omar ferri

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ENTREVISTA: DR. OMAR FERRI * Apresentação O Programa de História Oral do Memorial do Judiciário do Estado do Rio Grande do sul está formando um Banco de História Oral, cujas entrevistas vêm sendo publicadas nesta revista, com também, na série Histórias de Vida, que reúne coletâneas de depoimentos. A formatação da rede de depoentes e a formulação dos questionamentos aos entrevistados coincidem com as demandas animadas pelas pesquisas desenvolvidas no Memorial. Os depoimentos, depois de degravados pelo Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do Tribunal de Justiça, são textualizados pela equipe técnica do Programa e devolvidos aos depoentes para eventuais ajustes e aprovação final. Aprovados, os depoimentos são indexados, de forma a facilitar o acesso aos consulentes, e, em seguida, são devidamente arquivados. Todas as declarações constantes nas entrevistas são de responsabilidade exclusiva dos depoentes, que assinam um termo de cessão de direitos para o Memorial do Judiciário, autorizando ou não a divulgação da entrevista. O Memorial do Judiciário garante total liberdade de expressão aos depoentes, procurando, ainda, ouvir todos os lados interessados em uma determinada polêmica. Por isto, entendemos os fatos narrados nas entrevistas não como verdades históricas em si, mas como representações e opiniões individuais sobre o processo histórico e sobre fatos do passado. Recomendamos que as entrevistas coletadas e divulgadas pelo Memorial do Judiciário, por este motivo, sejam lidas sempre em seu contexto, comparativamente a outras entrevistas, publicadas nesta revista ou na série Histórias de Vida. Omar Ferri formou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC), em 1957. Neste mesmo ano, a convite de líderes ligados ao Presidente da República João Goulart, passou exercer o cargo de Procurador da Fundação Brasil Central, com sede em Brasília. Em 1964, com o advento do regime militar, foi demitido da função pública por determinação do Comando Militar de Brasília e passou, então, a atuar em causas penais que tiveram repercussão internacional, dentre as quais * Entrevista concedida à historiadora Márcia de la Torre e à estagiária Carine Medeiros Trindade, em 07 de junho de 2004, no Escritório do entrevistado. Degravação do Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do TJ-RS. Textualização Gunter Axt.

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ENTREVISTA: DR. OMAR FERRI*

Apresentação O Programa de História Oral do Memorial do Judiciário do Estado do Rio Grande

do sul está formando um Banco de História Oral, cujas entrevistas vêm sendo publicadas

nesta revista, com também, na série Histórias de Vida, que reúne coletâneas de

depoimentos. A formatação da rede de depoentes e a formulação dos questionamentos

aos entrevistados coincidem com as demandas animadas pelas pesquisas desenvolvidas no

Memorial. Os depoimentos, depois de degravados pelo Departamento de Taquigrafia e

Estenotipia do Tribunal de Justiça, são textualizados pela equipe técnica do Programa e

devolvidos aos depoentes para eventuais ajustes e aprovação final. Aprovados, os

depoimentos são indexados, de forma a facilitar o acesso aos consulentes, e, em seguida,

são devidamente arquivados.

Todas as declarações constantes nas entrevistas são de responsabilidade exclusiva

dos depoentes, que assinam um termo de cessão de direitos para o Memorial do

Judiciário, autorizando ou não a divulgação da entrevista. O Memorial do Judiciário

garante total liberdade de expressão aos depoentes, procurando, ainda, ouvir todos os

lados interessados em uma determinada polêmica. Por isto, entendemos os fatos narrados

nas entrevistas não como verdades históricas em si, mas como representações e opiniões

individuais sobre o processo histórico e sobre fatos do passado. Recomendamos que as

entrevistas coletadas e divulgadas pelo Memorial do Judiciário, por este motivo, sejam

lidas sempre em seu contexto, comparativamente a outras entrevistas, publicadas nesta

revista ou na série Histórias de Vida.

Omar Ferri formou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio

Grande do Sul (PUC), em 1957. Neste mesmo ano, a convite de líderes ligados ao

Presidente da República João Goulart, passou exercer o cargo de Procurador da Fundação

Brasil Central, com sede em Brasília. Em 1964, com o advento do regime militar, foi

demitido da função pública por determinação do Comando Militar de Brasília e passou,

então, a atuar em causas penais que tiveram repercussão internacional, dentre as quais

* Entrevista concedida à historiadora Márcia de la Torre e à estagiária Carine Medeiros Trindade,

em 07 de junho de 2004, no Escritório do entrevistado. Degravação do Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do TJ-RS. Textualização Gunter Axt.

