os fios de contos de mãe beata.pdf
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Os fios de Contos de Me Beata deYemonj:Mitologia afro-brasileira e Educao.
Autor(a):
Gloria Ceclia de Souza Silva
Orientador(a):
Roberto Lus Torres Conduru
Rio de Janeiro, 25 de agosto de 2008
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROCENTRO DE EDUCAO E HUMANIDADES
FACULDADE DE EDUCAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
Gloria Ceclia de Souza Silva
OS FIOS DE CONTOS DE ME BEATA DE YEMONJ:MITOLOGIA AFRO-BRASILEIRA E EDUCAO
Rio de Janeiro2008
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROCENTRO DE EDUCAO E HUMANIDADES
FACULDADE DE EDUCAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
Gloria Ceclia de Souza Silva
OS FIOS DE CONTOS DE ME BEATA DE YEMONJ:MITOLOGIA AFRO-BRASILEIRA E EDUCAO
Rio de Janeiro2008
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GLORIA CECLIA DE SOUZA SILVA
OS FIOS DE CONTOS DE ME BEATA DE YEMONJ:MITOLOGIA AFRO-BRASILEIRA E EDUCAO
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado doPrograma de Ps-Graduao Stricto Sensu emEducao da Universidade do Estado do Rio dejaneiro, sob a orientao do Professor DoutorRoberto Lus Torres Conduru, como requisitoparcial obteno do ttulo de Mestre.
Rio de janeiro2008
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROCENTRO DE EDUCAO E HUMANIDADESFACULDADE DE EDUCAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
Dissertao: Os Fios de Contos de Me Beata de Yemonj: Mitologia Afro-Brasileira eEducao.
Elaborada por: Gloria Ceclia de Souza Silva
Aprovao pela Banca Examinadora
Rio de Janeiro, 25 de agosto de 2008.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Roberto Lus Torres ConduruOrientador da Dissertao
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Mailsa Carla Pinto PassosUniversidade do Estado do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Eduardo de Assis DuarteUniversidade Federal de Minas Gerais
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Agradecimentos
Exu! Modup!Yemonj! Modup!
Sabemos que impossvel fazer uma pesquisa sozinhos. H co-autorias de todo tipo: de ouvir,de falar, de ler e reler, de dar o ombro, o colo, de dedicar o tempo na ajuda...
Assim, foram os amigos e as amigas que estiveram juntos comigo, uns mais prximos, outrosmais distantes. Todos numa torcida, que se podia ouvir em coro, a impedir o desnimo nasdificuldades da caminhada: Adriana, Clia Regina, Giovane, Jaime, Jane Maria, Jos Carlos,Jos Roberto, Jorge, Jnior, Marcelo, Marcos Antnio, Maria Emlia, Mariana, Maria Helena,Nelcia, Rodrigo, Rosana, Sandra, Simone, Valria. E Daniele de Salles, companheira decurso. Par comigo. Ibejis que somos! A todos, Modup!
A Edimrcio William e a Mariana Ferreira pela Normalizao Tcnica do trabalho. Modup!
A Alexandre Velloso e a Lindaura dOxum que zelam, comigo, cada um a sua maneira, pelaminha cabea, meu ori. Estando, assim, em condies para produzir um trabalho denso eprazeroso. Modup! A beno!
Aos professores e professoras que conheci no Curso de Mestrado. Exigiram reflexopermanente entre a natureza de suas disciplinas e o nosso objeto. Com eles aprendi a concebera pesquisa como prtica social e formativa. Modup!
A todos os que participaram diretamente da pesquisa, como depoentes ou contribuindo deoutros modos, concedendo-me tempo, tomando parte nessa construo: Prof. Ana ChrystinaVenancio Mignot, Prof. Muniz Sodr, Prof. Eduardo de Assis Duarte, Prof. Dilma de MeloSilva, Prof. Teresinha Bernardo, Prof. Vnia Cardoso, Prof. Monique Augras, Prof. ZecaLigiro, Adailton dOgum, Regina dExu e Cristina Warth. E, mesmo sem saber, a meninaAmanda do Il Omiojuaro. Modup!
Ao Babalorix Celso dOmolu do Il Ax Onan Ay Omi que mediou minha presena no IlOmiojuaro, apresentando-me a Me Beata de Yemonj. Disponibilidade. Doao.Generosidade. Torcida. Amizade. Modup!
Ao Prof. Dr. Roberto Lus Torres Conduru que, orientando-me, no permitiu que eu meacomodasse no pseudo-conforto das certezas, solicitando-me releituras e reescrituras, desde ocomeo. Um jeito de dizer: - V siga em frente! Pela confiana depositada, Modup!
O que dizer a Me Beata de Yemonj? Seu Il nos acolheu e seu Ax, sua fora vital, nosimantou com energia fresca, como as guas de sua Me e, nos arremessou para mltiplasvertentes, as encruzilhadas de seu Pai. Presente! Modup!
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A toda a minha famlia. Todos mesmo.Afro-descendentes que somos.
Aos que j se foram para o Orum e aos que esto no Ai.Com um afeto especial aos meus pais,
Deodato e Zilka por, incondicionalmente,me acompanharem vida a fora.
A Oxssi e a Oxum, muito, pra mim!A Beno!
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RESUMO
SILVA, Gloria Ceclia de Souza e (2008). Os Fios de Contos de Me Beata de Yemonj:Mitologia Afro-brasileira e Educao. Dissertao de mestrado apresentada ao Programa dePs-graduao em Educao da UERJ. Rio de Janeiro: FE/UERJ, 2008.
Esta dissertao tem como objeto de estudo os tan, narrativas mticas afro-brasileiras.
Destaca-se um conjunto de saberes, historicamente, colocado margem. O que tornou
desconhecido, esquecido outros modos de conceber o mundo, o conhecimento, a vida. As
narrativas mticas, seus personagens e ambincias, foram tomadas como leituras de mundo,
como possibilidade epistmica. A investigao deu-se na obra literria da ialorix e
escritora Me Beata de Yemonj, formada nas prticas de oralidade do candombl, culto
religioso afro-brasileiro, de onde emanam essas narrativas. Publicou parte delas em dois
livros: Caroo de dend: a sabedoria dos terreiros, como ialorixs e babalorixs passam
conhecimentos a seus filhos (1997) e Histrias que minha av contava (2004). O que leva
uma sacerdotisa a publicar uma sabedoria que aprendeu no cotidiano das comunidades-
terreiro que freqentou? Como se d a insero dos escritos de Me Beata de Yemonj no
campo da Literatura Afro-brasileira? E enfim: possvel um dilogo entre mitologia afro-
brasileira e Educao? Estas foram questes norteadoras da pesquisa. Seus registros e anlises
encontram-se com a seguinte organizao: o primeiro captulo rastreou a formao de Me
Beata de Yemonj na tradio oral religiosa afro-brasileira, no candombl. Seu encontro com
a escrita e a leitura, os cruzamentos fabulativos, tecidos entre seus contos e os que leu. A
vivncia criativa dos e nos mitos no cotidiano e, a indivisibilidade da ialorix, escritora e
ativista poltica. No segundo captulo exprimem-se as vozes dos sujeitos participantes nos
processos de edio e publicao dos livros, e dos que reconheceram nos contos um valor
extenso atividade religiosa, um valor literrio. Literatura Afro-brasileira. Uma escrita prenhe
de experincias na oralidade. O terceiro captulo prope reflexo e compreenso sobre as
concepes, de conhecimento e de ensino-aprendizagem nos mitos. Carter epistmico.
Modos de conhecer que, como rastros, possam contribuir para a ressignificao sobre
prticas-educativas recorrentes em espaos formativos como escolas.
Palavras-chave: Mitologia afro-brasileira Biografia Conhecimento Religio Educao.
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ABSTRACT
The subject of this dissertation is the study of tan, afro-brazilians mythical narratives. We put
in evidence a knowledge, historically, cast aside. This is why it became unknown, there were
forgotten other kinds of conceiving the world, knowledge, life. Mythical narratives, their
characters and sceneries, were taken here as world-reading (Paulo Freire), as epistemic
possibility. The inquiry was developed throughout the literary works of ialorix and writer
Me Beata de Yemonj, raised in the background of the oral practices of candombl, an afro-
brasilian cult, from where these narratives arise. Part of it were published in two books:
Caroo de dend: a sabedoria dos terreiros, como ialorixs e babalorixs passam
conhecimentos a seus filhos (1997) and Histrias que minha av contava (2004). What takes
a priestess to publish a wisdom learned on the everyday life of communities (terreiros) in
which she lived? How is the insertion of Me Beata de Yemonj writings in the field of Afro-
Brazilian Literature? And last but not least: is it possible a dialogue between Afro-Brazilian
Mythology and Education? The main questions of this inquiry were these. Their registries and
analyses have the following organization: In the first chapter, Me Beata de Yemonjs
formation in Afro-Brazillian oral religious tradition, candombl, was scented out. There were
considered her encounter with writing and reading practices, fable crossings, interweaved
between her short stories and the ones she has read. Her creative experience of the myths and
in the myths on everyday life, as well as the indivisibility between the ialorix, the writer and
the political activist. The second chapter, expresses the voices of those who have taken part in
the process of edition and publishing of her books, as well as the voices of the ones who
recognized in the short stories not only a religious, but a literary value. Afro-Brazilian
Literature. Writings full of oral experiences. The third chapter proposes a comprehension
about knowledge and education conceptions brought about by the myths. Epistemic character.
Modes of knowing that, like trails, can contribute to create new meanings in formative spaces
like schools.
Key-words: Afro-Brazilian Mythology Biography Knowledge Religion Education.
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Ofereo-te ExuO eb das minhas palavras
Neste pad que te consagra
Abdias Nascimento
H relao manifesta ou subterrnea entre o psiquismo,a afetividade, a magia, o mito, a religio.
Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entreHomo faber, Homo ludens, Homo sapiens e Homo demens.
Edgar Morin
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Lista de Ilustraes
1. Almanaque Biotnico Fontoura.........................................................
2. Entre(vistas) no Ile Omiojuaro ..........................................................
3. A vegetao no Ile Omiojuaro...........................................................
4. Presente de Yemonj ........................................................................
5. Casa do Caboclo................................................................................
6. Olga do Alaketu................................................................................
7. Brinquedo de Infncia I ...................................................................
8. Brinquedo de Infncia II ...................................................................
9. Confeco dos Brinquedos I...............................................................
10. Confeco dos Brinquedos II .............................................................
11. Caroo de dend, o livro ....................................................................
12. Histrias que minha av contava.......................................................
13. Orixs Caryb .................................................................................
32 e 85
55
60 e 61
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74
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90 e 91
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SUMRIO
INTRODUO
1. BEATA, MENINA E MULHER: TECENDO-SE NA ESCUTA, NA LEITURA ENA ESCRITA DAS RODAS E REDES ANCESTRAIS
1.1 Do pssaro de ferro ao Caroo de Dend. ..........................................................
1.1.1 Infncia em Iguape: ouvindo estrias e catando lenha.......................
1.1.2 Mente-indo: o pssaro de ferro.......................................................
1.1.3 Seis bolos para a mente no ir e a seduo da escrita e da leitura..
1.1.4 O tempo! De menina a mulher: lendo, escrevendo, (re)criando. ......
1.1.5 O Caroo de dend e os quatro cantos do mundo: outras viagens.....
1.2 Fico e realidade ou quando no existem fronteiras ........................................
1.3 O mtico na vida e/ou a vida do mtico. .............................................................
1.4 Ialorix de Candombl e escritora: dilogos e cumplicidades............................
1.4.1 O Il Omiojuaro em movimento: nem tudo festa............................
1.4.2 Gestao Inicitica: uma autobiografia sonhada. ..........................
2. VOZES NA ESCRITA: RESSONNCIA DA/NA LITERATURA DE MEBEATA DE YEMONJ
2.1 falando que vem de longe... ............................................................................
