os lugares do patrimônio - uma leitura da cidade
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JULIANO GONALVES DE AQUINO
OSLUGARES DO PATRIMNIOUMA LEITURA DA CIDADE A PARTIR DO PROCESSO DE REVITALIZAO DO
PATRIMNIO EDIFICADO EM MONTES CLAROS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS
MONTES CLAROSJunho/2014
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JULIANO GONALVES DE AQUINO
OSLUGARES DO PATRIMNIOUMA LEITURA DA CIDADE A PARTIR DO PROCESSO DE REVITALIZAO DO
PATRIMNIO EDIFICADO EM MONTES CLAROS
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa dePs-Graduao em Histria, da UniversidadeEstadual de Montes Claros como requisito para aobteno do ttulo de Mestre em Histria.
rea de concentrao: Histria Social
Linha de Pesquisa: Cultura, Relaes Sociais eGnero
Orientador(a): Jeaneth Xavier de Arajo
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROSMONTES CLAROS
Junho/2014
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JULIANO GONALVES DE AQUINO
OSLUGARES DO PATRIMNIOUMA LEITURA DA CIDADE A PARTIR DO PROCESSO DE REVITALIZAO DO
PATRIMNIO EDIFICADO EM MONTES CLAROS
Aprovada em _______de_____________de________.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________Prof. Dra. Jeaneth Xavier Arajo
Orientador (Unimontes)
____________________________________________Prof. Dra. Regina Clia Lima Caleiro
Titular (Unimontes)
____________________________________________Prof. Dra. Ivana Denise ParrelaTitular (Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG)
Montes Claros2014
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A minha famlia, pelo apoio incondicional.
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AGRADECIMENTOS
A Professora Jeaneth Xavier de Arajo pela orientao e direcionamentos enquanto professorado Programa de Ps-Graduao em Histria da Unimontes.
A Universidade Estadual de Montes Claros pelo pioneirismo e pela oportunidade decrescimento intelectual desde o curso de graduao em Histria.
A Secretaria de Estado de Educao de Minas Gerais pela concesso de afastamento das minhasatividades docentes para dedicao ao curso de Mestrado.
Aos professores do Mestrado, pelo apoio, amizade e coparticipao no desenvolvimento das
pesquisas no Programa.
A Professora Anete Marlia, por ter contribudo no Exame de Qualificao.
As Professoras Regina Clia Lima Caleiro e Ivana Denise Parrela, por terem aceitado o convitepara participarem da Banca de Defesa. A professora Regina Caleiro esteve na Banca deQualificao e deu contribuies importantssimas para a concluso desta pesquisa.
Ao Professor Franscino, pelas conversas e pacincia em ouvir minhas angstias acadmicas.
A Professora Maria Geralda de Almeida, Departamento de Geografia da Universidade Federalde Gois, pelos apontamentos e simpatia.
Aos amigos e colegas do mestrado, em especial a Leila, Magda Rita e Renata Mrian, queacompanham prontamente o desenvolvimento da minha pesquisa.
A minha amiga e professora do Departamento de Histria da Unimontes Filomena LucieneCordeiro, pela parceria e por contribuir no debate patrimonial regional.
A Raquel Mendona, chefe do Setor de Preservao e Promoo do Patrimnio Cultural deMontes Claros pelo carinho e pronto atendimento nas solicitaes que a pesquisa necessitava.
O seu trabalho e dedicao ao patrimnio cultural montesclarense merecem destaque. A Arlete,funcionria do setor, pela simpatia e presteza.
Aos entrevistados, pela disponibilidade e ateno. Foram imprescindveis para osencaminhamentos tomados pela pesquisa.
A minha famlia e aos meus amigos por acreditarem e estarem sempre ao meu lado nos meusprojetos. A Day pela presena e torcida.
A Deus, por me fazer forte a cada dia e proporcionar tantos outros momentos deagradecimentos.
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RESUMO
Considerando a interdisciplinaridade no campo do patrimnio cultural, este trabalho procura
destacar a crescente preocupao dos historiadores com a relao existente entre a constituiode patrimnios e a estruturao da memria social. Como pano de fundo desta discusso,elegemos o processo de revitalizao de parte do polgono histrico da cidade de MontesClaros MG como objeto de estudo (Conjunto Urbanstico da Praa da Matriz e CorredorCultural Padre Dudu), tomando-o como parte de um projeto maior de constituio socioculturalda cidade. Procuramos problematizar as aes em favor do patrimnio cultural no municpio,suas intervenes (materiais e simblicas) no patrimnio edificado e compreender em quemedida elas interferem no processo de apropriao destes lugares de vivncia cotidiana. Orecorte temporal da pesquisa abrange o perodo de 1985 a 2012, momento em que as aes pelo
patrimnio na cidade tornaram-se efetivas e se materializaram na revitalizao de bens na partehistrica da cidade. A metodologia deste trabalho consiste na anlise de bibliografia acerca
da patrimonializao, dialogando aspectos antropolgicos da constituio dos lugaresdisponveis nas abordagens da Geografia com a ideia de lugar de memria de Pierre Nora.Intentando construir um discurso sobre o processo, recorremos a entrevistas com representantesdo poder pblico municipal que estiveram ou ainda esto frente do processo de elaborao da
poltica patrimonial no Municpio. Alm disso, consideramos tambm como fontes algunslivros publicados por memorialistas locais que versam sobre o seu cotidiano e vivncias noespao tomado como objeto de estudo, pois entendemos que os discursos presentes nessesescritos do respaldo constituio dos lugares de memria tombados e revitalizados emMontes Claros. Por fim, com o objetivo de entender como os outros montesclarensescompreendem esse espao histrico, entrevistamos moradores de dez bairros localizados noentorno do Bairro Centro. Buscamos por meio dessas entrevistas, observar o sentimento deidentidade que esses outros habitantes mantm com o espao patrimonializado e perpetrar um
balano qualitativo do significado destes signos tombados para suas vidas.
PALAVRAS-CHAVE: Patrimnio edificado; Montes Claros; lugar; lugar de memria;inteligibilidade.
ABSTRACT
Considering the interdisciplinarity in the cultural heritage field, this work intends to highlight
the growing concern of historians about the relationship between the constitution of heritagesand structuring of social memory. As background of this discussion, we chose, as subject, therevitalization process of the "historic" polygon of the Montes Claros/MG (Urban Complex ofthe Mother Church Square and Cultural Corridor Father Dudu), taking it as part of a larger
project of the citys social and cultural constitution. We aim to question the actions towards thecitys cultural heritage, its interventions (material and symbolic) on built heritage, and tocomprehend how they interfere in the process of appropriation of these daily life places. Thetime frame of the study covers the period 1985 to 2012, at which time the patrimonial policieshave become effective and materialized in the revitalization of constructions in the "historical"
part of town. The methodology of this study is the analysis of literature on the patrimony, doinga dialogue with the anthropological aspects of the constitution of the places current in the
approaches of geography and the Pierre Noras idea of place of memory. Make an effort toconstruct a speech about the process, we turn to interviews with representatives of municipalgovernment that have been or are still ahead of the drafting process of patrimonial policy in the
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city. Furthermore, we also took as sources some books published by local memoirists that talkabout your daily life and experiences in the space taken as the object of study, because we
believe that the discourses present in these writings give support to the constitution of places ofmemory, revitalized under government trust, in Montes Claros. At last, in order to understand
how the "other montesclarenses" comprehend that "historical space", we interviewed someresidents from ten districts located in the vicinity of downtown. We seek through the interviews,observe the sense of identity that the other citizens have with that preserved space and
perpetrating a qualitative assessment of significance of those conserved signs to their lives.
