrita comece antes mesmo de a criança entrar no universo da escola, uma vez que
esses processos de aprendizagem têm uma origem extraescolar, é na escola que ocorre a
formação institucionalizada e o ensino sistemático da leitura e da escrita. É com o
domínio da escrita que o sujeito consegue se incluir de maneira mais plena na cultura
1 Mestranda em Educação Contemporânea da Universidade Federal de Pernambuco – Centro Acadêmico
do Agreste.
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letrada. Nessa perspectiva, destacamos o papel da escola enquanto formadora de
sujeitos capazes de se relacionar com o mundo letrado de maneira autônoma.
Desse modo, o domínio da escrita alfabética é um aspecto indispensável para
participação efetiva nas práticas de leitura e escrita desenvolvidas na sociedade em que
vivemos. Isso nos leva a pensar em um ensino pautado na perspectiva do alfabetizar
letrando, que propõe, desde a escolarização inicial, a realização de atividades que
enfoquem tanto a apropriação do sistema alfabético quanto a assimilação dos usos e
funções sociais da escrita (SOARES, 2006).
O surgimento dessa perspectiva teve um significativo impacto no conceito de
alfabetização. Não cabia mais a perspectiva de que para ser alfabetizado os sujeitos
precisariam apenas saber ler e escrever em seu sentido mais restrito, sendo, então,
necessário inserir esses sujeitos em práticas que contemplassem os usos sociais da
leitura e da escrita. Isso nos leva a perceber que o campo da alfabetização vem, desde a
década de 1980, rompendo com a visão associacionista/empirista de alfabetização, na
qual o educando é colocado na posição de mero receptor de um código, como fazem os
métodos tradicionais de alfabetização.
Contudo, apesar de novas teorias terem passado a permear o campo da
alfabetização, como também ampliado esse conceito, é possível perceber, nos dias
atuais, a tentativa de volta a alguns métodos tradicionais de alfabetização, com o
argumento de que estes seriam a salvação para o atual fracasso vivenciado nessa área.
Em outras palavras, vivemos um período em que convivem, simultaneamente, as
perspectivas do construtivismo e do letramento para a alfabetização e as propostas de
retorno aos métodos tradicionais, especialmente do método fônico. Em meio a todas
essas discussões e conceitualizações, encontra-se o professor, que (re)inventa os seus
saberes e as suas práticas alfabetizadoras cotidianamente, com vistas a contemplar as
diferentes necessidades de seus alunos em sala de aula.
É necessário enfatizar que as ações docentes se desenvolvem em ambientes
permeados de heterogeneidade. São múltiplos os conhecimentos, percursos e níveis de
aprendizagem que se fazem presentes tanto nas turmas de alfabetização, como também
em turmas de qualquer outro nível de ensino, tendo o professor o desafio de lidar com
esses fenômenos, elaborando procedimentos de ensino que contemplem tal
heterogeneidade. Além disso, a recente implementação da proposta de ciclos, que, no
caso da alfabetização, amplia para três anos o tempo destinado à apropriação e
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consolidação do sistema de escrita alfabética (doravante SEA), prima pelo atendimento
à heterogeneidade.
Por acreditarmos que contemplar esses aspectos nas práticas de ensino não
constitui tarefa fácil, desenvolvemos uma pesquisa que visou investigar como uma
professora do 1º ano do Ensino Fundamental concebia e praticava o ensino de
alfabetização em meio à heterogeneidade de conhecimentos sobre a leitura e a escrita
apresentada pelos alunos.
2. DISCUSSÃO TEÓRICA
2.1 Concepções e práticas de alfabetização e suas implicações no tratamento da
heterogeneidade de conhecimentos dos aprendizes
Ao considerarmos que a apropriação da escrita alfabética e de suas convenções é
algo que exige, tanto do alfabetizador quanto do alfabetizando, o desenvolvimento de
um trabalho sistemático, entendemos que a alfabetização não se processa, via de regra,
de forma espontânea, sendo necessário, portanto, o desenvolvimento de um ensino
contínuo e progressivo dos princípios do sistema de escrita alfabética. Para isso, o
professor deverá desenvolver práticas adequadas a esse ensino e escolher e reconstruir,
dentre os muitos “modelos” de alfabetização, aqueles que considera mais pertinentes à
sua turma e ao contexto no qual atua.
