orelha 1 - universidade federal do maranhão · 2020. 11. 16. · jornal do dia, no jornal do...

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  • 2

    Orelha 1

    Observando e Anotando

    Raimundo Rocha

    Raimundo Rocha nasceu em Patú (RN), em

    1919, e faleceu em São Luís no ano de

    1969.Como ocorre freqüentemente com os

    nordestinos, morou em muitas cidades

    diferentes antes de chegar a São Luís, onde

    viveu seus treze últimos anos. Esse livro

    testemunha sua vida em Patú, Lucrecia,

    Assú, Pau dos Ferros, Mossoró, Teresina,

    Fortaleza, Pedreiras e São Luís, reunindo

    suas observações ali realizadas,

    especialmente sobre aspectos da cultura

    nacional menos controlados pelas elites e

    que normalmente fogem aos interesses da

    Ciência e da Cultura Erudita. Além de

    comerciante, foi também folclorista,

    jornalista e um estudioso da origem do povo

    brasileiro, ligando-se a várias associações

    profissionais e culturais. Publicou seus

    trabalhos em diversas revistas, entre elas:

    Centelha, Bando, Legenda, Encontro com o

    Folclore, Revista Genealógica Latina,

    Almanaque Cariri, Boletim do CRN e

    outras. Divulgou também vários deles no

    Jornal do Dia, no Jornal do Maranhão, no

    Jornal Cidade de Pinheiro e na Tribuna de

    Pinheiro. Planejava reunir seus escritos em

    um livro, quando foi surpreendido por um

    colapso cardíaco, antes mesmo de esboçar o

    plano de sua obra. Observando e Anotando

    reúne seus trabalhos publicados e inéditos

    localizados pela família, procurando

    respeitar seu estilo literário e a forma de

    apresentação por ele adotada. O título

    corresponde à denominação de uma das

    seções do seu caderno de pesquisa.

    Raimundo Rocha descreve em seus

    trabalhos a vida nas pequenas cidades do

    interior do Rio Grande do Norte, pintando

    com vivas cores a escola, a família rural, a

    instabilidade e as contingências da pequena

    burguesia local, de onde saiu, e os costumes

    sertanejos. Descreve também manifestações

    folclóricas nordestinas pouco pesquisadas,

    sendo seus trabalhos freqüentemente citados

    nas obras de Alceu Maynard Araújo.

    Mundicarmo Ferretti

    Organizadora

  • 3

    Orelha 2

    Raimundo Rocha para o escritor e amigo

    Raimundo Nonato

    “Há certas criaturas iluminadas pelos

    clarões da bondade que, continuam

    presentes na memória dos seus

    contemporâneos, como se vivas

    continuassem sendo.

    O fenômeno não é estranho ao raciocínio, e

    uniu-o Câmara Cascudo, num daqueles

    rasgos de sua geniosidade, quando

    determinou numa manifestação de

    sentimentos de afetividade que: “A morte

    existe, os mortos não” (...).

    “Espírito expansivo, claro, sem

    embutimento de ideais, mergulhou nos

    estudos da pesquisa e não tardou Raimundo

    Rocha a encontrar-se e estabelecer

    relacionamento com as figuras mais

    destacadas do campo folclórico, a exemplo

    de Câmara Cascudo, M. Rodrigues de Melo,

    Vingt-un Rosado, Veríssimo de Melo e

    Alceu Maynard, este de São Paulo, falecido

    recentemente.

    Seu trabalho teve o mérito da originalidade,

    e justificá-lo plenamente, ainda mais, pelo

    espírito de equanimidade com que dividia as

    honras de um trabalho, que ele sempre

    considerava de grupo, e que por isso, devia

    pertencer a outrem”.

    Raimundo Nonato, 1974.

    “Aroeira do Patú – Jequitibá no

    Maranhão”

    “Por demais foi intensa a atividade

    jornalística de Raimundo Rocha naquele

    importante centro cultural (São Luís-MA),

    tomando parte ativa nos seus movimentos

    literários e no trabalho das suas instituições

    em particular das que se dedicavam à

    promoção no campo do folclore e da

    antropologia”.

    Raimundo Nonato, 1972.

    “Raimundo Rocha – seus verdes dias no

    sítio do Junco”

  • 4

    RAIMUNDO ROCHA

    OBSERVANDO

    E

    ANOTANDO

    GP-MINA

    São Luís

    2017

  • 5

    Organização e notas MUNDICARMO MARIA ROCHA FERRETTI

    Colaboração MARIA DO CARMO ROCHA

    JULIA MARIA ROCHA

    SERGIO FIGUEIREDO FERRETTI

    Revisão MARIA DE FÁTIMA SOPAS ROCHA

    Rocha, Raimundo.

    Observando e Anotando/Raimundo Rocha – São Luis: Gp-Mina/UFMA, 2017.

    168 p.: 34 il.; 22 cm.(???)

    1. Folclore Nordestino. 2. Cultura Nacional. 3. Literatura Norteriograndense -

    memórias. 4. Folclore Maranhense. 5. Família Nordestina. I. Rocha, Raimundo. II.

    Título.

    CDD 398.09812

    CDU 398 (812/914)

  • 6

    Caríssimo compadre Mundico

    Continue a escrever. Gostei dos seus últimos trabalhos. Vá

    escrevendo e um dia você ajuntará tudo num livro.

    São Paulo, 17/06/1968.

    Alceu Maynard Araújo1

    1 Nota da organizadora - Escritor, folclorista, professor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de

    Antologia do Folclore Nacional – 3 vol. Ed. Melhoramentos, 1964 e de várias outras obras.

  • 7

    SUMÁRIO

    PREFÁCIO, 8

    Pedro Dantas da Rocha Neto

    APRESENTAÇÃO, 11

    Mundicarmo Maria Rocha Ferretti

    VIDA E OBRA DE RAIMUNDO ROCHA, 13

    Sergio Figueiredo Ferretti

    FOLCLORE MARANHENSE, 20

    1. ROMARIA DAS CARROÇAS A RIBAMAR (11/1957), 21

    2. PREGÕES DE SÃO LUÍS (08/1968), 24

    3. A MEDICINA CASEIRA MARANHENSE (10/1968), 27

    FOLCLORE DO PIAUÍ, 28

    1. "ELE NÃO DÁ CRUZEIRO" (02/1949), 29

    2. BENEDITO, MESTRE ESCOLA DA TRIBO GAVIÃO (06/1949), 31

    3. O BUMBA-MEU-BOI (08/1959), 33

    4. SÃO GONÇALO DO PIAUÍ (1950), 36

    5. AINDA A DANÇA DE SÃO GONÇALO (11/1951), 41

    6. A FESTA DOS CACHORROS (06/1954), 46

    7. MARCHA DOS DEZ MANDAMENTOS (06/1967), 48

    FOLCLORE DA SECA, 50

    1. ADVERTÊNCIA PARA O MEU FUTURO (10/1949), 51

    2. UM POUCO DE FOLCLORE, 53

    3. PARECE MENTIRA, PARECE..., 60

    4. ONDE MORREU JESUÍNO BRILHANTE (10/1967), 62

    5. EU CONHECI ANTÔNIO SILVINO (03/1968), 64

    6. PELO SINAL DO SERTANEJO (1972), 68

    LEMBRANÇAS DO PATÚ. 70

    1. OLHO D'ÁGUA DO PINGA (09/1947), 71

    2. DIVAGANDO... (11/1947), 73

    3. FIGURAS PITUENSES - JOÃO DE HOLANDA (12/1949), 74

    4. SINHÁ PROFESSORA (01/1950), 76

    5. BICHO DO MATO (02/1959), 79

    6. POPULARES DO PATÚ (05/1950), 81

    7. SOBRENOMES E APELIDOS (06/1950), 84

    8. JUNCO - PARAÍSO INFANTIL (12/1966), 87

    FAMÍLIA ROCHA, 89

  • 8

    1. FAMÍLIA ROCHA (genealogia) (07/1961), 90

    2. MÃE-VELHA (12/1949), 95

    3. MÃE MIMOSA (12/1949), 97

    4. PROFESSOR ROCHA, MEU PRIMEIRO MESTRE (02/1967), 99

    5. MEU PAI (06/1967), 101

    6. VERSO DO AÇUDE DO SALÔBO (de poeta popular), 103

    7. IRMÃOS ROCHA – NOTAS (1944-1965), 105

    FIGURAS NOTÁVEIS, 125

    1. HUMBERTO DE CAMPOS (06/1947), 126

    2. VASCONCELOS - OPERÁRIO DA AGULHA E DA PENA (12/1948), 129

    3. DUBAS - UM MESTRE E UM AMIGO (01/1950), 131

    DISCURSO NA ENTREGA DA COMENDA VITAL BRASIL (10/1967), 135

    ROTEIRO AUTOBIOGRÁFICO (05/1969), 137

    RAIMUNDO ROCHA PARA ESCRITORES E AMIGOS, 140

    1. VERÍSSIMO DE MELO - "Marcha dos dez mandamentos" (02/1951), 141

    2. ALCEU MAYNARD DE ARAUJO - "Minha roseira do Maranhão" (09/1970), 143

    3. RAIMUNDO NONATO - "Raimundo Rocha – seus verdes dias no sítio Junco"

    (09/1972), 145

    4. CARLOS CUNHA - "A queda do jequitibá não abalou a floresta" (07/1974), 148

    5. RAIMUNDO NONATO - "Aroeira do Patú – Jequitibá no Maranhão" (08/1974),

    150

    6. JOSÉ AQUINO – “Homenagem a Mundico (Carta a Mundicarmo)" (11/1983), 153

    7. JOSÉ JACOME BARRETO - "Raimundo Rocha (Mundico) – um depoimento

    sentimental (01/1984), 157

    FOTOGRAFIAS, 160

  • 9

    PREFÁCIO

    MUITO TEMPO PARA ESCREVER, POUCO TEMPO PARA CONVIVER.

    Levei muito tempo até tomar da caneta e escrever alguns pensamentos que fariam às

    vezes de prefácio para esta magnífica coletânea de escritos reunidos cuidadosamente pela

    minha irmã Mundicarmo.

    Outro dia estava divagando quando me ocorreu a idéia de como foi curta a

    convivência do filho Rocha Neto com o seu pai. Não demorou mais do que treze anos. Isto, se

    contarmos apenas o tempo de convivência a partir da "idade da razão", como diria a minha

    mãe, até o meu casamento, quando, normalmente, deixamos a casa dos pais para construirmos

    a nossa. Temos que descontar os anos em que vivi longe do convívio familiar e que foram

    quatro. Nestes quatro anos fiquei interno em Recife e Campina Grande, por decisão pessoal,

    quase malcriada, cuidando dos estudos e da minha formação para tornar-me, como queria, um

    professor: um Irmão Marista.

    Acho que este livro é um tratado de como as pessoas podem encarregar-se do próprio

    desenvolvimento. Na família freqüentemente brota a idéia de que o pai e a mãe são

    supostamente amadurecidos e a criança, totalmente dependente dos adultos. O que

    aprendemos desde o nascimento até a idade adulta relaciona-se essencialmente com isto.

    Sem dúvida, muito do que aprendemos na vida decorre de processo inconsciente. A

    nossa importância para o mundo e as nossas habilidades para enfrentar a caminhada são-nos

    transferidas, no início da vida, através de convincentes lições inconscientes captadas dessa

    convivência com os pais.