2 destaca-se o caso do seqüestro de “Lílian Celiberti e Universindo Dias”, tornando-se

conhecido como especialista em causas criminais. Em 1985, foi anistiado e ocupou vários

cargos públicos. Foi Vereador em Encantado e Porto Alegre e Deputado Estadual. É

autor de diversas obras, dentre as quais destaca-se o Manual de Direito Tributário.

Atualmente é Procurador Autárquico aposentado e exerce a advocacia.

A entrevista aborda aspectos da vida partidária do antigo PTB, nos anos 1950,

bem como a trajetória do entrevistado na Fundação Brasil Central, na condição de

Procurador, até 1964. Comenta o golpe de 1964 e o processo de cassação que vitimou o

depoente, bem como, mais tarde, depois da anistia, o processo de expulsão do PSB, que o

atingiu. Sobretudo, Ferri descreve sua experiência profissional como advogado, junto ao

Tribunal do Júri – cujo sistema critica –, referindo-se a diversos casos ruidosos, como o

“Caso do Disco” e o “Caso Nina Gualdi”, esposas que mataram os maridos, o “Caso do

Seqüestro dos Uruguaios”, dentre outros. Apresentando detalhes sobre este ruidoso

episódio, Ferri critica o sistema judicial, mas exalta a coragem de alguns Magistrados e

Promotores, cuja ação ajudou a escrever um importante capítulo da luta pelos direitos

humanos no Cone Sul. Conhecido polemista, Ferri, nesta entrevista, revela sua idealização

do período de 1946 a 1964 e mostra-se pessimista em relação ao desenvolvimento social

no Brasil. Critica, finalmente, o que entendeu por conservadorismo do Ministério Público

gaúcho durante o regime militar.

Memorial - Dr. Omar, o senhor nasceu em Encantado?

Dr. Omar Ferri - Nasci em Encantado, no dia 30-04-33. Portanto, hoje estou

com 71 anos de idade.

Memorial - O senhor passou sua infância e adolescência na cidade?

Dr. Omar Ferri - Vivi cinco anos em Encantado. Meu pai era funcionário da

Exatoria Estadual.

Em 1938, vagou a Escrivania Distrital de Ilópolis, como era a denominação da

época. Então, meu pai foi nomeado – por portaria assinada pelo Governador, Flores da

Cunha -, Escrivão Distrital de Ilópolis.

Com 5 anos, fui morar em Ilópolis, onde, teoricamente, morei por 20 anos. Digo

teoricamente porque foi, nessa época, que estudei em um internato de Guaporé por três

3 anos, num internato de Lajeado por um ano, onde conclui o Ginásio. Posteriormente, em

Porto Alegre por três anos, quando cursei o Clássico no Colégio Rosário, além do período

em que cursei a Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande

do Sul.

No 4º ano, retornei para Encantado, pois, naquele tempo, podíamos fazer apenas

os exames, já que a freqüência não era obrigatória. Sendo assim, em 1956, já comecei a

advogar em Encantado. Concomitantemente, eu era o Secretário do Prefeito Municipal.

Logo depois, fui eleito Vereador. Em Encantado, naquela época, havia quase oito mil

eleitores, e não fiz campanha para mim. Eu era secretário do partido e tinha uma posição

de absoluta independência. Em todos os locais em que havia candidatos a Vereador, eu

pedia votos para eles. Não gastei dinheiro algum. Era outra época, havia outra concepção

política, incrivelmente melhor do que a de hoje, em que há uma inversão de valores. Dos

quase oito mil votos, existentes no município, obtive 804 votos. Nas cinco primeiras

urnas, já estava eleito. Fui, de longe, o Vereador mais votado.

Memorial - Por qual legenda?

Dr. Omar Ferri - Pelo Partido Trabalhista Brasileiro cujos grandes líderes da

época eram Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola, Alberto Pasqualini, Rui Ramos,

Temperani Pereira, entre outros. Era um grupo político, muito bem dotado

intelectualmente. Não só em relação ao PTB, mas também quanto aos demais partidos.

Aquela era uma época de políticos descentes, honestos, e com bom nível cultural. Não era

como hoje, em que a política se abastardou, e os candidatos vulgarizaram-se.