No decorrer da história da alfabetização, dois grandes grupos de métodos
apresentaram-se de maneira hegemônica: os sintéticos (soletração, silabação e método
fônico), que partiam das unidades menores da língua (letra, sílaba ou fonema), e os
analíticos (palavração, sentenciação e método de contos), que iniciavam o processo de
alfabetização a partir das análise das unidades maiores (palavra, frase ou texto)
(CARVALHO, 2008). Embora tivessem pontos de partida diferentes, esses grupos não
se diferenciavam quanto à maneira de perceber a alfabetização, que era vista como um
código a ser memorizado pelos alunos.
Além desses métodos, outro modelo também se fez presente no processo
histórico da alfabetização. Não se tratava, porém, de algo totalmente diferente, mas,
sim, de uma combinação entre os métodos já existentes, a qual ficou conhecida como
método misto ou eclético (analítico-sintéticos ou vice-versa).
Entretanto, é notório que a sucessão de métodos não deixou de tratar a
alfabetização enquanto um código e que as mudanças que aconteciam se davam
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essencialmente em relação à unidade linguística a ser priorizada. Com isso, podemos
inferir que a maneira de compreender o processo de alfabetização continuava a mesma.
Isso nos leva a perceber que os métodos tradicionais de alfabetização, ao
considerarem a escrita enquanto um código, acreditavam que a memorização seria
suficiente para o aprendiz se alfabetizar, desconsiderando a necessidade de levá-lo a
compreender o funcionamento da escrita alfabética. Se não há necessidade de refletir
sobre o sistema de escrita, também não haveria, então, necessidade de propor atividades
diferenciadas que considerassem os diferentes conhecimentos dos aprendizes. Diante
disso, a proposição de atividades padronizadas, coletivas e com muita repetição
bastariam para levar os alunos, tratados enquanto sujeitos homogêneos, à memorização
do código.
Se essa concepção tradicional de ensino não está preocupada com a
heterogeneidade de conhecimentos dos aprendizes, podemos dizer que as concepções
“mais recentes” de alfabetização começaram a abrir espaço para percepção desse
fenômeno. Foram, sobretudo com os estudos da Psicogênese da escrita, de Emília
Ferreiro e Ana Teberosky (1999) que o alfabetizando passou a ser percebido em sua
singularidade.
É no início da década de 1980 que a tradição metodológica típica dos métodos
tradicionais começa a ser questionada, pois é a época em que começam a se disseminar
no cenário brasileiro os estudos sobre a Psicogênese da escrita. A partir de então, pensar
meramente em métodos de alfabetização passa ser considerado algo tradicional, e, por
esse motivo, inicia-se uma revolução conceitual acerca da alfabetização, sendo o foco
da investigação transferida, conforme esclarece Ferreiro (2001), do “como se ensina”
para o “como se aprende”.
Com essa transferência de foco, o aprendiz vai sendo colocado numa posição de
destaque e as maneiras como aprende, que são as mais diversas possíveis, assumem um
papel central no processo de alfabetização, uma vez que a aprendizagem do SEA
acontece, conforme evidencia a teoria da Psicogênese, de forma gradativa e evolutiva.
Nessa perspectiva, o professor teria como uma de suas atribuições a atenção às
diferenças entre os alunos, que apresentam diferentes conhecimentos e percursos de
aprendizagem.
Assim, a diferenciação do ensino entra em cena e as práticas voltadas a atender
as necessidades dos aprendizes ganham uma atenção especial. Conforme expõe
Perrenoud (2001), embora o professor enfrente diferentes obstáculos nesse processo de
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diferenciação, como a limitação do horário escolar, o número de alunos em cada classe,
as dificuldades para desenvolver atividades de níveis e conteúdos diferentes na sala de
aula, a diferenciação é possível, até porque “nenhum professor, por menos que se
preocupe com a diferenciação, pode oferecer um ensino totalmente uniforme: ele não
tem o mesmo relacionamento com todos os alunos, não intervém com cada um pelos
mesmos motivos, de uma maneira idêntica [...]” (PERRENOUD, 2001, p. 49).
2.2 Os saberes e as práticas dos professores
Em todas as práticas desenvolvidas pelo professor no espaço da sala de aula, são
mobilizados saberes construídos no decorrer do tempo e da carreira profissional
docente. Conforme esclarece Tardif (2008), tais saberes podem ser oriundos do seu
processo formativo, por meio das contínuas trocas e interações ocorridas no processo de
socialização profissional e do seu trabalho diário, como também da sua trajetória pré-
profissional.