    Tenho gravada na memória a cena em que meu pai, agilmente, com apenas os dois

    indicadores das mãos, elaborava cuidadosamente o início do álbum de família composto não

    de fotos, mas de narrativas preciosas. Cada um de nós era tratado ali como se, todos, fôssemos

    criaturas predestinadas.

    O verdadeiro "diário" da convivência com os filhos ocupa parte destes documentos,

    revelando também os dotes marcantes do escritor RAIMUNDO ROCHA, "doublé" de

    empresário, mais pela necessidade de prover o sustento da sua família, do que propriamente

    por vocação.

    Sua vocação mesmo era, sem dúvida, a de escritor.

    É deliciosa a leitura das narrativas das festas e manifestações folclóricas do Piauí e

    do Maranhão, sua terra adotiva. Magníficas lições da história e da cultura popular desses dois

    Estados, àquela época ainda íntegra e sem influências externas devido ao isolamento

    geográfico quase absoluto desse rincão brasileiro nos anos 50.

    Esta obra, aqui reunida graças ao espírito pesquisador e detalhista de Mundicarmo,

    aqui e ali nos revela o extraordinário naipe de amigos intelectuais que compartilhavam,

    animada e produtivamente, de uma amizade e companheirismo notáveis. Lá está

    RAIMUNDO ROCHA dentre figuras como Luiz da Câmara Cascudo, o Cascudinho, como a

    ele se referia com intimidade; Alceu Maynard Araújo, da Academia Paulista de Letras, autor

    da Antologia do Folclore Nacional, concedendo a RAIMUNDO ROCHA, em sua obra, sem

    favor e sem bajulação, três importantes citações de trabalhos seus.

  • 10

    Aqui no Maranhão, nas reuniões freqüentes motivadas pelas questões do intelecto,

    das artes, da literatura, da música, ali estava, "achando um tempinho" em meio às canseiras do

    dia-a-dia, o agitado RAIMUNDO ROCHA esgueirando-se por entre a platéia que ouvia atenta

    o discurso inflamado do Cônego Ribamar Carvalho ou a declamação apaixonada daquele belo

    soneto de Augusto dos Anjos, dramaticamente encenada pelo poeta Carlos Cunha.

    Certamente, nos intervalos, cochichava ao ouvido atento de Domingos Vieira Filho

    talvez, quem sabe, apoiado no cabo do indefectível guarda-chuva do professor Rubem de

    Almeida.

    A leitura deste documento-coletânea é uma experiência extraordinária. O seu

    conteúdo vibrante apela para o meu senso de humor, para a minha percepção das fraquezas

    humanas, aprofundando o meu conhecimento de como funciona a mente humana conduzida

    pela vontade férrea de vencer. À medida que leio, identifico-me com as pessoas e os fatos que

    ele descreve e, por que não dizer, tenho o prazer de rir de mim mesmo constatando o quanto

    tenho ainda que aprender.

    Lamento haver demorado tanto para escrever estes rabiscos. Por muitos anos privei,

    involuntariamente, muitas pessoas de se deliciarem com a qualidade dos pensamentos e o

    nível de informações aqui reunidas.

    Estavam todos a esperar por mim.

    Mas isto não é tanto tempo assim, sobretudo considerando o tão curto lapso de tempo

    que foi minha convivência direta com o meu pai. Convivi apenas por quinze anos conscientes

    em sua companhia...

    E... eu ainda nem havia percebido!

    Pedro Dantas da Rocha Neto2

    Março/1994

    2 Nota da organizadora - Pedro Dantas da Rocha Neto, Bacharel em Direito, é o segundo filho de Ramundo

    Rocha e foi quem tomou a frente os negócios da família após o seu falecimento.

  • 11

    APRESENTAÇÃO

    Uma das características da chamada "civilização ocidental" é a rígida separação entre

    "atividades materiais" e as "coisas do espírito"- consideradas mais elevadas que aquelas.

    Em decorrência dessa visão, era comum, no passado, jovens de origem popular

    envedarem pelo caminho das letras, conquistando através da atividade literária uma posição

    de prestígio que não lhes fora dada pelo "berço".

    Para tal, deveriam, no entanto, dedicar-se a ela inteiramente, mesmo que para isso

    tivessem que viver uma vida de miséria e que sacrificar sua família, pois nem sempre o

    trabalho intelectual produzia resultados rentáveis.

    São muitos os que consideram até inconcebível a congregação de atividades

    materiais e espirituais. Mas, graças principalmente à difusão do pensamento do italiano

    Antônio Gramsci3, essa idéia hoje tem sido posta em questão. Cresce o número dos que

    consideram intelectuais, não apenas os que se dedicam exclusivamente às "coisas do espírito"

    e os que são ligados à cultura erudita, já são muitos os que compreendem por intelectuais

    todos aqueles que tomam para si a tarefa de sistematizar e de expressar idéias, valores e

    sentimentos de uma sociedade ou de uma época.

    Entre as camadas populares, um estivador é um intelectual quando, por exemplo,

    assumindo o papel de "amo" numa brincadeira de "Bumba-meu-boi", compõe toadas e cria

    autos que serão apresentados pelo grupo, sistematizando e expressando o gosto e a visão do

    mundo de sua sociedade.

    Raimundo Rocha foi um intelectual-comerciante. Sendo de família pobre; perdendo o

    pai aos 13 anos; casando-se aos 23; e, morrendo aos 49, deixando 11 filhos, não conheceu o

    "ócio"- nem mesmo o "ócio com dignidade" de tantos escritores e artistas. Não seria exagero

    dizer que nunca teve férias.

    Sua produção literária, iniciada em 1947, acompanhou sua lida de comerciante,

    sendo mesmo preterida por esta no período 1955-1965, quando compromissos financeiros o

    obrigaram a dedicar-se inteiramente ao trabalho que garantia o sustento de sua família e a

    educação de seus filhos.

    Apesar de sentir grande atração pelas letras e de se orgulhar de sua produção literária,

    queria ser bem sucedido economicamente, sentindo também orgulho ao ser considerado e

    prestigiado em 1965 como "próspero" comerciante.

    Por volta de 1954 deixou praticamente de escrever, só retornando a essa atividade em

    fins de 1966, graças ao estímulo de escritores amigos como Alceu Maynard Araújo, de São

    Paulo, e dos conterrâneos: Francisco Rodrigues Alves e, principalmente, Raimundo Nonato,

    com quem manteve uma correspondência quase semanal nos últimos anos de sua vida. E, sem

    dúvida alguma, graças à boa situação financeira conquistada pela Cerealista Maranhense Ltda,

    empresa por ele fundada em São Luís, em 1957.

    Raimundo Rocha é um exemplo de não incompatibilidade entre produção "espiritual"

    e "material", é um testemunho de que, quando alguém se dedica à segunda, consegue uma

    situação financeira que lhe permite "respirar", essa produção pode se tornar abundante e de

    boa qualidade.

    3 GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. 2.ed., Rio de Janeiro: Ed. Civilizações Brasileiras, 1978.

  • 12

    Embora não fosse portador de títulos acadêmicos, escreveu e publicou trabalhos que,

    em quantidade e qualidade, superam às vezes os produzidos ainda hoje pela maioria dos

    professores universitários.

    Sua obra é marcada pelo interesse etnológico ou folclórico e pelo sentimentalismo e

    religiosidade de migrante nordestino, nascido no sertão do Rio Grande do Norte, em 1919.

    Essa tônica, embora considerada, atualmente, por muitos do meio intelectual urbano, como

    "fora de moda"ou "ultrapassada”, tem grande receptividade no gosto popular e tem legado à

    ciência muitos dados importantes, possibilitando o resgate da nossa história e das raízes

    culturais do nosso povo.

    Só uma coisa é, de fato, lamentável na vida e na obra de Raimundo Rocha - o seu

    desaparecimento precoce, numa das fases mais promissoras de sua atividade literária e quando

    mal começava a ver os frutos do que plantara com tanto sacrifício. Só pôde assistir à

    graduação universitária dos seus dois primeiros filhos e só teve tempo de ver 4 dos seus 11

    filhos completarem 20 anos - felicidade que seu pai não pôde ter nem mesmo em relação a seu

    primogênito.

    A coletânea que hoje está sendo apresentada não é completa. Muita coisa trabalhou

    contra ela: o desaparecimento repentino do autor; o esforço sobre-humano dos seus filhos

    homens para continuar sua empresa; a perda de documentos decorrente de duas mudanças de

    sede da Cerealista e três de domicílio da família, aliados ao estrago causado pelas chuvas e

    pelos cupins de São Luís; e o próprio tempo, foram obstáculos difíceis de transpor.

    O que hoje aparece de público é fruto do esforço conjugado de muitas mãos e de

    muitos anos. Foram necessários não só os recursos financeiros gerados pelo trabalho de seus

    filhos homens. Foi preciso o trabalho de sua esposa, filhas, noras e genros, aliados à

    colaboração de amigos e cunhados que, mesmo de longe, contribuíram fornecendo

    informações e documentos.

    O título da obra é o mesmo que abre o caderno de pesquisa por ele deixado

    incompleto. Foram incluídas aqui todas as obras localizadas, mesmo as que não se tem certeza

    se foram publicadas. Deixados de incluir apenas a versão preliminar de “Meu Pai”, em virtude

    desse texto ter sido resumido e publicado, em 1967, por Raimundo Rocha.

    O livro começou a ser organizado em 1983/1984, quando foi concluída a pesquisa e

    foram datilografados, por Maria do Carmo Rocha (viúva de Raimundo Rocha), os trabalhos

    localizados. Em 1994, por ocasião dos 70 anos daquela, Pedro Dantas da Rocha Neto escreveu

    o Prefácio, mandou digitar e imprimir uma cópia da obra completa, para presenteá-la. Doze

    anos depois, participando em Mossoró (RN), como palestrante, de evento promovido pela

    Fundação José Augusto, então dirigida por Isaura Rosado, fizemos referencia a trabalhos

    produzidos e/ou publicados naquela cidade por meu pai – Raimundo Rocha. O interesse

    despertado em representantes daquela Fundação nos animou a retomar a organização da obra e

    mais tarde a sua disponibilização na internet, no site do nosso grupo de pesquisa

    www.gpmina.ufma.br.

    São Luís, abril de 2017.

    Mundicarmo Maria Rocha Ferretti4

    4 Mundicarmo Maria Rocha Ferretti, Doutora em Antropologia e membro da Comissão Maranhense de Folclore,

    é a primeira filha de Raimundo Rocha e quem assumiu a organização de Observando e Anotando.

    http://www.gpmina.ufma.br/

  • 13

    VIDA E OBRA DE RAIMUNDO ROCHA

  • 14

    VIDA E OBRA DE RAIMUNDO ROCHA

    Nascido no município de Patú, no Rio Grande do Norte, a 21 de novembro de 1919,

    Raimundo Rocha faleceu em São Luís do Maranhão, em 22 de setembro de 1969, aos 49 anos

    de idade, deixando viúva sua esposa, D. Maria do Carmo Rocha, com onze filhos, sendo cinco

    menores. Hoje os seus filhos já estão quase todos formados na Universidade, têm vários filhos

    e residem e trabalham no Maranhão.

