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Os “fios de Contos” de Mãe Beata de Yemonjá: Mitologia afro-brasileira e Educação. Autor(a): Gloria Cecília de Souza Silva Orientador(a): Roberto Luís Torres Conduru Rio de Janeiro, 25 de agosto de 2008

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  • Os fios de Contos de Me Beata deYemonj:Mitologia afro-brasileira e Educao.

    Autor(a):

    Gloria Ceclia de Souza Silva

    Orientador(a):

    Roberto Lus Torres Conduru

    Rio de Janeiro, 25 de agosto de 2008

  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROCENTRO DE EDUCAO E HUMANIDADES

    FACULDADE DE EDUCAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Gloria Ceclia de Souza Silva

    OS FIOS DE CONTOS DE ME BEATA DE YEMONJ:MITOLOGIA AFRO-BRASILEIRA E EDUCAO

    Rio de Janeiro2008

  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROCENTRO DE EDUCAO E HUMANIDADES

    FACULDADE DE EDUCAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Gloria Ceclia de Souza Silva

    OS FIOS DE CONTOS DE ME BEATA DE YEMONJ:MITOLOGIA AFRO-BRASILEIRA E EDUCAO

    Rio de Janeiro2008

  • GLORIA CECLIA DE SOUZA SILVA

    OS FIOS DE CONTOS DE ME BEATA DE YEMONJ:MITOLOGIA AFRO-BRASILEIRA E EDUCAO

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado doPrograma de Ps-Graduao Stricto Sensu emEducao da Universidade do Estado do Rio dejaneiro, sob a orientao do Professor DoutorRoberto Lus Torres Conduru, como requisitoparcial obteno do ttulo de Mestre.

    Rio de janeiro2008

  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROCENTRO DE EDUCAO E HUMANIDADESFACULDADE DE EDUCAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Dissertao: Os Fios de Contos de Me Beata de Yemonj: Mitologia Afro-Brasileira eEducao.

    Elaborada por: Gloria Ceclia de Souza Silva

    Aprovao pela Banca Examinadora

    Rio de Janeiro, 25 de agosto de 2008.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Roberto Lus Torres ConduruOrientador da Dissertao

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Prof. Dr. Mailsa Carla Pinto PassosUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

    Prof. Dr. Eduardo de Assis DuarteUniversidade Federal de Minas Gerais

  • Agradecimentos

    Exu! Modup!Yemonj! Modup!

    Sabemos que impossvel fazer uma pesquisa sozinhos. H co-autorias de todo tipo: de ouvir,de falar, de ler e reler, de dar o ombro, o colo, de dedicar o tempo na ajuda...

    Assim, foram os amigos e as amigas que estiveram juntos comigo, uns mais prximos, outrosmais distantes. Todos numa torcida, que se podia ouvir em coro, a impedir o desnimo nasdificuldades da caminhada: Adriana, Clia Regina, Giovane, Jaime, Jane Maria, Jos Carlos,Jos Roberto, Jorge, Jnior, Marcelo, Marcos Antnio, Maria Emlia, Mariana, Maria Helena,Nelcia, Rodrigo, Rosana, Sandra, Simone, Valria. E Daniele de Salles, companheira decurso. Par comigo. Ibejis que somos! A todos, Modup!

    A Edimrcio William e a Mariana Ferreira pela Normalizao Tcnica do trabalho. Modup!

    A Alexandre Velloso e a Lindaura dOxum que zelam, comigo, cada um a sua maneira, pelaminha cabea, meu ori. Estando, assim, em condies para produzir um trabalho denso eprazeroso. Modup! A beno!

    Aos professores e professoras que conheci no Curso de Mestrado. Exigiram reflexopermanente entre a natureza de suas disciplinas e o nosso objeto. Com eles aprendi a concebera pesquisa como prtica social e formativa. Modup!

    A todos os que participaram diretamente da pesquisa, como depoentes ou contribuindo deoutros modos, concedendo-me tempo, tomando parte nessa construo: Prof. Ana ChrystinaVenancio Mignot, Prof. Muniz Sodr, Prof. Eduardo de Assis Duarte, Prof. Dilma de MeloSilva, Prof. Teresinha Bernardo, Prof. Vnia Cardoso, Prof. Monique Augras, Prof. ZecaLigiro, Adailton dOgum, Regina dExu e Cristina Warth. E, mesmo sem saber, a meninaAmanda do Il Omiojuaro. Modup!

    Ao Babalorix Celso dOmolu do Il Ax Onan Ay Omi que mediou minha presena no IlOmiojuaro, apresentando-me a Me Beata de Yemonj. Disponibilidade. Doao.Generosidade. Torcida. Amizade. Modup!

    Ao Prof. Dr. Roberto Lus Torres Conduru que, orientando-me, no permitiu que eu meacomodasse no pseudo-conforto das certezas, solicitando-me releituras e reescrituras, desde ocomeo. Um jeito de dizer: - V siga em frente! Pela confiana depositada, Modup!

    O que dizer a Me Beata de Yemonj? Seu Il nos acolheu e seu Ax, sua fora vital, nosimantou com energia fresca, como as guas de sua Me e, nos arremessou para mltiplasvertentes, as encruzilhadas de seu Pai. Presente! Modup!

  • A toda a minha famlia. Todos mesmo.Afro-descendentes que somos.

    Aos que j se foram para o Orum e aos que esto no Ai.Com um afeto especial aos meus pais,

    Deodato e Zilka por, incondicionalmente,me acompanharem vida a fora.

    A Oxssi e a Oxum, muito, pra mim!A Beno!

  • RESUMO

    SILVA, Gloria Ceclia de Souza e (2008). Os Fios de Contos de Me Beata de Yemonj:Mitologia Afro-brasileira e Educao. Dissertao de mestrado apresentada ao Programa dePs-graduao em Educao da UERJ. Rio de Janeiro: FE/UERJ, 2008.

    Esta dissertao tem como objeto de estudo os tan, narrativas mticas afro-brasileiras.

    Destaca-se um conjunto de saberes, historicamente, colocado margem. O que tornou

    desconhecido, esquecido outros modos de conceber o mundo, o conhecimento, a vida. As

    narrativas mticas, seus personagens e ambincias, foram tomadas como leituras de mundo,

    como possibilidade epistmica. A investigao deu-se na obra literria da ialorix e

    escritora Me Beata de Yemonj, formada nas prticas de oralidade do candombl, culto

    religioso afro-brasileiro, de onde emanam essas narrativas. Publicou parte delas em dois

    livros: Caroo de dend: a sabedoria dos terreiros, como ialorixs e babalorixs passam

    conhecimentos a seus filhos (1997) e Histrias que minha av contava (2004). O que leva

    uma sacerdotisa a publicar uma sabedoria que aprendeu no cotidiano das comunidades-

    terreiro que freqentou? Como se d a insero dos escritos de Me Beata de Yemonj no

    campo da Literatura Afro-brasileira? E enfim: possvel um dilogo entre mitologia afro-

    brasileira e Educao? Estas foram questes norteadoras da pesquisa. Seus registros e anlises

    encontram-se com a seguinte organizao: o primeiro captulo rastreou a formao de Me

    Beata de Yemonj na tradio oral religiosa afro-brasileira, no candombl. Seu encontro com

    a escrita e a leitura, os cruzamentos fabulativos, tecidos entre seus contos e os que leu. A

    vivncia criativa dos e nos mitos no cotidiano e, a indivisibilidade da ialorix, escritora e

    ativista poltica. No segundo captulo exprimem-se as vozes dos sujeitos participantes nos

    processos de edio e publicao dos livros, e dos que reconheceram nos contos um valor

    extenso atividade religiosa, um valor literrio. Literatura Afro-brasileira. Uma escrita prenhe

    de experincias na oralidade. O terceiro captulo prope reflexo e compreenso sobre as

    concepes, de conhecimento e de ensino-aprendizagem nos mitos. Carter epistmico.

    Modos de conhecer que, como rastros, possam contribuir para a ressignificao sobre

    prticas-educativas recorrentes em espaos formativos como escolas.

    Palavras-chave: Mitologia afro-brasileira Biografia Conhecimento Religio Educao.

  • ABSTRACT

    The subject of this dissertation is the study of tan, afro-brazilians mythical narratives. We put

    in evidence a knowledge, historically, cast aside. This is why it became unknown, there were

    forgotten other kinds of conceiving the world, knowledge, life. Mythical narratives, their

    characters and sceneries, were taken here as world-reading (Paulo Freire), as epistemic

    possibility. The inquiry was developed throughout the literary works of ialorix and writer

    Me Beata de Yemonj, raised in the background of the oral practices of candombl, an afro-

    brasilian cult, from where these narratives arise. Part of it were published in two books:

    Caroo de dend: a sabedoria dos terreiros, como ialorixs e babalorixs passam

    conhecimentos a seus filhos (1997) and Histrias que minha av contava (2004). What takes

    a priestess to publish a wisdom learned on the everyday life of communities (terreiros) in

    which she lived? How is the insertion of Me Beata de Yemonj writings in the field of Afro-

    Brazilian Literature? And last but not least: is it possible a dialogue between Afro-Brazilian

    Mythology and Education? The main questions of this inquiry were these. Their registries and

    analyses have the following organization: In the first chapter, Me Beata de Yemonjs

    formation in Afro-Brazillian oral religious tradition, candombl, was scented out. There were

    considered her encounter with writing and reading practices, fable crossings, interweaved

    between her short stories and the ones she has read. Her creative experience of the myths and

    in the myths on everyday life, as well as the indivisibility between the ialorix, the writer and

    the political activist. The second chapter, expresses the voices of those who have taken part in

    the process of edition and publishing of her books, as well as the voices of the ones who

    recognized in the short stories not only a religious, but a literary value. Afro-Brazilian

    Literature. Writings full of oral experiences. The third chapter proposes a comprehension

    about knowledge and education conceptions brought about by the myths. Epistemic character.

    Modes of knowing that, like trails, can contribute to create new meanings in formative spaces

    like schools.

    Key-words: Afro-Brazilian Mythology Biography Knowledge Religion Education.

  • Ofereo-te ExuO eb das minhas palavras

    Neste pad que te consagra

    Abdias Nascimento

    H relao manifesta ou subterrnea entre o psiquismo,a afetividade, a magia, o mito, a religio.

    Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entreHomo faber, Homo ludens, Homo sapiens e Homo demens.

    Edgar Morin

  • Lista de Ilustraes

    1. Almanaque Biotnico Fontoura.........................................................

    2. Entre(vistas) no Ile Omiojuaro ..........................................................

    3. A vegetao no Ile Omiojuaro...........................................................

    4. Presente de Yemonj ........................................................................

    5. Casa do Caboclo................................................................................

    6. Olga do Alaketu................................................................................

    7. Brinquedo de Infncia I ...................................................................

    8. Brinquedo de Infncia II ...................................................................

    9. Confeco dos Brinquedos I...............................................................

    10. Confeco dos Brinquedos II .............................................................

    11. Caroo de dend, o livro ....................................................................

    12. Histrias que minha av contava.......................................................

    13. Orixs Caryb .................................................................................

    32 e 85

    55

    60 e 61

    66

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    69

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    74

    74

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    90 e 91

    95

    112

  • SUMRIO

    INTRODUO

    1. BEATA, MENINA E MULHER: TECENDO-SE NA ESCUTA, NA LEITURA ENA ESCRITA DAS RODAS E REDES ANCESTRAIS

    1.1 Do pssaro de ferro ao Caroo de Dend. ..........................................................

    1.1.1 Infncia em Iguape: ouvindo estrias e catando lenha.......................

    1.1.2 Mente-indo: o pssaro de ferro.......................................................

    1.1.3 Seis bolos para a mente no ir e a seduo da escrita e da leitura..

    1.1.4 O tempo! De menina a mulher: lendo, escrevendo, (re)criando. ......

    1.1.5 O Caroo de dend e os quatro cantos do mundo: outras viagens.....

    1.2 Fico e realidade ou quando no existem fronteiras ........................................

    1.3 O mtico na vida e/ou a vida do mtico. .............................................................

    1.4 Ialorix de Candombl e escritora: dilogos e cumplicidades............................

    1.4.1 O Il Omiojuaro em movimento: nem tudo festa............................

    1.4.2 Gestao Inicitica: uma autobiografia sonhada. ..........................

    2. VOZES NA ESCRITA: RESSONNCIA DA/NA LITERATURA DE MEBEATA DE YEMONJ

    2.1 falando que vem de longe... ............................................................................