Keywords:Built heritage; Montes Claros; Place; Place of Memory; Intelligibility.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABGAssociao Brasileira de Geografia
ACIAssociao Comercial e Industrial
ANPEGEAssociao Nacional de Pesquisas e Ps-Graduao em Geografia
AREAAssociao Regional de Engenheiros, Arquitetos e Agrnomos
CAACentro de Agricultura Alternativa
CIANCongresso Internacional de Arquitetura Moderna
CNRCCentro Nacional de Referncia Cultural
COMPHACConselho Municipal do Patrimnio Histrico e Artstico
DPHANDepartamento do Patrimnio Histrico e Artstico NacionalFAFILFaculdade de Filosofia e Letras
FNpMFundao Nacional pr-Memria
IABInstituto dos Arquitetos do Brasil
IBPCInstituto Brasileiro do Patrimnio Cultural
ICMSImposto sobre a Circulao de Mercadorias e Servios
IEPHA/MGInstituto Estadual do Patrimnio Histrico e Artstico de Minas Gerais
IHGMCInstituto Histrico e Geogrfico de Montes ClarosIPACInventrio de Proteo do Acervo Cultural
IPHANInstituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
OABOrdem dos Advogados do Brasil
ONUOrganizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura
PCHPrograma Integrado de Reconstruo das Cidades Histricas
PNCPoltica Nacional de Cultura
POUPrograma Obras UrgentesSNIICSistema Nacional de Informaes e Indicadores Culturais
SPHANServio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
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LISTA DE ILUSTRAES
Fig. 1. Mapa: Municpios participantes do ICMS exerccio 2011.................................. 51
Fig. 2. Mapa: Montes Claros no contexto regional e sua distncia das principaiscapitais...................................................................................................... 55
Fig. 3. Foto: O Largo da Matriz no incio do sculo XIX............................................. 56Fig. 4. Mapa: Localizao do Centro Histricode Montes Claros........................... 62Fig. 5. Mapa: Patrimnio Cultural Edificado no polgono conhecido como Centro
Histrico de Montes Claros.................................................................... 65
Fig. 6. Mapa: rea revitalizada no Centro Histrico de Montes Claros..................... 70Fig. 7. Foto: Largo da Matriz no incio do sculo XIX................................................. 72
Fig. 8. Foto: Largo da Matriz, s/d................................................................................. 73
Fig. 9. Foto: Largo da Matriz, 2011................................................. 73
Fig. 10. Foto: Vista parcial das mudanas pelas quais sofreu a Matriz em 1999/2000 76
Fig. 11. Foto: Vista parcial das mudanas pelas quais sofreu a Matriz em 1999/2000,em destaque a pintura no teto da capela-mor........................................... 77
Fig. 12. Foto: Praa da Matriz, s/d.................................................................................. 80
Fig. 13. Foto: Praa Dr. Chaves atualmente.................................................................... 81
Fig. 14. Foto: Processo de revitalizao do Solar dos Sertes........................................ 82
Fig. 15. Foto: Projeo do Corredor Cultural................................................................. 83
Fig. 16. Foto: Vista parcial do Corredor Cultural Padre Dudu.................................... 85
Fig. 17. Foto: Estado de conservao do Sobrado dos Versiani-Maurcio, s/d, antes darevitalizao.............................................................................................. 86
Fig. 18. Foto: Vista do casaro dos Versiani-Maurcio depois de ser revitalizado......... 86
Fig. 19. Foto: Casaro da Fafil restaurado e em dia de apresentao de coral............... 89
Fig. 20, 21, 22. Fotos Vista de prdio que desrespeita a ambincia de rea com bem tombado. 93
Fig. 23. Mapa: Mapeamento dos Entrevistados (G2)....................................................... 96
Fig. 24 Foto: Vista parcial da Feira de Artesanato da Praa da Matriz. 108Fig. 25, 26. Fotos Cartazes de divulgao do Projeto Papo em Dia realizado no Corredor
Cultural..................................................................................................... 110
Fig. 27. Foto: Corredor Cultural em dia de festividade.................................................. 111
Fig. 28, 29. Fotos: Mostra de produtos durante a entrega da primeira etapa do ProjetoEmprio dos Sertes............................................................................. 112
Fig. 30. Mapa: O reverso dos lugares de memria oficiais em Montes Claros (G2)........ 114
Fig. 31. Foto: Vista do Parque Municipal Milton Prates................................................ 116
Fig. 32, 33, 34. Fotos: Vistas frontal e laterais do Terreiro Estrela do Oriente............................ 118Fig. 35. Foto: Vista interna de cmodo do Terreiro Estrela do Oriente ainda em uso.... 119
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Balano do acervo cultural de Montes Claros1985........................................................ 60
Tabela 2. Pontuao ICMS Critrio Patrimnio Cultural do Municpio de Montes Claros (2003-2011).................................................................................................................................... 66
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SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................... 09
CAPTULO 1O LUGAR DA REVITALIZAO NAS POLTICAS CONTEMPORNEAS DEPROTEO DO PATRIMNIO CULTURAL...................................................................... 21
1.1. O patrimnio como uma das vertentes da memria social ........................................... 22
1.2. A interdisciplinaridade e a construo do objeto de pesquisa ...................................... 25
1.2.1. Sobre a inteligibilidade, envolvimento da sociedade e os cdigos de leitura ............... 26
1.2.2. Sobre a mercadologizao do patrimnio e os conflitos na preservao..................... 28
1.2.3. Sobre a emergncia de novas categorias, interdisciplinaridade e o objeto de estudo ... 30
1.3. A preservao patrimonial no Brasil e as orientaes internacionais ........................... 33
CAPTULO 2O LUGARDA REVITALIZAO NA CIDADE DE MONTES CLAROS 46
2.1 O IEPHA/MG e a descentralizao das polticas de preservao patrimonial.............. 47
2.2 O COMPHAC e a institucionalizao do patrimnio cultural edificado...................... 53
2.3 A revitalizao no contexto de reestruturao do Centro da cidade.............................. 702.3.1 A revitalizao do Conjunto Urbanstico da Matriz...................................................... 75
2.3.2 O Corredor Cultural Padre Dudu............................................................................... 83
2.4 Existiria uma poltica de preservao do patrimnio cultural em Montes Claros?....... 89
CAPTULO 3O LUGARDA REVITALIZAO NA VIDA DOS MONTESCLARENSES 95
3.1 A concepo de patrimnio cultural e a inteligibilidade dos bens tombados................ 98
3.2 Usos sociais do patrimnio revitalizado........................................................................ 104
3.3 O reverso dos lugares de memriaoficiais?.................................................................. 112
CONSIDERAES FINAIS 122
FONTES E BIBLIOGRAFIA 126
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INTRODUO
[...] mas a cidade no conta seu passado, ela o contm como as linhasda mo, escrito nos ngulos das ruas, nas grandes janelas, nos corrimesdas escadas [...]
talo Calvino1
Enfim, de mltiplas maneiras o prprio espao e a materialidade de
uma cidade se convertem em narradores da sua histria.
Jos DAssuno Barros2
As epgrafes que acolhem o leitor deste texto e que nos convidam a uma reflexo
sobre as leituras que a cidade tem proporcionado aos diversos campos do conhecimento, sero
a mola mestra a guiar as discusses que este trabalho prope suscitar. No somente por
indicarem um olhar mais atento para os elementos constituintes das cidades (naturais, artificiais,
culturais), aos quais estamos imbricados no cotidiano, mas por nos permitir fazer uso de
categorias de anlise diversas a partir de uma abordagem multidisciplinar.
Apesar de no escolhermos como objeto de anlise a cidade ou a tentativa de se
esboar uma histria da cidade,3discutiremos os usos dos espaos e da sua materialidade
como fragmentos de um complexo texto que o ambiente citadino, vivido e experienciado por
todos, desde o lazer, o trabalho, ao corriqueiro. Especificamente, faremos a leitura da cidade de
Montes Claros por meio dos bens culturais edificados atendidos pela poltica municipal de
preservao patrimonial. Para tanto, os aportes tericos da Geografia sero de grande relevncia
na tentativa de se efetuar uma leitura mais abrangente dos sentidos que esta materialidade forja
na configurao de uma identidade local.
1Frase do escritor talo Calvino, citada por Ana Fani Alessandri Carlos em O Lugar no/do mundo (CARLOS,2007, p.41).2Recorte de uma considerao feita por Barros (2007, p. 42) onde o autor sugere que tomemos a cidade enquantouma escritaque tem algo a nos dizer.3Em minicurso no dia 24/09 de 2012 intituladoHistria das Cidades, a professora Dra. Mrcia Pereira, ProfessoraVisitante deste Programa de Ps-Graduao, advertiu que a Histria das Cidades uma categoria de anlise queexplora os sentidos da representao que a cidade suscita, por meio de registros literrios, narrativas e imagens.
Sempre generalizantes, aborda os conceitos de histria e literatura, imagens e representao, modernidade e culturamaterial, alm do termo experincia em Thompson. Os estudos no Brasil ainda esto em construo, no obstanteapresentarem mtodos variados de anlise, e tm priorizado, sobretudo, os sculos XIX e XX com abordagens quelevam em conta os conceitos de modernidade, civilizao, urbano e cidade.
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O ttulo da pesquisa sugere o carter interdisciplinar do debate: observar os lugares
(sentido espacial) do patrimnio edificado na cidade de Montes Claros, sobretudo o polgono
revitalizado, bem como o lugar (sentido topoflico) destes signos na vida daqueles que
teoricamente constituiriam de modo orgnico os bens, que so os cidados que habitam, que
utilizam os espaos, que trabalham, que passam por essas materialidades em seu cotidiano.
Para adentrarmos nos Lugaresdo Patrimnio e fazermos a leitura da experincia vivenciada
pelos indivduos nesses espaos tombados pelas aes patrimoniais, dialogamos com a
Geografia e sua abordagem culturalista da ideia de lugar. Interpretar o patrimnio arquitetnico
enquanto representao de uma memria oficial e os lugares urbanos onde estes se inserem,
enquanto espaos de fruio, so objetivos precpuos da anlise que ora nos propomos.
Tomaremos como marco temporal o perodo que vai de 1985, ano em que se esboam asprimeiras iniciativas em prol da valorizao do patrimnio edificado em Montes Claros, at o
ano de 2012, data em que se inaugura o Corredor Cultural, espao revitalizado e eleito um dos
smbolos da histria da cidade.
Sobre o enfoque social das abordagens patrimoniais, Mrcia Arajo observa que:
o patrimnio possibilita compreender a relao dos homens com o seu meio,entender como a paisagem marcada pela presena de objetos construdos
representativos de vrios perodos influi na formao da identidade. Ele umelemento que contribui para aflorar a experincia urbana e desencadeia aapreenso da cidade pela apropriao dos espaos e gerao de lugares(ARAJO, 2008, p. 14).
Os edifcios tombados, enquanto componentes de um lugar, bem como os
indivduos que circulam e que fazem uso do polgono tido como histrico de Montes Claros,
so documentos4relevantes na empreitada de interpretar as nuances da cidade e capt-la em
suas dobras (TEMBIL, 2007).
Arlette Farge, em O sabor do arquivonos traz as delcias e as curiosidades de setrabalhar no arquivo na construo de uma pesquisa. Para ela:
O arquivo age como um desnudamento; encolhidos em algumas linhas,aparecem no apenas o inacessvel como tambm o vivo. Fragmentos deverdade at ento retidos saltam vista: ofuscantes de nitidez e decredibilidade. Sem dvida, a descoberta do arquivo um man que se oferece,justificando plenamente seu nome: fonte (FARGE, 2009, p. 15).
4O termo aqui entendido em sua acepo mais ampla, conforme nos trouxe Le Goff (1996). De acordo com o
autor, o documento no qualquer coisa que fica por conta do passado, um produto da sociedade que o fabricousegundo as relaes de foras que a detinham o poder. S a anlise do documento enquanto monumento permite memria coletiva recuper-lo e ao historiador us-lo cientificamente, isto , com pleno conhecimento de causa(p. 545).
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Para ns, parafraseando a autora, o nosso arquivo encontra-se ao ar livre, nos
espaos das ruas que abrigam os prdios histricos, nas conversas e bate-papos na Praa
da Matriz, nos discursos proferidos pelas autoridades que cuidam das aes de preservao do
patrimnio cultural na/da cidade,nos ngulos das ruas, nas grandes janelas, nos corrimes das
escadasdos casares e sobrados. Enfim, luz doparadigma indicirio5(GINZBURG, 1989),
atentos aos pormenores, aos detalhes, aos indcios, tentaremos apreender as memrias possveis
em cada objeto material ou signo. O nosso man no est nas instituies arquivsticas
propriamente ditas, ou oficialmente institudas, mas nos arquivos armazenados em cada um,
nas experincias individuais, no lugaronde todos convivem e que se desnudaa cada olhar.