Quando me formei já estava advogando em Encantado.

Memorial - Em que ano o senhor iniciou o mandato de Vereador?

Dr. Omar Ferri - Foi de 1958 a 1962.

Memorial - Na época em que Leonel Brizola era o Governador?

Dr. Omar Ferri - Quando ele era Governador, eu era Vereador em Encantado.

Quando o Jango tomou posse como Presidente da República, em decorrência da renúncia

de Jânio Quadros, um amigo meu, que também era amigo do Jango – chamado Pedro

Tassis Gonçalves, que havia sido Delegado de Polícia de São Borja, Secretário dos

Transportes em Porto Alegre, no tempo em que o Manoel Vargas foi Prefeito Municipal –

, foi convidado para ser o Presidente da Fundação Brasil Central, que tinha uma área de

4 atuação de, mais ou menos, 3 milhões de quilômetros quadrados. Naquela época, o

Centro-Oeste brasileiro não estava desenvolvido em nenhum aspecto, apenas havia alguns

postos avançados da Fundação Brasil Central, em algumas cidades incipientes, como era o

caso de Aragarças e Jacareacanga, tanto que se tornaram importantes historicamente, por

causa de uma rebelião que houve contra o Juscelino Kubitschek.

Alguns coronéis udeno-lacerdistas da Aeronáutica rebelaram-se contra o governo

de Juscelino Kubitcheck. Eles seqüestraram um avião e fizeram pousos em Aragarças e

Jacareacanga, que eram postos avançados da Fundação Brasil Central, como era também

Vale dos Sonhos, estrada de ferro Madeira-Mamoré, Serra do Cachimbo, Ilha de Bananal,

onde havia um hotel administrado pela FBC e que, vez ou outra era ocupado pelo

Presidente da República, ou por personagens importantes da administração federal.

Era uma área de grande importância, pois a Fundação Brasil Central foi fundada

em 1944, na ocasião em que o General, depois Marechal Rondon comandou uma

expedição em direção ao oeste do País. Então, realmente, era um órgão muito importante

para o País, pois estava planejando o desenvolvimento de agrovilas, com a urbanização de

certas regiões, tendo por objetivo principal a ocupação e desenvolvimento de terras

devolutas do Brasil Central, porque eram regiões de florestas inóspitas, com

concentrações populares ínfimas e inexpressivas.

Memorial - Ela foi criada durante o Governo de Getúlio Vargas, se não estou

equivocada, sob inspiração da Expedição Roçador/Xingu.

Dr. Omar Ferri - Aconteceu que, na Fundação Brasil Central, só havia um

advogado, que se chamava Fuchsiter, que era um “lacerdista” de superdireita e já estava

fazendo, sorrateiramente, a campanha que todo o lacerdista fazia antes, contra o Getúlio

Vargas; depois, contra o João Goulart.

Pedro Tassis Gonçalves, vendo que estava rodeado por adversários – a rigor, por

inimigos – políticos, e falando com alguns políticos importantes do Rio Grande do Sul,

alguns Deputados Federais, lembrou-se de mim. Ele, então, pediu que um deles fizesse

um contato comigo para ver se eu aceitava sair de Encantado para ir para Brasília.

Obviamente, aceitei ser Procurador.

Memorial - O senhor foi Procurador da Fundação Brasil Central?

5 Dr. Omar Ferri - Sim, da Fundação Brasil Central. Fui para Brasília em 1962 e

fiquei lá até 1964, quando houve o golpe militar.

No dia 20-04-64, por ordem do Comando Revolucionário de Brasília, o

interventor federal da Fundação Brasil Central, que era um Coronel do Exército, Cel.

Bolívar Oscar Mascarenhas, baixou uma portaria que dizia mais ou menos o seguinte:

“Nomeado pelo Comando Revolucionário de Brasília e dando cumprimento ao que me

foi determinado, resolvo demitir, como, de fato, demito, o Bacharel Omar Ferri de suas

funções de Procurador da Fundação Brasil Central”. Fui, assim, expurgado e vim para

Porto Alegre.

Memorial - O senhor terminou o mandato em Encantado?

Dr. Omar Ferri - Como Vereador, não. Nos últimos cinco meses, fui chamado

para Brasília e renunciei. Um companheiro assumiu minha vaga. Não houve prejuízo, já

que ele era um ótimo cidadão, além de grande correligionário.