2.2 Literatura Afro-brasileira: oratura e afirmao de vida social............................
2.3 O acervo ora(l)iterrio de Me Beata ingressa em outras rodas e redes
formativas. ..................................................................................................................
3. PELOS FIOS DE CONTOS: MITOLOGIA AFRO-BRASILEIRA EEDUCAO
3.1 Exu, as mulheres e os modos de ensinar e aprender............................................
3.2 Oxal e Exu: o velho e o novo nas prticas educativas.......................................
3.3 Exu: integrar o inslito ou decretar a morte do dilogo......................................
3.4 Iemanj: sabedoria e limite nas relaes de aprendizagem................................
CONSIDERAES FINAIS
FONTES DE PESQUISA
GLOSSRIO
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26
27
2829
3335
3654
6565
72
7777
80
89
100104111
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1. INTRODUO
A imaginao uma fora de que no se pode abrir mo,pois dinamiza o esprito cientfico inventivo .
Hilton Japiassu
H sete anos descobri os tan, como se chamam os contos mticos do grupo jeje-
nag, nas narrativas compiladas por Reginaldo Prandi em seu Mitologia dos Orixs (2001).
Nesta compilao,1 o autor rene 401 narrativas relacionadas s divindades do panteo
africano que chegou ao Brasil com o movimento da dispora africana2. Desde o primeiro
contato com os registros escritos das narrativas mticas, passei a compreender que estava
diante de um rico acervo com mltiplas possibilidades de acesso e abordagens.
A graduao em Histria e as especializaes no campo da Educao produziram em
mim inquietaes sobre as relaes de poder institudas no interior das escolas que tendem a
desqualificar concepes de mundo diferentes das hegemnicas3. Nosso exerccio o de
refletir os contedos ticos e estticos que emanam dessas narrativas e como, a partir deles,
poderamos repensar prticas educativas presentes em espaos formativos como escolas.
Deste modo privilegiei a temtica cultural afro-brasileira ou, podemos dizer, a
insero da cultura afro-brasileira no campo da pesquisa educacional. Tratei aqui, ento, da
investigao da mitologia afro-brasileira por meio da transmisso oral e da sua escrita.
1 O autor apresenta nesse trabalho fontes que remontam ao sculo XIX e XX. Mais a frente retornaremos a estareferncia.2 Entendemos dispora como o deslocamento compulsrio dos africanos durante o comrcio de escravos para asAmricas entre os sculos XV e XIX.3 Como instituio, a escola foi, no Brasil, historicamente marcada pelo projeto civilizatrio imposto peloprocesso de colonizao judaico-crist desde o sculo XVI, revitalizando-se, progressivamente, at o sculoXIX, com legislaes que dificultavam o acesso do negro em suas dependncias, como verificamos naapresentao das Diretrizes Curriculares para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino deHistria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, organizadas pela Secretaria Especial de Polticas de Promoo deIgualdade Racial/SEPPIR: O Brasil, Colnia, Imprio e Repblica, teve historicamente, no aspecto legal, umapostura ativa e permissiva diante da discriminao e do racismo que atinge a populao afro-descendentebrasileira at hoje. O Decreto n. 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia que nas escolas pblicas do pasno seriam admitidos escravos, e a previso de instruo para adultos negros dependia da disponibilidade deprofessores. O Decreto n. 7.031 A, de 6 de setembro de 1878, estabelecia que os negros s podiam estudar noperodo noturno e diversas estratgias foram montadas no sentido de impedir o acesso pleno dessa populao aosbancos escolares." P.7, 2004. No sculo XX consolidaram-se a organizao de movimentos, nem sempreconsensuais, pela incluso do negro em atividades sociais, econmicas e polticas, que alcanaram vriasconquistas legais de carter afirmativo. No que diz respeito Educao, somente no sculo XXI essesmovimentos viram contempladas a obrigatoriedade do Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira com a Lei10.639 de 9 de janeiro de 2003, hoje alterada sob a lei 11.645/08 que inclui a obrigatoriedade do ensino deculturas indgenas.
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O debate acerca da incluso de afro-descendentes e da cultura afro-brasileira em
espaos institucionais de ensino nunca esteve to aflorado. As recentes conquistas relativas
poltica de cotas para negros e afro-descendentes em universidades pblicas e a
obrigatoriedade do ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educao
Bsica, pblica e privada, aguaram as discusses. As mesmas esto longe de serem
consensuais, mas ampliaram significativamente a visibilidade da questo tnico-racial, no
Brasil, contribuindo para desconstruir a idia de democracia racial4.
Nas universidades, se consolidam projetos de pesquisa relacionados com a temtica
da incluso de negros, afro-descendentes e culturas afro-brasileiras. Este sem dvida um
momento fecundo para a reviso, a ressignificao dos modos de como praticar, fazer e
escrever a histria da luta por uma visibilidade que redimensione a complexa e decisiva
participao da populao negra na histria do pas. Participao que no dispensaria nenhum
de seus habituais adjetivos: econmica, poltica, cultural, enfim, social. Adjetivos
entrelaados, construdos em rede, com a participao de todos os brasileiros, de todas as
brasileiras. Negros/as e no-negros/as. O caso que, durante sculos, se naturalizou um
discurso que insistiu em ocultar e dificultar a participao ativa do negro e de seus
descendentes. Mais grave ainda: circunscreveu a histria do negro nos limites da escravido e
folclorizou suas culturas atribuindo-lhes sentido extico. Talvez, aqui, esteja o mais
refinado projeto/processo de desqualificao de grupos tnicos de procedncia africana que
chegaram ao Brasil com o movimento da dispora. Geraes de afro-descendentes
aprenderam e, ainda aprendem sobre si mesmos, desde as formas mais sutis at as mais
evidentes, que as culturas de origem africana so inferiores, desprovidas de sentido.
Del Priori e Venncio (2004) nos ajudam a compreender que todo investimento na
direo de diminuir nossa ignorncia sobre nossos ancestrais pode contribuir, efetivamente,
para se ampliar as possibilidades da (re)construo de identidades individuais e coletivas:
(...) a autoconscincia do pas em relao a seu passado est por se fazer.Nela estaria uma das chaves para reconstruir a imagem e a visibilidade degrupos inteiros cujos descendentes ainda desconhecem sua prpria histria.Grupos cujos ancestrais, ainda hoje, esto em busca de um lugar em nossamemria histrica. (DEL PRIORE & VENNCIO, 2004, p.07)
4 A implantao da poltica de cotas nas universidades foi, de uma maneira geral, votada em ConselhosUniversitrios com implementao por meio de lei, resoluo ou editais: UERJ/UENF, Lei N. 4.151/2003;UNB, Resoluo N. 38/2003; UNEB, Resoluo N. 196/2002; UEA, Lei N. 2894/2004; UFAL, Edital N.01/2004; UFPR, Resoluo N. 37/2004; UNIFESP, Resoluo, N. 23/2004; UEL Resoluo N. 78/2004;UEMS, Resoluo N. 38/2003; UEMG, Lei N. 15.259/2004; UFBA, Resoluo N. 01/2004; UNIMONTES,Lei N. 15.259/2004. Maiores informaes em
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Hoje estamos comprometidos com a tarefa de contribuir para a alterao qualitativa
desse quadro, recolocando questes concernentes s culturas afro-brasileiras, precisamente
sobre as narrativas mticas em suas dimenses oral e escrita5. Acreditamos que o olhar, o
ouvir, o falar e, de uma vez: sentir a pulsao dos saberes contidos na mitologia afro-brasileira
poder nos fazer desaprender o que foi ensinado para a instituio de desigualdades.
Ao falarmos de mitologia afro-brasileira, tratamos de algo que antecede a sua
apresentao sob forma escrita, de algo em movimento nas casas de cultos religiosos de
matriz africana. Falamos, especialmente, neste caso, de Candombl. Portanto, de liturgia.
Pontuamos algo que recriado constantemente pela oralidade nas relaes pessoalizadas nas
comunidades-terreiro. E, ainda, marcamos algo que se apresenta como literatura a um pblico
no necessariamente adepto de candombl. Logo percebemos que estvamos diante de uma
investigao transdisciplinar: Educao, Antropologia, Religio, Histria, Literatura. O que
tornou mais complexo o nosso fazer.
Os contedos expressos nessas narrativas e a forma como circulam nas comunidades-
terreiro e nas publicaes correlatas, podem oferecer pistas, sobre certa epistemologia.
Forma de conceber e construir conhecimentos. Foi com Santos (1998) que continuamos a
nossa reflexo. Suas proposies sobre a desdogmatizao da cincia e da relao entre
cincia e senso comum ratificaram, e muito, nossa percepo de que a cincia moderna,
criao ocidental-burguesa uma das possveis formas de representao e explicao da
realidade e que muito tem contribudo para a compreenso dos fenmenos humanos. Mas que
outros nveis de conhecimento ou de representao da realidade, no precisam estar em
oposio mesma, mas interagindo, intercambiando. No caso do senso comum, do
conhecimento comum e da cincia no caberia estabelecer uma oposio como aponta Santos
(1998), dizendo: ... a oposio cincia/senso comum no pode equivaler a uma oposio
luz/trevas, no s porque, se o os preconceitos so as trevas, a cincia como hoje se reconhece
[...] nunca se livra totalmente deles...6. Mediante as contradies que permeiam a cincia, a
5 Esses registros vm sendo produzidos por diversos atores sociais. Desde adeptos dos cultos afro-brasileiros,muitas vezes babalorixs e ialorixs, at intelectuais das mais variadas formaes, artistas e escritores. O contatocom esse acervo foi possibilitando uma reflexo sobre a fora dessas tradies que insistem, potencialmente, emse tornarem visveis, atraindo um sem nmero de pesquisadores com interesses, focos e pblicos diversos, mastodos, de alguma forma, ativando esses saberes afirmativamente.6 SANTOS, Boaventura de Souza. Da dogmatizao a desdogmatizao da Cincia Moderna & Cincia eSenso Comum In: Introduo a uma Cincia Ps-Moderna. Portugal: edies Afrontamentos, 1998.
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proposta do autor, de uma hermenutica epistemolgica poder ser um caminho de interao
afirmativa entre epistemes distintas ou conhecimentos distintos, sem excluses:
A hermenutica da epistemologia o modo mais adequado a propiciar atransio para uma epistemologia pragmtica. uma hermenutica crtica esociolgica porque privilegia, por contrapeso, a reflexo sobre a verdadesocial da cincia moderna como meio de questionar um conceito de verdadesocial demasiado estreito, obcecado pela sua organizao metdica e pelasua certeza e pouco ou nada sensvel desorganizao e incerteza por eleprovocadas na sociedade e nos indivduos.(SANTOS, 1998, p. 49).