A cidade, aqui entendida como um artefato cultural do espao e do tempo
(SALGUEIRO, 2003), alvo de constantes processos de construo e desconstruo pelas maisdiferentes classes e indivduos. Destarte, enquanto uma materialidade social acumulada no
tempo, seu patrimnio cultural - no s no plano dos bens protegidos, mas nos discursos que
constituem uma poltica - trazfragmentos de verdadeque devem ser analisados. Assim como
as instituies arquivsticas, o ambiente urbano dos lugares a partir do qual podem se
organizar as construes simblicas e intelectuais do passado (FARGE, 2009, p. 94).
A cidade de Montes Claros dotada de elementos materiais e simblicos que,
fazendo uso da acepo de Sandra Jatahy Pesavento (2007), constituem pontos de ancoragemda memria local. Ou seja, ela dispe de uma gama de lugaresque remontam sua constituio
enquanto produo social nos diversos tempos e espaos. Percorrendo os seus caminhos, praas,
avenidas e becos, prdios, encontramos referncias que nos marcam, que nos identificam, nos
quais vivemos fortes experincias, positivas ou negativas, e que so registradas nas memrias
individuais e coletiva; h tambm aqueles de que nos lembramos porque narrados pelos mais
antigos. Tais elementos integram uma comunidade simblica de sentidos, porque mais do que
simples locais, representam a apropriao direta pelo social.Nas palavras de Pierre Nora (1993), so denominados de lugares de memria.
Mesmo que estes locais tenham sofrido degradao ou foram suprimidos fisicamente,
funcionariam como referncia identitria para todos aqueles da urbe. Segundo Pesavento:
Os lugares de memria de uma cidade so tambm lugares de Histria.Histria e memria so, ambas, narrativas do passado que presentificam uma
5Paradigma Indicirio um mtodo interpretativo de anlise amplamente descrito por Ginzburg, centrado sobre
os resduos, sobre dados aparentemente insignificantes, negligenciveis, mas que do a recompor uma realidadecomplexa. Nas palavras do prprio autor, o mtodose traduziria em "um saber de tipo venatrio", caracterizado
pela capacidade de, a partir de dados aparentemente irrelevantes, descrever uma realidade complexa que no seriacientificamente experimentvel (GINZBURG, 1989).
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ausncia, reconfigurando uma temporalidade escoada. So representaes quedo a ver um acontecido que a rigor, no mais verificvel ou sujeito arepetio. Mas o tempo passado no irrecupervel, uma vez que, atravs doimaginrio, se faz presente no esprito, dando-se a ler e ver atravs dediscursos e imagens (PESAVENTO, 2007, p. 02).
Os bens edificados tombadospelo municpio datam, em sua maioria, do sculo XIX
com exemplares que remontam s origens da cidade. E pela abordagem terico-metodolgica
adotada neste trabalho, a investigao retrospectiva dos conjuntos tombados essencial para
apreendermos a ligao orgnica que mantm com a populao. Nesse sentido, uma breve
histria da cidade faz-se necessria, considerando-se que entender o patrimnio cultural de uma
dada sociedade tambm fazer uma leitura da constituio histrica, social e cultural destes
indivduos.
No se trata, porm, de uma histria factual ou meramente narrativa dos fatos
ocorridos na cidade e que teriam ligao direta com a deciso de salvaguardar os bens
patrimoniais. Mas uma anlise que, longe de ser uma narrativa definitiva da verdade, explicita
argumentaes com critrios de veracidade e de plausibilidade (FARGE, 2009, p. 93) sobre
o processo que, historicamente datado, possibilitou a emergncia de um discurso de preservao
patrimonial.
No que se referem aos aspectos terico-metodolgicos os aportes da HistriaCultural e da Geografia Cultural compem este trabalho, uma vez que buscamos discutir
aspectos da experincia do viver em grupo, os significados e a dinmica social que configura,
modela e d sentido a uma dada realidade. Fizemos uso da categoria lugarda Geografia em
consonncia com o conceito de lugar de memria, frequentemente encontrado nos estudos
historiogrficos.
Cultura aqui entendida enquanto algo que se constri a partir das necessidades
determinadas pelo meio ambiente e as respostas que os indivduos do a tais condicionantes.Cliffort Geertz (1989) prope que o homem produto e produtor de mecanismos simblicos
que determinam seu comportamento e que estes mecanismos esto sempre em processo de
construo e desconstruo. O homem encontra estes smbolos
[...] em uso corrente na comunidade quando nasce e eles permanecem emcirculao aps a sua morte, com alguns acrscimos, subtraes e alteraesparciais dos quais pode ou no participar. Enquanto vive, ele se utiliza deles,ou de alguns deles [...] sempre com o mesmo propsito: para afazer a
construo dos acontecimentos atravs dos quais ele vive, para auto-orientar-se no curso corrente das coisas experimentadas (GEERTZ, 1989, p. 57).
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A Geografia tambm partilha do conceito de cultura entendida enquanto a
capacidade dos seres humanos de se comunicarem por meio de smbolos. Wagner & Mikesell
(2007, p. 29) atestam que a cultura tambm est assentada em uma base geogrfica, pois
provvel que s ocorra comunicao regular e compartilhada entre pessoas que ocupam uma
rea comum.
O patrimnio cultural, enquanto a acumulao de bens herdados e que por questes
culturais inerentes ao meio em que se insere se muniu de valor para aquela sociedade
construdo e remodelado abarcando diversas temporalidades: passado, presente e futuro. Como
mediao da cultura, os patrimnios podem ser reconstrudos a partir de esforos individuais e
coletivos. So, portanto, historicamente datados e representam a concepo de um grupo em
um contexto especfico.Por meio da abordagem cultural procuramos dialogar os conceitos de lugar de
memria do Pierre Nora como j salientamos, com as abordagens da ideia de lugar que os
pesquisadores da Geografia Cultural tm utilizado vastamente nas ltimas dcadas.
Entendemos que interpretar o patrimnio significa lanar mo da contribuio que os
conhecimentos disciplinares tm dado, valorizando a construo de um saber interdisciplinar
que d conta da pluralidade social, cultural e natural. A Antropologia, a Arqueologia e a
Sociologia h muito vm trabalhando na construo de um campo de pesquisa consolidadotendo como narrativa o patrimnio. No entanto, so recentes as contribuies de historiadores
e gegrafos no debate.
Enfatizamos a estreita relao que a Histria e a Geografia tm mantido no estudo
da memria das cidades, principalmente em busca de muitas outras memrias (a dos excludos,
dos pobres e marginais). Trabalhar a memria da cidade, e dentro desta os signos que trazem o
patrimnio, implica, de acordo com Abreu (1998, p. 18), aliar a base segura da anlise histrica
ao esteio no menos seguro que a geografia proporciona. Fazer uso da diacronia (preferidapelos historiadores) e a sincronia (frequentemente utilizada pelos gegrafos) a proposio do
autor para uma discusso consistente acerca das memrias sociais:
Em primeiro lugar, porque a memria das cidades precisa da perspectivadiacrnica e essa tem sido invariavelmente preterida pela preferncia poranlises sincrnicas na histria da disciplina [geografia]. Em segundo lugar,porque quando a diacronia incorporada (...) poucas vezes ela serve a outropropsito que no seja o de acompanhar formas morfolgicas desde umpassado qualquer at o presente (...) Em terceiro, porque a sincronia, toprivilegiada na geografia, raramente se aplica ao estudo de um momento dopassado de um lugar, tarefa que geralmente legada histria, que entretantono consegue desempenh-la a contento (ABREU, 1998, p. 24).
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Consoante aos aspectos terico-epistemolgicos da Geografia Cultural, Maria
Geralda de Almeida (2008) destaca que se trata de uma abordagem da corrente humanista que
busca contemplar variadas questes como as representaes da natureza, o cotidiano e as
identidades, a construo social, a cultura material e os costumes sociais, bem como os
significados simblicos. No obstante o leque de possibilidades temticas que proporciona, a
Geografia Cultural at o ano de 2000 era pouco divulgada no Brasil, no tendo a importncia
que desfruta nos Estados Unidos e na Europa. No entanto, percebe-se o crescimento gradativo
do interesse acadmico pelas temticas deste campo nos vrios eventos da Associao
Brasileira de Geografia ABG e da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em
GeografiaANPEGE (ALMEIDA, 2008, p. 36).
Surgida na dcada de 1970, cuja maior expresso encontramos em Yi-Fu-Tuan,autor do livro Topofilia, a Geografia Humanista e Cultural prioriza a subjetividade ao invs da
objetividade, analisando a relao homem-natureza atravs da valorizao do lugarenquanto
conceito-chave. Antes, porm, o lugar era eventualmente estudado pelos gegrafos. Nas poucas
abordagens, relegavam-no a um plano secundrio, a partir do seu significado locacional
(HOLZER, 1999).
Para esse autor, teria sido Sauer o primeiro gegrafo a desvincular o termo lugar
do sentido locacional. Com uma abordagem prxima da Antropologia, Sauer, por meio doconceito de paisagem cultural, levantava elementos subjetivos que remetiam ideia de lugar.
Conforme Carl Sauer, a cultura o agente, a rea natural o meio, a paisagem cultural o
resultado (SAUER apud HOLZER, 1999, p. 68).
Corra (2007) destaca a Escola de Berkeley nos Estados Unidos (1925-1975)
onde a Geografia Cultural esboou plena identidade. Cinco grandes temas ganhariam destaque
no contexto chamado por ele de virada cultural: cultura, paisagem cultural, reas culturais,
histria da cultura e ecologia cultural. As transformaes em curso, que configuram umasociedade cada vez mais urbana e multicultural, suscitaram a iminncia de pesquisas com tais
enfoques.
A dcada de 1990 caracterizada pelo autor como o momento de renovao da
Geografia Cultural, com a criao do peridico francs Geographie et Cultures(1992),Ecume
(1994) na Inglaterra e no Brasil com a efetivao em 1993 do Ncleo de Estudos e Pesquisas
sobre Espao e Cultura:
No processo em tela, por outro lado, o conceito de cultura redefinido,liberado da viso supra-orgnica e do culturalismo, na qual a cultura vista
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segundo o senso comum e dotada de poder explicativo. vacinada tambmcontra a viso estruturalista, na qual a cultura faria parte da superestrutura,sendo determinada pela base. A cultura vista como um reflexo, umamediao e uma condio social. No tem poder explicativo, ao contrrio,necessita ser explicada (CORREA, 2007, p. 13).
dentro deste contexto de renovao que a categoria de lugarganha destaque nos
enfoques culturais da cincia geogrfica, abrindo perspectivas para se pensar o habitar, os usos
e costumes, o viver e o apropriar-se do espao geogrfico a partir de memrias e atravs dos
sentidos e do corpo. Carlos (2007, p. 17) assim define o termo:
O lugar a poro do espao aproprivel para a vida apropriada atravs docorpodos sentidosdos passos de seus moradores, o bairro, a praa, arua, e nesse sentido poderamos afirmar que no seria jamais a metrpole oumesmo a cidade latu sensua menos que seja a pequena vila ou cidade - vivida/conhecida/ reconhecida em todos os cantos.