Entre dezembro de 1963 e janeiro de 1964, fui para Cuba como convidado

especial do governo cubano para as comemorações do quinto aniversário da revolução

socialista. Evidentemente que eu estava com essa marca, mesmo porque, chegando de lá,

dei duas entrevistas meio pesadas contra as forças conservadoras e até contra o próprio

Exército Brasileiro, chamado por mim de reacionário e contrário aos interesses do povo

brasileiro.

Memorial - Antes do golpe então?

Dr. Omar Ferri - Sim, dois meses antes. Eu era bastante ativo. Com o golpe a

situação complicou, a nossa turma estava se exilando em embaixadas, alguns estavam indo

para o Exterior. Fiquei com um pouco de medo, mas pensei que eu tinha pouca expressão

para que se preocupassem comigo. De qualquer maneira, voei para o Rio de Janeiro e

hospedei-me em um hotel de quinta categoria – Hotel Caju, a 200 metros do Palácio do

Catete, no qual consegui que não registrassem o meu nome.

Depois, fui para São Paulo, onde havia famílias que ficavam em quartos. Aluguei,

então, um quarto e fiquei dois meses em São Paulo. Nessa época, ouvi falar que um

Coronel esteve aqui no Rio Grande do Sul perguntando por mim, mas, como a minha avó

ficou muito mal, fui obrigado a vir de São Paulo para Porto Alegre.

Memorial - Em que época foi isso?

6 Dr. Omar Ferri - Por volta de julho de 1964.

Memorial - Com o regime militar já instituído?

Dr. Omar Ferri - Com o regime militar funcionando a todo o vapor vim para cá e

fui para Encantado no outro dia. A minha avó morreu no dia em que cheguei lá.

Naquele tempo, um Prefeito de Caxias viajou com Pedro Simon, que era

Deputado Estadual, para Brasília a fim de terem uma entrevista com o João Goulart. Ele

conseguiu 20 milhões de cruzeiros para construir casas populares em Caxias. O Simon,

que sempre foi um grande amigo meu, encarregou-me de pegar o cheque com o secretário

do Jango, cujo nome não lembro, e, mais ou menos um mês depois, recebi esse cheque de

20 milhões, nominal ao Prefeito de Caxias do Sul, e o entreguei para o Deputado Estadual

Osmani Veras, do PTB de Osório, tio do Romildo Bolzan. O Osmani entregou para o

Simon, que foi a Caxias e o entregou para o Prefeito. Este, evidentemente, construiu as

casas populares, de acordo com a verba recebida, mas eles queriam saber quem era o Ferri

e onde estavam os 20 milhões. Então, o Coronel veio para cá e se dirigiu ao Banco do

Brasil de Caxias do Sul.

Acontece que o advogado do Banco do Brasil de Caxias do Sul era um grande

amigo meu, Renan Falcão de Azevedo, um dos melhores advogados do Rio Grande do

Sul, um dos maiores civilistas do Estado, hoje falecido. Eu, que era suplente de Deputado,

voltei de Encantado e assumi na Assembléia Legislativa, porque cassaram seis ou sete

Deputados Estaduais para eleger o governador Walter Peracchi de Barcellos,

indiretamente, pela Assembléia Legislativa. O Coronel falou para o Renan Falcão de

Azevedo que estava me procurando. Ele abriu o jornal e mostrou que eu estava

assumindo na Assembléia Legislativa. O Coronel voltou para Brasília e nunca mais se

interessou por mim. Quer dizer, passei em brancas nuvens.

Mais tarde fui preso duas vezes: três dias pelo Exército, no Chuí, numa ocasião em

que eles descobriram que fui visitar o Leonel Brizola (eu era “pombo-correio”); e outra

vez por 24 horas, quando fui preso pelo DOPS. Na primeira ocasião, eles queriam que eu

afirmasse que tinha ido visitar o Brizola, que eu era um elemento perigoso. Respondi, em

primeiro lugar, que não tinha de dizer se tinha ou não ido visitar o Brizola, que eles é que

teriam de provar isso; em segundo lugar, perguntei se visitar o ex-Governador do Estado

tipificaria algum crime. Dessa maneira, fiquei discutindo com eles por três dias.

7 Um Procurador do Estado telefonou para o Cel. Cid, que comandava o

destacamento do Chuí. Ele era de Rio Grande e depois foi até Prefeito de Rio Grande.