Ao entrarmos em contato com este texto fomos imediatamente levados a estabelecer
uma relao com nossa proposta de trabalho. No nosso caso, estamos nos propondo (re)pensar
prticas educativas ancoradas em modelos de cientificidade dogmticos, que engendram
modelos que engessam o pensar, o fazer, o sentir. Tomamos o conhecimento mtico afro-
brasileiro como uma possibilidade epistmica. No vemos inconvenientes em se levantar
questes a partir do contato com uma tradio oral cheia de imagens, ritmos, cores, sons e
cheiros. Nem mesmo, em pensar na hiptese de se buscar, nesse tipo de sabedoria,
contribuies para pensar o aqui e o agora. O presente da Educao est cheio de lacunas e
perplexidades ancoradas nas mais variadas tradies cientficas. E nisto no h problemas.
No deve ser mesmo objetivo da cincia, encontrar respostas definitivas para qualquer
problema. Todavia, incluir outras tradies no debate, de como repensar processos educativos,
prticas educativas que contribuam para humanizar homens e mulheres, em tempos de crise e
guerras de intolerncia, tem, sim, o seu valor. O mesmo autor, Santos (2002), em artigo
intitulado O fim das descobertas imperiais7, afirma que a produo da inferioridade passou
pela criao de vrias estratgias:
(...) a guerra, a escravatura, o genocdio, o racismo, a desqualificao, atransformao do outro em objeto ou recurso natural e uma vasta sucessode mecanismos de imposio econmica (...), de imposio poltica (...) e deimposio cultural (...). (SANTOS, 2002, p.24).
Este ltimo vetor aponta o epistemicdio como estratgia de produo de
inferioridade. Entendemos por epistemicdio a subjugao, a invalidao de modos de
produo de conhecimento e de representao da realidade que pertenciam s populaes
7 SANTOS, Boaventura de Souza. O fim das descobertas imperiais In: OLIVEIRA, Ins Barbosa de &SGARB, Paulo (orgs.) Redes Culturais, diversidades e educao. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
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que foram submetidas, entre elas as africanas. Embora a expresso remeta para o extermnio
radical, contra-estratgias foram criadas. E a sobrevivncia das epistemologias foi
garantida. No silncio residia a pujana dos conhecimentos de naes inteiras recriando-as,
conservando-as e transformando-as.
Fomos nos aproximamos de autores que vm nos alertando para a construo de um
novo paradigma sociocultural que valorize a complexidade humana, afirmando a legitimidade
da pluralidade cultural existente no planeta; numa perspectiva de trocas, que possam nos
ensinar a conviver com as diferenas, acreditando que muito mais que ameaas, elas
significam uma maior sustentabilidade dos seres no planeta, no mundo; acompanhemos
Morin:
A idia do mundo europeu e mais largamente ocidental era a de que toda arazo, sabedoria e verdade estavam concentradas na civilizao ocidental. Asoutras naes e civilizaes eram atrasadas e infantis. Nelas no havia asabedoria real, mas unicamente mitologia e, ainda valorada comosuperstio. Por essa razo havia um desprezo total. As coisas comeavam amudar no campo da antropologia que no se fazia a pergunta: como estespequenos infantis podiam ter uma arte para produzir arcos, flechas,instrumentos, construo de casa, conhecimentos de estratgia? Cadacivilizao possui um pensamento racional, emprico, tcnico e, tambm, umsaber simblico, mitolgico e mgico. Em cada civilizao assim, aindaque muitos pensem que no, que a razo, a cincia, a tcnica no somitolgicas. Com efeito, atribuir tcnica, cincia a misso providencialde soluo de todos os problemas humanos esta era a idia at a metadedeste sculo era uma idia mitolgica. Havia uma mitologia do progressocomo uma lei da histria que, automaticamente, iria produzir o melhor ecada vez melhor. Hoje sabemos que no assim. O milnio que chega esttotalmente embarcado na incerteza sobre o porvir. Vemos, ento, que haviauma mitologia, a mitologia do progresso e tudo est muito complexo nessesentido. Porm, penso que a crise da civilizao ocidental vai ajudar aentender melhor que cada civilizao possui os seus valores e muitoimportante que se faa o intercmbio dos valores, o que o poeta negro dasAntilhas francofnica, Aim Csaire, chamava de le rendez-vous, (oencontro, o compromisso) do dar e do receber, ao mesmo tempo. (MORIN,2000, p. 27-28)
Essa exposio inicial importante para esclarecer que estamos tomando os mitos
africanos como constructo social, legados de culturas no necessariamente grafas, mas
predominantemente orais. A matriz oral, portanto dinmica e o carter religioso, litrgicos,
dos mitos no esvaziam a possibilidade de tom-los como objetos de pesquisa. So eles a base
das prticas-educativas ativadas nas comunidades-terreiro. A observao dessas prticas e o
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consumo literrio dos mitos vo nos colocar diante de questes nada inditas, mas tomadas de
outro modo8.
So vrios os trabalhos publicados que agrupam mitos ou os citam, por autores de
variadas formaes: acadmicas ou no, brasileiros ou no, adeptos ou no de religies de
matriz africana9. Por termos o interesse em investigar o trnsito oral/escrito na produo das
narrativas mticas afro-brasileira, decidimos que nossa investigao deveria incluir textos
escritos, por algum que, (in)formado na presencialidade das comunidades-terreiro, onde a
transmisso oral predominante, compreendesse a escrita e a publicao como mais um e
eficaz instrumento para a manuteno dessa mesma tradio.
No processo de pesquisa bibliogrfica chegamos s publicaes de Beatriz Moreira
Costa, a Me Beata de Yemonj, ialorix ativista na luta para atribuir visibilidade a sua
tradio, bem como a seu povo. Cardoso, na Introduo de Caroo de Dend relata:
A publicao dos contos de Me Beata significa a remoo dessas histriasdo limite dos terreiros e sua insero num contexto ainda mais amplo dacultura brasileira. Esse processo implica uma traduo dos contos de umalinguagem falada para uma narrativa escrita, uma modificao no prprioato de contar. (CARDOSO apud YEMONJ, 2006, p.11-12)
Na leitura dos contos de Me Beata de Yemonj estvamos diante de elementos
significativos: viva e atuante, Me Beata cruza memrias baianas e fluminenses, uma s e
muitas... Um dos resultados de sua ao no mundo a torna, tambm, um dos porta-vozes de
sua tradio. Em Caroo de Dend: a sabedoria dos terreiros e Histrias que minha av
contava,10 a ialorix-escritora rene um conjunto expressivo de textos. So, como aparece no
subttulo de Caroo de Dend, indicadores de como ialorixs e babalorixs passam
conhecimentos a seus filhos. So eles as fontes-objeto dessa pesquisa, que tem duas
intenes explcitas. A primeira compreender como se deu, para Me Beata de Yemonj, o
processo criativo de apropriao, contao e escritura dos contos mticos. A segunda inteno
garimpar nas prticas educativas institudas a partir das narrativas mticas, contribuies na
e para a Educao. Momento de perguntar aos mitos: o que eles falam? Proposio de
compreenso transdisciplinar dos contedos mticos, considerando suas complexidades.
8 Como em Eliade estamos compreendendo o mito como uma realidade cultural extremamente complexa, quepode ser abordada e interpretada atravs de perspectivas mltiplas e complementares. (ELIADE, 1986, p.11)9 Ver PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixs. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. No Prlogo,apresenta-nos fontes que vo desde Nina Rodrigues (1898) a Me Beata de Yemonj (1997).10 YEMONJ, Me Beata de. Caroo de Dend: a sabedoria dos terreiros. Como ialorixs e babalorixspassam conhecimento a seus filhos. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2006.COSTA, Beatriz Moreira Costa. Histrias que minha av contava. So Paulo: Terceira Margem: CESA Sociedade Cientfica de Estudos da Arte, 2004.
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Uma comunidade-terreiro tem sua frente uma sacerdotisa ou sacerdote que traduz
em organizao e dinmica a tradio qual pertence; realizando nos processos de iniciao
e/ou em cerimnias pblicas, entre outros momentos, a transmisso de saberes que so
necessrios para a manuteno da comunidade. Vrios deles passaram a transmitir seus
saberes, utilizando-se da escrita, publicando livros, disponibilizando-os a um pblico mais
amplo e no necessariamente adepto de culto aos orixs e ancestrais. Com as publicaes,
essa sabedoria sai dos limites e do dinamismo do terreiro e ganha status de literatura. Obras
literrias publicadas e consumidas de formas variadas para os mais diversos fins.
Nos terreiros, os mesmos so transmitidos numa relao presencial, na qual os
elementos sonoros, rtmicos, visuais, plsticos, degustativos e olfativos constituem a dinmica
de ensino-aprendizagem. O que leva um sacerdote a escrever e publicar conhecimentos que
construiu no contexto presencial de sua tradio? Que apropriaes so possveis a partir do
contato com esses saberes?
No percurso da investigao estabelecemos contato com a ialorix-escritora,
diretamente, visitando sua comunidade-terreiro, bem como com seus editores, com os
prefaciadores e apresentadores dos livros.
Estivemos no Ile Omiojuaro em doze meses de trabalho de campo, doze vezes. Os
dois primeiros encontros agendados logo foram nos colocando limites inesperados. No
primeiro, nos recebeu em casa recuperando-se de um atendimento mdico. Contato rpido,
mas profundamente acolhedor. No segundo, adoentada ainda, Me Beata no pode nos
atender. Perodo de espera que nos conduziu a outras possibilidades. Visitamos e consultamos
a Biblioteca Beatriz Moreira Costa, acervo construdo e organizado pela CRIOLA11, ONG da
qual a ialorix Presidente de Honra, tendo seu nome civil na biblioteca. Outro acervo
consultado foi o do Portal Literafro12, acervo disponvel em meio eletrnico. Recuperada,
voltou a nos sinalizar ateno e interesse na condio de investigada, nos autorizando a dar
continuidade pesquisa no Il sempre que oportuno. Assim, realizamos mais onze visitas, das
quais estivemos diretamente com ela em quatro encontros: dois com registros fotogrficos e
todos com gravao de udio. Em trs encontros estivemos com Adailton dOgum, seu filho
carnal e Baba Egbe do Il Omiojuaro. Destes, um numa conversa informal, outro com
gravao de udio e registros fotogrficos e um ltimo para consultar o acervo bibliogrfico
11 CRIOLA uma instituio da sociedade civil, sem fins lucrativos, fundada em 2 de setembro e 1992. conduzida por mulheres negras de diferentes formaes, voltada para o trabalho com mulheres, adolescentes emeninas negras basicamente no Rio de Janeiro. Disponvel em Acessoem 09/08/200712 Disponvel em Acesso em 09/08/2007
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do prprio Il. Os demais contatos deram-se de forma indireta em celebraes religiosas na
Casa: um Olubaj, uma Festa dYemonj, uma Festa dOxssi, uma Festa de Caboclo
(cerimnias abertas) e um Feijo de Oxssi (cerimnia interna). Nestes, pudemos observar os
tan em movimento nos corpos dos devotos adultos e crianas nos alimentos servidos, nos
cnticos.