    Como comerciante, Raimundo Rocha trabalhou nos primeiros anos em Patú, em Pau

    dos Ferros, onde se casou com D. Maria do Carmo e em Mossoró, no Rio Grande do Norte.

    Seguindo o caminho tradicional dos Nordestinos em direção à Amazônia, transferiu-se para

    Fortaleza, Teresina e Pedreiras (MA), estabelecendo-se finalmente em São Luís, a partir de

    1956, onde se dedicava ao comércio do arroz, açúcar e outros gêneros.

    Aos treze anos ficou órfão do pai tendo vivido uma juventude atribulada. Dedicava

    grande amor e admiração ao pai, Pedro Dantas da Rocha, que faleceu muito jovem, deixando

    vários filhos menores. Aprendeu as primeiras letras com o avô, que era mestre-escola em

    Patú. Possuía poucos anos de instrução formal, embora sempre tenha dedicado grande

    interesse a atividades culturais. Dispunha em sua residência, ao falecer, de vasta biblioteca

    com obras sobre ciências, artes, literatura, folclore e cultura geral, além de excelente discoteca

    com obras clássicas e populares de alto nível. Gostava de artes, teatro, cinema e fotografia.

    Fotografou e filmou várias cenas da vida familiar e da cidade. Como reflexo de seu interesse

    pelos estudos, sempre fez questão de encaminhar os filhos à escola, estando hoje dez dos seus

    filhos já formados na Universidade.

    Em São Luís, onde se estabeleceu por mais tempo, ao lado de suas intensas

    atividades de comércio, dedicava-se a várias atividades culturais. Colaborava sempre com

    diversas entidades de cultura como o Instituto Cultural Brasil Estados Unidos, do qual foi

    Secretário, a Associação Comercial do Maranhão, órgão de que foi um dos Diretores, a

    Associação Comercial de Pedreiras e várias outras. Sempre que podia assistia a palestras,

    conferências e exposições de arte, adquirindo obras, apoiando o trabalho de artistas e

    intelectuais da terra.

    Foi membro igualmente de várias entidades culturais de outros Estados, como da

    Comissão Piauiense de Folclore, de que foi sócio fundador, da Casa de Euclides da Cunha, de

    Natal, do Grêmio Literário Ferreira Itajubá, em Mossoró, do Centro Norteriograndense do

    Estado da Guanabara (hoje Rio de Janeiro), do Clube Folclórico de Piracicaba, do Instituto

    Genealógico Brasileiro de São Paulo, da Associação de Profissionais da Imprensa de São

    Paulo e outros.

    Quando o tempo lhe permitia, participava de Cursos de Extensão Cultural,

    promovidos por entidades locais, como o Curso de Jornalismo promovido pela Universidade

    Federal do Maranhão em 1966, Curso de Administração de Empresas do SENAC, em São

    Luís, Curso de Psicologia Educacional do Movimento Familiar Cristão, etc. Em suas

    atividades culturais ganhou várias medalhas como as de Vital Brasil e Nina Rodrigues em

    1965, e as de Couto Magalhães, Cândido Rondon e Euclides da Cunha em 1967, recebendo o

    título de Personalidade do Ano em Natal, em 1967.

  • 15

    Cultivava com dedicação a amizade com grandes folcloristas brasileiros e, quando

    possível, promovia sua vinda a São Luís, hospedando-os em sua residência e organizando

    conferências, como ocorreu em julho de 1967 com o seu compadre, o folclorista paulista Dr.

    Alceu Maynard Araújo. Colaborava com o folclorista Veríssimo de Melo em Natal,

    correspondia-se assiduamente com o folclorista norteriograndense Raimundo Nonato da Silva

    e vários outros, e nas paredes de sua casa, figurava um retrato seu ao lado de Câmara

    Cascudo, do qual muito se orgulhava.

    Para cultivar os laços de parentesco e de amizade, gostava de escrever cartas e

    constantemente se correspondia com filhos que estudavam em outras capitais e com parentes e

    amigos de outras cidades. Sempre que viajava trazia como lembranças e presentes, quadros,

    discos, livros e objetos de cultura. Interessado em Genealogia, correspondia-se com o Instituto

    Genealógico Brasileiro de São Paulo, tendo mandado confeccionar um Brasão de Armas para

    sua família. Tinha grande orgulho por ter trabalhos de sua autoria citados pelo folclorista

    Alceu Maynard Araújo, em sua obra O Folclore Nacional, publicado em 3 volumes pela

    Edições Melhoramentos, de São Paulo, em 1964, bem como na obra A Província Literária, de

    Raimundo Nonato da Silva.

    Em 1968, a Câmara Municipal de Patú, sua cidade natal, resolveu dar o seu nome a

    um Grupo Escolar da cidade, homenageando igualmente o seu progenitor, dando o nome deste

    à Biblioteca de referido Grupo. Raimundo Rocha angariou entre familiares e amigos e

    adquiriu pessoalmente, grande número de livros que doou ao Grupo Escolar que lhe prestara

    tal homenagem, tendo paraninfado a turma dos alunos formados em 1968. Na época,

    aproveitou a viagem a sua terra para fazer uma peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora

    dos Impossíveis, na Serra do Lima, pois era muito devoto desta santa a quem recorria

    constantemente para ajudá-lo em situações difíceis.

    Homem simples, dedicado ao trabalho, à família e aos amigos, acompanhava com

    vivo interesse as manifestações de cultura popular como o Bumba-meu-boi, o Tambor de

    Mina, o Tambor de Crioula em São Luís e manifestações folclóricas do Maranhão e em outros

    Estados em que residiu, demonstrando entusiasmo pelas tradições autênticas da cultura

    popular. Benquisto por familiares, amigos e subordinados, que sempre tratava com sincera

    amizade, gostava de receber os amigos com todas as honras da casa, demonstrando sempre,

    afetivamente, a cordial hospitalidade nordestina. Quase todas as noites e nas manhãs de

    domingo recebia em casa amigos que vinham bater um papo e beber alguma coisa.

    Diariamente ia bem cedo ao mercado fazer compras, conhecia os vendedores dos

    melhores produtos e os operários especializados em diversas profissões, estando pronto a

    indicar a um amigo o melhor mecânico, carpinteiro, eletricista, encanador ou pedreiro da

    cidade, que eram também seus velhos amigos. Geralmente, aos sábados à tarde ia a São José

    de Ribamar conversar com algum compadre, comprar peixe e fazer uma visita à igreja,

    levando filhos ou amigos num agradável passeio. Às noites, após o jantar, gostava de dar uma

    volta de carro pelas ruas do centro da cidade para adormecer os filhos pequenos e visitar

    algum amigo.

    Nas horas vagas gostava de escrever artigos para jornais e revistas, que eram

    publicados em São Luís, Teresina e principalmente no Rio Grande do Norte. Assim,

    colaborou no período de 1947 a 1969, escrevendo diversos artigos que foram publicados nos

  • 16

    seguintes órgãos: Centelha, revista do Grêmio Literário Itajubá, de Mossoró, Boletim

    Bibliográfico da Biblioteca Pública Municipal de Mossoró, Poliantéia, revista comemorativa

    do primeiro aniversário de falecimento do jornalista J. Vasconcelos, de Mossoró, Bando,

    revista da Casa Euclides da Cunha, de Natal, Legenda, revista de São Luís, Almanaque do

    Cariri, revista de Teresina ,Boletim do Centro Norteriograndense, do Rio de Janeiro,

    Encontro com o Folclore, revista publicada no Estado do Rio de Janeiro, Revista Genealógica

    Latina, de São Paulo, Jornal do Dia, de São Luís, e Jornal do Maranhão, órgão da

    Arquidiocese de São Luís.

    Para a presente publicação pensou-se inicialmente em reunir apenas 21 artigos de

    Raimundo Rocha, escritos e publicados em vida, entre 1947 e 1969. Depois foram sendo

    localizados outros trabalhos seus, igualmente interessantes, como o Caderno de Notas sobre

    os Irmãos Rocha, o Caderno de Pesquisa, a pasta de Correspondências e outros trabalhos

    publicados de que não se tinha notícia. Resolveu-se, então, publicar todos os seus trabalhos

    localizados. Podemos subdividir os 36 escritos aqui reunidos nos seguintes temas: etnografia,

    folclore e personalidades, 21 artigos; lembranças da terra natal, 8 artigos; pessoas de sua

    família e autobiografia, 7 escritos. Os dois temas básicos de todos os seus trabalhos são a vida

    familiar e o folclore.

    Entre seus temas favoritos destacam-se as lembranças da terra natal, dos tempos de

    infância e a grande admiração pela figura paterna. A paisagem física de sua região natal é

    descrita no belo artigo "Olho d'água do Pinga", que narra uma excursão à terra do Patú em

    1947. No mesmo ano, o artigo "Divagando..." comenta a volta, depois de vários anos de

    ausência, à sua cidade natal, revendo lugares onde passou anos felizes na infância, e a visita

    ao túmulo paterno no Dia de Finados. No artigo "Figuras Patuenses - João Holanda", relembra

    as estórias imaginosas e divertidas que ouvia, quando criança, daquela personalidade

    pitoresca, que colecionava caixas de fósforos e contava estórias de assombramento, de

    lobisomem, mulas, etc. Um dos temas que lhe é mais grato é a recordação de seus antigos

    professores primários. Em "Professor Rocha, meu primeiro mestre", descreve detalhes

    curiosos da escola primária rural no sítio do Junco, em que os alunos eram separados em salas

    diferentes por sexo e onde era comum o uso de palmatória e de outros castigos. Apesar de

    tudo, o professor era querido e estimado e as aulas transcorriam em meio a atividades

    domésticas e rurais. No artigo "Sinhá Professora", lembra a rigidez e a eficiência do ensino

    particular da velha professora formada nos tempos do Império. No artigo "Bicho do Mato",

    recorda sua antiga professora na escola pública, D. Eulália Diniz, e o Professor Raimundo

    Soares de Andrade, que também o ensinava a caçar passarinhos, e as brincadeiras dos colegas

    de infância. No artigo "Dubas - Um mestre e um amigo", fala com admiração e

    reconhecimento do professor e amigo Manoel Jácome de Lima, com quem manteve

    correspondência por muito tempo. Relembra no artigo "Populares do Patú", vários loucos que

    eram atormentados pelos moleques, e alguns que viviam acorrentados, como era costume

    naquela terra que "era boa pra doido", conforme dizia um deles. No artigo "Sobrenomes e

    Apelidos", escrito em Teresina em 1950, refere-se a trabalhos dos folcloristas nordestinos

    Veríssimo de Melo e Raimundo Nonato, com quem colaborava. Procura enriquecer com suas

    observações, as anotações daqueles estudiosos potiguares a respeito do hábito tão brasileiro de

    dar alcunhas e apelidos sonoros que se ajustam bem aos tipos. Cita prodigiosa quantidade de

    nomes e apelidos curiosos que recolheu em várias cidades nordestinas. Em "Junco - Paraíso

    Infantil", publicado em 1966, lembra os anos felizes da infância no sítio do Junco onde

    brincava com filhos de vaqueiros e tomava banho no açude, na estação invernosa.