    2.2 Literatura Afro-brasileira: oratura e afirmao de vida social............................

    2.3 O acervo ora(l)iterrio de Me Beata ingressa em outras rodas e redes

    formativas. ..................................................................................................................

    3. PELOS FIOS DE CONTOS: MITOLOGIA AFRO-BRASILEIRA EEDUCAO

    3.1 Exu, as mulheres e os modos de ensinar e aprender............................................

    3.2 Oxal e Exu: o velho e o novo nas prticas educativas.......................................

    3.3 Exu: integrar o inslito ou decretar a morte do dilogo......................................

    3.4 Iemanj: sabedoria e limite nas relaes de aprendizagem................................

    CONSIDERAES FINAIS

    FONTES DE PESQUISA

    GLOSSRIO

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  • 1. INTRODUO

    A imaginao uma fora de que no se pode abrir mo,pois dinamiza o esprito cientfico inventivo .

    Hilton Japiassu

    H sete anos descobri os tan, como se chamam os contos mticos do grupo jeje-

    nag, nas narrativas compiladas por Reginaldo Prandi em seu Mitologia dos Orixs (2001).

    Nesta compilao,1 o autor rene 401 narrativas relacionadas s divindades do panteo

    africano que chegou ao Brasil com o movimento da dispora africana2. Desde o primeiro

    contato com os registros escritos das narrativas mticas, passei a compreender que estava

    diante de um rico acervo com mltiplas possibilidades de acesso e abordagens.

    A graduao em Histria e as especializaes no campo da Educao produziram em

    mim inquietaes sobre as relaes de poder institudas no interior das escolas que tendem a

    desqualificar concepes de mundo diferentes das hegemnicas3. Nosso exerccio o de

    refletir os contedos ticos e estticos que emanam dessas narrativas e como, a partir deles,

    poderamos repensar prticas educativas presentes em espaos formativos como escolas.

    Deste modo privilegiei a temtica cultural afro-brasileira ou, podemos dizer, a

    insero da cultura afro-brasileira no campo da pesquisa educacional. Tratei aqui, ento, da

    investigao da mitologia afro-brasileira por meio da transmisso oral e da sua escrita.

    1 O autor apresenta nesse trabalho fontes que remontam ao sculo XIX e XX. Mais a frente retornaremos a estareferncia.2 Entendemos dispora como o deslocamento compulsrio dos africanos durante o comrcio de escravos para asAmricas entre os sculos XV e XIX.3 Como instituio, a escola foi, no Brasil, historicamente marcada pelo projeto civilizatrio imposto peloprocesso de colonizao judaico-crist desde o sculo XVI, revitalizando-se, progressivamente, at o sculoXIX, com legislaes que dificultavam o acesso do negro em suas dependncias, como verificamos naapresentao das Diretrizes Curriculares para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino deHistria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, organizadas pela Secretaria Especial de Polticas de Promoo deIgualdade Racial/SEPPIR: O Brasil, Colnia, Imprio e Repblica, teve historicamente, no aspecto legal, umapostura ativa e permissiva diante da discriminao e do racismo que atinge a populao afro-descendentebrasileira at hoje. O Decreto n. 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia que nas escolas pblicas do pasno seriam admitidos escravos, e a previso de instruo para adultos negros dependia da disponibilidade deprofessores. O Decreto n. 7.031 A, de 6 de setembro de 1878, estabelecia que os negros s podiam estudar noperodo noturno e diversas estratgias foram montadas no sentido de impedir o acesso pleno dessa populao aosbancos escolares." P.7, 2004. No sculo XX consolidaram-se a organizao de movimentos, nem sempreconsensuais, pela incluso do negro em atividades sociais, econmicas e polticas, que alcanaram vriasconquistas legais de carter afirmativo. No que diz respeito Educao, somente no sculo XXI essesmovimentos viram contempladas a obrigatoriedade do Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira com a Lei10.639 de 9 de janeiro de 2003, hoje alterada sob a lei 11.645/08 que inclui a obrigatoriedade do ensino deculturas indgenas.

  • 12

    O debate acerca da incluso de afro-descendentes e da cultura afro-brasileira em

    espaos institucionais de ensino nunca esteve to aflorado. As recentes conquistas relativas

    poltica de cotas para negros e afro-descendentes em universidades pblicas e a

    obrigatoriedade do ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educao

    Bsica, pblica e privada, aguaram as discusses. As mesmas esto longe de serem

    consensuais, mas ampliaram significativamente a visibilidade da questo tnico-racial, no

    Brasil, contribuindo para desconstruir a idia de democracia racial4.

    Nas universidades, se consolidam projetos de pesquisa relacionados com a temtica

    da incluso de negros, afro-descendentes e culturas afro-brasileiras. Este sem dvida um

    momento fecundo para a reviso, a ressignificao dos modos de como praticar, fazer e

    escrever a histria da luta por uma visibilidade que redimensione a complexa e decisiva

    participao da populao negra na histria do pas. Participao que no dispensaria nenhum

    de seus habituais adjetivos: econmica, poltica, cultural, enfim, social. Adjetivos

    entrelaados, construdos em rede, com a participao de todos os brasileiros, de todas as

    brasileiras. Negros/as e no-negros/as. O caso que, durante sculos, se naturalizou um

    discurso que insistiu em ocultar e dificultar a participao ativa do negro e de seus

    descendentes. Mais grave ainda: circunscreveu a histria do negro nos limites da escravido e

    folclorizou suas culturas atribuindo-lhes sentido extico. Talvez, aqui, esteja o mais

    refinado projeto/processo de desqualificao de grupos tnicos de procedncia africana que

    chegaram ao Brasil com o movimento da dispora. Geraes de afro-descendentes

    aprenderam e, ainda aprendem sobre si mesmos, desde as formas mais sutis at as mais

    evidentes, que as culturas de origem africana so inferiores, desprovidas de sentido.

    Del Priori e Venncio (2004) nos ajudam a compreender que todo investimento na

    direo de diminuir nossa ignorncia sobre nossos ancestrais pode contribuir, efetivamente,

    para se ampliar as possibilidades da (re)construo de identidades individuais e coletivas:

    (...) a autoconscincia do pas em relao a seu passado est por se fazer.Nela estaria uma das chaves para reconstruir a imagem e a visibilidade degrupos inteiros cujos descendentes ainda desconhecem sua prpria histria.Grupos cujos ancestrais, ainda hoje, esto em busca de um lugar em nossamemria histrica. (DEL PRIORE & VENNCIO, 2004, p.07)

    4 A implantao da poltica de cotas nas universidades foi, de uma maneira geral, votada em ConselhosUniversitrios com implementao por meio de lei, resoluo ou editais: UERJ/UENF, Lei N. 4.151/2003;UNB, Resoluo N. 38/2003; UNEB, Resoluo N. 196/2002; UEA, Lei N. 2894/2004; UFAL, Edital N.01/2004; UFPR, Resoluo N. 37/2004; UNIFESP, Resoluo, N. 23/2004; UEL Resoluo N. 78/2004;UEMS, Resoluo N. 38/2003; UEMG, Lei N. 15.259/2004; UFBA, Resoluo N. 01/2004; UNIMONTES,Lei N. 15.259/2004. Maiores informaes em

  • 13

    Hoje estamos comprometidos com a tarefa de contribuir para a alterao qualitativa

    desse quadro, recolocando questes concernentes s culturas afro-brasileiras, precisamente

    sobre as narrativas mticas em suas dimenses oral e escrita5. Acreditamos que o olhar, o

    ouvir, o falar e, de uma vez: sentir a pulsao dos saberes contidos na mitologia afro-brasileira

    poder nos fazer desaprender o que foi ensinado para a instituio de desigualdades.

    Ao falarmos de mitologia afro-brasileira, tratamos de algo que antecede a sua

    apresentao sob forma escrita, de algo em movimento nas casas de cultos religiosos de

    matriz africana. Falamos, especialmente, neste caso, de Candombl. Portanto, de liturgia.

    Pontuamos algo que recriado constantemente pela oralidade nas relaes pessoalizadas nas

    comunidades-terreiro. E, ainda, marcamos algo que se apresenta como literatura a um pblico

    no necessariamente adepto de candombl. Logo percebemos que estvamos diante de uma

    investigao transdisciplinar: Educao, Antropologia, Religio, Histria, Literatura. O que

    tornou mais complexo o nosso fazer.

    Os contedos expressos nessas narrativas e a forma como circulam nas comunidades-

    terreiro e nas publicaes correlatas, podem oferecer pistas, sobre certa epistemologia.

    Forma de conceber e construir conhecimentos. Foi com Santos (1998) que continuamos a

    nossa reflexo. Suas proposies sobre a desdogmatizao da cincia e da relao entre

    cincia e senso comum ratificaram, e muito, nossa percepo de que a cincia moderna,

    criao ocidental-burguesa uma das possveis formas de representao e explicao da

    realidade e que muito tem contribudo para a compreenso dos fenmenos humanos. Mas que

    outros nveis de conhecimento ou de representao da realidade, no precisam estar em

    oposio mesma, mas interagindo, intercambiando. No caso do senso comum, do

    conhecimento comum e da cincia no caberia estabelecer uma oposio como aponta Santos

    (1998), dizendo: ... a oposio cincia/senso comum no pode equivaler a uma oposio

    luz/trevas, no s porque, se o os preconceitos so as trevas, a cincia como hoje se reconhece

    [...] nunca se livra totalmente deles...6. Mediante as contradies que permeiam a cincia, a

    5 Esses registros vm sendo produzidos por diversos atores sociais. Desde adeptos dos cultos afro-brasileiros,muitas vezes babalorixs e ialorixs, at intelectuais das mais variadas formaes, artistas e escritores. O contatocom esse acervo foi possibilitando uma reflexo sobre a fora dessas tradies que insistem, potencialmente, emse tornarem visveis, atraindo um sem nmero de pesquisadores com interesses, focos e pblicos diversos, mastodos, de alguma forma, ativando esses saberes afirmativamente.6 SANTOS, Boaventura de Souza. Da dogmatizao a desdogmatizao da Cincia Moderna & Cincia eSenso Comum In: Introduo a uma Cincia Ps-Moderna. Portugal: edies Afrontamentos, 1998.