Desde os dois primeiros encontros, impedidos pelos cuidados com a sade da
ialorix, percebemos que tudo ali, desde a casa, o terreiro, o barraco indicavam elementos
essenciais para uma compreenso dos contos mticos por ela narrados. Abundante cultura
material. Entre a casa e o barraco, rvores sagradas, casas de orixs e encantados, a fonte de
Iemanj, um escritrio, banheiro. No barraco: o mobilirio de uma simplicidade e fora
surpreendentes. No h objeto naquele espao que no tenha significado para aquela
comunidade. Chifres de bfalo referncia Oy, Iab Ians, dona do ori de Olga do
Alaketu, me de santo de Me Beata funcionam como vasos de onde pendem pelas paredes,
flores e folhagens; bandeirinhas nas cores dos orixs homenageados cobrem o teto. Outra
soluo observada foi preparada para o dia de Festa de Yemonj: tecidos suspensos com
transparncias de pequenos peixes fazendo aluso ao domnio da Iab. Vasos de planta,
mscaras africanas, fotografias, condecoraes, diplomas, notcias de jornal. Instrumentos
(atabaques, cabaas, agogs). Circulao de devotos, aromas... Espao construdo calcado na
oralidade, com licena para a incluso de um escritrio, o que j evidencia uma
especificidade desta casa de Candombl. H ali um interesse no estudo, na participao e
representao daquela cultura em outros espaos e materialidades: instituies e organizaes
que tm como luta a visibilidade e o reconhecimento das prticas culturais afro-brasileiras e,
publicaes escritas, imagticas ou flmicas. O que fez nossos encontros flurem sem
resistncias por parte dos entrevistados: Zeca Ligiro (Filho do Il Omiojuaro e Doutor em
Performances Studies Direo Teatral prefaciador de Caroo de dend) e Regina dExu
(Filha do Il Omiojuaro e Membro da CRIOLA), alm, evidentemente, de Me Beata e seu
filho Adailton. Ouvimos, ainda, um relato espontneo de uma menina da casa que se
aproximou curiosa de nossa presena. Trouxe (cheia de indignao!) uma informao j
conhecida, mas que, ao ser enunciada por ela, corroborou em ns que, mesmo no havendo
ineditismo nos enunciados, importante que se os faam, com propriedade e potncia.
Por meio de correio eletrnico estivemos com o Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte,
um dos organizadores do Portal Literafro/UFMG, quando no processo de pesquisa
bibliogrfica encontramos um artigo produzido sobre as narrativas de Me Beata escrito por
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uma de suas orientandas13. Na ocasio, ele indicou-nos Feitios de viver: memrias de
descendentes de escravos14, uma tese de doutorado na qual havia um depoimento de nossa
interlocutora. Outros contatos foram feitos da mesma forma: Monique Augras (psicloga e
professora), autora do texto da contracapa, e Vnia Cardoso (antroploga e ekedi do Il
Omiojuaro), organizadora dos contos de Caroo de dend, Dilma de Melo Silva e Teresinha
Bernardo, apresentadora e prefaciadora, respectivamente, de Histrias que minha av
contava, deixaram, tambm, as suas contribuies e esclarecimentos em depoimentos e
indicaes de leituras relacionadas com o objeto da pesquisa. Com Cristina Warth,
representante da Pallas Editora, foi realizado um encontro. Oportunidade em que conhecemos
uma matria de O Globo, Caderno Ela, de maro de 1997 com o ttulo A literata do
candombl dando destaque publicao de Caroo de dend.
Me Beata de Yemonj verbete em Lopes (2007), Dicionrio literrio Afro-
Brasileiro e Lopes (2004), Enciclopdia Brasileira da Dispora Africana:
BEATA DE IEMANJ, ME. Nome pelo qual se fez conhecida BeatrizMoreira Costa, ialorix nascida em 1931, em Salvador, BA e radicada emNova Iguau, RJ. Em 1997, lanou o livro Caroo de Dend: a sabedoria dosterreiros, contento recriaes de relatos da mitologia dos orixs jeje-nags,alguns deles oriundos da tradio oracular de If, e pelo menos umabordando sua prpria histria de vida. (LOPES, 2007, p.30-31)
Tambm est includa no ndice de Autores do Portal Literafro, organizado pelos
professores Eduardo de Assis Duarte, j mencionado, e Jacyntho Jos Lins Brando. O texto
do ndice destaca uma biografia da autora e a relao de livros por ela publicados; dessa
vez, com o livro Histrias que minha av contava.
O conceito de literatura afro-brasileira com o qual estamos trabalhando refere-se
quele que tem orientado os trabalhos do Portal Literafro15. Neste, o conceito de literatura
afro-brasileira aparece como:um conceito em construo, processo de devir. Alm de segmento oulinhagem, componente de amplo encadeamento discursivo. Ao mesmotempo dentro e fora da Literatura Brasileira. Constitui-se a partir de textosque apresentam temas, autores, linguagens, mas sobretudo, um ponto devista culturalmente identificado afro-descendncia, com fim e comeo. Suapresena implica redirecionamentos recepcionais e suplementos de sentido histria literria cannica.(Acesso em: agosto 2007)
13 PINHEIRO, Giovanna Soalheiro. As Heranas Africanas na narrativa de Me Beata de Yemonj: mitologia,autoria, oralidade. Portal Literafro. Disponvel em 14 NASCIMENTO, Giselda Melo do. Feitios de viver: memrias de descendentes de escravos. Londrina: Eduel,2006.15 Disponvel em
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Entretanto, as expresses oratura e oralitura16 aparecero adjetivando certa escrita
literria, na qual a oralidade tradicional afro-brasileira produz fortes ranhuras, no caso da
primeira expresso, e, no caso da segunda, quando o prprio corpo superfcie de uma escrita
que se revela desde as cicatrizes rituais at a indumentria e adereos dos/nos corpos em
movimento, processo que acontece, igualmente, ancorado na oralidade.
Um nome sugerido por Me Beata, como algum que pudesse fazer um depoimento
enriquecedor acerca da literatura que ela produz, foi o do professor e escritor Muniz Sodr,
com quem fizemos um contato, de fato, bastante proveitoso. Neste contato tambm nos
deparamos com a expresso oratura. Neste caso, para nomear o tipo de literatura produzida
pela autora investigada. Trataremos dessa questo mais detidamente no captulo dois.
Com gravaes de udio, num total de quase oito horas, parte considervel de nossas
fontes so orais. As entrevistas e gravaes nos colocaram frente necessidade de uma
reflexo sobre as premissas metodolgicas da Histria Oral. Os depoentes so sujeitos e no
objetos da pesquisa, portanto suas presenas so fundamentais no processo de construo do
conhecimento a que se prope a pesquisa. Segundo Caldas (1999):
O mtodo no lgico, dogmtico, funcional ou aplicvel geral ouuniversalmente como sistema mecnico, tcnico ou cientfico, masperspectiva polifnica de dilogo, apreenso, compreenso, reconstruo,imaginao, criao e destruio de realidades, polticas, experincias, falase vidas. acionado por dvidas, questionamentos, instigaes, incompletudes,indignaes, paixes, embates de conscincias, dilogos e, principalmente,necessidades vivas do presente. o prprio presente buscando se entender ese superar: somos ns mesmos inscritos nessa luta. No o mtodo sistemalgico, estrutura previamente organizada para pesquisar um objeto de estudo( bom no esquecer que em Histria Oral no h um objeto de estudo, massujeitos em dilogo). (CALDAS, 1999, p.70-71)
O objeto os tan e os sujeitos dessa pesquisa encontravam-se na perspectiva da
oralidade. Notadamente com Me Beata e os depoentes do Il Omiojuaro, testemunhamos o
quanto os depoimentos recriavam-se a partir mesmo da tradio oral religiosa qual
pertencem, os prprios tan. Constitudo este arquivo, deu-se um processo intenso de
transcrio, seleo e arranjo dos falares. Processo de interpretao, de leitura do que se
ouviu. Hora, ento, de continuar o dilogo com outros sujeitos.
16 Ver MARTINS, Leda Maria. A Oralitura da Memria In: FONSECA, Maria Nazar Soares (Org.) Brasilafro-brasileiro. Belo Horizonte: Autntica, 2006.
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Isto posto, cabe acrescentar que os aportes tericos aqui operados so, alm daqueles
j relacionados at aqui, os que vo nos propiciar compreender as narrativas mticas em suas
complexidades: narrativas aparentemente fechadas que possibilitam acessos e enfoques
diversos. No devemos esquecer, entretanto, que uma refinada prtica de oralidade fez-se
prtica social e poltica de auto-afirmao de valores e crenas para um grupo significativo de
brasileiros/as que no dispensaram as tradies que lhes foram legadas por seus ancestrais.
Neste sentido, no se inclinaram razo e a cultura hegemnicas, nem quando foram
perseguidos por serem consideradas, suas prticas, ilegais17.
Quando voltamos discusso inicial acerca de paradigmas dogmticos de cincia e
cientificidade nos deparamos com a valorizao da escrita acompanhando a aliana
cincia/tecnologia. A escrita impressa, ela mesma, uma tecnologia. Processo que se fortalece
a partir do sculo XVII. As vozes tendero a ser silenciadas e o atributo de verdade e
legitimidade migra da palavra falada para a palavra escrita. Vidal, refletindo com Certau,
compreende esse momento como escriturrio, vejamos:
... o momento a partir do sculo XVII, em que a escrita, alm de ser umaprtica de poder e uma ferramenta dos saberes modernos constitui-se,tambm, em um novo modo de produo que modifica e articulasimbolicamente a sociedade ocidental. Funda uma nova economia que seaparta do mundo da vozes e da tradio, destituindo o valor daoralidade.(VIDAL, 2005, p.272)
A despeito das estratgias de silenciamento, a oralidade destituda de valor que
nos interessou. Os arquivos que guardam essas vozes tm chaves. Manej-las exigiu de ns
desenvolvermos observao atenta ao peso, aos contornos e s fechaduras encontradas no
processo de investigao. As narrativas vinculadas tradio oral afro-brasileira produzidas
por Me Beata de Yemonj ao mesmo tempo em que so objeto e fonte de nossa pesquisa,
traduzem-se em prtica social. Escrev-la, isto , separar, reunir, transformar em documento
este objeto que est disposto de outra maneira foi um dos grandes desafios desse trabalho.
Mesmo por que no nos interessava criar uma oposio escrita x oralidade, mas tom-las
como prticas intercambiveis, sobretudo no caso que pesquisamos.
Encontramos abrigo em tericos nossas chaves vindos de formaes e
produes distintas, mas que contriburam para alargar a compreenso de fenmenos sociais
complexos como os que se inserem no campo da produo e circulao de culturas. Quando
17 O candombl foi alvo de perseguio durante a dcada de 30 do sculo passado, sobretudo no perododiscricionrio do governo Vargas, conhecido como Estado Novo.