  • 17

    A estas recordações da infância e da terra natal, acrescenta-se seu grande interesse

    por diversos aspectos da vida familiar, como as lembranças de sua velha avó no artigo "Mãe

    Velha" e de uma tia em "Mãe Mimosa", com quem conviveu durante os primeiros anos no

    sítio do Junco. No artigo "Família Rocha", publicado em 1961 no número 13 da Revista

    Genealógica Latina, procura reconstruir elementos da árvore genealógica de sua família entre

    1850 e 1960. Em "Irmãos Rocha - Notas" divulga-se aqui uma resenha de seu caderno de

    Anotações, redigido entre 1944 e 1965, em que acompanha o desenvolvimento físico e

    psicológico dos onze filhos que teve com sua esposa, D. Maria do Carmo Rocha. Recorda

    sobretudo os momentos agradáveis passados com os filhos, datas de aniversário, passeios,

    presentes, brincadeiras, não lhes poupando elogios. A partir de 1954 estas, anotações vão se

    tornando escassas devido a afazeres e viagens, mas o interesse pelos filhos aparece sempre em

    sua correspondência. Em vários de seus escritos Raimundo Rocha valoriza e ressalta a figura

    de seu pai, de quem guardava as gratas recordações e dedicava grande estima. No artigo 'Meu

    Pai", de 1967, descreve com grande orgulho seu pai, Pedro Dantas da Rocha, que foi mestre

    escola e ocupou vários cargos na Vila do Patú. Homem esclarecido, comunicativo, gostava de

    ler e escrever, tendo falecido muito jovem, com apenas quarenta e um anos, mas que sempre

    lhe serviu como modelo de conduta. Em "Advertência para o meu futuro", escrito em Teresina

    em 1949, refere-se aos últimos meses de vida de seu pai que então trabalhava fornecendo

    gêneros para a construção de um açude. Raimundo Rocha, que trabalhava com o pai, lembra-

    se com revolta das injustiças sofridas pelos trabalhadores na construção, com quem convivia,

    criticando a corrupção dos administradores públicos. Lá seu pai contraiu o mal que o levou ao

    túmulo, lamentando não poder ver o filho aos vinte anos. A lembrança do pai, porém, exerceu

    sempre grande influência na formação de seu caráter.

    No artigo "Humberto de Campos", publicado em Mossoró em 1947, narra algumas

    passagens da vida difícil do grande escritor maranhense, que era um de seus heróis prediletos,

    e que ascendeu na vida tendo se originado das camadas populares mais baixas. Assumindo a

    profissão de tipógrafo, como Benjamim Franklin, e depois de jornalista, atingiu

    posteriormente as mais elevadas posições na literatura nacional. Cita suas principais obras,

    que lia com interesse e anotava. Refere-se à influência de Coelho Neto sobre Humberto de

    Campos e à sua posse na Academia Brasileira de Letras, lembrando sua liberdade de

    consciência em defesa dos mais fracos e oprimidos. Outra figura literária que freqüentemente

    cita com admiração e respeito, é Machado de Assis, também humilde, que igualmente

    trabalhou como tipógrafo e chegou a fundar e dirigir a Academia Brasileira de Letras, a

    principal entidade de cultura do país na época. Cita em vários artigos, escritores eruditos

    como Casimiro de Abreu, Graça Aranha, Euclides da Cunha e outros, que admirava e cuja

    obra possuía e conhecia. No artigo "Vasconcelos - Operário de Agulha e da Pena", publicado

    em 1948 em Mossoró, relembra o escritor , poeta, historiador e folclorista norteriograndense,

    Martins de Vasconcelos, também de origem humilde, tipógrafo e jornalista, a quem foi

    apresentado por seu saudoso pai Pedro Dantas da Rocha, com quem fora em viagem a

    Mossoró, nos primeiros caminhões que entravam pelo sertão.

    Em "Um pouco de folclore", transcrito de seu caderno de notas, Raimundo Rocha

    demonstra seu interesse pelo folclore, procurando complementar elementos da literatura

    popular oral, transcrita por Veríssimo de Melo em "Parlendas", recolhidas em Natal, e

    acrescenta variantes conhecidas na Zona Oeste potiguar. Outros aspectos da literatura oral

    surgem nos seus escritos: "Parece mentira, Parece”... também transcrito de suas anotações ;

    "Pelo Sinal do Sertanejo", recolhido no interior do Rio Grande do Norte e Publicado por seu

    amigo Alceu Maynard Araújo, que se refere em versos à fome e à seca do Nordeste. Em

  • 18

    "Verso do Açude Salôbo" encontrado entre sua correspondência, transcreve poesia popular de

    sua terra fazendo referência a seu pai e a seu avô.

    Em 1967 e 1968, publicou dois interessantes artigos sobre cangaceiros nordestinos.

    Em "Eu conheci Antônio Silvino" lembra Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e Lampião,

    verdadeiros flagelos do sertão, sobre os quais pairava "um halo de simpatia e admiração, não

    porque o sertanejo admirasse os cangaceiros, mas porque gosta de homens valentes e bem

    dispostos". Conta como viu Antônio Silvino, velho e alquebrado, saindo de um bar em

    Campina Grande, dando-lhe mais a impressão de um pastor evangélico, do que daquele que

    durante vinte anos atacara cidades, vilas, povoados e fazendas, distribuindo aos humildes e

    famintos, o dinheiro que subtraía aos ricos e a que passou longos anos na penitenciária de

    Recife. Fala do medo e da angústia que sentia na infância ao ouvir, à noite, as estórias do

    cangaço e a decepção que sentiu ao conhecer aquele que fora chamado de "Governador do

    Sertão”, ou o "maior cangaceiro do século vinte". No interessante artigo "onde morreu Jesuíno

    Brilhante" procura complementar pesquisas de Gustavo Barroso e Raimundo Nonato tentando

    identificar o local da morte de Jesuíno Brilhante, nascido em Patú, então Município de

    Martins, e considerado por Gustavo Barroso como "o maior cangaceiro do século dezenove”.

    Relembra fato que lhe foi narrado por seu padrinho, contestando o local em que teria morrido

    o famoso cangaceiro. O escritor Raimundo Nonato, com quem manteve longa

    correspondência, dedicou à memória de Raimundo Rocha, seu trabalho "Jesuíno Brilhante, o

    Cangaceiro Romântico (1844-1879)", publicado no Rio de Janeiro em 1970, onde reproduz

    parte deste artigo.

    Em 1949, Raimundo Rocha publicou em Natal dois artigos sobre os Índios Gaviões,

    de Grajaú no Maranhão, demonstrando sua grande curiosidade em conhecer e documentar

    coisas de nossa terra e lamentando a situação de desamparo em que se encontravam os nossos

    silvícolas. Descreve o tipo físico dos índios, o modo de trajar, seus interesses, atividades,

    recolhe diversas palavras de seu idioma e reclama da falta de assistência dos poderes públicos

    para com estes autênticos brasileiros.

    Há ainda no material que nos deixou Raimundo Rocha, oito interessantes artigos

    sobre o folclore do Piauí e do Maranhão. O folclore foi sempre um dos seus principais temas

    de interesse desde os primeiros escritos de 1949, até seus últimos trabalhos em 1968.

    Descreve o Bumba-meu-boi do Piauí, transmitindo cantigas de um boi coletadas na cidade de

    Campo Maior. Demonstra grande interesse pelas festas populares e em dois artigos descreve

    aspectos da festa de São Gonçalo do Amarante, transcrevendo versos coletados em Campo

    Maior e vários outros aspectos interessantes da dança. Assinala variantes e divergências de

    outras versões do São Gonçalo, recolhidas por vários folcloristas. Transcreve outros versos

    que coletou e comenta detalhes constatando não ser festas só de negro e que pertence tanto ao

    rico quanto ao pobre. Em "A Festa dos Cachorros", escrita em 1954, documenta esta curiosa e

    pouco conhecida festa de devoção a São Lázaro ou a São Roque, realizada na região do Ceará

    ao Maranhão. Narra a festa que lhe foi descrita por Albertina Vieira Brito, no Piauí, e amplia

    as informações com novas pesquisas, comentando a ingenuidade e a simplicidade da

    religiosidade popular. Em "Marcha dos Dez Mandamentos",transcreve os belos versos de um

    cantador que encontrou em Campo Maior em 1950, que foram comentados e parcialmente

    publicados por Veríssimo de Melo, no Diário de Natal, em 1951, e republicados por

    Raimundo Rocha, em 1967.

  • 19

    Sobre o folclore maranhense, Raimundo Rocha deixou-nos apenas três artigos, sobre

    temas até hoje ainda pouco documentados. Certamente seus muitos afazeres e compromissos

    não lhe deram tempo de registrar por escrito suas observações, algumas das quais

    acompanhamos pessoalmente. No belo artigo "Romaria das Carroças a Ribamar" que inicia

    esta coletânea, descreve a pouco conhecida procissão organizada anualmente pelos carroceiros

    da Ilha de São Luis à cidade de São José de Ribamar, num domingo de lua cheia, após a festa

    de São José, durante toda a noite, por mais de 30 quilômetros. Narra o longo trajeto da

    romaria, sua chegada a Ribamar e a festa na cidade no dia seguinte. Este trabalho foi citado

    por Alceu Maynard Araújo em Folclore Nacional, de 1964, e publicado em 1967 em jornais

    do Maranhão. Os costumes e a linguagem popular são descritos em "Medicina Caseira

    Maranhense", que fala da simpática figura do mezinheiro, que ensina e vende remédios nos

    mercados de São Luís. O belo artigo "Pregões de São Luís", descreve vendedores ambulantes

    típicos da cidade, que oferecem frutas e comidas maranhenses com um linguajar

    característico. Se tivesse vivido mais, e em época tranqüila, certamente teria escrito ainda

    sobre outros aspectos da vida familiar ou da vida do povo, que tanto o interessava e a que

    sempre se referia, analisando com simpatia e simplicidade seus variados aspectos.

    Raimundo Rocha, infelizmente para seus amigos e familiares, viveu pouco tempo.

    De origem humilde, como nos narra em suas páginas, ascendeu na vida graças à dedicação ao

    trabalho. Como comerciante, estabeleceu-se nos últimos anos em São Luís num belo sobrado

    da Praia Grande em que, por sugestão de amigo Dr. Alceu Maynard Araújo, colocou uma

    placa com o nome de Solar do Barão de Patú, local aonde veio a falecer numa manhã de

    trabalho, em 1969. Tivesse vivido mais tempo, certamente nos teria deixado muitas outras

    páginas bonitas e poéticas como as que estão aqui reunidas, documentando cenas familiares e

    costumes tradicionais das terras nordestinas, que não cansava de admirar e que gostava de

    descrever e pesquisar. Estas páginas nos revelam um pouco de sua rica e variada

    personalidade de curioso, observador de tudo que o cercava.

    São Luís, janeiro de 1984.

    Sergio Figueiredo Ferretti5

    5 Sergio Figueiredo Ferretti, carioca radicado em São Luís, Doutor em Antropologia e reorganizador da

    Comissão Maranhense de Folclore, é genrro de Raimundo Rocha.