Comungamos com Souza (2005)6 quando reconhece que a ideia de lugar
fundamental para o debate sobre o patrimnio cultural. Para ele, entender o patrimnio
entender tambm a utilizao da cidade pelos diversos atores sociais e o modo como criam
identidades nos espaos. Apropriando-se das proposies de Aug, assim define lugar:
Pode-se afirmar que o lugar marcado pela memria cotidiana, pelaidentidade entre estes espaos e aqueles que o reconhecem em sentidoidentitrio. (...) H no lugar uma construo concreta e simblica do espao,que passa a ser definido em sentido antropolgico enquanto apropriaosimblica de um determinado espao por um grupo social ou classe social(SOUZA, 2005, p. 43).
Percorrendo panoramicamente a cidade de Montes Claros, com suas ruas
movimentadas na regio central, carregadas pela diversidade de objetos, ritmos, leitores
urbanos, podemos notar a configurao dos lugaresque so apropriados pelos sentidos dos
transeuntes. Motoristas, estudantes, operrios, prestadores de servios e mesmo aqueles que
usufruem das ruas e praas para um simples descanso e lazer so conhecidos e reconhecidos no
cotidiano como partes integrantes do ambiente urbano, no desconectados da materialidade que
adorna os espaos. As casas comerciais, que se ampliam e tomam conta do espao antes
6 O autor traz duas maneiras pelas quais podemos entender a ideia de lugar: a primeira seria pelo sentidoisotrpico, muito mais prxima dos estudos propriamente ditos geogrficos, que entende o l ugar enquanto
uma ordem segundo a qual se distribuem os elementos nas relaes de coexistncia (configurao de posies); asegunda maneira de se entender a ideia de lugar seria pelo seu sentido antrpico(Aug) privilegiando ascorrelaes subjetivas e de identidade (SOUZA, 2005). Esta ltima nos parece mais prxima com o debate queora nos propomos.
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ocupado por casares antigos e em runas, so tambm elas pontos de encontro. E so estes
referenciais, impressos pelo uso e produzidos pelo sentido, que configuram os lugares.
Pesavento (2007) nos mostra que a cidade enquanto paisagem social dotada de
referncias, sobretudo aquelas do espao edificado e do vivido, cujas origens basicamente esto
fixadas nos centros urbanos. Nesse sentido, a centralidade ofereceria elementos icnicos e
emblemticos para a identidade urbana. O centro sediaria o ethosurbano, o corao da cidade,
onde vive toda a energia que forjaria esteritipos de distino entre as mesmas. Liricamente,
ela recompe o centro da cidade:
Para alm das palavras, os sons, as msicas e as canes cantam a cidade,trazendo ao presente as sensibilidades do passado. Mas ainda h mais. Umacidade possui seus mitos, suas lendas, suas histrias extraordinrias,transmitidas de boca emboca, de gerao em gerao, atravs da oralidade. Ahistria e a memria de uma cidade tambm o boato, o ouvir dizer, o relatomemorialstico que se apia no s na lembrana pessoal de quem evoca, mastambm naquilo que foi contado um dia por algum cujo nome no mais sesabe (PESAVENTO, 2007, p. 05).
Vivemos atualmente no Brasil um momento de gradativo interesse pblico e
principalmente privado pela preservao/recuperao/restaurao dos seus bens
patrimoniais. Podemos mesmo afirmar que o turismo cultural no pas tem se apoiado numaespcie de nostalgia do passado, sendo hoje um dos ramos da economia que mais tem crescido
e atrado turistas de todo o mundo. Pesavento (2007) ressalta tal sensibilidade pelo antigo:
H uma sensibilidade despertada para o antigo, uma expectativa de reencontrodas origens, de consumo do passado. Os centros das cidades podemcorresponder a esta vontade de realizar no s percursos urbanos no espao dacidade como viagens imaginrias no tempo. Pode-se mesmo dizer que h, hojeem dia, um pblico espectador, leitor e consumidor do passado. Alis, nuncase escreveu nem se leu tanto sobre historia e memria quanto na nossa
contemporaneidade (PESAVENTO, 2007, p. 8).
Mas o contexto de valorizao das iniciativas preservacionistas no escamoteia os
embates e as disputas pelo espao urbano que o ato de preservar suscita. Existem relaes de
conflito, de cooperao ou de dominao que esto ali presentes e que variam no tempo, espao,
configurando tambm as memrias urbanas. So inmeras as memrias coletivas originarias da
urbe, mas so os conflitos de poder quem vo selecion-las, j que h todo um movimento entre
grupos que buscam impor sua memria. preciso reconhecer que, apesar de impostas, tais
memrias acabam por refletir a memria coletiva uma vez que ao aceit-las, estas so
automaticamente legitimadas. A este respeito Le Goff (1996) categrico:
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As classes mais poderosas no apenas construram objetos mais durveis,como foram tambm as criadoras das prprias instituies de memria, noraro estabelecidas exatamente para guardar as lembranas que aqueles que as
instituram consideravam importantes. Por essa razo, os documentos que seencontram nessas instituies, e que so tambm invariavelmente utilizadoscomo fontes ou atestados dememria urbana, so, eles tambm, expressesde poder (LE GOFF, 1996, p. 86).
Diante da dinmica preservacionista e dos embates na elaborao da poltica
cultural, o que preservar na cidade? Que patrimnio preservar? Quais critrios devem ser
utilizados na configurao de tais polticas? Quais os reais significados do processo de
revitalizao pelo qual sofreu parte da rea central da cidade de Montes Claros? Como a
populao que usa o espao revitalizado no seu cotidiano se relaciona com esse processo? As
pessoas tm uma relao orgnica com os bens edificados oficialmente tombados? Existiram
outros lugares de memria no consagrados7pelas aes de preservao?
Concatenados a estas questes e na tentativa de construirmos um discurso coerente
e com critrios de veracidade e plausibilidade sobre o processo de revitalizao de parte do
conjunto histrico edificado no centro da cidade de Montes Claros8, estruturamos o trabalho
em trs captulos.
O primeiro captulo discorre sobre o contexto contemporneo de revitalizao do
patrimnio edificado que leva em conta as orientaes internacionais e nacionais. Por meio de
anlise das Cartas Patrimoniais, instrumentos que objetivam orientar a poltica patrimonialista
a nvel global, bem como da leitura crtica do processo de estruturao da poltica federal,
buscamos situar a revitalizao enquanto um mecanismo dentre vrios possveis e que atende a
interesses diversos. Trilhando este caminho, no deixamos de pontuar a construo dos
discursos que motivaram e construram uma poltica nacional de preservao do patrimnio
cultural de forma mais ampla e diversificada. Antes, porm, por meio de referenciais da
7Termo utilizado no contexto de atuao do Centro Nacional de Referncia Cultural (1975), rgo federal queprocurou produzir referncias que pudessem ser utilizadas no planejamento econmico e social do pas. Aexpresso se refere aos bens culturais no reconhecidos at ento pela poltica patrimonial oficial. Discutiremossobre este contexto no captulo 1.8Em 2003 o Ministrio da Cultura publicou o Termo Geral de Referncia para a preservao dos stios histricosurbanos, instrumento de natureza urbanstica de carter normativo estratgico e operacional. Segundo estedocumento Centro Histrico o stio urbano localizado em rea central da rea -sede do municpio, seja em
termos geogrficos, seja em termos funcionais e histricos, configurando-se em centro tradicional; j o ConjuntoHistrico seria o stio urbano que se configura em fragmento do tecido urbano da rea -sede do municpio quecontenha monumentos tombados isoladamente, os quais configuram um conjunto arquitetnico-urbanstico deinteresse de preservao (MINISTRIO DA CULTURA, 2004).
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Geografia e da Histria, localizaremos a construo do objeto de pesquisa a partir da
interdisciplinaridade.
O segundo captulo trata da trajetria dos lugares de memria institudos pelo
Conselho de Patrimnio Cultural da Cidade de Montes Claros, enfatizando o processo de
revitalizao ocorrido no Centro Histrico da cidade e que compreende o Conjunto
Urbanstico da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceio e So Jos e o Corredor Cultural
Padre Dudu. Na leitura da poltica de preservao patrimonial procuramos encontrar indcios
da influncia do Instituto Estadual do Patrimnio Histrico e ArtsticoIEPHA/MG nas aes
do Conselho Municipal do Patrimnio Histrico e ArtsticoCOMPHAC de Montes Claros.
Entendendo que o patrimnio tem uma relao orgnica com o valor, sentido e
significado atribudo ao bem, reconstitumos elementos da histria de Montes Claros, atrajetria dos lugares, da acumulao de sucessivos modos de viver que os tornaram singulares,
para compreender a construo do patrimnio cultural edificado. Trajetrias estas que se
encarnam nos monumentos, nos traados dos objetos citadinos, nos edifcios.
Utilizando-se da leitura da cidade feita por memorialistas reconhecidos na
comunidade intelectual e que justificam as aes patrimoniais nestes espaos, fizemos um
mapeamento dos bens tombados e da rea revitalizada para situarmos os lugaresoficiais do
patrimnio no Municpio. Nosso intuito ao utilizar as fontes advindas da produomemorialstica foi o de captar fragmentos que dialoguem com o processo em tela e que, de
algum modo, tenham contribudo para constituio dos lugares de memria (NORA, 1993)
institucionalizados na poltica municipal de patrimnio cultural.