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pensamos que, por meio dessas narrativas, uma cultura no hegemnica pode, pela
transmisso oral, processo refinado e complexo, manter-se recriando-se, no foi possvel
deixar de pensar com Gramsci o par conceitual hegemonia/contra-hegemonia. Na hegemonia,
um sistema orgnico de manuteno do status quo de um determinado grupo, ou melhor, da
legitimao poltica de um discurso interessado. Na contra-hegemonia, outros arranjos e
meios de circulao discursivos que so forjados e permanecem. As tradies orais de
matrizes africanas e afro-brasileiras se incluem nessa categoria, especialmente durante e aps
a escravido. Uma vez que em frica, durante o perodo em que o comrcio de escravos foi
realizado, a tradies orais a que nos referimos constitua-se hegemonicamente, demarcando
lideranas religiosas e polticas. Portanto, o carter contra-hegemnico dessas tradies,
constituiu-se no processo de escravizao do negro africano na Amrica.
Os tan so produzidos nas prticas culturais religiosas afro-brasileiras e simbolizam-
se em linguagens18 So narrativas memorveis. Mikhail Bakhtin e Walter Benjamin foram
tericos importantes em nosso investimento reflexivo.
Os conceitos de narrao, de experincia bruta, Erfahrung, e experincia vivida,
Erlebnis produzidos por Benjamin, no bojo de suas crticas modernidade, ampliaram nossa
compreenso. No que diz respeito experincia, Benjamin dedica reflexo entre o que
possvel expressar experincia vivida (razo) e o inexprimvel experincia bruta (no-
razo). Nessa busca, vai confrontar experincia e conscincia. Mas no apenas a experincia
vivida que ganha uma narrativa elaborada no meio das massas civilizadas19, narrativa que
assume uma naturalidade questionvel. Para alm dessa, seria preciso reconhecer a
experincia bruta que conteria a autenticidade de experincia verdadeira, sua narrativa...
nasceria da palavra potica, da relao com a natureza, o mito, a memria e atradio. Da sua crtica modernidade que, substituindo a narrao pelainformao e a informao pela sensao, provocava a atrofia progressiva daexperincia e apagava a marca do narrador, que proporciona o que viveucomo experincia queles que o escutam. (NUNES apud FARIA FILHO,2005, p.89)
Chamou-nos a ateno dimenso que ocupa a narrativa oral, a tradio oral, o mito,
envolvendo uma coletividade, uma comunidade em torno de um saber prtico, utilitrio. Diz
Benjamin: Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugesto
prtica, seja num provrbio ou numa norma de vida... Afirma, ainda, que a narrao
18 A dana, a indumentria, as artes visuais, a msica.19 NUNES, Clarice. Walter Benjamin: os limites da razo. In. Faria Filho, Luciano M. de. Pensadores Sociais eHistria da Educao. Belo Horizonte: Autntica, 2005.
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vinculada sabedoria oral, mistura sagrado e profano: difcil decidir se o fundo sobre o
qual elas [as narrativas] se destacam a trama dourada de uma concepo religiosa da histria
ou a trama colorida de uma concepo profana. Esta sabedoria foi desaparecendo com o
advento da modernidade, comprometido com a valorizao da experincia vivida, da razo,
daquilo que pode ser explicado, comprovado. Parece-nos ser do lugar da Erfahrung que fala e
escreve Me Beata. Os relatos mticos, os contos nosso objeto guardam essa perspectiva
prtica e utilitria, aconselham e integram dimenses sagradas e profanas.
Por razes ticas procuramos desenvolver a pesquisa numa perspectiva dialgica.
Como orienta Freitas (2003):
Considerar a pessoa [o outro/sua produo] investigada como sujeitoimplica compreend-la como possuidora de uma voz reveladora dacapacidade de construir um conhecimento sobre sua realidade que a tornaco-participante do processo de pesquisa. Conceber, portanto, a pesquisa nascincias humanas a partir da perspectiva scio-histrica implicacompreend-la como uma relao entre sujeitos possibilitada pelalinguagem. (FREITAS, 2003, p.29)
Dialogismo. Polifonia. Estas so categorias bakhtinianas que se relacionam
diretamente com a questo da oralidade, da tradio oral. E tambm so categorias que nos
orientaram do trabalho de campo para o registro/discurso. Essas categorias fundam a presena
inalienvel do outro, fundam uma dimenso alteritria no campo da produo enunciativa.
Esta pesquisa nesse sentido no obra de um sujeito, insistimos. No h monologia possvel.
No ofcio de pesquisador, na observao, no olhar, tivemos a pretenso de sermos capazes de
enunciar algo que, sendo do outro e nosso, o outro e ns pudssemos ver revelado algo novo a
respeito de ns mesmos.
Ao realizarmos um estudo acadmico, uma pesquisa, considerando a autoria de
sujeitos (contador/escritor/ouvintes/leitores) na tradio mtica de matriz afro-brasileira,
portanto de vozes, quase sempre silenciadas, (re)dimensionamos a complexidade e a
responsabilidade deste fazer. O dilogo com essas vozes, nesta perspectiva, ganha um
contorno interativo. No contato e na observao com os outros: oralistas, autores, orientao,
fomos nos constituindo como pesquisadora, que ao observar depara-se com diferentes
discursos verbais, gestuais e expressivos (FREITAS, 2003, p.33). Isto, ao mesmo tempo em
que nos encantava, nos situava do aspecto tico, da construo do ser pesquisador, ou seja, de
produzir um conhecimento que no asfixiasse a diversidade, as mltiplas vozes, recobrindo-
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as, tomando-as como que espelhos que refletem apenas nossa prpria imagem, mas uma
pesquisa que acontecesse como encontro de sujeitos.
A organizao dos captulos acompanhou as questes que foram postas desde o
incio.
O primeiro, dividido em quatro sees, procurou rastrear a formao de Me Beata
na tradio oral religiosa afro-brasileira, no candombl; seu encontro com a escrita, a leitura e
os cruzamentos fabulativos tecidos em seus contos e nas estrias que leu; a vivncia criativa
dos mitos no cotidiano e a indivisibilidade da ialorix-escritora-ativista poltica.
No segundo, vamos dar voz a sujeitos que estiveram presentes nos processos de
edio e publicao dos livros, reconhecendo nos contos um valor extenso atividade
religiosa, um valor literrio. Literatura Afro-brasileira. Uma escrita prenhe de experincias na
oralidade. Na tradio oral afro-brasileira. Na qual a presena do universo fabuloso garante
um dinamismo performtico s estrias.
O terceiro captulo apresenta-se como um exerccio interpretativo dos contos. Ou
antes, prope compreenses, a nosso ver, possveis para suas tramas. Concepes de como se
conhece, de como se constri conhecimento, de como se aprende e se ensina. Epistemologia
j mencionada. Modos de conhecer que, como rastros possam nos fazer trilhar caminhos de
ressignificao sobre prticas-educativas recorrentes em espaos formativos como escolas.
hora, ento, de deix-los com os registros e as anlises da pesquisa.
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1. BEATA, MENINA E MULHER: TECENDO-SE NA ESCUTA, NA LEITURA E NA
ESCRITA DAS RODAS E REDES ANCESTRAIS...
Neste captulo procuramos indagar a formao de Me Beata de Yemonj: escritora20
e ialorix. Com este objetivo, estivemos com ela em vrios encontros no Il Omiojuaro. O
captulo est organizado em quatro sees que seguem articuladas pelos fios de seus relatos.
Embora as sees tomem como referncia os encontros, a trama vai ser tecida com fios
originrios de encontros diferentes. Isto , fios produzidos num encontro vo se encontrar com
fios desvelados em outro. A atividade de campo foi nos apontando como operar com as
informaes obtidas. Neste caso percebemos j no primeiro encontro vrios fios soltos que
precisariam unir-se a outros que procuraramos desfiar nos encontros seguintes.
Contudo, tivemos a inteno de explicitar, na primeira seo, as primeiras
experincias de Me Beata com o ouvir e o contar estrias e da mesma forma, como a mesma
apropriou-se da escrita e da leitura. Dos objetos aos contedos podemos perceber a imerso de
nossa interlocutora num ambiente extraordinariamente rico. Ela mesma avalia sua trajetria
atribuindo aos seus orixs, a fora que a animava a continuar, apesar de todas as adversidades.
Na segunda seo nosso foco esteve relacionado aos processos de iniciao na
leitura, na escrita, na religio, especialmente sua relao com Iemanj e Exu. Ento nos
deparamos com um processo altamente refinado. Os primeiros autores lidos, suas tramas e
personagens encontram-se com a produo de Me Beata. Na histria de vida de nossa
interlocutora esto presentes pessoas e ambientes que aparecem nas obras ficcionais de seus
autores/livros prediletos. Quando no so baianos e no esto ligados ao candombl
apresentam questes profundamente mobilizadoras para Me Beata; e que as personagens
recriadas por ela vo, muitas vezes, encarnar.
A vivncia no mito afro-brasileiro como modo de superao, de diverso, de f
religiosa e de registros orais e escritos nosso foco na terceira seo. nesta vivncia que
prticas educativas so institudas constituindo-se como elementos primordiais para a
permanncia transformada do prprio mito.
A ltima seo trata do mito em movimento no Il Omiojuaro e de como a escritora e
a palestrante so facetas constitutivas de quem Me Beata: uma ialorix de candombl.
Praticante social que reconhece sua fora motriz nos orixs, na ancestralidade.
20 Por hora trabalharemos com o vocbulo escritora. No entanto, nos captulos subseqentes faremos umareflexo acerca do termo e da experincia de Me Beata com a escrita, alm da escuta e da leitura.
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1.1 Do pssaro de ferro ao Caroo de dend.
Era domingo de manh. O encontro estava marcado para as dez horas. Chegamos
pontualmente ao Il Omiojuaro, comunidade-terreiro21 dirigida pela ialorix e escritora
Beatriz Moreira Costa, a Me Beata de Yemonj. Ou, simplesmente, Me Beata, como
chamada pelo povo do santo. Fomos recebidos no barraco do Il. Envoltos pela ambincia
religiosa, material e imaterial, transcorreu a nossa conversa. A escritora tem, publicado, os
livros Caroo de Dend: a sabedoria dos terreiros como ialorixs e babalorixs passam
conhecimentos a seus filhos e Histrias que minha av contava, entre outros escritos alguns
relativos a eventos que participa como palestrante. Os livros so, primordialmente, as fontes
dessa pesquisa que tem como objeto a mitologia afro-brasileira, na literatura de Me Beata de
Yemonj: literatura afro-brasileira. Esta, sendo compreendida, aqui, como um campo literrio
que se apresenta como devir, como processo em construo. As personagens e as tramas da
mitologia afro-brasileira so encarnadas e materializadas nas comunidades-terreiro.
Mitologia, liturgia, fazendo-se literatura. De certo modo, um mesmo objeto22 (PRANDI,
2001, p.27). O que torna complexo o desafio de: em primeiro lugar, compreender o processo
de formao da autora e as prticas-educativas prprias de sua experincia cultural-religiosa.
E, em segundo lugar, tom-los para (re)pensar questes na Educao.
Promovendo o encontro, Pai Celso dOmolu apresenta-nos. Comeamos, ento, a
conversa. Discorremos sobre nossas intenes: fala muito prxima do que expusemos no
pargrafo anterior. Situamos as primeiras questes na trajetria da contadora e escritora de
estrias. Como e quando se percebeu como sujeito de (re)criao? E a relao com leitura e
com a escrita, como aconteceu?