As práticas docentes podem estar ancoradas em diferentes saberes, tais como os
provenientes da formação profissional – que abarcam os saberes das ciências da
educação e os saberes pedagógicos –, os disciplinares, os curriculares e os experienciais.
Segundo Tardif (2008), os saberes profissionais dizem respeito àqueles adquiridos por
meio das instituições de ensino destinadas à formação de professores. Nessas
instituições, o docente se depara com os saberes das ciências da educação e a partir
deles vai consolidando seus saberes pedagógicos, que dizem respeito às concepções
provenientes da reflexão acerca da “[...] prática educativa no sentido amplo do termo,
reflexões racionais e normativas que conduzem a sistemas mais ou menos coerentes de
representação e de orientação da atividade educativa.” (TARDIF, 2008, p. 37).
Os saberes disciplinares e curriculares se referem àqueles produzidos e
selecionados pelas instituições universitárias e escolares, respectivamente, e os saberes
experienciais dizem respeito aos saberes provenientes das experiências dos professores,
que são adquiridas por meio de suas práticas cotidianas. Com isso, esses últimos não se
encontram definidos nos currículos e nem nas instituições de formação, muito menos
sistematizados enquanto teoria e doutrina (TARDIF, 2008).
Diante disso, percebemos o quão plural é o saber docente e sinalizamos para a
possibilidade desses diferentes saberes serem mobilizados na prática da professora
alfabetizadora que analisamos.
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Contudo, faz-se necessário esclarecer que, ao falarmos de saberes, não estamos
nos referindo à teoria, uma vez que esses dois termos constituem categorias distintas,
embora possam aparecer interligados na ação docente. São nessas ações que os
professores traçam suas estratégias e decidem suas práticas de acordo com uma
pertinência e coerência. Estas podem ser de ordem pragmática, quando as ações se
pautam em uma coerência que busca contemplar aspectos presentes no cotidiano da sala
de aula (CHARTIER, 2007) ou, numa visão teórica, serem vistas como incoerentes por
outros que se encontram fora desse ambiente e não compartilham as diferentes tramas
nele vivenciadas, haja vista a possibilidade de coexistir nela perspectivas teóricas
diferenciadas.
Diante disso, são nos saberes da ação que o professor estabelecerá a sua maneira
de ensinar ao reinventar e reformular as teorias acadêmicas, as prescrições legais, as
regras, ou seja, “as estratégias” e utilizá-las conforme suas necessidades, o que podemos
chamar de “táticas”, conforme esclarece Certeau (1994).
3. METODOLOGIA
Para atender ao objetivo desta pesquisa, que consistiu em compreender como
uma professora do 1º ano do Ensino Fundamental concebia e praticava o ensino de
alfabetização com relação ao atendimento à heterogeneidade de conhecimentos dos
alunos sobre a escrita e a leitura, pautamo-nos em uma abordagem qualitativa,
considerando algumas características elencadas por André (1995): a ênfase maior no
processo que no produto; o pesquisador como instrumento principal na coleta e análise
dos dados; a preocupação maior com os significados; a utilização de dados descritivos,
como também da indução.
Para analisar as práticas e os saberes mobilizados no atendimento à
heterogeneidade, escolhemos uma professora que atuava em uma turma do 1° ano do
Ensino Fundamental de uma escola pública municipal de Caruaru – PE.
Como procedimentos metodológicos, realizamos observações das práticas de
ensino da professora (dez aulas), como também entrevistas semiestruturadas com vistas
a analisar e compreender os saberes e as práticas mobilizados pela docente para o
tratamento da heterogeneidade de conhecimentos sobre a leitura e a escrita dos alunos.
Tal análise foi desenvolvida por meio da análise de conteúdo do tipo temática
categorial, envolvendo as etapas sugeridas por Bardin (1977): pré-análise, análise do
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material (codificação e categorização da informação) e tratamento dos resultados,
inferência e interpretação.
Antes de apresentarmos a análise dos dados, exporemos alguns dados relativos
ao perfil da professora investigada. Quanto à formação profissional, ela concluiu o curso
normal médio em uma escola da rede pública na cidade de Caruaru – PE. Na época da
pesquisa, realizada em 2013, ela estava cursando o 4º período do curso de Pedagogia em
uma instituição privada de ensino superior. Quanto à experiência profissional, a
educadora informou que atuava como docente há 15 (quinze) anos, sendo 10 (dez)
dedicados à alfabetização e 05 (cinco) à rede municipal de ensino de Caruaru.