Memorial - Cid Scaroni Vieira?

Dr. Omar Ferri - Exatamente. Então, o Procurador Nuno Carpena, que era de

Pelotas e, portanto, amigo dele, avisou o Coronel sobre a minha prisão e disse que meu

único crime foi ter ido visitar o Brizola. O Cel. Cid perguntou se havia mais alguma coisa

contra mim, e o Procurador respondeu que não. Depois disso, por ordem do Cel. Cid,

soltaram-me.

Vou dizer por que nunca fui preso: na verdade, o meu habeas corpus era enfrentar

aquelas pessoas respondendo a verdade na cara delas, e elas me respeitavam. Era incrível,

mas esse era o meu jeito de atuar. Por isso me respeitaram sempre. Depois, não me

incomodaram mais, ou melhor, incomodaram de outras maneiras: assustando-me,

fazendo-me ameaças de morte, dizendo que iriam matar a minha família. O DOPS fez

tudo isso na época do seqüestro de Lilian e Universindo e na época em que eu era, um dos

maiores defensores dos direitos humanos no Rio Grande do Sul, pelo que fui agraciado

com o Prêmio Direitos Humanos, com menção honrosa, pelo Centro Alceu Amoroso

Lima para a Liberdade, em 1987. O prêmio me foi entregue pelo Presidente da CNBB,

bispo Luciano Mendes de Almeida em solenidade patrocinada pela Universidade Cândido

Mendes, do Rio de Janeiro.

Depois de demitido da função pública mudei-me para Porto Alegre, onde montei

banca de advocacia, em 1964. Comecei a advogar, o que estou fazendo até hoje.

Memorial - Durante a Campanha da Legalidade o senhor não estava ainda em

Brasília?

Dr. Omar Ferri - Não, estava em Encantado.

Memorial - Como foi aquele momento, como o senhor assistiu aos

acontecimentos em 1961?

Dr. Omar Ferri - A minha atuação foi mínima no tempo da Campanha da

Legalidade. Eu era um dos personagens de alguma importância do PTB do Vale do

Taquari. Assinamos alguns documentos de solidariedade ao Leonel Brizola, colocando-

nos à sua disposição inclusive em caso de enfrentamento, estávamos prontos para lutar.

Evidentemente que nos pronunciávamos na rádio e também nas reuniões de Vereadores,

8 atacando os militares, chamando-os de “gorilas”, de golpistas. Aqui em Porto Alegre,

todos sabem, o centro de irradiação da resistência ao golpe foi o Palácio Piratini e o

microfone da Guaíba nas mãos do Brizola. Nós estávamos no interior, dando o apoio,

fazendo em menor proporção o que o Brizola fazia em Porto Alegre. Fizeram-se

movimentos em todo o Interior do Rio Grande do Sul com os companheiros: líderes do

PDT, políticos, Vereadores, Deputados. Assim, fizemos nosso movimento lá de

Encantado.

Memorial - O senhor militou no PTB, acompanhou-o desde a sua fundação?

Dr. Omar Ferri - Sempre, até que o extinguiram em 1966, quando, pelo Ato

Institucional nº 2, foram extintos os partidos.

Passei, então, para o MDB, depois para o PMDB. Fui eleito Vereador pelo PSB.

Depois retornei ao PDT do Brizola. Hoje o PDT é o PTB daquela época.

Memorial - O senhor também foi Vereador em Porto Alegre?

Dr. Omar Ferri - Sim, fui Vereador eleito pelo PSB e dele fui expulso sem que

me tivessem dado direito à defesa. São incríveis esses partidos que se dizem democratas e

só sabem praticar atos de cunho autoritário!

Naquela época, na Câmara de Vereadores, estávamos apreciando uma lei que tinha

por objetivo a instituição do “sábado inglês” no Município de Porto Alegre. “Sábado

inglês” significa fechar o comércio no dia de sábado. Como eu não tinha uma opinião

formada, pedi uma reunião do partido. Reunimo-nos no Diretório Regional do PSB.

Expliquei a minha situação, e eles me responderam que aquele assunto não envolvia

questionamento ideológico algum e que eu tinha plena liberdade de votar de acordo com a

minha consciência.