Buscamos apreender estes fragmentos a partir da cidade vivida e sentida pelos
memorialistas Zez Colares e Yvonne Silveira em seu Montes Claros de Ontem e de Hoje
(SILVEIRA, 1995), Ruth Tupinamb Graa em Montes Claros era assim... (GRAA, 1986),
Joo Valle Maurcio no livro Janela do Sobrado Memrias (MAURCIO, 1992) e MileneAntonieta Coutinho Maurcio em O patrimnio histrico de Montes Claros (MAURCIO,
2005), especialmente a leitura que fizeram da rea que foi revitalizada no Centro Histrico
de Montes Claros. Entendemos que foram estes os discursos que ajudaram a compor e a
constituir estes lugaresenquanto representativos da histria e memria dos montesclarenses.
Pelo menos oficialmente.
Conjugando esta recomposio dos lugares, utilizamos a viso oficial do processo
de patrimonializao representada por indivduos que participaram da tomada de decises
dentro do Conselho Municipal do Patrimnio Histrico, Artstico e Cultural - COMPHAC.
Foram entrevistados 5 (cinco) ex-participantes e por motivos de sigilo seus nomes foram
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suprimidos do corpo do texto, ganhando uma identificao de Grupo 1 e letras alfabticas para
identificar cada um (Ex: Entrevistado 1A, 1B, 1C...) .Tambm recorremos s anlises de
documentos produzidos durante a histria do Conselho, desde sua fundao, at o ano de 2012,
ano da inaugurao do Corredor Cultural Padre Dudu.
O terceiro e ltimo captulo reservado para a tentativa de apreendermos os
significados do patrimnio revitalizado para uma parcela da populao de Montes Claros. Por
meio de entrevistas qualitativas buscamos averiguar qual o lugardo patrimnio na vida de
algumas pessoas que fazem uso constante do espao em questo e como se relacionam com as
intervenes nele realizadas. Trata-se da percepo do que essas pessoas tm da histria da
cidade, de sua importncia, seu sentido e significado dado aos espaos de vivncia cotidiana.
O processo de recepo e de significao construdos a partir dos bens imveisrevitalizados foram buscados nos moradores que nasceram/ viveram nos bairros que ladeiam o
Centro da Cidade de Montes Claros. Como opo metodolgica, realizamos entrevistas com
um conjunto de 30 (trinta) indivduos distribudos nos bairros Morrinhos, Santa Rita, Roxo
Verde, So Jos, Alto So Joo, Edgar Pereira, Vila Braslia, Todos os Santos, Melo e Vila
Guilhermina. Em cada um dos bairros entrevistamos 03 moradores, escolhidos de maneira
aleatria. A nica condio era a de que os entrevistados tivessem nascido em Montes Claros
ou tivessem vivido aqui, no mnimo, nos ltimos 20 anos. Entendemos que, apesar de no ternascido em Montes Claros, as pessoas que moram aqui por este recorte temporal j teriam
construdo uma relao afetiva com a cidade. Recorremos mesma metodologia de preservao
de identidades realizada com os ex-participantes do COMPHAC: os moradores entrevistados
ganharam uma identificao conforme o grupo (Grupo 2) e letras alfabticas para diferenci-
los (2A, 2B, 2C...).
Para a realizao das entrevistas, contou-se com o auxlio de questes semi-
estruturadas que buscaram extrair dos montesclarenses que habitam esta delimitao espacialelementos como a concepo de patrimnio cultural, o reconhecimento ou no dos bens
tombados no municpio e relatos de vivncias construdas nos lugares frequentados no
cotidiano (ver anexo - apndice). As anlises das entrevistas deram-se qualitativamente, uma
vez que entendemos que a viso que este grupo traz sobre o processo de constituio do
patrimnio cultural na cidade, apesar de no representar a totalidade dos moradores, expressa
elementos contundentes que permitem construir um discurso sobre os usos sociais do
patrimnio em/de Montes Claros.
Ainda neste ltimo captulo fizemos consideraes sobre a possibilidade de
existncia de outros lugaresde patrimnio na cidade, o que se configuraria como o reverso dos
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lugares oficialmente reconhecidos. Finalmente, abordaremos possibilidades de polticas de
valorizao dos espaos patrimonializados motesclarenses.
Reconhecendo os limites da presente pesquisa, acreditamos que a monumentalidade
expressa nestes lugares, nos discursos que os constituem e na observao dos espaos
singularizados pela acumulao de sucessivos modos de viver, so elementos reveladores de
parte da histria da cidade. E por meio dela que podemos fazer uma leitura da cidade de
Montes Claros e construir um discurso sobre a inteligibilidade do patrimnio cultural edificado
e revitalizado.
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CAPTULO 1
O LUGARDA REVITALIZAO NAS POLTICAS
CONTEMPORNEAS DE PROTEO DO PATRIMNIO CULTURAL
O patrimnio se constri nos limites das possibilidades sociais de ummomento (...).
(RODRIGUES, 1999, p. 97)
Como ponto de partida para nossas consideraes sobre a dinmica patrimonialcontempornea, coloquemos em destaque a afirmativa acima, de autoria da pesquisadora Marly
Rodrigues. Isto porque ela traz em seu bojo a constatao de que, pensar o patrimnio significa,
necessariamente, evidenciar as condies sociais de emergncia dos discursos que o concebem
e o solidificam. Como relquias do culto contemporneo (CHOAY, 2006), importa-nos
entender, pois, que os bens culturais, seus usos, formas e contedos so social e historicamente
produzidos e, portanto, configuram-se como produtos e vetores de relaes sociais (COSTA,
2012).
Mais do que pensar os suportes, as polticas pblicas que se encarregam de
gerenci-lo e os atores que se envolvem no processo, devemos atentar, principalmente, para a
historicidade do que definimos como patrimnio, tendo sempre em vista que se trata de um
tecido composto por transformaes e permanncias (RODRIGUES, 1999, p. 97).
Com esse entendimento, a Histria tem muito a contribuir com as anlises
patrimoniais e seus instrumentos terico-metodolgicos podem operacionalizar abordagens
inovadoras sobre as prticas de preservao cultural. O historiador deve buscar construir junto
a seus pares um campo especfico de atuao profissional dentro das abordagens patrimoniais,
considerando a especificidade de sua formao acadmica e as possibilidades de contribuir para
a interdisciplinaridade inerente ao tema (CHUVA, 2008).
At a dcada de 1990, em termos de produo acadmica, a preservao do
patrimnio cultural9consolidava-se como objeto de investigao somente entre os antroplogos
9 No obstante a legislao mais recente reconhecer os valores etnogrfico, arqueolgico, etc. dos bens
patrimoniais, so os valores histrico e artstico que ainda figuram como principais; aqueles so consideradostributrios (FONSECA, 2009a). Por isso, ainda frequente o uso do termo patrimnio histrico para se referiraos bens tanto tangveis quanto intangveis. Utilizaremos a definio mais abrangente, a de patrimnio cultural,favorvel devido ampliao do conceito de cultura. Discorreremos sobre o processo nas pginas que se seguem.
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e socilogos. Portanto, o interesse do historiador pela temtica do patrimnio cultural no Brasil
recente, no obstante a histria sempre [estar] presen te, apropriada de modo naturalizado,
por vrias disciplinas (CHUVA, 2008, p. 43).
Tambm com relao aos campos de atuao no mbito da poltica federal de
preservao, percebe-se que o pesquisador da Histria ficou margem das discusses, lideradas
principalmente por arquitetos e urbanistas. Muselogos, arquelogos e antroplogos, apesar de
ocuparem campos distintos de ao na poltica federal, no lograram vnculos significativos
que pudessem contribuir na construo da concepo de patrimnio vigente at a dcada de
1970 (CHUVA, 2008).
Atento interdisciplinaridade no campo do patrimnio cultural, este captulo
procura destacar a crescente preocupao dos historiadores com a relao existente entre aconstituio de patrimnios e a estruturao da memria social. Em um contexto de
reconhecimento e valorizao da diversidade sociocultural, pesquisar a constituio dos
patrimnios locais, nacionais e globais tem se tornado atrativo para a academia, sobretudo
quando estes envolvem interesses conflitivos.
Dentro dos discursos que emergiram no sculo XX, a revitalizao do patrimnio
cultural se apresenta enquanto uma interveno possvel e imediata na salvaguarda da memria
local, nacional e mundial. Discutimos tambm, neste captulo, as nuances deste processo e deque maneira as aes federais estiveram de acordo com as orientaes internacionais que visam
homogeneizar as intervenes sobre o patrimnio cultural a nvel global.
1.1 O patrimnio como uma das vertentes da memria social
O Patrimnio cultural de hoje (2014) e sua natureza mltipla (patrimnio culturalprotegido, patrimnio cultural de proximidade, patrimnio natural, patrimnio
gentico, patrimnio vivo, patrimnio tnico, patrimnio imaterial), configura-se como
reflexo da memria dos diferentes grupos que constituem uma sociedade. Isto nos leva a dizer
que, assim como outros mecanismos de construo identitria, a gerncia do patrimnio
envolve interesses diversos e muitas vezes conflitivos, j que implica em organizao, seleo
e descarte.
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Para Menezes (1992b) a temtica da memria est em voga neste que um contexto
favorvel emergncia da conscincia poltica de minorias. Este movimento de investida contra
as memrias dos diversos grupos recolhe, organiza e conserva indicadores empricos
imprescindveis para uma anlise e apreenso histricas.
A memria coletiva que aqui se discute entendida enquanto um conjunto de
lembranas construdas socialmente e referenciadas a um conjunto que transcende o indivduo,
como nos trouxe Maurice Halbwachs (2003). Abreu (1998) fazendo uma releitura das anlises
do socilogo, destaca:
A memria, j sabemos, tem uma dimenso individual, mas muitos dos seusreferentes so sociais, e so eles que permitem que, alm da memria
individual, que por definio nica, tenhamos tambm uma memriaintersubjetiva, uma memria compartilhada, uma memria coletiva (ABREU,1998, p. 12).
Comumente definida ou associada a um mero mecanismo de registro e reteno,
depsito de informaes e experincias, a memria coletiva, por esta perspectiva, teria sua
produo e acabamento realizados no passado. Entretanto, sob o crivo da histria,
imprescindvel que a depuremos de tudo o que se lhe atribui aleatoriamente10.
Os grupos e as coletividades tendem a selecion-la, reorganiz-la num processoconstante de feio adaptativa, pois assegura coeso e solidariedade entre os pares11. No
espontnea, por isso precisa ser sempre reavivada sob um processo dialtico de lembrar e
esquecer. Pierre Nora assim a define: A memria a vida (...) em permanente evoluo, aberta
dialtica da lembrana e do esquecimento, (...) vulnervel a todos os usos e manipulaes,
susceptvel de longas latncias e de repentinas revitalizaes(NORA, 1993, p. 9).