As informaes trazidas por Me Beata so detalhadas com nuances e ritmos
envolventes e, concomitantemente, falam de um tempo e de um lugar do Brasil: Beatriz
Moreira Costa, a Me Beata de Yemonj, nasce em 20 de Janeiro de 1931 em Santiago do
21 O Il Omiojuaro, Casa das guas dos Olhos de Oxossi fica no bairro de Miguel Couto, municpio de NovaIguau, Baixada Fluminense, Estado do Rio de Janeiro. Para a necessria apresentao, acompanhando-me noencontro estava o amigo e babalorix Pai Celso dOmolu do Il Ax Onan Aye Omi, Casa do Caminho da Terradas guas.22 As narrativas mticas, os mitos, so ritualizados/reatualizados nos cultos religiosos de matriz africana,compem uma liturgia e, no de hoje que, extrapolaram os muros das comunidades-terreiro. Agenor MirandaRocha, iniciado por Me Senhora, organizou a mais rica fonte primria brasileira. Outras obras importantes notocante mitologia pertencem a Pierre Verger e Mestre Didi, para citar apenas exemplos de autores iniciados.Este ltimo, inscrito no campo literrio afro-brasileiro: no ndice do Portal Literafro/UFMG, mencionado nanota anterior e em LOPES, Nei. Dicionrio Literrio Afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2007.
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Iguape, distrito de Cachoeira do Paraguau, no Recncavo Baiano. Aps ouvir, transcrever,
ler os relatos, produzimos alguns recortes, a fim de enfatizar dados que nos parecem
significativos para a compreenso do contexto de formao da menina Beata e,
respectivamente, identificarmos os objetos de leitura e escrita que fizeram parte da
constituio da autora. Vamos, ento, dar voz a Me Beata de Yemonj, e, simultaneamente,
dialogar com suas memrias.
1.1.1 Infncia em Iguape: ouvindo estrias e catando lenha.
Estvamos ali para saber de viva-voz como se arquitetara o gosto pelas estrias que
conta e escreve. Como aprendeu a ouvir, contar, ler e escrever. Ao comear seu relato
deparamo-nos com informaes que esclarecem bem o contexto scio-econmico e cultural
de formao da autora. Vejamos:
... eu tinha mania de inventar estrias. Um dia cheguei at a apanhar porisso... Ns morvamos no Iguape, no Recncavo Baiano, e fomos apanharlenha; quase toda tarde eu e outras meninas, ns amos pra o mato catarlenha que era pra abastecer a casa: pra cozinhar, pra esquentar gua prabanho, pra fazer uma fogueirinha pra botar na porta pra clarear, tudo isso...pra ns brincarmos e tudo....
Beata nasce no interior da Bahia, momento em que o Brasil enfrenta crises e
redefinies nos campos poltico, econmico e cultural. A partir de 1930 com o
enfraquecimento do poder oligrquico, favoreceu-se a criao de condies elementares para
a implantao do capitalismo industrial no Brasil. Isto vai alterar o quadro cultural e
educacional. Sabemos que at os anos da dcada de 30, do sculo passado, o pas era
predominantemente rural, dirigido por uma elite oligrquica que no compreendia como
necessria, por exemplo, a expanso do ensino, sobretudo para o interior. Acompanhemos a
fala de Romanelli:
A forma como se instalou o regime republicano no Brasil e como seconduziram no poder as elites, em nada modificando a estrutura scio-econmica, influiu para que, de um lado, no houve presso de demandasocial de educao e, de outro no se ampliasse a oferta, nem se registrassereal interesse pela educao pblica, universal e gratuita. No , pois, a faltarecursos materiais que se deve imputar maior soma de responsabilidade pela
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ausncia de educao do povo, mas estrutura scio-econmica quesobreviveu com a Repblica. (ROMANELLI, 2005, p.60)
As mudanas que viriam teriam relao com o desenvolvimento e a expanso da
indstria; inclusive o acesso informao, educao. Vo emergir aspiraes de parte da
populao brasileira, sobretudo, nas reas atingidas pela industrializao (ROMANELLI,
2005, p.60). O que significa dizer que a demanda escolar vai se dar de modo diferenciado,
pois onde os efeitos da industrializao no se faziam presentes, o acesso escola e a
compreenso do ensino como um valor social vai ser mais escasso. Julgamos importante
enfatizar essa questo, ao darmos incio s nossas reflexes porque o aprender a ler e a
escrever, no eram atividades que passavam, necessariamente, pela escola. Muitos o fizeram
independentemente da ao do Estado.
Na fala de Me Beata divisamos uma Iguape que se insere num imenso conjunto de
cidades e vilas brasileiras que estavam longe dos benefcios e dos malefcios da
industrializao que despontava no Brasil como uma promessa de modernidade.
Fogo a lenha, ausncia de energia eltrica. A madeira, combustvel necessrio para
prover as casas, era recolhida no mato. Por meio dela: o alimento, a higiene, a iluminao e,
tambm, o brinquedo, a brincadeira. Nesse contexto a menina vai fazendo seus primeiros
contatos com o mundo, seu mundo, seu povo: ex-escravos, ex-escravas, detentores de vasto
repertrio de estrias mticas e ancestrais que rememoravam em noite de lua ou na roda das
casas de farinha onde trabalhavam, todos adultos e crianas. Cena que nos descreveu
quando perguntamos se ouvia estrias, de quem. Falante e ouvinte das experincias
individuais e coletivas, Beata queria ler e escrever. O que no se traduzia numa demanda para
o Estado como vimos, mas tambm no, para seu pai. Pois ele havia decido que menina no
precisava aprender a ler e escrever, pra no fazer carta para namorado. Ainda assim, curiosa,
estava decidida: aprenderia a ler e a escrever. Retornaremos a essa aventura mais tarde. Agora
vamos ouvir a estria que foi interrompida acima.
1.1.2 Mente-indo: O pssaro de ferro.
E eu tinha mania de criar estrias e, por causa dessas estrias, eu atapanhei de meu pai porque uma tarde fui com as meninas apanhar lenha einventei que tinha visto um bicho enorme! E tava aquele negcio de... Como
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o nome? De disco voador... E eu inventei que tinha visto; eu com as meninas.E fiz as meninas confirmarem que tinham visto um bicho levantar de dentro domato, um bicho enorme de asas! E que tinha nesse lugar trs ovos enormes equando ns estvamos chegando perto, o bicho voou e ficaram l os trs ovos.Aqueles ovos enormes, quentes! Isso foi um rebulio, todo mundo correu. E oque foi? O que foi? Papai tinha um botequim, quitanda como era chamadanaquele tempo... a todo mundo que tava quitanda se enveredou pelo matoadentro... - Cad?! Cad?! E eu mostro aqui e eu mostro ali e eu noreconhecia o lugar. Quando eu cheguei casa eu ganhei seis bolos. Que asmeninas comearam a dizer que era mentira: - Ah! Foi Beata que mandou agente contar! Eu disse que era o pssaro de ferro. A o pessoal dizia: - um disco voador! E por causa disso eu tomei seis bolos. Meu pai me deu seisbolos pra no mentir. Que no se devia mentir... Mas, criao da minhamente. Eu tinha mania de... era barata, era rato, tudo. Eu escrevia em pedaode papel depois que eu aprendi a ler. Escrevia, criava uma histria com essascoisas, criava mitos e tudo e fui... Levei vrios anos juntando essesescritozinhos..
Essa a histria do pssaro de ferro, que saiu da terra. Pssaro gigantesco que ardia
como fogo. Havia posto trs ovos quentes e enormes, no mato, e depois, voou.
1.1.3 Seis bolos para a mente no ir e a seduo da escrita e da leitura.
Do que precisa um bom contador de histrias? De uma boa estria; que mobilize os
ouvintes e/ou leitores, que os faam entrar na trama, viver a estria. Uma fora interativa.
Parece-nos que nesse episdio a menina conseguiu o feito. Inventou. Criou. Convenceu.
Mentiu? Mobilizou toda a sua comunidade, para no encontrarem, no mato, vestgio da
estria. Talvez tenha excedido na frmula, na experimentao, pois o pssaro de ferro,
tomado pelos adultos como disco-voador, algo extraterrestre, custou-lhe seis bolos. Seis fortes
tapas, na palma da mo, para aprender a no mentir, a no enganar. Medida disciplinar,
prtica-educativa bastante conhecida, sobretudo entre ex-escravos que ao desobedecerem ou
desagradarem seus antigos donos, sofriam castigos fsicos como punio; mas algo
disseminado, como natural, nos mais diversos grupos sociais.
No caso da relao pai-filha, o conflito estava estabelecido como dissemos em outra
parte. Beata tinha decidido, apesar das negativas, que continuaria a criar e que leria e
escreveria. Assim, foi produzindo tticas de subverso da ordem prestando a ateno no
mundo das letras, das palavras faladas e escritas. No havia tenso ali. Eram aes que lhe
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brotavam indissociveis. Algo que podemos supor que a menina, filha do dono da quitanda,
muitas vezes testemunhasse as anotaes nas habituais cadernetas onde ficavam registrados os
movimentos de compra e venda dos fregueses do pequeno comrcio. Prestaria ateno nos
rtulos das embalagens, nas imagens, e dito por ela, nos almanaques que chegavam a Iguape e
que circulavam, quem sabe, a partir da quitanda do pai. hora, de novo, de dar voz a Me
Beata. Ela apresenta-nos seus objetos de leitura e escrita e neles um captulo da Histria da
Educao e da Leitura no Brasil. E, ao mesmo tempo, reafirma sua crena em seu orix: Exu,
atribuindo-lhe o poder de t-la feito despertar para aquela materialidade.
Isso que eu estou passando pra voc com o saber que Olorum... [me deu],sem ter freqentado escola, sem ter academia, porque meu pai me dizia quemulher no precisava aprender pra no escrever carta pra homem e euatravs de jornal velho, atravs do almanaque, que eu tenho muito respeito aoAlmanaque Biotnico Fontoura23 e daquele, daquele remdio, como o nome?leo de fgado de bacalhau!24 Vinham com um almanaque e eu apanhava e liaaquilo que estava escrito. No podia ver uma escrita. Um papel jogado na ruae eu apanhava pra ler. Eu sei que no era eu. Algo superior a mim, como Exu.Ele fazia. Ele sabia que eu ia ter necessidade de passar isso para meus irmos.[Antes de a senhora ir para escola, ento, j fazia isso?] Eu j fazia isso. Eu?Numa areia eu fazia o A. Na minha terra tinha caminho de areia: eu fazia abola, fazia o rabinho. Est entendendo? Quando eu entrei na escola eu jsabia a-e-i-o-u. Eu j fazia em papel velho. No terreiro l de casa, eu escreviacom carvo. Meu pai dizia: - Voc maluca menina?! Ento algo tinha atrsde mim, havia uma fora que estava me levando para esse caminho, sabia queeu ia precisar e eu no me arrependo...