Respondi que era exatamente aquilo o que eu faria, que votaria pelo não-

fechamento do comércio aos sábados – nem se falava em fechamento aos domingos

ainda. Essa é uma velha luta, e há muita demagogia em torno dela.

Enfim, no dia da votação, recebi um telegrama quilométrico do presidente do

partido, que andava meio embriagado naquela época e que era um cidadão de muito mau

caráter, dizendo que, como presidente do partido, determinava que eu, como Vereador,

cumprisse o ordenamento do ideal socialista em defesa do trabalhador, em defesa disso e

daquilo, etc., determinando-me que eu votasse pelo fechamento do comércio aos sábados.

9 Eu não tinha visto esse telegrama, mas o meu assessor de imprensa o trouxe para

mim em plenário no momento em que o Lasier Martins estava me entrevistando. Ele o leu

na Rádio Gaúcha, que estava transmitindo naquele momento, e perguntou qual era a

minha posição face ao telegrama. Respondi que não admitia patrulhamento ideológico e

que votaria contra o projeto de lei, como já havia feito na semana anterior, pois se tratava

de uma renovação de votação.

Por isso, fui expulso do PSB. Fiz um recurso de 30 páginas.

A partir daquele momento – e eu nem tinha entrado no PSB –, já sabia que estava

sendo expurgado, porque o partido, na sua maior expressão, que era seu presidente, estava

temendo, não sei se a minha concorrência, mas sei que não gostava de mim. Isso ficou

muito claro.

O meu recurso foi aceito por unanimidade pelo Diretório Nacional. Anularam a

minha expulsão e pediram que eu fosse intimado para me defender. Quando vieram-me

intimar para a defesa, eu disse, brincando, que: “ninguém me expulsa de nenhum partido,

quem saía era eu”. Pedi demissão e, um ano depois, retornei ao meu antigo quadro

político, que é o PDT.

Memorial - O senhor chegou a ser Vereador pelo PDT?

Dr. Omar Ferri - Fui Vereador pelo PDT no fim. No último ano, e,

incrivelmente, elegeram-me líder do partido.

Memorial - Em que ano isso ocorreu?

Dr. Omar Ferri - Em 1993. Depois fui candidato à reeleição e, como não me

reelegi, retirei-me da política. Para mim, uma eleição não-vitoriosa já é um aviso de que

basta. Não concorro duas vezes à coisa alguma.

Memorial - Quando o senhor cursou a universidade, os diretórios acadêmicos

eram centros de efervescência política. O senhor fez militância universitária? O Pedro

Simon parece-me, também participou desses movimentos.

Dr. Omar Ferri - O Simon foi presidente e eu o secretário do Centro Acadêmico

Maurício Cardoso.

Memorial - E como era aquele momento?

Dr. Omar Ferri - Muito bom e muito diferente.

10 Memorial - O que era diferente?

Dr. Omar Ferri - Um pouco de tudo. O nível dos estudantes, o comportamento

deles, a maneira de se trajarem em geral. Era um centro acadêmico: limpo, bonito, com

livraria, mesas. Hoje está tudo atirado, tudo desordenado. Acredito que baixou o nível em

todos os sentidos, político, estudantil. Aliás, a UNE hoje nem existe mais. Hoje carecemos

de conscientização política, que naquela época existia.

Não que eu seja elitista, mas acho sempre que temos que salvar a moral, quer

dizer, temos que ter princípios éticos, objetivos sociais condizentes, dignidade.

Também fiz parte do secretariado do Diretório Central de Estudantes da PUC em

que sistema de administração era parlamentarista.

Memorial - Era parlamentarista na escolha?

Dr. Omar Ferri - Na administração, na escolha, em tudo. O Romildo Bolzan era

o presidente, e tinha chefiado o secretariado. Era uma beleza aquele sistema

parlamentarista. Eu sou parlamentarista. Isso aconteceu também na UEE, com o Flávio

Tavares e o Lauro Hagemann, e fiz parte dessa diretoria.

Memorial - Então, o senhor fez parte de três diretorias estudantis?

Dr. Omar Ferri - Sim, do Centro Acadêmico Maurício Cardoso, com o Pedro

Simon; do Diretório Central de Estudantes da PUC, com o Romildo Bolzan e da UEE,

União Estadual de Estudantes, no tempo do Flávio Tavares e do Lauro Hagemann.

Memorial - Os estudantes da época faziam política, tinham partidos políticos?