  • 20

    FOLCLORE MARANHENSE

  • 21

    ROMARIA DAS CARROÇAS A RIBAMAR6

    Os carroceiros da Ilha de São Luís do Maranhão festejam o seu dia, todos os anos,

    com muito entusiasmo e até mesmo com grande sacrifício. O seu dia é comemorado com a

    Romaria das Carroças à cidade de Ribamar. Essa romaria constitui uma das festas tradicionais

    mais bonitas do Maranhão, ao lado do Divino e do Bumba-meu-boi. É inteiramente ligada a

    quantos trabalham em carroças movidas por animais. Data de tempos imemoráveis, a sua

    existência. Desconhece-se por completo, quando ela nasceu e a quem pertence a sua

    paternidade.

    A Romaria das Carroças à Ribamar, atualmente, é patrocinada pelo órgão da classe,

    Sindicato dos Condutores Autônomos de Veículos Rodoviários de São Luís, fundado a 16 de

    novembro de 1958 e tem sua sede provisória à rua Cândido Mendes, 471, 1º andar. O

    carroceiro Evandro Vieira dos Santos é o seu atual Presidente. Dirige o Sindicato com

    inteligência, operosidade, merecendo a confiança e apoio de todos os seus associados.

    O Sindicato que congrega os carroceiros de São Luís está sob a proteção de Nossa

    Senhora das Vitórias, Padroeira da cidade. A Romaria das Carroças existe apenas na Ilha de

    São Luís. Não se registra a sua presença em qualquer outro município do Estado. Participam

    dessa Romaria interessante não só os carroceiros de São Luís, como também os de Paço do

    Lumiar e de Ribamar, municípios em que se divide a chamada Ilha Rebelde. Poderíamos dizer

    até que é a confraternização, porque dela participam todos os carroceiros, quer sejam

    sindicalizados ou não, residentes nos três municípios da Ilha.

    O dia da Romaria das Carroças é marcado, todos os anos, levando-se em conta o

    término da Festa do prestigioso São José, Padroeiro da cidade de Ribamar. Regra geral, é

    escolhido o primeiro domingo de lua-cheia, após a festa de São José. Assim permitirá que a

    Romaria se realize à luz da lua, no sábado, à noite, verificando-se a chegada a Ribamar, às

    seis horas da manhã do domingo.

    Para fazer face às despesas com fogos, velas e "bóia", o Sindicato recolhe a quantia

    de NCr$ 3,00 de cada associado.

    O ponto de concentração dos romeiros é a sede do órgão da classe. Contudo, por

    conveniência de cada um, aqueles que residem nas proximidades do caminho por onde

    passará a romaria, poderão ficar no local mais próximo, para se reunirem ao cortejo. Em frente

    à sede do Sindicato, a imagem de Nossa Senhora das Vitórias, Protetora dos carroceiros, já se

    acha sobre a carroça, escolhida com antecedência, para conduzir neste ano o andor. É uma

    deferência especial para o carroceiro escolhido conduzir o vulto de sua padroeira. Portanto a

    carroça é preparada e embandeirada cuidadosamente e bem iluminada, oferecendo um

    espetáculo encantador, dentro da noite, aos romeiros, seus familiares e adesistas.

    6 Nota da organizadora - Publicado no Jornal do Maranhão, em 03/12/1967, p. 3; no Jornal de Pinheiro, em

    25/12/1967, p.5; na Revista CNR (informativo do Rio Grande do Norte), em 05/1968, p.8; na Revista

    Maranhense de Cultura (FUNC), ano II, nº 2, jan-jun 1978; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore,

    nº 27, dez. 2003, p. 14. Sobre esse artigo afirmou o folclorista Alceu Maynard Araújo, em dezembro de 1967, em

    carta a Raimundo Rocha: A sua Procissão das Carroças marca o seu retorno com as letras. Gostei muito do seu

    artigo. Continue e quero vê-lo na Academia Maranhense de Letras. É lá o seu lugar!”

  • 22

    Há um detalhe importante a assinalar: a carroça que conduz o vulto de N. Senhora

    das Vitórias a Ribamar, será a mesma que a trará de regresso. Não é permitida uma

    substituição.

    A partida de São Luís se verifica às vinte e uma horas, da frente do Sindicato, ao

    pipocar de foguetes em grande quantidade, ao som de agradável banda de música, que

    acompanha os romeiros cantando a Ave Maria de Lourdes:

    Vestida de branco

    Ela apareceu...

    trazendo no cinto

    as cores do céu...

    Ave, Ave, Ave, Maria...

    Demandando a Praia Grande - rua Portugal, de belas tradições no comércio atacadista

    local, a Romaria prossegue rumo ao viaduto, Palácio do Governo, na Pç. Pedro II. Atravessa a

    Pç. João Lisboa, entra pela rua Oswaldo Cruz, para alcançar, cortando a cidade de Oeste a

    Leste, Monte Castelo, bairro do João Paulo, Filipinho, Anil, onde finalmente pega a estrada

    que leva a Ribamar, a Trinta e seis quilômetros da cidade de La Ravardière. Toda essa

    distância é devorada a pé, durante a noite de sábado para domingo, por aquele grupo de

    romeiros religiosos. Apenas os familiares dos carroceiros têm o privilégio de ocupar as

    carroças entre as duas cidades.

    A chegada a Ribamar se verifica ao redor de seis horas da manhã do domingo. Todas

    as carroças são dispostas em filas, assistem piedosamente à Santa Missa. Daí, temos a segunda

    etapa da Romaria, a Festa propriamente dita.

    As carroças são recolhidas à casa da Festa. Esta casa foi alugada com antecedência e,

    lá, já os espera a comedoria, cerveja, cachaça, orquestra composta de violão, saxofone,

    pandeiro, reco-reco, etc. E o forró "vira" o dia todo. Há sempre nessas ocasiões um elemento

    errado para atrapalhar os outros. Neste ano houve briga. Um elemento mesmo de Ribamar,

    cismou de atrapalhar a folia. Não teve graça. Foi pego a muque e posto para fora, a bem da

    moral.

    Este ano a Romaria caiu no dia vinte e um de outubro. A missa foi a vinte e dois,

    domingo, consagrado a Santa Maria Salomé, no calendário católico.

    Não temos conhecimento de que a Romaria das Carroças seja participada noutra

    cidade do Maranhão, fora da Ilha de São Luís.

    Em São Paulo, o folclorista Alceu Maynard Araújo, no seu monumental FOLCLORE

    NACIONAL (1964, Ed. Melhoramentos), registrou na cidade de Tatuí, por ocasião da "Festa

    de Santa Cruz" a "procissão das carroças de lenha". É muito curiosa e interessante essa festa

    em que toma parte toda a comunidade religiosa local, inclusive o Vigário da Paróquia daquela

    cidade do interior bandeirante. Porém é um pouco diferente da nossa Romaria.

    Tive a grata satisfação de contemplar e sentir o encanto dessa Romaria, na sua

    passagem pelo rio São João, no interior da Ilha, alta madrugada, no sítio SAYONARA, de

    propriedade de um amigo. Dormia no alpendre da casa, à margem do caminho. Ao lado havia

  • 23

    uma frondosa mangueira, que soltava os seus apetitosos frutos, de momento a momento, ao

    soprar do vento. Acordei pelo estrondar de foguetões e ao som da orquestra que acompanhava

    a Ave Maria, cantada pelos Romeiros que regressavam, cada um empunhando uma lanterna

    com luz acesa. O andor também iluminado,conduzindo o vulto de N. Senhora das Vitórias,

    sobre a carroça. Muita música, em plena floresta, imponentes palmeiras, compondo a

    grandiosidade desse quadro, iluminado pelo disco de ouro da lua-cheia.

    Despertei, francamente, naquela madrugada feliz, porém permaneci como que em

    sonho ouvindo com emoção aquela sinfonia dentro da mata, no gostoso sítio SAYONARA,

    no rio São João. Senti a impressão, meio acordado, de que me encontrava ante aquela

    belíssima cena de "Os Pirilampos", descrita pelo escritor Graça Aranha no seu livro CANAÃ.

    São Luís, 26/11/1967.

  • 24

    PREGÕES DE SÃO LUÍS7

    Uma legião de vendedores anônimos invade toda São Luís, desde as primeiras horas

    da manhã, todos os dias, oferecendo os produtos de sua mercadoria ambulante, dando uma

    nota típica à Cidade dos Azulejos.

    O carvoeiro passa muito cedo, sob o peso enorme de dois cofos de carvão, presos às

    extremidades de uma vara robusta, que carrega sobre o ombro, por certos pontos da cidade

    para atender o cliente que o espera. Um grito bem fino, muito característico, se ouve à

    proporção que ele passa em frente da cada casa. Este grito denuncia a sua aproximação. A

    empregada já sabe e o espera à porta ou à calçada para receber o carvão. Ele não falha. E

    quem desconhece o detalhe, o grito fininho, não imagina que ele significa a aproximação

    dessa figura humilde e simpática do carvoeiro, a passos firmes, ligeiros e cadenciados, sob o

    peso de muitos quilos de carvão que carrega nos cofos sobre os ombros.

    O seu freguês é certo, compra o carvão suficiente para o consumo do dia. E ele

    percorre diariamente, quase sempre, as mesmas ruas da cidade. O abastecimento cotidiano já

    constitui um compromisso tático com a clientela.

    Ele grita e prossegue rua acima e rua abaixo, indiferente ao bulício da cidade que

    desperta e se agita para o trabalho rotineiro e cotidiano.

    É lamentável que esse pregoeiro secular esteja condenado a desaparecer de nossas

    ruas, das nossas grandes cidades, em nome do progresso. O carvoeiro é uma tradição. E o

    progresso chega e fulmina impiedosamente tudo o que é tradição, antiguidade. Pouco importa

    se aquilo nos proporcionou conforto e bem-estar, durante algum tempo, uma vida. O carvão

    cedeu já lugar ao gás, subproduto do petróleo, e, aliás, com grandes vantagens inegavelmente.

    O gás é, na realidade, um descanso para a empregada, para a dona de casa. É rápido para fazer

    a chama, não há tisna para encardir as mãos da cozinheira, não suja as vasilhas, não produz a

    fumaça irritante nem tisna o vestido da dona de casa.

    Cheiiiiro verde! ... - anuncia o verdureiro mais distante. Alegre, às vezes, canta um

    versozinho para fazer graça e merecer a simpatia da freguesia....

    Mannnnga foice... - grita o vendedor de frutas.

    Mannnnga bacurí..., manguita..., banana comprida...,

    Banana couruda...., casca verde..., baé....,

    Banana casada..., pitomba...., juuuçara....

    A petizada faz uma festa. E temos que comprar todo esse mundo de guloseima para a

    gurizada.

    Outro pregoeiro alarma:

    7 Nota da organizadora - Publicado na revista Legenda, São Luís, Ano I, nº 4, set. 1968, p. 36; e na Revista

    Maranhense de Cultura (FUNC), Ano II, nº 2, jan.-jun. 1972; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore,

    nº 46, jun. 2010, p. 16.

  • 25

    Tem laranja..., tem lima..., tem tanja...,

    Tem bacuri e tem cupu...

    (Frutas regionais, uma delícia, faz correr água na boca).

    Na Feira do Matadouro, encontramos um grupo de vendedores anônimos, anunciando

    os mais diversificados produtos de sua mercancia. Destacamos o vendedor de cerâmica, entre

    os demais, que traz o seu produto pendurado numa vara.

    Tem jarrrro e tem pote...