Analisando o processo de constituio do patrimnio cultural no Brasil, iniciado
oficialmente na dcada de 1930, podemos notar a sobreposio de uma memria ligada cultura
oficial pautada nos elementos que remetiam colonizao portuguesa no Brasil, em especial a
10A historiografia do incio do sculo XX fazia da histria o duplocientfico da memria, uma vez que advogavaa necessidade de construo de um discurso oficial ligado verdade dos documentos e fatos. Com o processode reviso terico-epistemolgica processada na cincia histrica na segunda metade do sculo XX, houve o que
podemos chamar de divrcio nas instncias acadmicas entre a memria e a Histria (MENESES, 1992b). Ahistria enquanto forma intelectual de conhecimento, uma operao cognitiva, passa a buscar a relativizao damemria, sempre uma ceara problemtica, movedia, vulnervel a usos e manipulaes; de objetivo, a memriase torna objeto da histria (ver ABREU, 1998; NORA, 1993; MENESES, 1992b).11A coeso do grupo se daria pelo trabalho de enquadramento da memria, que o processo de revisitao e reinterpretao constante do material que a histria nos fornece. Tais reinterpretaes contribuem na construode discursos e de objetos (arquivos, museus) que corroboram para a perenidade do tecido social. Sobre o processode enquadramento da memria, conferir o texto de Michel Pollak Memria, Esquecimento, Silncio, 1989.
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arquitetura, em detrimento dos demais grupos que compem a formao social e tnica
brasileira.
A discusso acerca do processo de constituio sistematizada da poltica federal de
preservao patrimonial brasileira ser pontuada posteriormente. Interessa-nos por hora,
considerar que a memria social forjada a partir dos bens patrimoniais dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira deu-se a partir da dialtica do lembrar e esquecer, voluntria
ou involuntariamente12. Nesse sentido, na discusso da problemtica social da memria faz-se
necessrio considerar no somente o sistema (suportes, mecanismos), os vetores e os
contedos (representaes), mas, sobretudo, incluir os agentes enquanto indivduos que
procuram responder s solicitaes do presente. Meneses, nesse sentido, afirma:
A memria enquanto processo subordinado dinmica social desautoriza, sejaa ideia de construo no passado, seja a de uma funo de almoxarifado dessepassado. A elaborao da memria se d no presente e para responder asolicitaes do presente. do presente, sim, que a rememorao recebeincentivo tanto quanto as condies para se efetivar (MENEZES, 1992, p.11).
Franois Hartog adverte que no ps-1990 um novo regime de historicidade emergiu
modificando o modo como a sociedade trata o seu passado. Para o autor, estaramos vivendo
um momento centrado no presente - presentismo - chegando mesmo a modificar asinterpretaes da relao entre as dimenses temporais passado-futuro (HARTOG, 2006). De
elemento formador da tradio nacional, da identidade que daria coeso ao grupo por meio de
uma relao orgnica com o passado, o patrimnio ganhou uma viso prospectiva,
principalmente com a patrimonializao do meio ambiente. O futuro, conforme esta nova
modalidade de conscincia de si, no mais uma promessa, mas uma ameaa:
Assim, interrogar o patrimnio e seus regimes de temporalidades nosconduziu, de maneira inesperada, do passado ao futuro (...). Este futuro no mais um horizonte luminoso (...) mas uma linha de sombra que colocamos emmovimento em direo a ns (HARTOG, 2006, p. 273).
12Tatiana Mello de Oliveira, em Memria e Esquecimento na formao do patrimnio cultural brasileiro analisacomo as memrias dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira so representadas em trs contextos,dentro do processo de construo da poltica federal de proteo ao patrimnio cultural: o primeiro, ligado
institucionalizao do tombamento (SPHAN, 1937); o segundo, que se refere ampliao da noo de patrimniono contexto de criao do Centro Nacional de Referncia Cultural em 1975; e o terceiro momento, ligado introduo da categoria de bens culturais de natureza imaterial, na Constituio de 1988 (OLIVEIRA, 2010).Discorreremos sobre este processo mais adiante.
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Isto no significa que o passado deva ser negligenciado. Ao contrrio, como filha
do presente, a memria, cujo objeto a mudana, precisa do seu referencial para que o presente
se torne compreensvel e o futuro planejvel.
Em resposta a este presentismo, a memria passa a se manifestar enquanto
demanda, dever e a ser reivindicada como um direito. Uma crescente superstio e
respeito ao vestgio percebida na contemporaneidade, contribuindo para a dilatao da
materializao da memria. Dentro deste processo, novas concepes de patrimnio
emergem. A busca pela redefinio de identidades locais obriga cada grupo a revitalizar suas
histrias, no af de que tudo possa se perder: se ningum sabe do que o passado feito, uma
inquieta incerteza transforma tudo em vestgio, indcio possvel, suspeita de histria com a qual
contaminamos a inocncia das coisas (NORA, 1993, p. 19).Enquanto conjunto de vestgios de um processo social anterior, o patrimnio
cultural tem sido discutido prospectivamente. Somente por meio de uma conscincia histrica
crtica que poderemos introduzir as descontinuidades entre o passado e o presente, to
necessrias interpretao das memrias coletivas que vo se solidificando no processo de
patrimonializao.
1.2 A interdisciplinaridade e a construo do objeto de pesquisa
Vimos que o estudo do patrimnio cultural nos revela nuances da constituio da
memria social. Os patrimnios, assim como a memria de um dado grupo, so passveis de
transformaes e permanncias suscitadas pelas foras que atuam na sociedade. So, portanto,
dotados de historicidade, o que nos impede de negligenciar as formulaes tericas e prticas
do contexto que os originam. Dessa forma, ao trazer os discursos que legitimam a proteopatrimonial na Cidade de Montes Claros (Captulo 2) procuramos perceber qual o conceito de
patrimnio que regia as aes empreendidas pela municipalidade.
Essa caracterstica voltil do campo deu a esta temtica uma amplitude e
complexidade considerveis, levando estudiosos da histria, da arquitetura, do urbanismo, da
geografia, da sociologia e antropologia a perceberem que j no possvel se aproximar dos
estudos patrimoniais sem dar ateno aos dilogos interdisciplinares.
Nosso intuito nesta parte do trabalho fazermos um breve balano da produo
acadmica que tem como objeto o patrimnio, enfatizando a interdisciplinaridade e as
possibilidades de dilogos com a histria, cincia que vem recentemente consolidando seu
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espao no campo em questo. Paralelo a este processo situaremos o nosso objeto de estudo, que
o processo de revitalizao do conjunto histrico situado na rea central da ci dade de
Montes Claros.
1.2.1 Sobre a inteligibilidade, envolvimento social e os cdigos de leitura
No processo de constituio dos patrimnios culturais frequentemente trabalha-se
com as noes de coisa (os bens propriamente ditos) e de valor (importncia cultural dos bens).
Desde a institucionalizao da poltica oficial de preservao patrimonial brasileira em 1937, o
que prevaleceu, como observamos anteriormente, foi a valorizao de signos que estavamligados constituio da nao, principalmente por meio da noo de arte (valor arquitetnico
e estilstico) e de histria (testemunho).
O que se verifica nesta poltica um discurso de monumentalidade13que valoriza
o passado hierarquicamente em detrimento do presente. A ideia de tradio ganha
corporificao nos monumentos coloniais que iam sendo tombados e, assim, ajudando a
construir a nao brasileira. No entanto, a grande maioria da populao esteve margem
deste processo, tanto na seleo dos bens (a cargo dos leitores especialistas da cultura), quantona atribuio do valor cultural que os mesmos teriam na sociedade.
A partir desta constatao, vrios foram os trabalhos que se debruaram sobre a
questo da inteligibilidade que os bens patrimoniais tm para a populao, ou seja, como a
populao constri, ou no, a relao orgnica com os bens que, teoricamente, estariam ligados
sua vida, ao seu trabalho, enfim, cotidianidade de suas relaes sociais.
A sociloga Maria Ceclia Londres Fonseca destaca-se neste enfoque. A autora
enftica sobre as abordagens que privilegiam o envolvimento da sociedade no processo deconstituio de patrimnios oficiais:
imprescindvel ir alm e questionar o processo de produo desse universoque constitui um patrimnio, os critrios que regem a seleo de bens ejustificam sua proteo; identificar os atores envolvidos nesse processo e osobjetivos que alegam para legitimar seu trabalho (FONSECA, 2009b, p. 36).
13Gonalves (2002) analisa duas modalidades discursivas de patrimnio que estiveram em vigor no Brasil desde
os anos de 1930. Uma seria representada por Rodrigo de Melo Franco de Andrade, quando esteve frente doServio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional SPHAN, que privilegiava os monumentos ligados tradio barroca; o outro seria representado por Alosio Magalhes (discurso do cotidiano) e a nova concepo de
patrimnio intangvel, valorizador dos diversos grupos e categorias sociais em sua vida cotidiana.
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Silvia Helena Zanirato, historiadora, tambm discute a participao social na
identificao, conservao, estudo e difuso dos patrimnios culturais. A escassa participao
popular na conservao de bens estaria ligada, conforme a autora, ao modo como foi instituda
a compreenso sobre o patrimnio no Brasil, resultando o no reconhecimento da maioria dos
bens tombados, e a valorizao de uma ideologia modernista que rejeitava tudo o que fosse
considerado arcaico (ZANIRATO, 2009). A autora aponta para a educao patrimonial a
tarefa de insero da populao no circuito de debates e tomadas de decises: necessrio que
a populao se sinta identificada com os bens preservados, que se reconhea nesse espao, pois
s assim ele se torna, de fato, representativo dela e para ela (ZANIRATO, 2006, p. 102).
Na busca para compreender a relao orgnica que a populao de Goinia tem com
o Ncleo Pioneiro tombado, Mrcia Arajo lana em seu trabalho a seguinte questo: a aodo tombamento inteligvel populao em seus aspectos simblicos, estticos, histricos, ou
representa uma ao institucional epoltica sem respaldo da comunidade? (ARAUJO, 2008,
p. 16). Por meio das representaes sociais, a pesquisadora intentou apreender os significados
do patrimnio edificado para os habitantes.