4. ANÁLISE DOS DADOS
A partir das observações tecidas no ambiente da sala de aula, como também das
entrevistas realizadas, pudemos perceber a adesão da professora a métodos mais
tradicionais de alfabetização, uma vez que ela recorria a elementos dos métodos da
silabação e soletração.
No entanto, em meio a essas práticas, percebemos que o seu ensino não era
totalmente indiferente às necessidades de aprendizagem que alguns alunos
demonstravam e que, para atender essas necessidades, a docente mobilizava alguns
saberes e práticas. Esses esquemas, que serão o foco de discussão da presente análise,
são os seguintes: intervenções diferenciadas em situações coletivas e padronizadas de
ensino, e realização de atividades diferenciadas com alguns alunos.
4.1 Intervenções diferenciadas em situações coletivas e padronizadas de ensino
Observamos que os momentos de leitura de palavras, que era uma atividade
realizada no âmbito coletivo da sala, eram as situações em que a docente intervia de
maneira diferenciada com alguns alunos. Para realizar essa atividade, a professora
sempre escrevia no quadro as palavras que deveriam ser lidas pelos alunos e solicitava
que os aprendizes, individualmente e em seus lugares, realizassem a leitura da palavra
que ela havia indicado.
Embora a atividade fosse feita coletivamente, percebemos as intervenções
diferenciadas quando a professora conduzia esses momentos de maneira diferente com
alguns alunos, o que nos mostrava sua percepção sobre os diferentes conhecimentos
sobre a leitura e a escrita dos aprendizes. Quando propunha a leitura individual de
palavras, a professora tinha consciência dos alunos que conseguiriam realizar
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autonomamente essa atividade e aqueles que não conseguiriam fazê-la, denotando,
assim, o seu conhecimento acerca da heterogeneidade de seu grupo.
A intervenção diferenciada acontecia quando a professora chamava ao quadro
aqueles discentes que não conseguiam realizar a leitura e conduzia esse momento com
base nos conhecimentos que ele já apresentava. Nessas situações, ela pedia para o aluno
ler a palavra e, caso ele não conseguisse, realizava outro procedimento, que consistia
numa intervenção direta junto àquele aprendiz. Vejamos, no extrato de aula abaixo,
como os alunos com dificuldades eram conduzidos nessa atividade.
P – Gente, agora vamos ver. Presta atenção! (a docente escolheu
alguns alunos para fazerem a leitura individual. Leandro2 não
conseguiu ler a palavra).
P – Que letra é essa, Leandro?
Leandro – A.
P – E essa? (o aluno não soube responder)
P – Essas duas aqui? Hein? Eu quero essas duas. Que som é esse?
Leandro – Z.
P – Z. Leia.
P - Agora vá, que letra é essa?
Leandro – E.
P – E essa?
Leandro – D.
P – E essa?
Leandro – O.
P – Agora leia! Junte agora! A... ZE...
P - Bora, leia a palavra. Que letra é essa?
Leandro – A.
P – E essa?
Leandro – ZE.
P – ZE. E aqui?
P – A... ZE. E aqui?
Leandro – DO. A/ZE/DO.
P – Muito bem. [...]. (AULA 04. 08/08/2013).
Diante da dificuldade do aprendiz, que se encontrava em uma hipótese silábica
de escrita e não conseguiria ler autonomamente a palavra, a docente lançou mão de
alguns procedimentos que levavam ao seu objetivo final, que era a leitura da palavra
pelo aluno. Para isso, a professora inicia sua intervenção questionando-o sobre as letras,
posteriormente sobre as sílabas, até chegar à leitura da palavra, que ocorreu com o apoio
da retomada das duas primeiras sílabas lidas. Ressaltamos que essas intervenções
aconteciam apenas com aqueles aprendizes que apresentavam dificuldades,
2 O nome desse aluno, assim como os dos demais aprendizes mencionados em nossa análise, é fictício, a
fim de preservar o anonimato dos sujeitos investigados.
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evidenciando a preocupação da docente em atender os alunos que necessitavam de
ajuda.