    Tem "muringa" e tem bilha...

    No Mercado Central, está presente, além do que já nos reportamos, outro tanto de

    produtos regionais, e os pregões se multiplicam:

    Jaçannnnãããã...

    Peixe fresco..., tem pescada e camarão fresquinho...

    Tem cumurupim e tem curimatã... do Lago-Açu...

    O sol esquenta. A garganta resseca. É a vez do vendedor de picolé. Ele faz um

    esforço tremendo, sobre-humano, anunciando a variedade de fruta de seu picolé. O esforço é

    maior, quando anuncia as frutas da região. Há até trocadilho, vejamos:

    Tem cupu..., bacuri e tem ameixa...

    Ameixa..., bacuri e cupu...

    Cupu..., ameixa e bacuri...

    Tem bacuri..., ameixa e murici...

    O Luís Almeida é extraordinário, na exploração de seu comércio. Tem qualidades de

    grande vendedor. Criou um fraseado sonoro, pomposo para despertar a atenção da freguesia.

    O seu carrinho é bem cuidado, limpo e bem pintado. E abre o par-de-queixo, rua afora:

    Tem picolé... seu José...

    É de juçara, Da. Januária...

    É de murici... Da. Lili...

    É de açúcar, seu Manduca...

    É de abacaxi, seu Gigi...

    É de coco, seu Tinoco...

    É de caju, Da. Juju...

    É de maracujá, Da. Sinhá...

    É uma beleza, Da. Tereza...

    É um suplício, seu Simplício...

    É um coquinho, seu Agostinho...

    E finalmente para os cabeludos:

    É um tremendão, seu Brandão...

    É interessante. Chama a atenção por onde passa. Seria imperdoável finalizar, sem

    fazer uma referência especial ao gostoso "mingau maranhense" que é vendido diariamente no

  • 26

    Mercado Central de São Luís, como também a juçara com farinha d'água que se encontra à

    venda no portão da Feira da Praia Grande, preparada por uma roxinha muito habilidosa.

    Quem prova do mingau maranhense de da juçara com farinha d'água, jamais

    esquecerá.

    São Luís, 11/08/1968.

  • 27

    A MEDICINA CASEIRA MARANHENSE (Medicina Prodigiosa)8

    Também nos mercados e nas feiras de São Luís encontramos a figura simpática do

    mezinheiro, o mago da medicina prodigiosa e caseira, a ensinar e vender raízes de pau, para

    curar essa e aquela doença. É um comércio interessante e bem movimentado. O cliente não é

    apenas gente humilde, há gente bem, que vai sempre ao raizeiro, à procura dos cheiros para os

    banhos miraculosos ... na esperança de cura do seu mal.

    Ficamos horas a fio observando um deles que nos chamou a atenção, na Feira do

    Matadouro, oferecendo as suas raízes, os cheiros, usando uma lábia irresistível.

    É um "escurinho" (escurinho no Maranhão é sinônimo de preto, no resto do

    Nordeste), sempre a gritar com entusiasmo, convencendo de que está vendendo um produto de

    grande e eficiente qualidade.

    Tem alfazema ..., tem tempero seco ... e tem corante ...

    Tem boldo - remédio para os rins e para o fígado ...

    Defronte, outro anuncia com mais ênfase:

    Tem jucá ... e tem pau d'arco roxo ... (está na moda).

    E surge mais outro ao lado:

    Tem defumador de chama! ..., tem Sete flecha ... e tem Flecheiro

    Tem alecrim e tem incenso de igreja ...

    Que maravilha ... e como o povo gosta. E outro mais:

    Tem "Vence Tudo"..., desperta e abre caminho ...

    Tem Quebra-Barreira ..., tem Catinga de Mulata ... e tem Diabo Preto.

    Concluindo essa coisa fabulosa, da medicina caseira e prodigiosa do Maranhão, o

    pregoeiro enfatiza o seu pregão:

    Tem contra-erva para constipação

    e se faz lambedor com ovos de galinha ...

    São Luís, 05/10/1968.

    8 Publicado no Jornal do Dia, São Luís, em 24/10/1969; na Revista Maranhense de Cultura (FUNC), Ano II, nº

    2, jan.-jun. 1972, p. 22; e na Tribuna de Piracicaba, em 01/08/1974, com o título: Medicina Prodigiosa e

    Caseira de São Luí;s no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 48, dez. 2010, p. 04..

  • 28

    FOLCLORE DO PIAUÍ

  • 29

    ELE NÃO DÁ CRUZEIRO9

    João é o mais velho, o chefe. São dez, o número dos que compõem o grupo de índios

    "civilizados", que se encontra nesta Cidade-Verde, ou mais propriamente, Chapada-do-

    Corisco (Teresina). Pertencem à tribo Gavião, cujo pajé (parré) se chama Boaventura. Sua

    maloca se acha situada nas proximidades de Barão-de-Grajaú, no vizinho Estado do

    Maranhão.

    Todos têm nome português. Teresa e Senhorí (Senhorinha?) chamam-se as mulheres;

    Pedro e Fabrício, os do sexo forte. São fisicamente uns super-homens. Não obstante adaptados

    ao nosso meio, ainda conservam as principais características da tribo. Os homens têm os

    supercílios raspados, cabelos negros e lisos, que se alongam cobrindo as omoplatas. Trazem a

    parte inferior da orelha cortada verticalmente, sendo entretanto ligada a extremidade. João,

    como pai e chefe, exagera um pouco, elastecendo a parte cortada da orelha e laça, na abertura,

    a parte superior da mesma. As mulheres usam as orelhas furadas, como se nelas houvessem

    usado brincos. Igualmente, de maneira curiosa, todos, na altura das orelhas, têm uma camada

    do cabelo cortado, formando assim como que uma boina. Fabrício traz invariavelmente a

    calça arregaçada na altura do joelho e entre este e a "batata da perna" um cordão amarrado.

    Num arranco de curiosidade, procurei conversar com esses genuínos brasileiros,

    ficando extraordinariamente surpreendido quando verifiquei que não havia nenhuma

    dificuldade para isto. Já se comunicam regularmente no mesmo idioma do poeta dos

    Timbiras.

    João me disse inicialmente que o motivo da sua vinda a esta cidade, foi não só o

    desejo de deixar sua vida selvagem, mas também "pedir auxílio ao papai-grande", o governo.

    Mas bateram à sua porta, porém foram informados que o "papai-grande" estava viajando...

    Para eles não existe o Serviço de Proteção aos Índios e, num franco desafio aos

    responsáveis pelos nossos destinos, eles permanecem, o grupo de dez, mais uma vez nesta

    terra, aumentando o número dos desocupados, dos que vivem da caridade pública, margeando

    "o velho monge". Quase ninguém os reconhece como seres humanos. Não há para eles

    qualquer apoio ou controle ao trabalho continuando assim uma vida errante na cidade,

    famintos e esfarrapados.

    Nesta hora difícil que atravessamos, quando necessitamos de produção e braços para

    o desenvolvimento de nossa agricultura, é com tristeza que verificamos que esse elemento,

    elemento de casa, é deixado à margem e passamos a receber o elemento dos mais variados

    climas e raças, às vezes, indesejáveis aos nossos interesses, oferecendo-lhes casa, conforto,

    enfim tudo.

    O nosso elemento, os mais lídimos brasileiros, afluem às cidades sem amparo, sem

    lar, entregando-se à mendicidade para fugir à morte pela fome. Não desejam mais a vida nas

    selvas, a monotonia de suas malocas.

    9 Publicado na revista Bando, nº 6, p. 11, Natal, 1949.

  • 30

    Ao sair, João confessou que sua tribo não prende mais "cristão", são mansos. E como

    pedi para dizer algo em sua língua ele, em seu próprio idioma, falou para uma das

    companheiras: "ELE NÃO DÁ CRUZEIRO?..."

    Teresina, fevereiro de 1949.

  • 31

    BENEDITO, MESTRE ESCOLA DA TRIBO GAVIÃO10

    Estão em Teresina mais cinco índios da tribo Gavião. Como sempre, movidos pelo

    natural interesse de conhecer de perto o que é nosso, de colher detalhes sobre a vida, os

    costumes e atividades dessa raça fadada a desaparecer. Entrei em contato com dois deles:

    Salomão e Amazonas. E alguns minutos decorridos, conversávamos como se fossemos velhos

    conhecidos que de súbito ali se encontravam.

    Vieram incumbidos de uma bem delicada missão que lhes fora imposta pelo grande

    chefe, e não para pedir inutilmente amparo ao "papai-grande". Verificada que foi a fuga de

    MIPLI (Maria), encantadora rapariga da tribo, o pajé Boaventura, expedira incontinenti o

    grupo de cinco índios - Salomão, Amazonas, irmão de Milpi, Militão, Frimiano (?) e Belizário

    - para sair à procura da fugitiva e fazer que ela reverta, de qualquer maneira, à maloca.

    Viajando pela via-férrea que liga o Maranhão ao Piauí os emissários do chefe

    indígena, saltaram nesta cidade, onde já se achava Milpi. Esta porém recusara o convite de

    regressar à tribo, "tinha pena deixar mulher", mesmo assim temia os rudes castigos a que seria

    irremediavelmente submetida, em reparação ao seu erro. Não a comoveram os apelos do

    irmão, nem tão pouco os pedidos de sua desolada mãe, que ficara nas matas maranhenses,

    banhada em lágrimas frente a tão profundo golpe. Para Milpi, maior que o amor materno já é a

    amizade, a gratidão àqueles que, na hora incerta e decisiva da sua vida, lhe deram acolhimento

    à margem do Parnaíba. Eles, ante tudo isto, levados talvez por pseudos sentimentos de

    humanidade, fracassaram fragorosamente no cumprimento da missão.

    "Milpi diz não volta, tem pena deixar mulher” e, continuou Salomão,

    "nós quer bem”, "ele não leva à força, ele não quer ir”. E, tomado de grande

    tristeza, concluiu: “Boaventura fica zangado, tem raiva, se não levar Milpi e

    diz - vocês são moles!”

    Quatro desses índios são tipos comuns e aparentemente medíocres. Um deles, no

    entanto, o Salomão, merece referência especial pela sua aguda inteligência. Forte, simpático,

    usando roupa bem cuidada em relação aos companheiros, de paletó branco e camisa vermelha,

    óculos escuros, face à cinta, lanterna e tamanco, é, em suma, desses que á primeira vista

    deixam seus companheiros num plano de inferioridade, absorvendo para si toda a nossa

    atenção. Conta dezoito anos de idade, “com seus descontos”. Acompanharam-me à minha

    residência, onde os apresentei aos irmãos Rocha, que lhes ofereceram, surpreendidos e

    alegres, várias guloseimas. Valendo-me dessa oportunidade, colhi um sem número de

    informações, detalhes, em torno de suas atividades, seus costumes, enfim, tudo que diz

    respeito à sua tribo. Esta conta, aceitando os números fornecidos por Amazonas, cerca de

    trezentos índios, "todos comem salgado e andam vestidos”. Entre eles está muito bem

    desenvolvida a agricultura. Plantam arroz, milho, feijão, fava, batata e inhame, "modubim",

    mandioca e cana; criam bode, porco, galinha e "angulis" (guiné), peru, pato, seis reses e dois

    cavalos "de carreira boa, forte".