  • 14

    proposta do autor, de uma hermenutica epistemolgica poder ser um caminho de interao

    afirmativa entre epistemes distintas ou conhecimentos distintos, sem excluses:

    A hermenutica da epistemologia o modo mais adequado a propiciar atransio para uma epistemologia pragmtica. uma hermenutica crtica esociolgica porque privilegia, por contrapeso, a reflexo sobre a verdadesocial da cincia moderna como meio de questionar um conceito de verdadesocial demasiado estreito, obcecado pela sua organizao metdica e pelasua certeza e pouco ou nada sensvel desorganizao e incerteza por eleprovocadas na sociedade e nos indivduos.(SANTOS, 1998, p. 49).

    Ao entrarmos em contato com este texto fomos imediatamente levados a estabelecer

    uma relao com nossa proposta de trabalho. No nosso caso, estamos nos propondo (re)pensar

    prticas educativas ancoradas em modelos de cientificidade dogmticos, que engendram

    modelos que engessam o pensar, o fazer, o sentir. Tomamos o conhecimento mtico afro-

    brasileiro como uma possibilidade epistmica. No vemos inconvenientes em se levantar

    questes a partir do contato com uma tradio oral cheia de imagens, ritmos, cores, sons e

    cheiros. Nem mesmo, em pensar na hiptese de se buscar, nesse tipo de sabedoria,

    contribuies para pensar o aqui e o agora. O presente da Educao est cheio de lacunas e

    perplexidades ancoradas nas mais variadas tradies cientficas. E nisto no h problemas.

    No deve ser mesmo objetivo da cincia, encontrar respostas definitivas para qualquer

    problema. Todavia, incluir outras tradies no debate, de como repensar processos educativos,

    prticas educativas que contribuam para humanizar homens e mulheres, em tempos de crise e

    guerras de intolerncia, tem, sim, o seu valor. O mesmo autor, Santos (2002), em artigo

    intitulado O fim das descobertas imperiais7, afirma que a produo da inferioridade passou

    pela criao de vrias estratgias:

    (...) a guerra, a escravatura, o genocdio, o racismo, a desqualificao, atransformao do outro em objeto ou recurso natural e uma vasta sucessode mecanismos de imposio econmica (...), de imposio poltica (...) e deimposio cultural (...). (SANTOS, 2002, p.24).

    Este ltimo vetor aponta o epistemicdio como estratgia de produo de

    inferioridade. Entendemos por epistemicdio a subjugao, a invalidao de modos de

    produo de conhecimento e de representao da realidade que pertenciam s populaes

    7 SANTOS, Boaventura de Souza. O fim das descobertas imperiais In: OLIVEIRA, Ins Barbosa de &SGARB, Paulo (orgs.) Redes Culturais, diversidades e educao. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

  • 15

    que foram submetidas, entre elas as africanas. Embora a expresso remeta para o extermnio

    radical, contra-estratgias foram criadas. E a sobrevivncia das epistemologias foi

    garantida. No silncio residia a pujana dos conhecimentos de naes inteiras recriando-as,

    conservando-as e transformando-as.

    Fomos nos aproximamos de autores que vm nos alertando para a construo de um

    novo paradigma sociocultural que valorize a complexidade humana, afirmando a legitimidade

    da pluralidade cultural existente no planeta; numa perspectiva de trocas, que possam nos

    ensinar a conviver com as diferenas, acreditando que muito mais que ameaas, elas

    significam uma maior sustentabilidade dos seres no planeta, no mundo; acompanhemos

    Morin:

    A idia do mundo europeu e mais largamente ocidental era a de que toda arazo, sabedoria e verdade estavam concentradas na civilizao ocidental. Asoutras naes e civilizaes eram atrasadas e infantis. Nelas no havia asabedoria real, mas unicamente mitologia e, ainda valorada comosuperstio. Por essa razo havia um desprezo total. As coisas comeavam amudar no campo da antropologia que no se fazia a pergunta: como estespequenos infantis podiam ter uma arte para produzir arcos, flechas,instrumentos, construo de casa, conhecimentos de estratgia? Cadacivilizao possui um pensamento racional, emprico, tcnico e, tambm, umsaber simblico, mitolgico e mgico. Em cada civilizao assim, aindaque muitos pensem que no, que a razo, a cincia, a tcnica no somitolgicas. Com efeito, atribuir tcnica, cincia a misso providencialde soluo de todos os problemas humanos esta era a idia at a metadedeste sculo era uma idia mitolgica. Havia uma mitologia do progressocomo uma lei da histria que, automaticamente, iria produzir o melhor ecada vez melhor. Hoje sabemos que no assim. O milnio que chega esttotalmente embarcado na incerteza sobre o porvir. Vemos, ento, que haviauma mitologia, a mitologia do progresso e tudo est muito complexo nessesentido. Porm, penso que a crise da civilizao ocidental vai ajudar aentender melhor que cada civilizao possui os seus valores e muitoimportante que se faa o intercmbio dos valores, o que o poeta negro dasAntilhas francofnica, Aim Csaire, chamava de le rendez-vous, (oencontro, o compromisso) do dar e do receber, ao mesmo tempo. (MORIN,2000, p. 27-28)

    Essa exposio inicial importante para esclarecer que estamos tomando os mitos

    africanos como constructo social, legados de culturas no necessariamente grafas, mas

    predominantemente orais. A matriz oral, portanto dinmica e o carter religioso, litrgicos,

    dos mitos no esvaziam a possibilidade de tom-los como objetos de pesquisa. So eles a base

    das prticas-educativas ativadas nas comunidades-terreiro. A observao dessas prticas e o

  • 16

    consumo literrio dos mitos vo nos colocar diante de questes nada inditas, mas tomadas de

    outro modo8.

    So vrios os trabalhos publicados que agrupam mitos ou os citam, por autores de

    variadas formaes: acadmicas ou no, brasileiros ou no, adeptos ou no de religies de

    matriz africana9. Por termos o interesse em investigar o trnsito oral/escrito na produo das

    narrativas mticas afro-brasileira, decidimos que nossa investigao deveria incluir textos

    escritos, por algum que, (in)formado na presencialidade das comunidades-terreiro, onde a

    transmisso oral predominante, compreendesse a escrita e a publicao como mais um e

    eficaz instrumento para a manuteno dessa mesma tradio.

    No processo de pesquisa bibliogrfica chegamos s publicaes de Beatriz Moreira

    Costa, a Me Beata de Yemonj, ialorix ativista na luta para atribuir visibilidade a sua

    tradio, bem como a seu povo. Cardoso, na Introduo de Caroo de Dend relata:

    A publicao dos contos de Me Beata significa a remoo dessas histriasdo limite dos terreiros e sua insero num contexto ainda mais amplo dacultura brasileira. Esse processo implica uma traduo dos contos de umalinguagem falada para uma narrativa escrita, uma modificao no prprioato de contar. (CARDOSO apud YEMONJ, 2006, p.11-12)

    Na leitura dos contos de Me Beata de Yemonj estvamos diante de elementos

    significativos: viva e atuante, Me Beata cruza memrias baianas e fluminenses, uma s e

    muitas... Um dos resultados de sua ao no mundo a torna, tambm, um dos porta-vozes de

    sua tradio. Em Caroo de Dend: a sabedoria dos terreiros e Histrias que minha av

    contava,10 a ialorix-escritora rene um conjunto expressivo de textos. So, como aparece no

    subttulo de Caroo de Dend, indicadores de como ialorixs e babalorixs passam

    conhecimentos a seus filhos. So eles as fontes-objeto dessa pesquisa, que tem duas

    intenes explcitas. A primeira compreender como se deu, para Me Beata de Yemonj, o

    processo criativo de apropriao, contao e escritura dos contos mticos. A segunda inteno

    garimpar nas prticas educativas institudas a partir das narrativas mticas, contribuies na

    e para a Educao. Momento de perguntar aos mitos: o que eles falam? Proposio de

    compreenso transdisciplinar dos contedos mticos, considerando suas complexidades.

    8 Como em Eliade estamos compreendendo o mito como uma realidade cultural extremamente complexa, quepode ser abordada e interpretada atravs de perspectivas mltiplas e complementares. (ELIADE, 1986, p.11)9 Ver PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixs. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. No Prlogo,apresenta-nos fontes que vo desde Nina Rodrigues (1898) a Me Beata de Yemonj (1997).10 YEMONJ, Me Beata de. Caroo de Dend: a sabedoria dos terreiros. Como ialorixs e babalorixspassam conhecimento a seus filhos. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2006.COSTA, Beatriz Moreira Costa. Histrias que minha av contava. So Paulo: Terceira Margem: CESA Sociedade Cientfica de Estudos da Arte, 2004.

  • 17

    Uma comunidade-terreiro tem sua frente uma sacerdotisa ou sacerdote que traduz

    em organizao e dinmica a tradio qual pertence; realizando nos processos de iniciao

    e/ou em cerimnias pblicas, entre outros momentos, a transmisso de saberes que so

    necessrios para a manuteno da comunidade. Vrios deles passaram a transmitir seus

    saberes, utilizando-se da escrita, publicando livros, disponibilizando-os a um pblico mais

    amplo e no necessariamente adepto de culto aos orixs e ancestrais. Com as publicaes,

    essa sabedoria sai dos limites e do dinamismo do terreiro e ganha status de literatura. Obras

    literrias publicadas e consumidas de formas variadas para os mais diversos fins.

    Nos terreiros, os mesmos so transmitidos numa relao presencial, na qual os

    elementos sonoros, rtmicos, visuais, plsticos, degustativos e olfativos constituem a dinmica

    de ensino-aprendizagem. O que leva um sacerdote a escrever e publicar conhecimentos que

    construiu no contexto presencial de sua tradio? Que apropriaes so possveis a partir do

    contato com esses saberes?

    No percurso da investigao estabelecemos contato com a ialorix-escritora,

    diretamente, visitando sua comunidade-terreiro, bem como com seus editores, com os

    prefaciadores e apresentadores dos livros.

    Estivemos no Ile Omiojuaro em doze meses de trabalho de campo, doze vezes. Os

    dois primeiros encontros agendados logo foram nos colocando limites inesperados. No

    primeiro, nos recebeu em casa recuperando-se de um atendimento mdico. Contato rpido,

    mas profundamente acolhedor. No segundo, adoentada ainda, Me Beata no pode nos

    atender. Perodo de espera que nos conduziu a outras possibilidades. Visitamos e consultamos

    a Biblioteca Beatriz Moreira Costa, acervo construdo e organizado pela CRIOLA11, ONG da

    qual a ialorix Presidente de Honra, tendo seu nome civil na biblioteca. Outro acervo

    consultado foi o do Portal Literafro12, acervo disponvel em meio eletrnico. Recuperada,

    voltou a nos sinalizar ateno e interesse na condio de investigada, nos autorizando a dar

    continuidade pesquisa no Il sempre que oportuno. Assim, realizamos mais onze visitas, das

    quais estivemos diretamente com ela em quatro encontros: dois com registros fotogrficos e

    todos com gravao de udio. Em trs encontros estivemos com Adailton dOgum, seu filho

    carnal e Baba Egbe do Il Omiojuaro. Destes, um numa conversa informal, outro com

    gravao de udio e registros fotogrficos e um ltimo para consultar o acervo bibliogrfico

    11 CRIOLA uma instituio da sociedade civil, sem fins lucrativos, fundada em 2 de setembro e 1992. conduzida por mulheres negras de diferentes formaes, voltada para o trabalho com mulheres, adolescentes emeninas negras basicamente no Rio de Janeiro. Disponvel em Acessoem 09/08/200712 Disponvel em Acesso em 09/08/2007

  • 18

    do prprio Il. Os demais contatos deram-se de forma indireta em celebraes religiosas na

    Casa: um Olubaj, uma Festa dYemonj, uma Festa dOxssi, uma Festa de Caboclo

    (cerimnias abertas) e um Feijo de Oxssi (cerimnia interna). Nestes, pudemos observar os

    tan em movimento nos corpos dos devotos adultos e crianas nos alimentos servidos, nos

    cnticos.