Apesar de constituirmos uma sociedade plural, carregada de um universo simblico
rico e diversificado, poucas so as abordagens que se dedicam ao processo de recepo14e os
cdigos de leitura do patrimnio cultural brasileiro. A este respeito, Fonseca (2009b) assevera:
Poucos se voltam para a anlise do modo e das condies de recepo desseuniverso simblico pelos diferentes setores da sociedade nacional questoque particularmente importante no Brasil, onde a diversidade cultural imensa, a escola cumpre muito precria e limitadamente uma de suas funesprincipais, que a de formar cidados com uma base cultural comum, e ondeo hbito de consumo de bens culturais incrivelmente restrito (FONSECA,2009b, p. 43).
As leituras e o modo como as pessoas assimilam o patrimnio cultural variamconforme os grupos e a posio sociocultural. Entender os usos sociais que so feitos dos bens,
bem como atentar para as dificuldades que os grupos sociais culturalmente desfavorecidos tm
no consumo e criao de cdigos de leitura, devem estar na ordem do dia.
14Entende-se que h dois sentidos de recepo: um bem cultural pode carregar uma multiplicidade de significados
para grupos econmica, social e culturalmente diferenciados e; os momentos histricos diferenciados podem trazermutabilidade de significaes e valores. Ou seja, um bem que hoje tem valor histrico, pode em outro contextono o ter. Os valores e os gostos modificam-se com o tempo, so social e historicamente mutveis (FONSECA,2009b).
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1.2.2 Sobre a mercadologizao do patrimnio e os conflitos na preservao
A valorizao econmica das reas de interesse histrico tem sido imperativa nas
grandes cidades brasileiras.
O interesse crescente pela temtica patrimonial tem levado a um
processo avesso de reestruturao dos ambientes urbanos. No obstante a existncia de um
contexto favorvel ampliao do conceito de patrimnio cultural e uma maior abrangncia
das polticas pblicas, a mercadologizao dos espaos culturais est modificando a relao
patrimnio e cidade. Muitas cidades histricas brasileiras tem tido os seus espaos revitalizados,
sucumbindo-se noo de cidade-espetculo.
A este processo, tambm conhecido como gentrification/nobilizao, o socilogo
Rogrio Proena Leite (2009) dedicou aguda ateno e, levando em conta os processos denobilizao realizados noPelourinho, Salvador-BA e no Bairro doRecife Antigo, Recife-PE,
evidenciou as aes econmicas de explorao das cidades catalisadas pelas demandas e fluxos
do turismo cultural internacional.
Neste processo de nobilizao, os conjuntos histricos degradados so recuperados
para servirem ao mercado cultural e seus espaos, por uma lgica turstica, so tomados por
efeitos visuais e pela comercializao de produtos, o que reduz o patrimnio a mero cenrio da
indstria cultural e da lgica do entretenimento (PELEGRINI, 2006, p. 76). Ao invs depermitir uma ampla relao identitria entre os bens e os indivduos que circulam no polgono
reabilitado, as polticas de gentrification permitem a fruio do bem dissociado da memria
social. Zanirato (2006) destaca que este reordenamento eliminou o uso residencial destes
espaos, empurrando a populao para bairros perifricos, distantes do centro. O
distanciamento tambm compreendeu o plano simblico: ao privar os moradores do uso e
desfrute destes locais, ignorou-se o fato de que os bens tambm compreendem as experincias
vividas nos lugares.Novas territorialidadesso criadas. Em inmeros centros histricos nordestinos,
como observa Luchiari (2005), as populaes locais tiveram suas antigas territorialidades
modificadas para dar lugar a centros culturais, cafs, casas de espetculos, restaurantes,
corredores culturais. O Processo de refuncionalizao de reas urbanas degradadas, conforme
se v, tende a aprofundar o processo de segregao social e espacial, forjando territorialidades
descompromissadas com o lugar e com as populaes locais. Tornou-se um dos mais eficazes
e sorrateiros caminhos para a excluso social com o beneplcito do interesse cultural e a
omisso dos rgos de preservao (MENESES, 2006, p. 53). Culto ou indstria (CHOAY,
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2006), as prticas de patrimonializao estariam correndo risco de sua autodestruio,
justamente pelo sucesso de que gozam na contemporaneidade.
Dentro do processo de revitalizao e nobilizao pode-se inferir a existncia de
conflitos, tendo em vista que a constituio de patrimnios no se d de modo pacfico. Uma
vez que lida com a propriedade,15 os interesses econmicos que envolvem tanto o bem
protegido quanto o seu entorno tendem a acirrar as disputas pela apropriao dos espaos. Tais
disputas devem ter ateno especial do historiador do patrimnio.
O tombamento enquanto ato jurdico altera valores imobilirios, intervm nas
relaes de mercado e na configurao dos espaos urbanos. Em locais que contam com
imveis tombados a tendncia que a especulao imobiliria cresa e consequentemente, toda
a rea envoltria ao bem seja beneficiada. Menezes (2006) assim v os conflitos que giram emtorno da preservao e ordenao urbana:
Mais que no tombamento de cidades, ncleos e manchas urbanas, bairros e,mesmo estruturas arquitetnicas isoladas, talvez na concepo e aplicaodas normas relativas proteo do entorno de um bem tombado que mais seaguam os conflitos entre preservao e ordenao urbana (MENEZES 2006,p. 42).
O ato do tombamentoimplica a imposio de algumas restries rea envoltria16:o pedestre o principal beneficirio da fruio visual que o bem proporciona; descaracterizar
ou tornar a rea envoltria (que deve ter valor adjetivo) mais atraente e destacada que o bem
tombado (valor substantivo) significa infrao, sendo passvel de penalidades legais; na
vizinhana dos imveis tombados no se poder efetuar construes que lhes impeam ou
reduzam a visibilidade; as mudanas efetuadas no bem devem ter carter necessrio para
assegurar-lhe a existncia e no devem comprometer os valores declarados merecedores de
proteo17
. Podemos notar que a existncia de uma srie de limites e ponderaes nas reastombadas pelo poder pblico tende a configurar um campo de foras nas questes de
preservao e ordenamento urbano, haja vista a valorizao destas espacialidades pelo mercado
imobilirio. Veremos que em Montes Claros os interesses econmicos aliados falta de
15 O tombamento um ato jurdico que incide sobre o sistema de valores do bem (valor cultural alheia aoproprietrio) e sobre o estatuto da propriedade (coisaalienvel). Embora a proteo incida sobre as coisas, poisestas que constituem o objeto da proteo jurdica, o objetivo da proteo legal assegurar a permanncia dosvalores culturais nelas identificados (FONSECA, 2009a, p. 40). 16A rea envoltria o entorno do imvel tombado que delimitado com o objetivo de preservar a sua ambinciae impedir que novos elementos obstruam ou reduzam sua visibilidade. Compete ao rgo que efetuou otombamento estabelecer os limites e as diretrizes para as intervenes na rea de entorno do bem.17Para encontrar mais elementos desta discusso conferir Menezes (2006).
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sensibilidade dos empreendedores tm dificultado a implementao de aes concretas de
preservao patrimonial. Portanto, o pesquisador da histria deve estar atento a estas questes,
pois, como ponderou Costa (2012) o ncleo de qualquer preocupao relativa ao patrimnio,
seja no processo de identificao, proteo e principalmente valorizao , por sua natureza,
poltico.
1.2.3 Sobre a emergncia de novas categorias, interdisciplinaridade e o objeto de estudo
O campo do patrimnio tem atrado a ateno de profissionais das mais diversas
reas do conhecimento e configura-se hoje (2014) como uma temtica ampla, complexa eprofundamente necessria na reflexo da sociedade atual. H muito engessada no tempo
pretrito (tradio), hoje a pesquisa patrimonial ganha uma viso prospectiva, buscando
articular as diversas temporalidades para se pensar um futuro responsvel.
Pensar responsavelmente o futuro dos lugares, das sociedades, implica
necessariamente valorizar a produo material e simblica dos diferentes grupos sociais. H de
se considerar tambm que o patrimnio cultural um constructo social, como assim o definiu
Almeida (2012), e, portanto, envolve diferentes interpretaes que rompem com as concepesconstrudas sob determinados marcos representativos de uma cultura dominante. Noes18
como as de patrimnio ambiental, paisagem cultural, patrimnio gentico19, patrimnio tnico,
emergem neste contexto de valorizao e alteridade, denotando a conscincia da diversidade
natural e cultural dos povos, bem como o redirecionamento das preocupaes de ordem
mundial. Almeida, nesse sentido, salienta que:
O patrimnio, de certo modo, constri e forma as pessoas e o espao, mas
tambm resulta das relaes, dos lugares, das paisagens e dos territrios.Assim, a interpretao do sentido de patrimnio leva em conta a base espacialque tambm geogrfica (ALMEIDA, 2012, p.163).
Interpretar o patrimnio, desta forma, significa lanar mo da contribuio que os
conhecimentos disciplinares tm dado, valorizando a construo de um saber interdisciplinar
que d conta da pluralidade social, cultural e natural. A antropologia, a arqueologia e a
18Trata-se de categorias de bens de interesse difuso ou pblico que ainda se encontram em construo, tanto pela
doutrina quanto pela legislao.19O Brasil considerado um celeiro biolgico de genes, molculas e micro-organismos. Sua biodiversidade ocofre de um patrimnio qumico inexplorado de remdios, alimentos, fertilizantes, pesticidas, cosmticos,solventes (...) em nmero quase infinito (ABREU, 2009, p. 41-42).
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sociologia h muito vm trabalhando na construo de um campo de pesquisa consolidado
tendo como narrativa o patrimnio. No entanto, so recentes as contribuies de historiadores
e gegrafos no debate.
Enfatizamos neste estudo a estreita relao que a histria e a geografia tm mantido
nas abordagens sobre a memria das cidades, principalmente na busca de muitas outras
memrias (a dos excludos, dos pobres e marginais). Por meio das categorias analticas lugare
lugar de memria, procuramos entender a construo do patrimnio cultural edificado em
Montes Claros e sua relao topoflica a partir dos discursos de memorialistas que escreveram
sobre aspectos da histria da cidade. Entendemos que o objeto de investigao sempre um
construto:
Os mesmos objetos podem dialogar com as mais diversas disciplinas [...] Aquesto que se coloca , pois, sobretudo, uma questo de mtodo, isto , daconstruo de um sistema intelectual que permita, analiticamente, abordaruma realidade, a partir de um ponto de vista (SANTOS apudLOPEZ, 2012,p. 24).