L vem histria. O fato dos governos republicanos at ento no terem preocupao
com a extenso do ensino para as populaes do interior no quer dizer que no tivessem (o
governo e seus aliados) um projeto pedaggico para as mesmas. Um projeto civilizatrio que
inclua higienizao, aparncia saudvel, dirigida especialmente aos caboclos, aos Jecas
Tatuzinhos do Brasil. Por outro lado, os almanaques de farmcia cumpriram papel
23 O primeiro nmero saiu em 1920, elaborado e ilustrado por Monteiro Lobato, com uma tiragem de 50 milexemplares. Entre as dcadas de 1930 a 1970, a tiragem oscilou entre dois e trs milhes e meio de exemplares.Distribuio do Instituto Medicamenta Fontoura S.A. Ver MEYER, Marlyse (org.). Do Almanak aosAlmanaques. So Paulo: Ateli Editorial, 2001.24 A Emulso Scott fabricada h mais de 110 anos pelos laboratrios Smithkline Beecham, sendo vendida emmais de 150 pases. Esta marca comeou a sua histria em 1830, em um pequeno laboratrio aberto por JohnSmith. Mais tarde, foi incorporado pela empresa de Mahlon Kline, em 1875, transformando-se no maioratacadista de farmcias da Filadlfia. No Brasil, ela foi fabricada pela primeira vez em 1908, em So Paulo. Emseguida, essa fbrica foi transferida para o Rio de Janeiro, comeando a produzir, tambm, o sal de frutas Eno. AEmulso de Scott era feita a partir do leo de fgado de bacalhau e garantia ser um fortificante e reconstituintefsico, rico em vitaminas, clcio e fsforo e continua sendo vendida principalmente nas regies norte e nordestedo Brasil. Ver ACCIOLY, Anna et alli. Marcas de Valor no Mercado Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Senac,2000.
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fundamental na dinamizao das prticas de leitura e escrita no pas. Vo ganhar fora a partir
do desenvolvimento da indstria farmacutica. Estas vo investir maciamente em
publicidade, tendo nos almanaques seus carros-chefes. Encontramos em Gomes25, o seguinte:
Milhes de exemplares dessas publicaes foram editados e distribudos portodo o pas. Formato gil equilibrando seu carter intrinsecamente comercialcom o esprito e o contedo dos almanaques tradicionais levou no s apopulaes urbanas, mas a pequenas comunidades rurais, uma possibilidadede informao e entretenimento. Para muitos, em determinadascircunstncias e frente carncia material e cultural do meio, o almanaquerepresentou o livro e a revistinha infantil; em outras ocasies, assumindocarter e funo particularmente inusitados, fez a vez da prpria cartilha,auxiliando adultos e crianas no aprendizado da leitura.Adotados e adaptados dessa forma pela populao, transcenderam aosimples carter panfletrio, instalando-se como hbito de leitura. (GOMES,2006, p. 1008)
No caso especfico do Almanaque Biotnico Fontoura, a menina Beata faz contato
com a escrita de Monteiro Lobato, amigo de Cndido Fontoura, o proprietrio do laboratrio.
Lobato idealiza o almanaque e cede, ao mesmo, o seu personagem Jeca Tatuzinho. Na
Introduo do livro Histrias e Leituras de Almanaques no Brasil26, de Margareth Brandini
Park, Roger Chartier vai apontar o valor dos almanaques de farmcia dizendo: sua
importncia para a cultura brasileira se mede em suas enormes tiragens (...) e a sua forte
presena nas lembranas de leitura, ou de escuta, dos mais modestos leitores e continua:
No Brasil do sculo XX, os almanaques farmacuticos assumem (...) a tarefada educao sanitria e moral do maior nmero de pessoas. (...) eles seinscrevem, a sua maneira, na filiao dos almanaques esclarecidos epedaggicos do tempo das Luzes. (...) O Almanaque Biotnico Fontourafornece a mais espetacular traduo desse objetivo com o folclricopersonagem Jeca Tatuzinho, criado por Monteiro Lobato. Circulando entre oalmanaque, os folhetos e os livros para crianas, o personagem encarna opossvel e necessrio progresso que far do caboclo miservel e degeneradoum cidado so, instrudo e til. (CHATIER apud PARK, 1999, s/n).
Nas imagens que seguem podemos ter uma viso de um dos objetos de leitura de
Me Beata, o Almanaque Biotnico Fontoura, entretanto mais adiante vo nos ajudar numa
25 O autor esclarece, na abertura do artigo que trabalhou com um acervo que at o momento rene cerca de 350exemplares de almanaques de farmcia. Constitui-se em sua maioria de publicaes relativas s dcadas de 1930e 1940, quando atingiram o auge de sua qualidade e seu nmero de circulao. GOMES, Mrio Luiz. VendendoSade! Revisitando os antigos almanaques de farmcia. In. Histria, Cincia, Sade-Manguinhos, vol.13, n.4. Rio de Janeiro Oct. /Dec. 2006. Acesso em 09/08/0726 CHARTIER, Roger. O Livro dos livros: os Almanaques no Brasil In. PARK, Margareth Brandini. Histriase Leituras de Almanaques no Brasil. Campinas: Mercado de Letras, 1999. Acesso em 09/08/07..
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reflexo sobre polticas de branqueamento e desqualificao de prticas culturais
afrodescendentes27. As mesmas esto presentes no artigo eletrnico de Gomes (2006)
Ilustraes 1 e 2 Almanaque Biotnico Fontoura
27 GOMES, Mrio Luiz. Vendendo Sade! Revisitando os antigos almanaques de farmcia. In. Histria,Cincia, Sade-Manguinhos, vol.13, n.4. Rio de Janeiro Oct. /Dec. 2006. Acessoem 09/08/07
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1.1.4 O tempo! De menina mulher: lendo, escrevendo, (re)criando.
Aps ter narrado como foi se construindo como leitora e escritora, Me Beata vai nos
arremessar mais para frente no tempo. Vai nos contar como foi que, de menina que ouvia
estrias de tia Jovita e tio Brasilino, o mais fantstico contador de histrias que conheceu
quem sabe em quem tenha buscado inspirao para o Pssaro de Ferro, publicou seu primeiro
livro.
Alm de eu criar, eu ouvia e absorvia porque no nosso tempo no existiardio... No tinha televiso. O que era a nossa distrao? Era brincar deroda, noite de lua, brincar, de pique - esconde brincar de ciranda, que eramuito importante. Brincar de trs Marias, capito, jogo de castanha. Erapular corda, era tudo isso... E ouvir estrias dos mais velhos, dos avs, comoeu tinha titia Jovita. At no prprio colgio tinha estrias, tinha contadores deestrias. No interior, antigamente no Iguape, no Recncavo, tinha contadoresde estrias. Quer ver? Eu tinha um tio que era to capaz! Que ele era tratadocomo mentiroso. Ento esse meu tio, titio Brasilino, ele era grande contadorde estrias, ele criava. E eu ouvia aquelas estrias. E se a gente tava na casade farinha raspando mandioca pra fazer a farinha sempre era uma roda, comum monte de mandioca ali no meio, todos ns ali com a faca descascando amandioca. Mas sempre se contava uma estria, sempre se lembrava algumacoisa e eu, como sempre, gostava! Ouvia tudo isso e, ainda, eu tinha poder,no sei, Olorum me deu esse poder de criar personagens como a no Caroode dend eu dou vida a Obi, eu dou vida ao Odu Ojonil, eu dou vida ao OduOss (...).Cresci, depois me casei, a tive filhos, depois de vrios anos, depois deiniciada de candombl, comecei a escrever em cadernos. Escrevia, ali, aminha criatividade.
A menina d lugar mulher. Os eventos transcorridos na vida de Beata: crescer,
casar, ter filhos, afirmar uma religiosidade, no so incomuns, para o tempo em que a menina
nasceu e cresceu. O que vai tornar singular sua trajetria o fato de radicalizar sua opo por
um conhecimento entrecruzado: imanente-transcendente. F e Poltica. Resistncia. Luta pela
direito dignidade material e espiritual de seu povo. O povo do santo. Luta por todo afro-
descendente, mas tambm por todos aqueles que, independente de etnia ou religio, tm
direito a uma vida cidad plena. Assim expande seu Il: da porta para dentro e da porta para
fora. Apresenta-se como uma ialorix engajada, agora, na Baixada Fluminense, lugar onde
criou os filhos depois que saiu da Bahia. Na expanso do seu Ax, muitos filhos e filhas
acorreram aos seus cuidados. E foi conversando com uma ekedi do Il, Vnia Cardoso, que os
seus contos manuscritos em papis e cadernos foram ganhando visibilidade. Para a ekedi,
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antroploga tambm, evidenciou-se a possibilidade da organizao dos contos num livro.
Acompanhemos o relato.
... eu tenho uma ekedi aqui que se chama Vnia, ela estudava no Texas.Quando foi uma vez, (eu tenho uma mania: eu fico com fome, mas compro umlivro) Vnia olhando meus livros disse: - Mas Y a senhora tem livrosimportantssimos aqui! [enumerou os ttulos, inclusive em ingls] Ela disseassim:- Como que a senhora l esses livros a?
Eu disse assim: - Eu copio aquele textozinho que eu quero entender. Eu tenhoum dicionrio muito bom de ingls e portugus que tem tudo, e a eu sei que euconsigo ler.Ela ficou admirada! E nisso que ela est mexendo achou os cadernos...- E isso aqui?Eu disse assim:- So estrias que eu um dia eu tenho vontade de publicar, de fazer um livropra criana.Ela comeou a folhear e disse:- Y aqui tem coisas interessantes vamos publicar esses mitos?!- Como?!- Vamos procurar uma editora pra gente... Eu vou passar tudo a limpo, voupassar pra fita... E a gente vai publicar.Eu disse: - Engraado... Eu tenho recebido muitos catlogos da Pallas.- A senhora sabe o endereo da Pallas?- Eu disse: _ Olha aqui, a dei a ela.Ela liga pra Cristina da Pallas dizendo que eu tinha todo esse trabalho. ACristina ficou doida! J no outro dia veio aqui, veio de nibus, veio com aVnia. Quando ela viu... Ela a, disse:- Vamos cuidar...
Eu disse:_ Eu quero que tenha o nome da Vnia a tambm.
Pronto! A escrevi Caroo de dend! Que sobrou estria que ainda tem pralanar mais outro livro....
Mudara efetivamente os suportes e os objetos de escrita. Dos caminhos de areia, do
terreiro, dos papis de po, dos gravetos e dos carves, adulta, os cadernos vo ser os lugares
de registro, de todos os escritozinhos que acumulou vida a fora.
No foi diferente com os suportes da leitura. Dos jornais velhos, dos rtulos, das
cadernetas da quitanda, dos almanaques aos livros e dicionrios. Muitos. A leitura sempre
como um desafio. Ler em outro idioma? Sim, nada de recuar. Ultrapassar. Passar. Passar a
pensar, quem sabe, um dia, em publicar livros.
Estava prximo o dia. Vnia faz trabalho de garimpagem no acervo de sua Y. Ela e
Cristina Warth Pallas da Editora entenderam que estavam diante de uma oportunidade mpar:
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apresentar como literatura, cultura afro-brasileira28, as estrias mticas e ancestrais de Me
Beata de Yemonj. Assim nasceu Caroo de dend: a sabedoria dos terreiros, como ialorixs
e babalorixs passam conhecimentos a seus filhos.