    Desde os dois primeiros encontros, impedidos pelos cuidados com a sade da

    ialorix, percebemos que tudo ali, desde a casa, o terreiro, o barraco indicavam elementos

    essenciais para uma compreenso dos contos mticos por ela narrados. Abundante cultura

    material. Entre a casa e o barraco, rvores sagradas, casas de orixs e encantados, a fonte de

    Iemanj, um escritrio, banheiro. No barraco: o mobilirio de uma simplicidade e fora

    surpreendentes. No h objeto naquele espao que no tenha significado para aquela

    comunidade. Chifres de bfalo referncia Oy, Iab Ians, dona do ori de Olga do

    Alaketu, me de santo de Me Beata funcionam como vasos de onde pendem pelas paredes,

    flores e folhagens; bandeirinhas nas cores dos orixs homenageados cobrem o teto. Outra

    soluo observada foi preparada para o dia de Festa de Yemonj: tecidos suspensos com

    transparncias de pequenos peixes fazendo aluso ao domnio da Iab. Vasos de planta,

    mscaras africanas, fotografias, condecoraes, diplomas, notcias de jornal. Instrumentos

    (atabaques, cabaas, agogs). Circulao de devotos, aromas... Espao construdo calcado na

    oralidade, com licena para a incluso de um escritrio, o que j evidencia uma

    especificidade desta casa de Candombl. H ali um interesse no estudo, na participao e

    representao daquela cultura em outros espaos e materialidades: instituies e organizaes

    que tm como luta a visibilidade e o reconhecimento das prticas culturais afro-brasileiras e,

    publicaes escritas, imagticas ou flmicas. O que fez nossos encontros flurem sem

    resistncias por parte dos entrevistados: Zeca Ligiro (Filho do Il Omiojuaro e Doutor em

    Performances Studies Direo Teatral prefaciador de Caroo de dend) e Regina dExu

    (Filha do Il Omiojuaro e Membro da CRIOLA), alm, evidentemente, de Me Beata e seu

    filho Adailton. Ouvimos, ainda, um relato espontneo de uma menina da casa que se

    aproximou curiosa de nossa presena. Trouxe (cheia de indignao!) uma informao j

    conhecida, mas que, ao ser enunciada por ela, corroborou em ns que, mesmo no havendo

    ineditismo nos enunciados, importante que se os faam, com propriedade e potncia.

    Por meio de correio eletrnico estivemos com o Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte,

    um dos organizadores do Portal Literafro/UFMG, quando no processo de pesquisa

    bibliogrfica encontramos um artigo produzido sobre as narrativas de Me Beata escrito por

  • 19

    uma de suas orientandas13. Na ocasio, ele indicou-nos Feitios de viver: memrias de

    descendentes de escravos14, uma tese de doutorado na qual havia um depoimento de nossa

    interlocutora. Outros contatos foram feitos da mesma forma: Monique Augras (psicloga e

    professora), autora do texto da contracapa, e Vnia Cardoso (antroploga e ekedi do Il

    Omiojuaro), organizadora dos contos de Caroo de dend, Dilma de Melo Silva e Teresinha

    Bernardo, apresentadora e prefaciadora, respectivamente, de Histrias que minha av

    contava, deixaram, tambm, as suas contribuies e esclarecimentos em depoimentos e

    indicaes de leituras relacionadas com o objeto da pesquisa. Com Cristina Warth,

    representante da Pallas Editora, foi realizado um encontro. Oportunidade em que conhecemos

    uma matria de O Globo, Caderno Ela, de maro de 1997 com o ttulo A literata do

    candombl dando destaque publicao de Caroo de dend.

    Me Beata de Yemonj verbete em Lopes (2007), Dicionrio literrio Afro-

    Brasileiro e Lopes (2004), Enciclopdia Brasileira da Dispora Africana:

    BEATA DE IEMANJ, ME. Nome pelo qual se fez conhecida BeatrizMoreira Costa, ialorix nascida em 1931, em Salvador, BA e radicada emNova Iguau, RJ. Em 1997, lanou o livro Caroo de Dend: a sabedoria dosterreiros, contento recriaes de relatos da mitologia dos orixs jeje-nags,alguns deles oriundos da tradio oracular de If, e pelo menos umabordando sua prpria histria de vida. (LOPES, 2007, p.30-31)

    Tambm est includa no ndice de Autores do Portal Literafro, organizado pelos

    professores Eduardo de Assis Duarte, j mencionado, e Jacyntho Jos Lins Brando. O texto

    do ndice destaca uma biografia da autora e a relao de livros por ela publicados; dessa

    vez, com o livro Histrias que minha av contava.

    O conceito de literatura afro-brasileira com o qual estamos trabalhando refere-se

    quele que tem orientado os trabalhos do Portal Literafro15. Neste, o conceito de literatura

    afro-brasileira aparece como:um conceito em construo, processo de devir. Alm de segmento oulinhagem, componente de amplo encadeamento discursivo. Ao mesmotempo dentro e fora da Literatura Brasileira. Constitui-se a partir de textosque apresentam temas, autores, linguagens, mas sobretudo, um ponto devista culturalmente identificado afro-descendncia, com fim e comeo. Suapresena implica redirecionamentos recepcionais e suplementos de sentido histria literria cannica.(Acesso em: agosto 2007)

    13 PINHEIRO, Giovanna Soalheiro. As Heranas Africanas na narrativa de Me Beata de Yemonj: mitologia,autoria, oralidade. Portal Literafro. Disponvel em 14 NASCIMENTO, Giselda Melo do. Feitios de viver: memrias de descendentes de escravos. Londrina: Eduel,2006.15 Disponvel em

  • 20

    Entretanto, as expresses oratura e oralitura16 aparecero adjetivando certa escrita

    literria, na qual a oralidade tradicional afro-brasileira produz fortes ranhuras, no caso da

    primeira expresso, e, no caso da segunda, quando o prprio corpo superfcie de uma escrita

    que se revela desde as cicatrizes rituais at a indumentria e adereos dos/nos corpos em

    movimento, processo que acontece, igualmente, ancorado na oralidade.

    Um nome sugerido por Me Beata, como algum que pudesse fazer um depoimento

    enriquecedor acerca da literatura que ela produz, foi o do professor e escritor Muniz Sodr,

    com quem fizemos um contato, de fato, bastante proveitoso. Neste contato tambm nos

    deparamos com a expresso oratura. Neste caso, para nomear o tipo de literatura produzida

    pela autora investigada. Trataremos dessa questo mais detidamente no captulo dois.

    Com gravaes de udio, num total de quase oito horas, parte considervel de nossas

    fontes so orais. As entrevistas e gravaes nos colocaram frente necessidade de uma

    reflexo sobre as premissas metodolgicas da Histria Oral. Os depoentes so sujeitos e no

    objetos da pesquisa, portanto suas presenas so fundamentais no processo de construo do

    conhecimento a que se prope a pesquisa. Segundo Caldas (1999):

    O mtodo no lgico, dogmtico, funcional ou aplicvel geral ouuniversalmente como sistema mecnico, tcnico ou cientfico, masperspectiva polifnica de dilogo, apreenso, compreenso, reconstruo,imaginao, criao e destruio de realidades, polticas, experincias, falase vidas. acionado por dvidas, questionamentos, instigaes, incompletudes,indignaes, paixes, embates de conscincias, dilogos e, principalmente,necessidades vivas do presente. o prprio presente buscando se entender ese superar: somos ns mesmos inscritos nessa luta. No o mtodo sistemalgico, estrutura previamente organizada para pesquisar um objeto de estudo( bom no esquecer que em Histria Oral no h um objeto de estudo, massujeitos em dilogo). (CALDAS, 1999, p.70-71)

    O objeto os tan e os sujeitos dessa pesquisa encontravam-se na perspectiva da

    oralidade. Notadamente com Me Beata e os depoentes do Il Omiojuaro, testemunhamos o

    quanto os depoimentos recriavam-se a partir mesmo da tradio oral religiosa qual

    pertencem, os prprios tan. Constitudo este arquivo, deu-se um processo intenso de

    transcrio, seleo e arranjo dos falares. Processo de interpretao, de leitura do que se

    ouviu. Hora, ento, de continuar o dilogo com outros sujeitos.

    16 Ver MARTINS, Leda Maria. A Oralitura da Memria In: FONSECA, Maria Nazar Soares (Org.) Brasilafro-brasileiro. Belo Horizonte: Autntica, 2006.

  • 21

    Isto posto, cabe acrescentar que os aportes tericos aqui operados so, alm daqueles

    j relacionados at aqui, os que vo nos propiciar compreender as narrativas mticas em suas

    complexidades: narrativas aparentemente fechadas que possibilitam acessos e enfoques

    diversos. No devemos esquecer, entretanto, que uma refinada prtica de oralidade fez-se

    prtica social e poltica de auto-afirmao de valores e crenas para um grupo significativo de

    brasileiros/as que no dispensaram as tradies que lhes foram legadas por seus ancestrais.

    Neste sentido, no se inclinaram razo e a cultura hegemnicas, nem quando foram

    perseguidos por serem consideradas, suas prticas, ilegais17.

    Quando voltamos discusso inicial acerca de paradigmas dogmticos de cincia e

    cientificidade nos deparamos com a valorizao da escrita acompanhando a aliana

    cincia/tecnologia. A escrita impressa, ela mesma, uma tecnologia. Processo que se fortalece

    a partir do sculo XVII. As vozes tendero a ser silenciadas e o atributo de verdade e

    legitimidade migra da palavra falada para a palavra escrita. Vidal, refletindo com Certau,

    compreende esse momento como escriturrio, vejamos:

    ... o momento a partir do sculo XVII, em que a escrita, alm de ser umaprtica de poder e uma ferramenta dos saberes modernos constitui-se,tambm, em um novo modo de produo que modifica e articulasimbolicamente a sociedade ocidental. Funda uma nova economia que seaparta do mundo da vozes e da tradio, destituindo o valor daoralidade.(VIDAL, 2005, p.272)

    A despeito das estratgias de silenciamento, a oralidade destituda de valor que

    nos interessou. Os arquivos que guardam essas vozes tm chaves. Manej-las exigiu de ns

    desenvolvermos observao atenta ao peso, aos contornos e s fechaduras encontradas no

    processo de investigao. As narrativas vinculadas tradio oral afro-brasileira produzidas

    por Me Beata de Yemonj ao mesmo tempo em que so objeto e fonte de nossa pesquisa,

    traduzem-se em prtica social. Escrev-la, isto , separar, reunir, transformar em documento

    este objeto que est disposto de outra maneira foi um dos grandes desafios desse trabalho.

    Mesmo por que no nos interessava criar uma oposio escrita x oralidade, mas tom-las

    como prticas intercambiveis, sobretudo no caso que pesquisamos.

    Encontramos abrigo em tericos nossas chaves vindos de formaes e

    produes distintas, mas que contriburam para alargar a compreenso de fenmenos sociais

    complexos como os que se inserem no campo da produo e circulao de culturas. Quando

    17 O candombl foi alvo de perseguio durante a dcada de 30 do sculo passado, sobretudo no perododiscricionrio do governo Vargas, conhecido como Estado Novo.