Tal prática revela que o fenômeno da heterogeneidade não passa despercebido às
ações da professora e que a atenção a esse aspecto revela aproximações com a
perspectiva pensada pela proposta de ciclos. Segundo Duran (2007, p. 123) “[...] a
política do Ciclo Básico, com a construção de uma nova proposta de alfabetização,
representou um momento de ruptura qualitativa. Por um lado, desencadeou mudanças
nas práticas tradicionais em sala de aula e, por outro, reacendeu resistências.”.
Contudo, sabemos que não é fácil romper com uma perspectiva de ensino, de
uma hora para outra, para de repente instituir um trabalho totalmente inovador. Isso leva
tempo, afinal é testando e tateando que o professor constrói sua prática. Por isso, ela vai
testando procedimentos e tateando a melhor ação a ser desenvolvida.
É válido mencionar que as intervenções com vistas a atender à heterogeneidade
de conhecimentos dos alunos também aconteciam nas situações de trabalho coletivo
com o livro didático. Tais intervenções se concretizavam por meio da mediação que a
professora realizava nos momentos de resolução da atividade, com vistas a atender às
necessidades de sua turma. Para isso, às vezes adaptava as orientações do material,
realizando, por exemplo, a leitura de pequenos textos contidos nas atividades que
solicitavam a leitura do aprendiz, com o intuito de contemplar e envolver todos os
alunos. Com isso, a docente organizava suas práticas de acordo com o que lhe era
conveniente, ou seja, retraduzindo aquilo que lhe era posto (CERTEAU, 1994).
Apesar de trabalhar com o livro didático numa perspectiva coletiva, o que
poderíamos caracterizar como uma prática homogeneizadora, percebemos, além das
intervenções e mediações no uso do livro, outra ação da professora que atentava para a
heterogeneidade de sua turma: a proposição de atividades diferenciadas para alguns
alunos, no momento em que o grande grupo resolvia as atividades do livro.
4.2 Realização de atividades diferenciadas com alguns alunos
Embora não tenha sido um procedimento sistemático, observamos que a docente
se preocupava em atender as dificuldades de dois alunos em especial e com eles sempre
desenvolvia uma atividade diferente da que o grande grupo estava realizando. O quadro
1 evidencia os tipos de atividades que foram desenvolvidas com o grande grupo e
àquelas que foram diferenciadas para alguns alunos.
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É importante esclarecer que, dos três alunos que realizaram atividades
diferenciadas, um (Gabriel) apresentava, segundo a docente, necessidades educativas
especiais, embora a mesma não soubesse diagnosticá-las. Diante disso, analisamos que
a proposição dessas atividades diferenciadas evidenciava uma atenção da docente à
heterogeneidade, uma vez que conhecia as limitações desses aprendizes e sabia da
necessidade de atividades que contemplassem suas dificuldades.
No entanto, observamos que as atividades diferenciadas que foram propostas a
esses alunos não se relacionavam com as atividades que o restante da turma realizava.
Isso não garantia, portanto, a participação desses alunos no que estava sendo proposto
ao grande grupo. Além disso, a professora inicialmente atendia ao coletivo para,
posteriormente, propor a atividade diferenciada.
O tempo destinado a atender esses educandos era relativamente menor, em
relação ao grande grupo, e se fazia em momentos pontuais, quando a docente entregava
a atividade ou quando esses alunos com dificuldades solicitavam sua ajuda. No entanto,
a diferenciação acontecia e a atividade proposta parecia assentar-se nas possibilidades
que os educandos apresentavam para resolvê-la.
Nesse sentido, as lógicas utilizadas pela docente para propor atividades
diferenciadas pareciam centrar-se em suas crenças e maneiras de fazer, dada a sua vasta
experiência enquanto professora alfabetizadora. Contudo, essas lógicas podem, nem
sempre, serem adequadas às necessidades dos alunos. Percebemos que a proposição das
atividades diferenciadas acontecia sem um planejamento prévio e que a decisão do tipo
de atividade a ser realizada por esses alunos com dificuldades de aprendizagem
acontecia no momento da aula, pois a docente sempre levava várias atividades
xerocadas, elaboradas por sua irmã, que também era professora e, por ter se aposentado,
ofereceu-as a ela. Com isso, inferimos que a professora se respaldava em suas
percepções, sem se deter a uma avaliação diagnóstica mais detida.