1.1.5 O Caroo de dend e os quatro cantos do mundo: outras viagens.
O conto O Caroo de dend (p.97) refere-se ao controle e conhecimento que Olorum
tem dos quatro cantos do mundo por meio do caroo de quatro furinhos. Confiou-lhe esta
misso. O que o caroo cumpre fielmente. E ainda conta com a lealdade do caroo de trs
furinhos que no tendo recebido tarefa especial de Olorum cuida para que o seu irmo o possa
desempenhar com sucesso. Provocado por Exu, o caroo de trs furinhos demonstra que, na
verdade, dependeria dele, tambm, a harmonia desejada por Olorum. Assim os frutos do
dendezeiro, de quatro e de trs furinhos so essenciais para a vida de um Il. ele o maior
emanador de Ax, fora vital. Andando pelos quatro cantos do mundo, Me Beata, vai
repartindo o que sabe e pode revelar. Zelada pelo dendezeiro, os olhos de Olorum.
Ainda que tenha estado imersa num sem nmero de vivncias educativas e
educacionais, escolares ou no, que levariam a menina, a mocinha Beata a desprestigiar sua
origem na fronteira da afro-brasilidade; a mulher, afirmou-se como herdeira de um legtimo
constructo brasileiro. Pela f acredita-se como algum predestinada a lutar pelo seu povo.
Ainda que tenha lido os almanaques de farmcia e os respeite, no se dobrou s mensagens
subliminares: a desqualificao do mestio, do ambiente rural, de sua cultura. A imposio de
um padro de beleza e sade hollywoodianos do Almanaque Biotnico Fontoura, que
colocava na sombra a constituio tnica plural do povo brasileiro. No se dobrou.
No se dobrou, menina ainda, submisso de gnero ou etria. Aprendeu a ler, a
escrever. Conta estrias que ouviu e as que inventa. E suas palestras, suas cartas abertas. Fala
a homens e mulheres sobre a possibilidade de um mundo melhor para todos. Em nome de
Yemonj e Exu declara-se: mulher, nordestina, ialorix do candombl, afro-descendente. E
anuncia a sua identidade aos quatro cantos do mundo!
28 Caroo de dend est entre os livros que compem o Catlogo Infantil e Juvenil da Pallas Editora com osseguintes atributos: Assunto lendas africanas; Pblico juvenil; Tema deuses afro-brasileiros,comportamento e tica.
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1.2 Fico e realidade ou quando no existem fronteiras?
Novamente, pela manh, encontramos Me Beata em seu Il. As aparies da
ialorix evidenciam um esmero esttico. Mulher idosa, sade exigindo cuidados, mas sempre
exibindo seu alac, seu oj com duas abinhas, suas sandlias, anis, pulseiras, brincos, fios-
de-contas, unhas feitas. Tudo harmoniosamente colocado. Altiva. Uma mulher que no se
intimida com a presena de microfone, de cmeras digitais, de gravadores de udio. Quer
mesmo falar. Assumiu para si o lugar de quem anuncia, pronuncia e denuncia questes
relativas seu povo, o qual ao nosso entender, observando atentamente sua fala, est para
alm de ser o povo do santo, incluindo os que vivem ainda sob o jugo do preconceito, das
injustias sociais. Ento, afrodescendentes: negros, mestios e, tambm, ndios, e brancos,
todos que, neste pas, se encontram a margem de processos produtivos dignos, lutando por
aes afirmativas e polticas pblicas que reparem sculos de desateno e descaso polticos,
todos esses, podem ser incorporados categoria de Seu Povo. Contudo, evidentemente, sua
fala est permeada de miticidade, de sua crena religiosa, da marca de seus ancestrais de Orun
e Ai. Marcadas por seus orixs, responsveis pela comunicao: Yemonj e Exu. Teresinha
Bernardo no Prefcio de Histrias que minha av contava frisou:
Exu, alm de ser o homem da encruzilhada tambm pode ser encontrado nasportas, nas entradas das cidades, nas fronteiras dos Estados. Ele est sempreem movimento, mensageiro, o viajante que vem de longe e se apressa apartir. Ele representa a passagem, a mudana, transio, o movimento.Iemanj por sua vez, na frica representava o rio Ogum, na disporatransformou-se no mar. Se essa metamorfose sofrida pela deusa diz respeito comunicao; assim representa a unio do contingente africano que viveu adispora e seus descendentes... (BERNARDO apud COSTA, 2004, p.07)
No podamos deixar de seguir nossa investigao sem levar em conta o destino de
seus orixs. Estes, nela, realizam-se. Essa, sua autopercepo. o que nos seus orixs. Sim,
preciso considerar o ponto de vista daquele que nos atraiu para o ofcio de perguntar, ouvir e
escrever. Escrita de pesquisador que aprende para tornar pblico o seu aprendizado29. Beata
vai cruzando a experincia de ouvir e contar as estrias que circulavam, oralmente, em famlia
e nos terreiros que freqentava, com a experincia de ler e escrever anotar. cativante o seu
relato:
29 Nossa observao no deixa de ter um carter etnogrfico e, com Freitas, consideramos que o que se buscacom essa observao no realizar uma anlise, entendida em seu sentido etimolgico (...) mas umacompreenso marcada pela perspectiva da totalidade construda no encontro dos diferentes enunciadosproduzidos entre pesquisador e pesquisado.(FREITAS, 2003, p.31)
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... s vezes minha me [Olga do Alaketu] falava uma palavra ou uma folha...eu sempre trazia dentro do seio um cotoquinho de lpis e um pedao de papel.A escrevia e botava dentro dos seios. Depois, ento, eu ia l e lia aquelapalavra, aquela cantiga. Quando no era assim, eu inventava que estava comdor de barriga. Corria, entrava no banheiro e escrevia aquela palavra ouaquele cntico dela. Tanto dela como do meu primeiro pai-de-santo que foi ofinado Ansio Agra Pereira, na Avenida Ribeiro dos Santos, n.18, em frente antiga oficina da Prefeitura nas Sete Portas. Aprendi muita coisa com ele. Elefoi pra guerra e voltou com um defeito no olho, ento ele tinha dificuldadequando estava jogando, s vezes, de escrever. E eu sempre junto dele. Eleficava passando os ebs. Jogava e passava os ebs. Eu ficava vendo. Quandoeu saia dali, me trancava, me escondia e ia... [anotar] Eu abi, j sabia jogar.E j sabia muitos ebs...
Percebe-se nesse processo de aprendizagem que Beata via em seus gestos furtivos
uma atitude transgressora, quase ofensiva. Por que seus pais no poderiam presenciar ou
saber de suas anotaes? Suas operaes de caa? Pretendemos responder a essas
questes em reflexes posteriores. Por enquanto afirmamos que escrevia para no esquecer,
escrevia para saber e, aos poucos, foi descobrindo que escrevia para partilhar, para comunicar
a seu povo e a quem mais se interessasse pelas estrias ancestrais que coletava, criava e
recriava. A idia de transformar aqueles saberes em livro, em objeto de circulao foi se
conformando. Assim, a funo social da escrita ia consolidando-se, tornando-se cada vez mais
consciente.
Jovem ainda, na Bahia, sente-se tocada com autores das mais diversas filiaes
formativas. Suas temticas a sensibilizavam. Logo, descobriu no livro um objeto atraente,
mgico, capaz de conter foras imaginativas emocionantes, um poderoso recipiente e veculo.
Passam, ento, os livros, a fazer parte de seu cotidiano. Acompanham-na vida afora.
Encontrou neles outros contadores de estrias com experincias e temticas muito
diferentes daquelas que conhecia e registrava em seus cadernos, uma vez que a escrita como
tecnologia auxiliar da memria havia se tornado hbito tal qual o da leitura.
Em mais uma oportunidade para continuar refletindo com ela sobre sua formao,
interessava-nos, outrossim, os autores que a influenciaram, os primeiros livros lidos. Ainda
que concebamos a leitura como um ato primrio, extenso, que precede a decodificao de
uma escrita30, na seqncia, intencionamos compreender de que maneira ou se seus
primeiros livros/autores vo marcar sua escrita, seu repertrio.
30 Compartilhamos com Manguel, ...Todos lemos a ns e ao mundo nossa volta para vislumbrar o que somos eonde estamos. Lemos para compreender, ou para comear a compreender. No podemos deixar de ler. Ler, quase
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Ao perguntarmos qual o primeiro livro que leu, nos surpreende com uma resposta
muito mais rica do que pretendamos com a pergunta. Enumerou seis autores. Garante que foi
com eles e a partir deles, dos primeiros escritores que conheceu, que percebeu que tambm
tinha esse poder, o poder de escrever, de construir narrativas autorizadas por Olorun e,
animada, falou sobre seus primeiros autores de cabeceira, depois que foi capturada pelo hbito
de ler.
... quando eu vim conhecer um apego maior a escrita, por que a oralidadehavia, eu me interessei muito por Cassandra Rios. Ah! Eu sou fantica, eugosto muito de livro picante. Eu achava que ela no era uma escritorapornogrfica. Ela era uma escritora daquilo que o ser humano precisa: oamor. Ela, atravs de seus livros picantes, ela passava o amor entre seres,dois seres ou duas mulheres ou dois homens, o que o mundo condena. Entoisso me tocava muito como at hoje me toca. Eu acho que o amor vlido atodo o momento.Vasconcelos Maia, que escreveu Leque de Oxum, Capites de Areia, OsVelhos Marinheiros de Jorge Amado. E adoro A Mestia de Gilda de Abreu,um livro lindo! O Cascalho de Herbert de Sales. Grande livro! Adoroliteratura popular. Eu sou f da Literatura de Cordel. Um dos maiores foiCuca de Santo Amaro.
Surpreendente! Universo diverso! Nesse universo de leituras podemos encontrar
pistas para afirmar que a polifonia presente na literatura de Me Beata ultrapassa as fronteiras
da cultura religiosa a qual pertence, como bem evidenciou Ligiro no prefcio de Caroo de
dend31.
Ainda segundo Ligiro, no conjunto de contos encontramos ambincias religiosas e
personagens, ligados ao culto de ancestres, originrio do Kongo, bem como expresses do
campo semntico Banto. Encontram-se tambm referncia s pretas velhas como o caso do
O cachimbo de Tia Cilu e da prpria Tia Afal, a preta velha parteira que traz a menina
Beata ao mundo, como tantas que se apresentam em Umbanda. Quando sinalizamos
referncias de outras culturas em seus contos, ela mesma afirma:
como respirar, nossa funo essencial. (...) Ler descobri vem antes de escrever. Uma sociedade pode existir existem muitas, de fato sem escrever, mas nenhuma sociedade pode viver sem ler (MANGUEL, 1997, p.20)31 Segundo Ligiro Embora a autora pertena assumidamente tradio Ioruba, podemos perceber tambmelementos culturais de grupos tnicos Bantos, notadamente os provenientes do antigo reino Kongo e quecomearam a chegar ao Brasil pelo menos 300 anos antes dos Iorubs, e que disseminaram suas culturas nassenzalas do interior do pas, bem como nas ruas das capitais coloniais, Salvador e Rio de Janeiro. (LIGI