  • 22

    pensamos que, por meio dessas narrativas, uma cultura no hegemnica pode, pela

    transmisso oral, processo refinado e complexo, manter-se recriando-se, no foi possvel

    deixar de pensar com Gramsci o par conceitual hegemonia/contra-hegemonia. Na hegemonia,

    um sistema orgnico de manuteno do status quo de um determinado grupo, ou melhor, da

    legitimao poltica de um discurso interessado. Na contra-hegemonia, outros arranjos e

    meios de circulao discursivos que so forjados e permanecem. As tradies orais de

    matrizes africanas e afro-brasileiras se incluem nessa categoria, especialmente durante e aps

    a escravido. Uma vez que em frica, durante o perodo em que o comrcio de escravos foi

    realizado, a tradies orais a que nos referimos constitua-se hegemonicamente, demarcando

    lideranas religiosas e polticas. Portanto, o carter contra-hegemnico dessas tradies,

    constituiu-se no processo de escravizao do negro africano na Amrica.

    Os tan so produzidos nas prticas culturais religiosas afro-brasileiras e simbolizam-

    se em linguagens18 So narrativas memorveis. Mikhail Bakhtin e Walter Benjamin foram

    tericos importantes em nosso investimento reflexivo.

    Os conceitos de narrao, de experincia bruta, Erfahrung, e experincia vivida,

    Erlebnis produzidos por Benjamin, no bojo de suas crticas modernidade, ampliaram nossa

    compreenso. No que diz respeito experincia, Benjamin dedica reflexo entre o que

    possvel expressar experincia vivida (razo) e o inexprimvel experincia bruta (no-

    razo). Nessa busca, vai confrontar experincia e conscincia. Mas no apenas a experincia

    vivida que ganha uma narrativa elaborada no meio das massas civilizadas19, narrativa que

    assume uma naturalidade questionvel. Para alm dessa, seria preciso reconhecer a

    experincia bruta que conteria a autenticidade de experincia verdadeira, sua narrativa...

    nasceria da palavra potica, da relao com a natureza, o mito, a memria e atradio. Da sua crtica modernidade que, substituindo a narrao pelainformao e a informao pela sensao, provocava a atrofia progressiva daexperincia e apagava a marca do narrador, que proporciona o que viveucomo experincia queles que o escutam. (NUNES apud FARIA FILHO,2005, p.89)

    Chamou-nos a ateno dimenso que ocupa a narrativa oral, a tradio oral, o mito,

    envolvendo uma coletividade, uma comunidade em torno de um saber prtico, utilitrio. Diz

    Benjamin: Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugesto

    prtica, seja num provrbio ou numa norma de vida... Afirma, ainda, que a narrao

    18 A dana, a indumentria, as artes visuais, a msica.19 NUNES, Clarice. Walter Benjamin: os limites da razo. In. Faria Filho, Luciano M. de. Pensadores Sociais eHistria da Educao. Belo Horizonte: Autntica, 2005.

  • 23

    vinculada sabedoria oral, mistura sagrado e profano: difcil decidir se o fundo sobre o

    qual elas [as narrativas] se destacam a trama dourada de uma concepo religiosa da histria

    ou a trama colorida de uma concepo profana. Esta sabedoria foi desaparecendo com o

    advento da modernidade, comprometido com a valorizao da experincia vivida, da razo,

    daquilo que pode ser explicado, comprovado. Parece-nos ser do lugar da Erfahrung que fala e

    escreve Me Beata. Os relatos mticos, os contos nosso objeto guardam essa perspectiva

    prtica e utilitria, aconselham e integram dimenses sagradas e profanas.

    Por razes ticas procuramos desenvolver a pesquisa numa perspectiva dialgica.

    Como orienta Freitas (2003):

    Considerar a pessoa [o outro/sua produo] investigada como sujeitoimplica compreend-la como possuidora de uma voz reveladora dacapacidade de construir um conhecimento sobre sua realidade que a tornaco-participante do processo de pesquisa. Conceber, portanto, a pesquisa nascincias humanas a partir da perspectiva scio-histrica implicacompreend-la como uma relao entre sujeitos possibilitada pelalinguagem. (FREITAS, 2003, p.29)

    Dialogismo. Polifonia. Estas so categorias bakhtinianas que se relacionam

    diretamente com a questo da oralidade, da tradio oral. E tambm so categorias que nos

    orientaram do trabalho de campo para o registro/discurso. Essas categorias fundam a presena

    inalienvel do outro, fundam uma dimenso alteritria no campo da produo enunciativa.

    Esta pesquisa nesse sentido no obra de um sujeito, insistimos. No h monologia possvel.

    No ofcio de pesquisador, na observao, no olhar, tivemos a pretenso de sermos capazes de

    enunciar algo que, sendo do outro e nosso, o outro e ns pudssemos ver revelado algo novo a

    respeito de ns mesmos.

    Ao realizarmos um estudo acadmico, uma pesquisa, considerando a autoria de

    sujeitos (contador/escritor/ouvintes/leitores) na tradio mtica de matriz afro-brasileira,

    portanto de vozes, quase sempre silenciadas, (re)dimensionamos a complexidade e a

    responsabilidade deste fazer. O dilogo com essas vozes, nesta perspectiva, ganha um

    contorno interativo. No contato e na observao com os outros: oralistas, autores, orientao,

    fomos nos constituindo como pesquisadora, que ao observar depara-se com diferentes

    discursos verbais, gestuais e expressivos (FREITAS, 2003, p.33). Isto, ao mesmo tempo em

    que nos encantava, nos situava do aspecto tico, da construo do ser pesquisador, ou seja, de

    produzir um conhecimento que no asfixiasse a diversidade, as mltiplas vozes, recobrindo-

  • 24

    as, tomando-as como que espelhos que refletem apenas nossa prpria imagem, mas uma

    pesquisa que acontecesse como encontro de sujeitos.

    A organizao dos captulos acompanhou as questes que foram postas desde o

    incio.

    O primeiro, dividido em quatro sees, procurou rastrear a formao de Me Beata

    na tradio oral religiosa afro-brasileira, no candombl; seu encontro com a escrita, a leitura e

    os cruzamentos fabulativos tecidos em seus contos e nas estrias que leu; a vivncia criativa

    dos mitos no cotidiano e a indivisibilidade da ialorix-escritora-ativista poltica.

    No segundo, vamos dar voz a sujeitos que estiveram presentes nos processos de

    edio e publicao dos livros, reconhecendo nos contos um valor extenso atividade

    religiosa, um valor literrio. Literatura Afro-brasileira. Uma escrita prenhe de experincias na

    oralidade. Na tradio oral afro-brasileira. Na qual a presena do universo fabuloso garante

    um dinamismo performtico s estrias.

    O terceiro captulo apresenta-se como um exerccio interpretativo dos contos. Ou

    antes, prope compreenses, a nosso ver, possveis para suas tramas. Concepes de como se

    conhece, de como se constri conhecimento, de como se aprende e se ensina. Epistemologia

    j mencionada. Modos de conhecer que, como rastros possam nos fazer trilhar caminhos de

    ressignificao sobre prticas-educativas recorrentes em espaos formativos como escolas.

    hora, ento, de deix-los com os registros e as anlises da pesquisa.

  • 1. BEATA, MENINA E MULHER: TECENDO-SE NA ESCUTA, NA LEITURA E NA

    ESCRITA DAS RODAS E REDES ANCESTRAIS...

    Neste captulo procuramos indagar a formao de Me Beata de Yemonj: escritora20

    e ialorix. Com este objetivo, estivemos com ela em vrios encontros no Il Omiojuaro. O

    captulo est organizado em quatro sees que seguem articuladas pelos fios de seus relatos.

    Embora as sees tomem como referncia os encontros, a trama vai ser tecida com fios

    originrios de encontros diferentes. Isto , fios produzidos num encontro vo se encontrar com

    fios desvelados em outro. A atividade de campo foi nos apontando como operar com as

    informaes obtidas. Neste caso percebemos j no primeiro encontro vrios fios soltos que

    precisariam unir-se a outros que procuraramos desfiar nos encontros seguintes.

    Contudo, tivemos a inteno de explicitar, na primeira seo, as primeiras

    experincias de Me Beata com o ouvir e o contar estrias e da mesma forma, como a mesma

    apropriou-se da escrita e da leitura. Dos objetos aos contedos podemos perceber a imerso de

    nossa interlocutora num ambiente extraordinariamente rico. Ela mesma avalia sua trajetria

    atribuindo aos seus orixs, a fora que a animava a continuar, apesar de todas as adversidades.

    Na segunda seo nosso foco esteve relacionado aos processos de iniciao na

    leitura, na escrita, na religio, especialmente sua relao com Iemanj e Exu. Ento nos

    deparamos com um processo altamente refinado. Os primeiros autores lidos, suas tramas e

    personagens encontram-se com a produo de Me Beata. Na histria de vida de nossa

    interlocutora esto presentes pessoas e ambientes que aparecem nas obras ficcionais de seus

    autores/livros prediletos. Quando no so baianos e no esto ligados ao candombl

    apresentam questes profundamente mobilizadoras para Me Beata; e que as personagens

    recriadas por ela vo, muitas vezes, encarnar.

    A vivncia no mito afro-brasileiro como modo de superao, de diverso, de f

    religiosa e de registros orais e escritos nosso foco na terceira seo. nesta vivncia que

    prticas educativas so institudas constituindo-se como elementos primordiais para a

    permanncia transformada do prprio mito.

    A ltima seo trata do mito em movimento no Il Omiojuaro e de como a escritora e

    a palestrante so facetas constitutivas de quem Me Beata: uma ialorix de candombl.

    Praticante social que reconhece sua fora motriz nos orixs, na ancestralidade.

    20 Por hora trabalharemos com o vocbulo escritora. No entanto, nos captulos subseqentes faremos umareflexo acerca do termo e da experincia de Me Beata com a escrita, alm da escuta e da leitura.

  • 26

    1.1 Do pssaro de ferro ao Caroo de dend.

    Era domingo de manh. O encontro estava marcado para as dez horas. Chegamos

    pontualmente ao Il Omiojuaro, comunidade-terreiro21 dirigida pela ialorix e escritora

    Beatriz Moreira Costa, a Me Beata de Yemonj. Ou, simplesmente, Me Beata, como

    chamada pelo povo do santo. Fomos recebidos no barraco do Il. Envoltos pela ambincia

    religiosa, material e imaterial, transcorreu a nossa conversa. A escritora tem, publicado, os

    livros Caroo de Dend: a sabedoria dos terreiros como ialorixs e babalorixs passam

    conhecimentos a seus filhos e Histrias que minha av contava, entre outros escritos alguns

    relativos a eventos que participa como palestrante. Os livros so, primordialmente, as fontes

    dessa pesquisa que tem como objeto a mitologia afro-brasileira, na literatura de Me Beata de

    Yemonj: literatura afro-brasileira. Esta, sendo compreendida, aqui, como um campo literrio

    que se apresenta como devir, como processo em construo. As personagens e as tramas da

    mitologia afro-brasileira so encarnadas e materializadas nas comunidades-terreiro.

    Mitologia, liturgia, fazendo-se literatura. De certo modo, um mesmo objeto22 (PRANDI,

    2001, p.27). O que torna complexo o desafio de: em primeiro lugar, compreender o processo

    de formao da autora e as prticas-educativas prprias de sua experincia cultural-religiosa.

    E, em segundo lugar, tom-los para (re)pensar questes na Educao.