Essa atenção diferenciada voltada para dois alunos em especial, refletia as
adaptações que a docente realizava em sua prática, uma vez que passava da
homogeneização típica dos métodos tradicionais, para um atendimento diferenciado,
ainda que esse atendimento não suprisse totalmente as necessidades apresentadas por
esses alunos. Entretanto, sabemos, como bem analisa Perrenoud (2001), que trabalhar
rumo a uma pedagogia diferenciada não é fácil e pode durar vários anos, o que nos leva
a pensar que não podemos “[...] assumir na mesma medida todos os alunos em
dificuldade e todos os tipos de dificuldades.” (PERRENOUD, 2001, p. 47).
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados revelaram que a professora, em meio a práticas que se apoiavam em
perspectivas tradicionais de ensino, tentava atender, em certa medida, a heterogeneidade
de conhecimentos presente no seu grupo classe. Para isso, lançava mão de alguns
procedimentos que buscavam dar conta das dificuldades de alguns aprendizes, como,
por exemplo, as intervenções diferenciadas e a realização de atividades diferentes.
Esses dispositivos evidenciavam o rompimento com a homogeneização e
padronização do ensino, típicos da perspectiva tradicional. A dificuldade da professora
em propor um ensino ajustado às necessidades de aprendizagem dos alunos mostra que,
conforme esclarece Chartier (2000, p. 164), “Antes mesmo de toda inovação designada
como tal, o ordinário da classe implica os tateamentos incessantes, as adaptações locais,
as modificações provisórias sem as quais não se faz a classe.”.
Nesse sentido, acreditamos que a professora tem testado procedimentos com
vistas a contemplar o fenômeno da heterogeneidade de conhecimentos dos aprendizes
sobre a leitura e a escrita. Assim, os tateamentos são usados para se chegar a práticas de
ensino mais coerentes, não do ponto de vista teórico, mas, sim, do melhor
gerenciamento desse fenômeno no espaço da sua sala de aula.
Diante disso, finalizamos esse estudo com algumas inquietações e apontamos a
possibilidade de novas pesquisas que busquem investigar a relação entre o atendimento
à heterogeneidade e a adequação das atividades propostas. Ou seja, até que ponto a
atenção à heterogeneidade garante a ajuda necessária e adequada às necessidades dos
aprendizes.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRÉ, M. Etnografia da prática escolar. Campinas, SP: Papirus, 1995.
ANDRÉ, M.; DARSIE, M. M. P. Novas práticas de avaliação e a escrita do diário:
atendimento às diferenças? In: ANDRÉ, M. (org.). Pedagogia das diferenças na sala
de aula. Campinas, SP: Papirus, 1999.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Edições 70. Lisboa, 1977.
CARVALHO, Marlene. Alfabetizar e letrar: um diálogo entre a teoria e a prática. 5ª
Edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
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CHARTIER, A. M. Fazeres ordinários da classe: uma aposta para a pesquisa e para a
formação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 157-168, jul./dez. 2000.
CHARTIER, A. M. Práticas de leitura e escrita: história e atualidade. Belo Horizonte:
Ceale/Autêntica, pp. 185- 207, 2007.
DURAN, M. C. G. Maneiras de pensar o cotidiano com Michel de Certeau. Diálogo
Educ., Curitiba, v. 7, n. 22, p. 115-128, set./dez. 2007.
FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. 24ª Edição. São Paulo: Cortez, 2001.
FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto alegre:
Artmed, pp. 191-245, 1999.
PERRENOUD, P. A pedagogia na escola das diferenças: fragmentos de uma
sociologia do fracasso. Porto Alegre: Artmed, pp. 15-111, 2001.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2ª Edição. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
TARDIF. M. Saberes docentes e formação profissional. 9ª edição. Petrópolis, RJ:
Vozes, pp. 31-53, 2008.
Quadro 1 - Atividades que foram realizadas coletivamente e atividades diferenciadas para
alguns alunos.
Aulas Atividades Atividades diferenciadas Alunos
01 Atividade de
linguagem/língua portuguesa
do livro didático.
Atividade de matemática: numeral
cinco.
Karla.
02 Cópia da atividade do “Para
Casa”.
Atividades envolvendo vogais: cópia;
completar palavras com vogais e
circular vogais em palavras.
Karla, Gabriel e Darlan.
08
Ditado de palavras.
Ligar o número ao conjunto de
imagens correspondente;
Identificação de vogais em palavras.
Karla e Gabriel.
10 Leitura e cópia da atividade
“Para Casa”.
Cópia das vogais;
Associação de vogais a imagens.
Karla e Gabriel.
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