    Ainda em minha casa, após ouvirem gravações de Luiz Gonzaga e Luiz Americano,

    pediram que repetíssemos alguns discos que mais agradaram, porque estavam aprendendo

    para ensinar aos outros.

    10

    Publicado na revista Bando, Ano I, nº 10, p. 10, Natal, out. 1949

  • 32

    Salomão, fortemente emocionado, nos deus as costas e balbuciou: " Tô com saudade

    do pai"... Amazonas, olhando o astro-rei agonizante, disse - "Esta hora mãe está chorando"...

    Não foi pequena a luta para fotografá-los. Amazonas, justificando sua recusa, dissera

    que "tinha em casa muito retrato, tinha retrato até no Ceará". Salomão só não queria "porque

    não prestava". Este, no entanto, a custo, se deixou vencer e decidiu-se: "Vou deixar meu

    retrato pru você, mas eu quero um". E alinhando as franjas, os cabelos negros e longos,

    preocupado em saber se daquela forma estava bonito, posou para minha objetiva ... Este

    selvagem não se cansa de prestar informações e detalhes, tendo também o devido cuidado de

    observar se está sendo bem entendido.

    "Eu não gosto quando a pessoa não pergunta bem".

    Confirmaram serem de sua tribo os índios que aqui estiveram, e pronunciou o nome

    de cada um: João, Miguel, Antenor, Fabrício, Floriano, Bento, Mundico, Vicente, Teresinha e

    Senhorinha, e não como dissemos em trabalho anterior, Teresa e Senhori.

    Seu comércio, permuta de cereais por roupa e outros objetos, é de preferência feito

    com o caboclo Pacuá e Nascimento, na cidade de Amarante.

    Pondo em suas mãos algumas moedinhas com a efígie de Getúlio, Salomão sorrindo

    contou Cr$ 2,00.

    Salomão deixou-me boquiaberto ao revelar que nas matas maranhenses existe forte

    movimento de alfabetização entre os índios. A tribo Gavião não está indiferente a este

    movimento que se processa em todo o território nacional. Ela prepara-se para o futuro, tem

    seu mestre-escola, Benedito.

    O Benedito é o tal, afirmou o índio. Aprendeu ler junto "cristão" e

    saiu na Geraldo (Geral?), não quis mais11

    . Ele é nosso, você "cristão". Sou

    BRASILEIRO. Ele ensina nós. Tive uma noite e três dias na escola, viajei aqui.

    O nosso bate-papo nesse ínterim, se transformara numa proveitosa aula.

    "Açúcar, lata, quaje mesma coisa sua língua" e pronunciava....

    Passei a dizer-lhe algumas palavras e ele dava a correspondente em sua língua|:

    dia - acmocrô, machado - coi, bom-dia - têmo cameá-crem, Urubu - Tzuní,

    faca - uacu, Deus - Pat (?), faquinha – uacurê.

    E finalizou com o nome de alguns deles:

    Cutxi - Boaventura, o pajé; Prôcatê – Salomão; Carô – Amazonas; Mipli -

    Maria, a desertora.

    Teresina, junho de 1949.

    11

    Nota do autor - Após a publicação desse artigo, li que a Serra Grande era conhecida também como Geral. Não

    tenho dúvidas de que o índio pronunciou Geral e não Geraldo.

  • 33

    O BUMBA MEU BOI12

    O BOI é a tradição junina que, no Piauí, empolga de modo geral desde a criança até o

    velho recurvado no seu bordão. Ninguém aqui estranharia um "São João" sem fogueira, sem

    milho verde, sem o clássico baile à matuta. Mas, sem o BOI, seria inadmissível, inacreditável.

    É a brincadeira característica da região. Dizem que ela é de origem africana, havendo chegado

    ao Maranhão com os escravos. Daí, espalhou-se pelo Pará e Piauí. Aparecem na mesma

    época, no Maranhão, também os popularíssimos "pássaros" e "animais" outros, numa perfeita

    imitação ao BOI.

    Os ensaios iniciam-se um mês antes. Já por esse tempo as crianças começam a

    confecção de minúsculos BOIS de talo de burití, revestidos de papel de seda de cores

    extravagantes. E são expostos à venda nos mercados ou nas ruas, proporcionando instante de

    intensa alegria à petizada.

    As "cantigas" se renovam todos os anos. O grupo de "foliões" varia entre dezoito e

    vinte e quatro anos. São - 1º Amo, 2º Amo, Chico, "Catirina", o Vaqueiro, o Caboclo Real, o

    Caboclo Guerreiro, 1º Rapaz, 2º Rapaz, Doutor Cachaça, Doutor "Pilantra", e outros caboclos.

    Tem indumentária própria de cores fortes, espécie de fantasia carnavalesca, inclusive os

    caboclos que se trajam com tangas, nas quais empregam penas de pássaros, à semelhança dos

    índios.

    Porém "o BOI antigo - dizem - era bem diferente". Está se modernizando e, com isto,

    perdendo o que tinha de mais original e mais belo. Sua pancadaria constituída por matracas,

    cedeu lugar a cuícas, pandeiros, tambor, maracás e apitos, que à distância imprimem um

    aspecto macabro à brincadeira.

    É costume local contratarem o BOI de sua preferência, o de mais popularidade, para

    cantarem nas residências para divertimento da família. É por isso que nos últimos dias de

    Maio, os BOIS estão aptos a atenderem a chamados ou fazerem assaltos por toda a cidade. Os

    dias máximos são de 23 a 28 de junho, ligando o "São João" ao "São Pedro". A brincadeira

    finaliza invariavelmente com a morte e ressurreição do BOI. Cada BOI pode morrer diversas

    vezes numa só noite. Morre em cada casa ou local, onde se exiba. Noite de São Pedro, em

    suma, fixam a data para a definitiva morte do BOI, no mês de julho.

    Cada localidade ou cidade maior tem o seu BOI, qual deles goza de maior fama.

    Merece referência especial o BOI de José Alves de Sousa, vulgarmente conhecido por

    PASSARINHO, no bairro do Matadouro, em Teresina. No ano passado o seu BOI se chamou

    "Jardim do Amor". Este ano foi "Brilho do Amor". Saiu bem modernizado com as "cantigas

    novas". Entrou na Política. Pela ZYQ-3, Rádio Difusora de Teresina irradiou, Noite de São

    Pedro, um programa em homenagem a Ademar de Barros e Dr. Agenor Almeida.

    12

    Publicado na revista Bando, nº 17, out. 1950. p. 10-11, Natal, 1949; Palavras de Raimundo Nonato, em carta

    sem data, sobre o artigo acima: “Ontem remeti-lhe o Bando, agora saído. Seu artigo vai na mesma. Muito bom e

    oportuno, aliás. A propósito, o M. Rodrigues fez-lhe um elogio sem favores, colocando-o entre as colaborações

    necessárias”; Citado em 1964 por Alceu Maynard Araújo em Folclore Nacional v. 1, São Paulo, Ed.

    Melhoramentos, p. 406; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 47, ago. 2010, p. 15..

  • 34

    As "cantigas" que abaixo transcrevemos são de um BOI da cidade de Campo-Maior,

    em cuja ortografia, fizemos ligeira alteração:

    Eu tenho, moreninha, mas não dou,

    Meu canário cantador.

    Eu vou botar meu canário

    pra cantar com o beija-flor

    Lá vai, lá vai

    A estrelinha pelo chão.

    Ó borboleta do inverno,

    Andorinha do verão ...

    Lá vai, lá vai

    Jogando água pra o fundo,

    Meu boi que vai passando

    Eh! Moreninha, avisa a todo mundo!

    Eu tenho meu baralho novo,

    Que a morena me mandou.

    Meu baralho está na mesa,

    Está na mão do jogador.

    Eu tenho meu baralho novo,

    Que comprei, mandei buscar.

    Meu baralho novo está na mesa,

    Quem quiser pode jogar...

    Lá vai, lá vai

    O nosso boi guerreiro,

    Leva o nosso boi, vaqueiro,

    Pra rua da redondeza.

    Lá vai, lá vai

    O boi de fama, Serrador,

    Morena, varre o terreiro,

    Te prepara que já vou.

    Mas eu vou, eu vou, Seu colega

    Se as moças forem, eu vou também

    (Bis)

    Quero bem a bananeira

    da raiz até o meio.

    Quero bem estas meninas

    do vestido no joelho.

    Quero bem a bananeira

    da raiz até o cacho.

  • 35

    Quero bem estas meninas

    de doze anos pra baixo...

    O couro do meu boi

    No salão alumeia,

    Ou no sereno brilha,

    Ou no salão balanceia.

    Vai, vai, vai, vai reparando

    Eh, negro Chico,

    os caboclos estão te esperando...

    Lá vem a lua saindo

    Lá pra banda do nascente.

    Quem beija boca de moça,

    Não sente mais dor de dente.

    Ôôô... vai morrer, ôôô... vai morrer,

    Balanciou...

    A fama do BOI guerreiro,

    Hoje mesmo se acabou...

    Nós somos caboclos guerreiros,

    Que viemos das aldeias,

    Pra prender o pai Francisco,

    Pra meter na cadeia...

    Xô, xô, xô, Jerumenha (Bis)

    Xô, xô, xô, Jerumenha (Bis)

    Os caboclos se prenderam,

    Foi com muita da razão,

    Se não fosse o BOI estrela,

    Eu não ia preso, não...

    Xô, xô, xô Jerumenha (Bis)

    Xô, xô, xô Jerumenha (Bis)

    Negro Chico tira a língua,

    Nego, se tu queres tirar.

    Entrega à dona da casa,

    Que meu senhor mandou dar.

    Daqui, daqui pra acolá,

    É pra você mais Seu José,

    Me dê mais um bocadinho,

    Para interar o café...

    Teresina, 09 de agosto de 1950.

  • 36

    SÃO GONÇALO NO PIAUÍ13

    São Gonçalo é, incontestavelmente, um dos santos mais festejados e queridos da

    família piauiense. O seu prestígio pode ser equiparado ao que desfrutam Santo Antônio, São

    João e São Pedro, entre a gente que mora no sertão potiguar.

    "São Gonçalo" era o nome da atual cidade de Regeneração. Foi uma "homenagem ao

    santo do nome do governador que ali recolheu 434 índios”. Patrono do templo católico de

    Amarante desde 1865. Coincidiu assim com o de sua homônima na península ibérica. E não

    há dúvidas, trata-se de uma homenagem a Portugal, por influência de seus filhos na fundação

    do lugar.

    E qual o filho de Amarante ou quem lá decidiu que, pelo menos, não guardam na

    memória uma estrofe do bendito que se canta na Matriz, em louvor ao seu querido padroeiro.

    Achamos indispensável a transcrição de uma delas que, vezes sem conta nos foi repetida:

    Bendito louvado seja

    A luz do sol tão brilhante

    Na hora em que nasceu

    São Gonçalo do Amarante...

    Além do culto oficial que lhe presta a Igreja, São Gonçalo é alvo de um culto

    esquisito entre a população ingênua e simples que habita o interior do Estado. A igreja

    combate e critica a prática desse ritual devocional por ser profano e supersticioso, mas persiste

    o costume, embora com as deturpações que lhe têm sido impostas pelo tempo. A opinião de

    pessoas amigas por nós ouvidas a respeito do São GONÇALO, é que " essas festas

    apareceram, no Piauí, com a chegada de uma família de portugueses que se localizou em

    Amarante”. Daí se espalhou por todo o Estado.