    Promovendo o encontro, Pai Celso dOmolu apresenta-nos. Comeamos, ento, a

    conversa. Discorremos sobre nossas intenes: fala muito prxima do que expusemos no

    pargrafo anterior. Situamos as primeiras questes na trajetria da contadora e escritora de

    estrias. Como e quando se percebeu como sujeito de (re)criao? E a relao com leitura e

    com a escrita, como aconteceu?

    As informaes trazidas por Me Beata so detalhadas com nuances e ritmos

    envolventes e, concomitantemente, falam de um tempo e de um lugar do Brasil: Beatriz

    Moreira Costa, a Me Beata de Yemonj, nasce em 20 de Janeiro de 1931 em Santiago do

    21 O Il Omiojuaro, Casa das guas dos Olhos de Oxossi fica no bairro de Miguel Couto, municpio de NovaIguau, Baixada Fluminense, Estado do Rio de Janeiro. Para a necessria apresentao, acompanhando-me noencontro estava o amigo e babalorix Pai Celso dOmolu do Il Ax Onan Aye Omi, Casa do Caminho da Terradas guas.22 As narrativas mticas, os mitos, so ritualizados/reatualizados nos cultos religiosos de matriz africana,compem uma liturgia e, no de hoje que, extrapolaram os muros das comunidades-terreiro. Agenor MirandaRocha, iniciado por Me Senhora, organizou a mais rica fonte primria brasileira. Outras obras importantes notocante mitologia pertencem a Pierre Verger e Mestre Didi, para citar apenas exemplos de autores iniciados.Este ltimo, inscrito no campo literrio afro-brasileiro: no ndice do Portal Literafro/UFMG, mencionado nanota anterior e em LOPES, Nei. Dicionrio Literrio Afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2007.

  • 27

    Iguape, distrito de Cachoeira do Paraguau, no Recncavo Baiano. Aps ouvir, transcrever,

    ler os relatos, produzimos alguns recortes, a fim de enfatizar dados que nos parecem

    significativos para a compreenso do contexto de formao da menina Beata e,

    respectivamente, identificarmos os objetos de leitura e escrita que fizeram parte da

    constituio da autora. Vamos, ento, dar voz a Me Beata de Yemonj, e, simultaneamente,

    dialogar com suas memrias.

    1.1.1 Infncia em Iguape: ouvindo estrias e catando lenha.

    Estvamos ali para saber de viva-voz como se arquitetara o gosto pelas estrias que

    conta e escreve. Como aprendeu a ouvir, contar, ler e escrever. Ao comear seu relato

    deparamo-nos com informaes que esclarecem bem o contexto scio-econmico e cultural

    de formao da autora. Vejamos:

    ... eu tinha mania de inventar estrias. Um dia cheguei at a apanhar porisso... Ns morvamos no Iguape, no Recncavo Baiano, e fomos apanharlenha; quase toda tarde eu e outras meninas, ns amos pra o mato catarlenha que era pra abastecer a casa: pra cozinhar, pra esquentar gua prabanho, pra fazer uma fogueirinha pra botar na porta pra clarear, tudo isso...pra ns brincarmos e tudo....

    Beata nasce no interior da Bahia, momento em que o Brasil enfrenta crises e

    redefinies nos campos poltico, econmico e cultural. A partir de 1930 com o

    enfraquecimento do poder oligrquico, favoreceu-se a criao de condies elementares para

    a implantao do capitalismo industrial no Brasil. Isto vai alterar o quadro cultural e

    educacional. Sabemos que at os anos da dcada de 30, do sculo passado, o pas era

    predominantemente rural, dirigido por uma elite oligrquica que no compreendia como

    necessria, por exemplo, a expanso do ensino, sobretudo para o interior. Acompanhemos a

    fala de Romanelli:

    A forma como se instalou o regime republicano no Brasil e como seconduziram no poder as elites, em nada modificando a estrutura scio-econmica, influiu para que, de um lado, no houve presso de demandasocial de educao e, de outro no se ampliasse a oferta, nem se registrassereal interesse pela educao pblica, universal e gratuita. No , pois, a faltarecursos materiais que se deve imputar maior soma de responsabilidade pela

  • 28

    ausncia de educao do povo, mas estrutura scio-econmica quesobreviveu com a Repblica. (ROMANELLI, 2005, p.60)

    As mudanas que viriam teriam relao com o desenvolvimento e a expanso da

    indstria; inclusive o acesso informao, educao. Vo emergir aspiraes de parte da

    populao brasileira, sobretudo, nas reas atingidas pela industrializao (ROMANELLI,

    2005, p.60). O que significa dizer que a demanda escolar vai se dar de modo diferenciado,

    pois onde os efeitos da industrializao no se faziam presentes, o acesso escola e a

    compreenso do ensino como um valor social vai ser mais escasso. Julgamos importante

    enfatizar essa questo, ao darmos incio s nossas reflexes porque o aprender a ler e a

    escrever, no eram atividades que passavam, necessariamente, pela escola. Muitos o fizeram

    independentemente da ao do Estado.

    Na fala de Me Beata divisamos uma Iguape que se insere num imenso conjunto de

    cidades e vilas brasileiras que estavam longe dos benefcios e dos malefcios da

    industrializao que despontava no Brasil como uma promessa de modernidade.

    Fogo a lenha, ausncia de energia eltrica. A madeira, combustvel necessrio para

    prover as casas, era recolhida no mato. Por meio dela: o alimento, a higiene, a iluminao e,

    tambm, o brinquedo, a brincadeira. Nesse contexto a menina vai fazendo seus primeiros

    contatos com o mundo, seu mundo, seu povo: ex-escravos, ex-escravas, detentores de vasto

    repertrio de estrias mticas e ancestrais que rememoravam em noite de lua ou na roda das

    casas de farinha onde trabalhavam, todos adultos e crianas. Cena que nos descreveu

    quando perguntamos se ouvia estrias, de quem. Falante e ouvinte das experincias

    individuais e coletivas, Beata queria ler e escrever. O que no se traduzia numa demanda para

    o Estado como vimos, mas tambm no, para seu pai. Pois ele havia decido que menina no

    precisava aprender a ler e escrever, pra no fazer carta para namorado. Ainda assim, curiosa,

    estava decidida: aprenderia a ler e a escrever. Retornaremos a essa aventura mais tarde. Agora

    vamos ouvir a estria que foi interrompida acima.

    1.1.2 Mente-indo: O pssaro de ferro.

    E eu tinha mania de criar estrias e, por causa dessas estrias, eu atapanhei de meu pai porque uma tarde fui com as meninas apanhar lenha einventei que tinha visto um bicho enorme! E tava aquele negcio de... Como

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    o nome? De disco voador... E eu inventei que tinha visto; eu com as meninas.E fiz as meninas confirmarem que tinham visto um bicho levantar de dentro domato, um bicho enorme de asas! E que tinha nesse lugar trs ovos enormes equando ns estvamos chegando perto, o bicho voou e ficaram l os trs ovos.Aqueles ovos enormes, quentes! Isso foi um rebulio, todo mundo correu. E oque foi? O que foi? Papai tinha um botequim, quitanda como era chamadanaquele tempo... a todo mundo que tava quitanda se enveredou pelo matoadentro... - Cad?! Cad?! E eu mostro aqui e eu mostro ali e eu noreconhecia o lugar. Quando eu cheguei casa eu ganhei seis bolos. Que asmeninas comearam a dizer que era mentira: - Ah! Foi Beata que mandou agente contar! Eu disse que era o pssaro de ferro. A o pessoal dizia: - um disco voador! E por causa disso eu tomei seis bolos. Meu pai me deu seisbolos pra no mentir. Que no se devia mentir... Mas, criao da minhamente. Eu tinha mania de... era barata, era rato, tudo. Eu escrevia em pedaode papel depois que eu aprendi a ler. Escrevia, criava uma histria com essascoisas, criava mitos e tudo e fui... Levei vrios anos juntando essesescritozinhos..

    Essa a histria do pssaro de ferro, que saiu da terra. Pssaro gigantesco que ardia

    como fogo. Havia posto trs ovos quentes e enormes, no mato, e depois, voou.

    1.1.3 Seis bolos para a mente no ir e a seduo da escrita e da leitura.

    Do que precisa um bom contador de histrias? De uma boa estria; que mobilize os

    ouvintes e/ou leitores, que os faam entrar na trama, viver a estria. Uma fora interativa.

    Parece-nos que nesse episdio a menina conseguiu o feito. Inventou. Criou. Convenceu.

    Mentiu? Mobilizou toda a sua comunidade, para no encontrarem, no mato, vestgio da

    estria. Talvez tenha excedido na frmula, na experimentao, pois o pssaro de ferro,

    tomado pelos adultos como disco-voador, algo extraterrestre, custou-lhe seis bolos. Seis fortes

    tapas, na palma da mo, para aprender a no mentir, a no enganar. Medida disciplinar,

    prtica-educativa bastante conhecida, sobretudo entre ex-escravos que ao desobedecerem ou

    desagradarem seus antigos donos, sofriam castigos fsicos como punio; mas algo

    disseminado, como natural, nos mais diversos grupos sociais.

    No caso da relao pai-filha, o conflito estava estabelecido como dissemos em outra

    parte. Beata tinha decidido, apesar das negativas, que continuaria a criar e que leria e

    escreveria. Assim, foi produzindo tticas de subverso da ordem prestando a ateno no

    mundo das letras, das palavras faladas e escritas. No havia tenso ali. Eram aes que lhe

  • 30

    brotavam indissociveis. Algo que podemos supor que a menina, filha do dono da quitanda,

    muitas vezes testemunhasse as anotaes nas habituais cadernetas onde ficavam registrados os

    movimentos de compra e venda dos fregueses do pequeno comrcio. Prestaria ateno nos

    rtulos das embalagens, nas imagens, e dito por ela, nos almanaques que chegavam a Iguape e

    que circulavam, quem sabe, a partir da quitanda do pai. hora, de novo, de dar voz a Me

    Beata. Ela apresenta-nos seus objetos de leitura e escrita e neles um captulo da Histria da

    Educao e da Leitura no Brasil. E, ao mesmo tempo, reafirma sua crena em seu orix: Exu,

    atribuindo-lhe o poder de t-la feito despertar para aquela materialidade.

    Isso que eu estou passando pra voc com o saber que Olorum... [me deu],sem ter freqentado escola, sem ter academia, porque meu pai me dizia quemulher no precisava aprender pra no escrever carta pra homem e euatravs de jornal velho, atravs do almanaque, que eu tenho muito respeito aoAlmanaque Biotnico Fontoura23 e daquele, daquele remdio, como o nome?leo de fgado de bacalhau!24 Vinham com um almanaque e eu apanhava e liaaquilo que estava escrito. No podia ver uma escrita. Um papel jogado na ruae eu apanhava pra ler. Eu sei que no era eu. Algo superior a mim, como Exu.Ele fazia. Ele sabia que eu ia ter necessidade de passar isso para meus irmos.[Antes de a senhora ir para escola, ento, j fazia isso?] Eu j fazia isso. Eu?Numa areia eu fazia o A. Na minha terra tinha caminho de areia: eu fazia abola, fazia o rabinho. Est entendendo? Quando eu entrei na escola eu jsabia a-e-i-o-u. Eu j fazia em papel velho. No terreiro l de casa, eu escreviacom carvo. Meu pai dizia: - Voc maluca menina?! Ento algo tinha atrsde mim, havia uma fora que estava me levando para esse caminho, sabia queeu ia precisar e eu no me arrependo...