Trabalhar a memria da cidade e, dentro desta, os signos que trazem o patrimnio,
implica, de acordo com Abreu (1998, p.18), aliar a base segura da anlise histrica ao esteio
no menos seguro que a geografia proporciona. Fazer uso da diacronia (preferida peloshistoriadores) e a sincronia (frequentemente utilizada pelos gegrafos) a proposio do autor
para uma discusso consistente acerca das memrias sociais20.
A cidade pode ser vista tambm por meio da representao social, como nos prope
Sandra Jatahy Pesavento. Para a autora conjugando a cidade real e a cidade
desejada/imaginada que conseguiremos construir os significados expressos nos bens culturais,
a partir do cruzamento entre os dados objetivos (obras, traos, sinais da passeidade que nos
chega) e as imagens, leituras e discursos que o espao oferece (PESAVENTO, 1995).Procurando fazer uma leitura da cidade de Montes Claros por meio do seu
patrimnio cultural edificado, fizemos uso da categoria analtica lugarda Geografia Humanista
Cultural. Entendemos que a noo de patrimnio cultural disseminada pela municipalidade e
orientada pelo Instituto Estadual do Patrimnio Histrico e ArtsticoIEPHA/MG, tende a ser
utilizada para dar a ler a histria da cidade a partir de fragmentos e materialidades
representativos de um discurso oficial.
20Os termos diacroniaesincroniaso discutidos na Introduo do trabalho, na perspectiva de Abreu (1998).
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Propusemo-nos a inquirir qual a relao orgnica que as pessoas que fazem uso
contnuo dos lugarespatrimonializados oficialmente em Montes Claros mantm com os bens
tombados, ou seja, em que medida a sua vivncia cotidiana dialoga com as aes de proteo
patrimonial, principalmente a partir do processo de revitalizao ocorrido recentemente
(Conjunto Paisagstico da Matriz de Nossa Senhora da Conceio e So Jos e Corredor
Cultural Padre Dudu), que elegeu lugaresespecficos como referencial para a memria da
cidade.
Diferentemente dos processos de nobilizao descritos anteriormente que visam
insero de um dado espao nos fluxos globais do turismo por meio de processos mais
abrangentes de reestruturao espacial, o que vem ocorrendo em Montes Claros uma ao
cuja perspectiva a de estetizao da paisagem urbana sui generis, dando destaque a umamemria que agrega elementos de grupos sociais locais privilegiados, tendo respaldo nas
diretivas do IEPHA/MG. As intervenes ocorridas nos lugareshistricos deram-se a partir
da revitalizaoe da reabilitao dos edifcios21.
semelhana do que observou Moreira (2008) a despeito da revitalizao ocorrida
na Rua dos Caets em Belo Horizonte, o processo de requalificao engendrado em parte do
conjunto histrico da cidade de Montes Claros visaria, sobretudo, a um pblico interno
cidade (sem pretenses tursticas de grande vulto), incluindo-se aqui as pessoas que, ainda queno habitem a urbe, estabelecem relaes de proximidade com a mesma.
Privilegiar o patrimnio edificado para tentar ler a cidade vivida e a cidade
projetada, pensada, conforme os direcionamentos de Pesavento (1995), foi uma escolha dentre
vrias possveis neste contexto de ampliao da noo de bem cultural. Entendemos que os
edifcios eleitos oficialmente como representantes de fragmentos da histria de Montes Claros
so lugares deuma memriaespecfica e que podem ou no denotar a experincia coletiva.
Entendemos tambm que as possibilidades analticas tendem a ser potencializadas quando se
21No obstante a confuso quanto ao emprego dessas terminologias, h distines a se fazer entre elas. Vrias soas denominaes que as intervenes urbanas recebem, dentre elas esto a reabilitao urbana/ do edifcioe arevitalizao. Tais definies inserem-se num contexto de mudanas formais, funcionais e simblicas no espaourbano. A Carta de Lisboa (1995) define reabilitao urbana como uma estratgia de gesto que procurarequalificar a cidade pelas intervenes mltiplas destinadas a valorizar as potencialidades sociais, econmicas efuncionais, partindo de intervenes de melhoramentos na estrutura fsica da rea a ser reabilitada, com a instalaode equipamentos, espaos pblicos, procurando sempre manter a identidade e as caractersticas locais. No mbitoda edificao, reabilitao o processo pelo qual um edifcio adaptado para um novo uso ou funo, sem alteraras partes que so significativas ao seu valor histrico (ICOMOS, 2001). Por sua vez, a revitalizao, termopouco
empregado entre os especialistas, dado vises preconceituosas, seria um processo de interveno que visaassegurar a vitalidade de um bem patrimonial degradado (restaurao das formas fsicas). Mais detalhes sobreintervenes urbanas, conferir Pinheiro & Santos (2012).
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procura dialogar com outros campos de saber. A problemtica do patrimnio est em voga na
academia e objetivamos neste estudo interpelar para que os pesquisadores da histria, na
construo e consolidao do seu espao dentro das discusses patrimoniais, possam fazer
proveito desse dilogo. Campo movedio, conflitivo, to amplo quanto complexo, portanto,
exigem-se dos pesquisadores maiores instrumentos terico-metodolgicos.
1.3 A preservao patrimonial no Brasil e as orientaes internacionais
Nem tudo o que passado tem, por definio, direito perenidade,convm escolher com sabedoria o que deve ser respeitado.
(Carta de Atenas, 1933).
contempornea a ideia de conceber patrimnios culturais como referenciais
identidade e formao de um povo. Mais recente ainda a extenso deste direito, tambm, s
comunidades, grupos minoritrios e povos tradicionais. No entanto, a categoria patrimnio,
nesta acepo que o sculo XX viu consolidar, nem sempre foi sinnimo de identidade, de
cultura ou de elemento simblico. Choay (2006) recompe os contextos sociais quepossibilitaram o surgimento do termo, esclarecendo que, em suas origens, entre os antigos
romanos, patrimnio estava ligado herana, imersa em uma estrutura familiar estvel. Na
atualidade (2014), apesar de ainda manter o sentido de pertencimento (ao grupo, coletividade),
o termo foi requalificado e adjetivado, tornando-se um conceito nmade (COSTA, 2012).
Desde a Renascena podemos apontar aes deliberadas voltadas para a
conservao de bens, sobretudo aqueles ligados nobreza e ao clero, smbolos da cultura erudita
(objetos de arte e edificaes). No entanto, foi o processo desencadeado pela Revoluo
Francesa que trouxe tona a noo de bem enquanto monumento histrico representativo de
um passado que no se poderia apagar. Preocupado com a destruio em massa dos
monumentos e smbolos do Antigo Regime, o Governo Revolucionrio ps-1789 passou a
intervir e direcionar aes para a salvaguarda destes objetos que eram alvo do vandalismo
fomentado pelo fervor revolucionrio, com a finalidade do alcance pedaggico - instruo
pblica (FONSECA, 2009b, p. 35). O patrimnio, de categoria privada, individual, ganhou com
o movimento revolucionrio francs nuances de identificao nacional, coletiva e os bens que
a partir daquele momento tivessem direito perenidade deveriam servir para unir os
indivduos, social e culturalmente heterogneos, em uma s causa, ou seja, o projeto de nao.
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Passado e lngua comuns, identidade comum foram os elementos que consolidariam o
patrimnio como categoria histrico-artstica.
Fonseca (2009a) advertia que, mais do que forjar uma identidade comum, a poltica
francesa de conservao dos bens histricos pretendia tornar visvel e real uma entidade ideal,
a nao, onde os smbolos funcionariam como provas da verso oficial da histria nacional,
consubstanciada materialmente. Ao interesse cultural acrescentava-se o poltico e o ideolgico,
levando a autora a concluir:
A construo do que chamamos patrimnio histrico e artstico nacionalpartiu, portanto, de uma motivao prtica- o novo estatuto de propriedadedos bens confiscados e de uma motivao ideolgica a necessidade de
ressemantizar esses bens (FONSECA, 2009a, p. 58).
Da Frana, os usos do patrimnio como fator de coeso e de reforo ao mito de
origem influenciaram na inveno de tradies e na constituio de novos Estados
modernos22. Sobre o processo lento e gradual de feio da categoria patrimnio, em suma, Costa
conclui:
Fica claro, dessa maneira, que a expresso patrimnio cultural, enquanto
conjunto do que transmitido consciente e inconscientemente pelos homens,depois de seu aparecimento sobre a Terra, tem sua origem no Sculo dasLuzes, adquirindo fora jurdica durante o sculo XIX, enquanto patrimniosnacionais, criadosparalelamente construodas nacionalidades de vriospases europeus [...] (Grifos do autor) (COSTA, 2012, p. 12).
Dessa forma, ao longo dos sculos XIX e XX a problemtica do patrimnio passou
a ser de interesse de vrios povos e naes, constituindo-se em um campo de debate que fez
emergir discusses globais sobre sua definio e gesto.
As Cartas Patrimoniais surgem neste contexto de discusso pluri nacional.Concebidas a partir de autoridades diplomticas, arquitetos e antroplogos, constituem
instrumentos tericos que discutem a atuao de profissionais e instituies na rea, bem como
a concepo, conservao e preservao do patrimnio cultural. Estes documentos tm
influenciado na constituio de acervos patrimoniais e suas adjetivaes (histrico, cultural,
natural) nos pases signatrios e, escritas por vrios grupos de classe, de perspectivas
22Para Hobsbawn as tradies estariam diretamente ligadas memria, tanto coletiva quanto individual e se
constituiriam num link de identidade e de sentimento de pertena, ainda que esta identidade e pertena seja umamanobra ideolgica. Nesse sentido, monumentos, relquias, locais de peregrinao, cerimnias, festas, mitologiasnacionais, folclore, mrtires, heris, teriam sido criados com o objetivo de forjar e comunicar uma identidadenacional. Ver Hobsbawn & Ranger (1997).
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ideolgicas diversas ou representantes de entidades governamentais, referenciam os valores
patrimoniais quanto a amplos aspectos socioculturais (CSAR & STIGLIAN