    O devoto ingênuo faz uma promessa a São Gonçalo. Pede pra ficar bom de um mal,

    que, muitas vezes, já não tem mais cura. Implora pela restituição da saúde de um ente querido.

    Pede tudo: que lhe volte às mãos o objeto perdido, o animal que desapareceu. A mulher deseja

    a volta do esposo, a mocinha pede um noivo. Obtido o milagre, a graça, São Gonçalo recebe a

    sua "festa”.

    A imagem de São Gonçalo é posta em um andor e levada em acompanhamento a

    determinada casa de pessoa amiga. Aí, realiza-se a "festa". E pelo caminho, todos cantam:

    São Gonçalo vai saindo,

    Saindo de porta a fora,

    Parecendo a Estrela Dalva,

    Quando vem rompendo a aurora.

    13

    Publicado no Almanaque Cariri – Edição especial do Centenário de Teresina. 2ª ed. 1952, p.856-861,

    coordenado por Francisco de Assis Leite; publicado também em 1954 em Dança de São Gonçalo, plaquete

    organizada por Assis Silva e publicado pela Biblioteca Municipal de Mossoró. Esse trabalho, como também

    Ainda a dança de São Gonçalí, foram citados por Alceu Maynard Araújo em Folclore Nacional, vol. II, p. 36,

    como estudos criteriosos sobre a dança de São Gonçalo no Piauí e no Maranhão, assinalando sua presença nos

    dias atuais; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 47, ago. 2010, p. 15.

  • 37

    Ôôô que caminhos tão longe,

    Ôôô que areias tão quente,

    Os milagres de São Gonçalo

    Fez abalar tanta gente...

    Minhas alvíssaras, minha gente,

    São Gonçalo já chegou,

    Foi chegando e foi dizendo:

    Minhas alvíssaras, eu aqui estou!

    O vulto do santo é colocado num altar sobre a mesa, na sala ou em latada, à frente da

    casa para melhor agasalho dos gonçalinos. Rezam-se algumas orações, seguindo-se um

    intervalo no qual ingerem algumas "chamadas" de aguardente e outras bebidas para melhor se

    expandirem, para ficarem mais desenvolvidos nas danças. Um grupo, quase sempre, de 12

    mulheres, que ostentam miçangas no cabelo, no traje vistoso, nos braços, e 4 homens "os

    guias" e "contra-guias" - além dos tocadores de viola e de tambor, inicia "as danças". Forma-

    se a roda ante a imagem do santo. Começam as cantigas, as danças, ao som da viola e batuque

    de tambor. Os versos que transcrevemos, foram recolhidos de uma "festa de São Gonçalo",

    realizada no município de Campo-Maior. Foram-nos gentilmente cedidos por pessoa amiga,

    os quais não sofreram nenhuma alteração:

    Nas horas de Deus amém,

    Padre, Filho, Espírito Santo,

    É a primeira cantiga

    Que eu a São Gonçalo canto

    Padre, Filho, Espírito Santo,

    Nas horas de Deus amém,

    É a primeira cantiga

    Que eu a vós canto também.

    Eu vou dar uma despedida,

    No bico da saracura,

    A boca de São Gonçalo

    Parece um cravo maduro.

    Eu vou dar uma despedida,

    Numa caneca de ouro,

    Meu senhor São Gonçalo,

    Essa é em seu louvor.

    Eu vou dar uma despedida,

    Numa caneca de ouro,

    Meu senhor São Gonçalo

    Adeus que eu já vou-me embora.

    São Gonçalo disse ontem,

    Hoje tornou a dizer

  • 38

    Que eu “vinhesse” as vossas danças

    Que ele queria me ver.

    Eu vou dar uma despedida,

    No laço da fita roxa,

    Viva, viva São Gonçalo!

    Viva, viva o tocador!

    Eu vou dar uma despedida,

    No bico da siricora,

    Vou-me embora com as nuvens

    Que é coisa que não demora.

    Eu vou dar uma despedida,

    No galho do alecrim,

    Meu senhor São Gonçalo,

    Vossas danças estão no fim.

    Eu vou dar uma despedida

    Numa caneca de prata,

    Meu senhor São Gonçalo,

    Vós desculpe algumas falta.

    Entre serras e serrotes,

    Mora três padres galantes,

    São Francisco, Santo Antonio,

    São Gonçalo de Amarante.

    São Gonçalo diz que é santo,

    Mais também tem seus amores...

    Todo dia recebendo,

    Os seus raminhos de flores.

    Santo Antonio e São Gonçalo,

    São dois santos enteresseiros,

    SãoGonçalo pelas danças,

    Santo Antonio pelo dinheiro...

    E, aproximando-se dos violeiros, continuam os cantores:

    Estes "guias" que aqui estão,

    Vinheram do Rio de Janeiro,

    Vós levais eles pro céu,

    Para os pés de Deus verdadeiro.

    Meu senhor São Gonçalo,

    Aqui estão os "contra-guias",

    Vós levais eles pro céu,

    Para os pés da Virgem Maria.

  • 39

    Meu senhor São Gonçalo,

    Aqui tenho duas amigas,

    Vós levais ela para o céu,

    Enquanto são bem amigas.

    Meu senhor São Gonçalo,

    Vou lhe fazer um pedido,:

    Fortuna e felicidade,

    Gonçalo pra nossa vida.

    Meu senhor São Gonçalo,

    Aqui tem duas irmãs,

    Vós levais elas para os céus,

    Uma hoje, outra amanhã.

    Meu senhor São Gonçalo,

    Aqui tem duas açucenas,

    Cravo branco roxeado,

    Meninas de cor morena.

    Meu senhor São Gonçalo,

    Meu Jesus de Nazaré,

    Dai-me licença, meu santo,

    Eu beijar em vossos pés.

    Passemos, gente, passemos,

    Passemos com pé ligeiro,

    Depois não saiam dizendo

    Tem barroca no terreiro.

    Passemos, gente, passemos,

    Tornemos a repassar,

    Dancemos as danças direito,

    Pro santo nos ajudar...

    Começando à "boca da noite" a dança se prolonga até muito tarde, dependendo,

    porém, do número de jornadas a serem realizadas. Estas são em geral, 12. Há uma pessoa

    determinada com os caroços de milho à mão, os quais correspondem ao número exato de

    jornadas. À proporção que vão terminando uma, essa pessoa joga um caroço de milho fora.

    Isto é para evitar engano. A última jornada habitualmente é reservada para o dono da casa ou à

    pessoa que organiza a função, a qual, quase sempre, é contemplada com a maior parte dos

    gastos.

    Não deixa de ser muito interessante o modo por que termina essa "festa”. Consta da

    arrematação de um arco, após as danças. O arco foi adredemente preparado, com a devida

    antecedência. Muito enfeitado com papel de seda de variadíssimas cores, flores artificiais e

    naturais em abundância. Há neles inúmeros cachos de frutas de diversas qualidades, rodas de

    bolo, etc. No centro, foi colocado muito de propósito, uma penca de banana ou das melhores

  • 40

    frutas. É motivo de gracejos e pilhérias do leiloeiro, visando animar o ambiente. Antes,

    porém, de anunciados os objetos, cantam algo interessante e original. Uma desagradável

    advertência contra infalíveis caloteiros que esperam a sua grande oportunidade:

    Senhores e minhas senhoras

    Atenção me queiram prestar.

    Vai-se arrematar o arco

    De meu senhor São Gonçalo.

    Mas vou lhes dizendo logo

    Que eu não vendo fiado,

    Pois fiado me dão pena

    E pena me dão cuidado,

    E mesmo assim eu não posso,

    Pois o santo fica zangado...

    Teresina, 1950.

  • 41

    AINDA A DANÇA DE SÃO GONÇALO14

    Bendito louvado seja,

    A luz do sol tão brilhante,

    Na hora em que nasceu

    São Gonçalo do Amarante...

    É o início do Bendito em louvor ao Patrono da Matriz de Amarante, no Piauí.

    Amarante escolheu padroeiro idêntico ao de sua homônima na península ibérica. E, por isto,

    achamos possível que, entre os seus fundadores, houvesse a influência do elemento português

    para justificar essa dupla homenagem à pátria mãe.

    Em nossas constantes pesquisas em torno das festas tradicionais piauienses - o

    Tambor, o Reisado, os Caretas, o Divino, São Benedito, os Marujos, etc. - sempre ouvimos

    dizer que o São Gonçalo foi uma festa que apareceu no Piauí com a chegada de uma família

    portuguesa que foi morar em Amarante. Daí a dualidade de culto ao milagroso santo. Um com

    a aprovação da Igreja; outro por ela combatido. Mas, seja como for, dessa época, ou de outra

    mais remota, São Gonçalo continua recebendo as costumeiras homenagens do piauiense que

    habita o interior, apesar de combatido e criticado pela Igreja, por ser uma festa de cunho

    profano e supersticioso. A sua prática mais se acentua nos lugares menos visitados por padres,

    onde inegavelmente e instrução religiosa permanece em nível muita a desejar.

    Assis Silva, em interessante artigo publicado em BANDO (outubro de 1950), cujo

    título é análogo ao destas notas, assinala divergência entre versões recolhidas por folcloristas

    do Norte e do Sul do país, referentes à celebração desse culto exótico. Há aqui também

    divergências não apenas em versos, porque cada grupo tem os seus, mas no motivo do culto,

    cujos "devotos" pertencem tanto ao preto e ao branco, como ao rico e ao pobre. Não é, pois,

    uma "festa" só de negros, como encontrou Assis Silva, em Portalegre, no Rio Grande do

    Norte. Seu "devoto", como um católico praticante, recorre à intercessão do milagroso santo,

    prometendo fazer "um São Gonçalo", se alcançar a graça da concretização do seu desejo, a

    solução do seu caso, muitas vezes tão curioso quanto a própria "festa".

    Num andor, a imagem de São Gonçalo é levada em acompanhamento a determinada

    casa de pessoa amiga, na qual se realizará a "festa”. Colocado o vulto do Glorioso Santo sobre

    uma mesa na sala ou no terreiro, rezam-se algumas orações. Seguindo-se, os Gonçalinos em

    frente à imagem à roda e começam as danças, de modo mais ou menos idêntico ao descrito

    pelo autor do artigo mencionado.

    14

    Publicado na revista Bando, Ano V, Vol. III, nº 4, Natal, set. 1953, Natal. Apresenta pequena modificação ao

    publicado no Almanaque do Cariri (1950-1952) e no plaquete organizado por Assis Silva Sobre a Dança de São

    Gonçalo (1954), com o título São Gonçalo no Piauí; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 37,

    jun. 2007, p. 07. Esse trabalho, como também São Gonçalo no Piauí, foram citados por Alceu Maynard Araújo

    em Folclore Nacional, vol. II, p. 36, como estudos criteriosos sobre a dança de São Gonçalo no Piauí e no

    Maranhão, assinalando sua presença nos dias de hoje.

  • 42

    Vítima da sorte nessa estranha "festa", como o "devoto" Assis Silva, uma jovem

    campo-maiorense, de uma retentiva privilegiada, nos oferece a