    L vem histria. O fato dos governos republicanos at ento no terem preocupao

    com a extenso do ensino para as populaes do interior no quer dizer que no tivessem (o

    governo e seus aliados) um projeto pedaggico para as mesmas. Um projeto civilizatrio que

    inclua higienizao, aparncia saudvel, dirigida especialmente aos caboclos, aos Jecas

    Tatuzinhos do Brasil. Por outro lado, os almanaques de farmcia cumpriram papel

    23 O primeiro nmero saiu em 1920, elaborado e ilustrado por Monteiro Lobato, com uma tiragem de 50 milexemplares. Entre as dcadas de 1930 a 1970, a tiragem oscilou entre dois e trs milhes e meio de exemplares.Distribuio do Instituto Medicamenta Fontoura S.A. Ver MEYER, Marlyse (org.). Do Almanak aosAlmanaques. So Paulo: Ateli Editorial, 2001.24 A Emulso Scott fabricada h mais de 110 anos pelos laboratrios Smithkline Beecham, sendo vendida emmais de 150 pases. Esta marca comeou a sua histria em 1830, em um pequeno laboratrio aberto por JohnSmith. Mais tarde, foi incorporado pela empresa de Mahlon Kline, em 1875, transformando-se no maioratacadista de farmcias da Filadlfia. No Brasil, ela foi fabricada pela primeira vez em 1908, em So Paulo. Emseguida, essa fbrica foi transferida para o Rio de Janeiro, comeando a produzir, tambm, o sal de frutas Eno. AEmulso de Scott era feita a partir do leo de fgado de bacalhau e garantia ser um fortificante e reconstituintefsico, rico em vitaminas, clcio e fsforo e continua sendo vendida principalmente nas regies norte e nordestedo Brasil. Ver ACCIOLY, Anna et alli. Marcas de Valor no Mercado Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Senac,2000.

  • 31

    fundamental na dinamizao das prticas de leitura e escrita no pas. Vo ganhar fora a partir

    do desenvolvimento da indstria farmacutica. Estas vo investir maciamente em

    publicidade, tendo nos almanaques seus carros-chefes. Encontramos em Gomes25, o seguinte:

    Milhes de exemplares dessas publicaes foram editados e distribudos portodo o pas. Formato gil equilibrando seu carter intrinsecamente comercialcom o esprito e o contedo dos almanaques tradicionais levou no s apopulaes urbanas, mas a pequenas comunidades rurais, uma possibilidadede informao e entretenimento. Para muitos, em determinadascircunstncias e frente carncia material e cultural do meio, o almanaquerepresentou o livro e a revistinha infantil; em outras ocasies, assumindocarter e funo particularmente inusitados, fez a vez da prpria cartilha,auxiliando adultos e crianas no aprendizado da leitura.Adotados e adaptados dessa forma pela populao, transcenderam aosimples carter panfletrio, instalando-se como hbito de leitura. (GOMES,2006, p. 1008)

    No caso especfico do Almanaque Biotnico Fontoura, a menina Beata faz contato

    com a escrita de Monteiro Lobato, amigo de Cndido Fontoura, o proprietrio do laboratrio.

    Lobato idealiza o almanaque e cede, ao mesmo, o seu personagem Jeca Tatuzinho. Na

    Introduo do livro Histrias e Leituras de Almanaques no Brasil26, de Margareth Brandini

    Park, Roger Chartier vai apontar o valor dos almanaques de farmcia dizendo: sua

    importncia para a cultura brasileira se mede em suas enormes tiragens (...) e a sua forte

    presena nas lembranas de leitura, ou de escuta, dos mais modestos leitores e continua:

    No Brasil do sculo XX, os almanaques farmacuticos assumem (...) a tarefada educao sanitria e moral do maior nmero de pessoas. (...) eles seinscrevem, a sua maneira, na filiao dos almanaques esclarecidos epedaggicos do tempo das Luzes. (...) O Almanaque Biotnico Fontourafornece a mais espetacular traduo desse objetivo com o folclricopersonagem Jeca Tatuzinho, criado por Monteiro Lobato. Circulando entre oalmanaque, os folhetos e os livros para crianas, o personagem encarna opossvel e necessrio progresso que far do caboclo miservel e degeneradoum cidado so, instrudo e til. (CHATIER apud PARK, 1999, s/n).

    Nas imagens que seguem podemos ter uma viso de um dos objetos de leitura de

    Me Beata, o Almanaque Biotnico Fontoura, entretanto mais adiante vo nos ajudar numa

    25 O autor esclarece, na abertura do artigo que trabalhou com um acervo que at o momento rene cerca de 350exemplares de almanaques de farmcia. Constitui-se em sua maioria de publicaes relativas s dcadas de 1930e 1940, quando atingiram o auge de sua qualidade e seu nmero de circulao. GOMES, Mrio Luiz. VendendoSade! Revisitando os antigos almanaques de farmcia. In. Histria, Cincia, Sade-Manguinhos, vol.13, n.4. Rio de Janeiro Oct. /Dec. 2006. Acesso em 09/08/0726 CHARTIER, Roger. O Livro dos livros: os Almanaques no Brasil In. PARK, Margareth Brandini. Histriase Leituras de Almanaques no Brasil. Campinas: Mercado de Letras, 1999. Acesso em 09/08/07..

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    reflexo sobre polticas de branqueamento e desqualificao de prticas culturais

    afrodescendentes27. As mesmas esto presentes no artigo eletrnico de Gomes (2006)

    Ilustraes 1 e 2 Almanaque Biotnico Fontoura

    27 GOMES, Mrio Luiz. Vendendo Sade! Revisitando os antigos almanaques de farmcia. In. Histria,Cincia, Sade-Manguinhos, vol.13, n.4. Rio de Janeiro Oct. /Dec. 2006. Acessoem 09/08/07

  • 33

    1.1.4 O tempo! De menina mulher: lendo, escrevendo, (re)criando.

    Aps ter narrado como foi se construindo como leitora e escritora, Me Beata vai nos

    arremessar mais para frente no tempo. Vai nos contar como foi que, de menina que ouvia

    estrias de tia Jovita e tio Brasilino, o mais fantstico contador de histrias que conheceu

    quem sabe em quem tenha buscado inspirao para o Pssaro de Ferro, publicou seu primeiro

    livro.

    Alm de eu criar, eu ouvia e absorvia porque no nosso tempo no existiardio... No tinha televiso. O que era a nossa distrao? Era brincar deroda, noite de lua, brincar, de pique - esconde brincar de ciranda, que eramuito importante. Brincar de trs Marias, capito, jogo de castanha. Erapular corda, era tudo isso... E ouvir estrias dos mais velhos, dos avs, comoeu tinha titia Jovita. At no prprio colgio tinha estrias, tinha contadores deestrias. No interior, antigamente no Iguape, no Recncavo, tinha contadoresde estrias. Quer ver? Eu tinha um tio que era to capaz! Que ele era tratadocomo mentiroso. Ento esse meu tio, titio Brasilino, ele era grande contadorde estrias, ele criava. E eu ouvia aquelas estrias. E se a gente tava na casade farinha raspando mandioca pra fazer a farinha sempre era uma roda, comum monte de mandioca ali no meio, todos ns ali com a faca descascando amandioca. Mas sempre se contava uma estria, sempre se lembrava algumacoisa e eu, como sempre, gostava! Ouvia tudo isso e, ainda, eu tinha poder,no sei, Olorum me deu esse poder de criar personagens como a no Caroode dend eu dou vida a Obi, eu dou vida ao Odu Ojonil, eu dou vida ao OduOss (...).Cresci, depois me casei, a tive filhos, depois de vrios anos, depois deiniciada de candombl, comecei a escrever em cadernos. Escrevia, ali, aminha criatividade.

    A menina d lugar mulher. Os eventos transcorridos na vida de Beata: crescer,

    casar, ter filhos, afirmar uma religiosidade, no so incomuns, para o tempo em que a menina

    nasceu e cresceu. O que vai tornar singular sua trajetria o fato de radicalizar sua opo por

    um conhecimento entrecruzado: imanente-transcendente. F e Poltica. Resistncia. Luta pela

    direito dignidade material e espiritual de seu povo. O povo do santo. Luta por todo afro-

    descendente, mas tambm por todos aqueles que, independente de etnia ou religio, tm

    direito a uma vida cidad plena. Assim expande seu Il: da porta para dentro e da porta para

    fora. Apresenta-se como uma ialorix engajada, agora, na Baixada Fluminense, lugar onde

    criou os filhos depois que saiu da Bahia. Na expanso do seu Ax, muitos filhos e filhas

    acorreram aos seus cuidados. E foi conversando com uma ekedi do Il, Vnia Cardoso, que os

    seus contos manuscritos em papis e cadernos foram ganhando visibilidade. Para a ekedi,

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    antroploga tambm, evidenciou-se a possibilidade da organizao dos contos num livro.

    Acompanhemos o relato.

    ... eu tenho uma ekedi aqui que se chama Vnia, ela estudava no Texas.Quando foi uma vez, (eu tenho uma mania: eu fico com fome, mas compro umlivro) Vnia olhando meus livros disse: - Mas Y a senhora tem livrosimportantssimos aqui! [enumerou os ttulos, inclusive em ingls] Ela disseassim:- Como que a senhora l esses livros a?

    Eu disse assim: - Eu copio aquele textozinho que eu quero entender. Eu tenhoum dicionrio muito bom de ingls e portugus que tem tudo, e a eu sei que euconsigo ler.Ela ficou admirada! E nisso que ela est mexendo achou os cadernos...- E isso aqui?Eu disse assim:- So estrias que eu um dia eu tenho vontade de publicar, de fazer um livropra criana.Ela comeou a folhear e disse:- Y aqui tem coisas interessantes vamos publicar esses mitos?!- Como?!- Vamos procurar uma editora pra gente... Eu vou passar tudo a limpo, voupassar pra fita... E a gente vai publicar.Eu disse: - Engraado... Eu tenho recebido muitos catlogos da Pallas.- A senhora sabe o endereo da Pallas?- Eu disse: _ Olha aqui, a dei a ela.Ela liga pra Cristina da Pallas dizendo que eu tinha todo esse trabalho. ACristina ficou doida! J no outro dia veio aqui, veio de nibus, veio com aVnia. Quando ela viu... Ela a, disse:- Vamos cuidar...

    Eu disse:_ Eu quero que tenha o nome da Vnia a tambm.

    Pronto! A escrevi Caroo de dend! Que sobrou estria que ainda tem pralanar mais outro livro....

    Mudara efetivamente os suportes e os objetos de escrita. Dos caminhos de areia, do

    terreiro, dos papis de po, dos gravetos e dos carves, adulta, os cadernos vo ser os lugares

    de registro, de todos os escritozinhos que acumulou vida a fora.

    No foi diferente com os suportes da leitura. Dos jornais velhos, dos rtulos, das

    cadernetas da quitanda, dos almanaques aos livros e dicionrios. Muitos. A leitura sempre

    como um desafio. Ler em outro idioma? Sim, nada de recuar. Ultrapassar. Passar. Passar a

    pensar, quem sabe, um dia, em publicar livros.

    Estava prximo o dia. Vnia faz trabalho de garimpagem no acervo de sua Y. Ela e

    Cristina Warth Pallas da Editora entenderam que estavam diante de uma oportunidade mpar:

  • 35

    apresentar como literatura, cultura afro-brasileira28, as estrias mticas e ancestrais de Me

    Beata de Yemonj. Assim nasceu Caroo de dend: a sabedoria dos terreiros, como ialorixs

    e babalorixs passam conhecimentos a seus filhos.

    1.1.5 O Caroo de dend e os quatro cantos do mundo: outras viagens.

    O conto O Caroo de dend (p.97) refere-se ao controle e conhecimento que Olorum

    tem dos quatro cantos do mundo por meio do caroo de quatro furinhos. Confiou-lhe esta

    misso. O que o caroo cumpre fielmente. E ainda conta com a lealdade do caroo de trs

    furinhos que no tendo recebido tarefa especial de Olorum cuida para que o seu irmo o possa

    desempenhar com sucesso. Provocado por Exu, o caroo de trs furinhos demonstra que, na

    verdade, dependeria dele, tambm, a harmonia desejada por Olorum. Assim os frutos do

    dendezeiro, de quatro e de trs furinhos so essenciais para a vida de um Il. ele o maior

    emanador de Ax, fora vital. Andando pelos quatro cantos do mundo, Me Beata, vai

    repartindo o que sabe e pode revelar. Zelada pelo dendezeiro, os olhos de Olorum.

    Ainda que tenha estado imersa num sem nmero de vivncias educativas e

    educacionais, escolares ou no, que levariam a menina, a mocinha Beata a desprestigiar sua

    origem na fronteira da afro-brasilidade; a mulher, afirmou-se como herdeira de um legtimo

    constructo brasileiro. Pela f acredita-se como algum predestinada a lutar pelo seu povo.

    Ainda que tenha lido os almanaques de farmcia e os respeite, no se dobrou s mensagens

    subliminares: a desqualificao do mestio, do ambiente rural, de sua cultura. A imposio de

    um padro de beleza e sade hollywoodianos do Almanaque Biotnico Fontoura, que

    colocava na sombra a constituio tnica plural do povo brasileiro. No se dobrou.

    No se dobrou, menina ainda, submisso de gnero ou etria. Aprendeu a ler, a

    escrever. Conta estrias que ouviu e as que inventa. E suas palestras, suas cartas abertas. Fala

    a homens e mulheres sobre a possibilidade de um mundo melhor para todos. Em nome de

    Yemonj e Exu declara-se: mulher, nordestina, ialorix do candombl, afro-descendente. E

    anuncia a sua identidade aos quatro cantos do mundo!

    28 Caroo de dend est entre os livros que compem o Catlogo Infantil e Juvenil da Pallas Editora com osseguintes atributos: Assunto lendas africanas; Pblico juvenil; Tema deuses afro-brasileiros,comportamento e tica.

  • 36

    1.2 Fico e realidade ou quando no existem fronteiras?

    Novamente, pela manh, encontramos Me Beata em seu Il. As aparies da

    ialorix evidenciam um esmero esttico. Mulher idosa, sade exigindo cuidados, mas sempre

    exibindo seu alac, seu oj com duas abinhas, suas sandlias, anis, pulseiras, brincos, fios-

    de-contas, unhas feitas. Tudo harmoniosamente colocado. Altiva. Uma mulher que no se

    intimida com a presena de microfone, de cmeras digitais, de gravadores de udio. Quer

    mesmo falar. Assumiu para si o lugar de quem anuncia, pronuncia e denuncia questes

    relativas seu povo, o qual ao nosso entender, observando atentamente sua fala, est para

    alm de ser o povo do santo, incluindo os que vivem ainda sob o jugo do preconceito, das

    injustias sociais. Ento, afrodescendentes: negros, mestios e, tambm, ndios, e brancos,

    todos que, neste pas, se encontram a margem de processos produtivos dignos, lutando por

    aes afirmativas e polticas pblicas que reparem sculos de desateno e descaso polticos,

    todos esses, podem ser incorporados categoria de Seu Povo. Contudo, evidentemente, sua

    fala est permeada de miticidade, de sua crena religiosa, da marca de seus ancestrais de Orun

    e Ai. Marcadas por seus orixs, responsveis pela comunicao: Yemonj e Exu. Teresinha

    Bernardo no Prefcio de Histrias que minha av contava frisou:

    Exu, alm de ser o homem da encruzilhada tambm pode ser encontrado nasportas, nas entradas das cidades, nas fronteiras dos Estados. Ele est sempreem movimento, mensageiro, o viajante que vem de longe e se apressa apartir. Ele representa a passagem, a mudana, transio, o movimento.Iemanj por sua vez, na frica representava o rio Ogum, na disporatransformou-se no mar. Se essa metamorfose sofrida pela deusa diz respeito comunicao; assim representa a unio do contingente africano que viveu adispora e seus descendentes... (BERNARDO apud COSTA, 2004, p.07)

    No podamos deixar de seguir nossa investigao sem levar em conta o destino de

    seus orixs. Estes, nela, realizam-se. Essa, sua autopercepo. o que nos seus orixs. Sim,

    preciso considerar o ponto de vista daquele que nos atraiu para o ofcio de perguntar, ouvir e

    escrever. Escrita de pesquisador que aprende para tornar pblico o seu aprendizado29. Beata

    vai cruzando a experincia de ouvir e contar as estrias que circulavam, oralmente, em famlia

    e nos terreiros que freqentava, com a experincia de ler e escrever anotar. cativante o seu

    relato:

    29 Nossa observao no deixa de ter um carter etnogrfico e, com Freitas, consideramos que o que se buscacom essa observao no realizar uma anlise, entendida em seu sentido etimolgico (...) mas umacompreenso marcada pela perspectiva da totalidade construda no encontro dos diferentes enunciadosproduzidos entre pesquisador e pesquisado.(FREITAS, 2003, p.31)

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    ... s vezes minha me [Olga do Alaketu] falava uma palavra ou uma folha...eu sempre trazia dentro do seio um cotoquinho de lpis e um pedao de papel.A escrevia e botava dentro dos seios. Depois, ento, eu ia l e lia aquelapalavra, aquela cantiga. Quando no era assim, eu inventava que estava comdor de barriga. Corria, entrava no banheiro e escrevia aquela palavra ouaquele cntico dela. Tanto dela como do meu primeiro pai-de-santo que foi ofinado Ansio Agra Pereira, na Avenida Ribeiro dos Santos, n.18, em frente antiga oficina da Prefeitura nas Sete Portas. Aprendi muita coisa com ele. Elefoi pra guerra e voltou com um defeito no olho, ento ele tinha dificuldadequando estava jogando, s vezes, de escrever. E eu sempre junto dele. Eleficava passando os ebs. Jogava e passava os ebs. Eu ficava vendo. Quandoeu saia dali, me trancava, me escondia e ia... [anotar] Eu abi, j sabia jogar.E j sabia muitos ebs...

    Percebe-se nesse processo de aprendizagem que Beata via em seus gestos furtivos

    uma atitude transgressora, quase ofensiva. Por que seus pais no poderiam presenciar ou

    saber de suas anotaes? Suas operaes de caa? Pretendemos responder a essas

    questes em reflexes posteriores. Por enquanto afirmamos que escrevia para no esquecer,

    escrevia para saber e, aos poucos, foi descobrindo que escrevia para partilhar, para comunicar

    a seu povo e a quem mais se interessasse pelas estrias ancestrais que coletava, criava e

    recriava. A idia de transformar aqueles saberes em livro, em objeto de circulao foi se

    conformando. Assim, a funo social da escrita ia consolidando-se, tornando-se cada vez mais

    consciente.

    Jovem ainda, na Bahia, sente-se tocada com autores das mais diversas filiaes

    formativas. Suas temticas a sensibilizavam. Logo, descobriu no livro um objeto atraente,

    mgico, capaz de conter foras imaginativas emocionantes, um poderoso recipiente e veculo.

    Passam, ento, os livros, a fazer parte de seu cotidiano. Acompanham-na vida afora.

    Encontrou neles outros contadores de estrias com experincias e temticas muito

    diferentes daquelas que conhecia e registrava em seus cadernos, uma vez que a escrita como

    tecnologia auxiliar da memria havia se tornado hbito tal qual o da leitura.

    Em mais uma oportunidade para continuar refletindo com ela sobre sua formao,

    interessava-nos, outrossim, os autores que a influenciaram, os primeiros livros lidos. Ainda

    que concebamos a leitura como um ato primrio, extenso, que precede a decodificao de

    uma escrita30, na seqncia, intencionamos compreender de que maneira ou se seus

    primeiros livros/autores vo marcar sua escrita, seu repertrio.

    30 Compartilhamos com Manguel, ...Todos lemos a ns e ao mundo nossa volta para vislumbrar o que somos eonde estamos. Lemos para compreender, ou para comear a compreender. No podemos deixar de ler. Ler, quase

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    Ao perguntarmos qual o primeiro livro que leu, nos surpreende com uma resposta

    muito mais rica do que pretendamos com a pergunta. Enumerou seis autores. Garante que foi

    com eles e a partir deles, dos primeiros escritores que conheceu, que percebeu que tambm

    tinha esse poder, o poder de escrever, de construir narrativas autorizadas por Olorun e,

    animada, falou sobre seus primeiros autores de cabeceira, depois que foi capturada pelo hbito

    de ler.

    ... quando eu vim conhecer um apego maior a escrita, por que a oralidadehavia, eu me interessei muito por Cassandra Rios. Ah! Eu sou fantica, eugosto muito de livro picante. Eu achava que ela no era uma escritorapornogrfica. Ela era uma escritora daquilo que o ser humano precisa: oamor. Ela, atravs de seus livros picantes, ela passava o amor entre seres,dois seres ou duas mulheres ou dois homens, o que o mundo condena. Entoisso me tocava muito como at hoje me toca. Eu acho que o amor vlido atodo o momento.Vasconcelos Maia, que escreveu Leque de Oxum, Capites de Areia, OsVelhos Marinheiros de Jorge Amado. E adoro A Mestia de Gilda de Abreu,um livro lindo! O Cascalho de Herbert de Sales. Grande livro! Adoroliteratura popular. Eu sou f da Literatura de Cordel. Um dos maiores foiCuca de Santo Amaro.

    Surpreendente! Universo diverso! Nesse universo de leituras podemos encontrar

    pistas para afirmar que a polifonia presente na literatura de Me Beata ultrapassa as fronteiras

    da cultura religiosa a qual pertence, como bem evidenciou Ligiro no prefcio de Caroo de

    dend31.

    Ainda segundo Ligiro, no conjunto de contos encontramos ambincias religiosas e

    personagens, ligados ao culto de ancestres, originrio do Kongo, bem como expresses do

    campo semntico Banto. Encontram-se tambm referncia s pretas velhas como o caso do

    O cachimbo de Tia Cilu e da prpria Tia Afal, a preta velha parteira que traz a menina

    Beata ao mundo, como tantas que se apresentam em Umbanda. Quando sinalizamos

    referncias de outras culturas em seus contos, ela mesma afirma:

    como respirar, nossa funo essencial. (...) Ler descobri vem antes de escrever. Uma sociedade pode existir existem muitas, de fato sem escrever, mas nenhuma sociedade pode viver sem ler (MANGUEL, 1997, p.20)31 Segundo Ligiro Embora a autora pertena assumidamente tradio Ioruba, podemos perceber tambmelementos culturais de grupos tnicos Bantos, notadamente os provenientes do antigo reino Kongo e quecomearam a chegar ao Brasil pelo menos 300 anos antes dos Iorubs, e que disseminaram suas culturas nassenzalas do interior do pas, bem como nas ruas das capitais coloniais, Salvador e Rio de Janeiro. (LIGI