Dr. Omar Ferri - Sim, fazíamos política partidária, numa posição, digamos, de

esquerda desenvolvimentista, progressista. Nossos parâmetros eram o Governo do João

Goulart, do Getúlio Vargas, do Juscelino Kubitschek. Essa era a nossa linha. O PSD

nacional entendia-se muito bem com o PTB; o PSD do Rio Grande do Sul, não.

Era uma época muito boa. Nunca me esquecerei de que a conscientização popular

era fantástica, muito diferente de hoje. Nós perdemos a referência e os parâmetros da

conscientização política do povo. A pessoa do Interior de Ilópolis, por exemplo, ouvia o

rádio, posicionava-se, tinha o partido, sabia por que estava nele e não se vendia a troco de

nada. Hoje o voto ficou abastardado, ele é mais comprado do que conseguido. O

parâmetro do voto é o interesse ou a fisiologia.

11 Memorial - Na sua opinião, por que isso aconteceu?

Dr. Omar Ferri - Há uma série de fatores. Isso é muito importante e deveria ser

analisado por quem entende de sociologia política. Em primeiro lugar, penso que o golpe

militar de 1964 entronizou neste País uma espécie de obscurantismo medieval cultural.

Em segundo lugar, como decorrência do golpe, houve muito medo do povo, em geral,

para fazer manifestações. Tenho a impressão de que houve a imposição de novos dogmas,

de nova filosofia, tudo se modificou. Perdemos a linha nacionalista, a luta pelo

patriotismo, pelas reformas de base. Esse era o nosso patrimônio, o nosso ideal daquela

época. Perderam-se essas referências todas. E o homem, perdendo isso, perde também a

posição política.

Parece-me que é assim. Hoje, é vergonhosa a situação político-cultural das

pessoas que vivem na pobreza, nas periferias das cidades e na colônia também. Não existe

mais referência alguma. Existem interesses, e apenas isso. Antes se votava por um ideal,

por um objetivo, por uma conquista social; agora é por interesse e nada mais, tanto que se

elegem hoje aqueles que mais aplicam o dinheiro na campanha política, os que mais

compram cabos eleitorais e os que mais fundam comitês. Quanto mais comitês eleitorais

fundar e quanto mais cabos eleitorais pagar, mais votos o candidato fará. Quanto mais

demagogo, mentiroso e hipócrita for o candidato, maior será a sua votação.

Há indivíduos que estão na política há dezenas de anos. Muitos, penso, até

roubando sempre, como é o caso do Paulo Maluf, do “filhote dele”, o Celso Pitta, do

Jader Barbalho ex-governador do Pará. São ladrões famosos, há muito tempo e ainda

continuam fazendo política, infelizmente.

Memorial - Isso é um problema que acarreta na preservação do processo

democrático, pois o povo também começa a ficar descrente nas mudanças.

Dr. Omar Ferri - Certa vez, o Pelé disse uma frase que muita gente criticou: “o

povo brasileiro não sabe votar”. E não sabe mesmo! Tenho para mim que ele tem razão

em parte. O povo brasileiro perdeu referências, perdeu as ligações mais puras com o

partido. Acho que, naquela época, a pessoa entrava para um partido porque via nele a

expressão do seu ideal, do seu pensamento, da sua luta política. Em qualquer canto de

município, naquela época, havia gente do PSD, do PTB, da UDN. Embora existissem

12 conflitos, que eram salutares, no sentido de que eles marcavam o nicho de cada eleitor.

Hoje não existe mais isso.

Sinto isso porque vivi aquela época. O Brasil, de 1946 a 1964, foi um dos países

mais ricos do mundo, mais tranqüilo, mais feliz, mais democrático. Foi um período

fantástico. Só quem viveu naquela época é que pode sentir isso. Só quem viveu e teve

consciência política é que pode avaliar o que foi o Brasil de 1946 a 1964. Foi um País

espetacular!

Aqui em Porto Alegre havia uma ou duas favelas. Hoje deve haver em torno de

700 vilas. Quase não existia miséria. Em Encantado, havia duas ou três famílias pobres

que moravam na beira do rio. Hoje, há um cinturão de miséria em todas as grandes

cidades do Rio Grande do Sul.

Nós ficamos miseráveis, sofremos pela vida de todos os jeitos, passamos fome,

não temos acesso à educação, a hospitais, à sanidade social, vivemos ao lado de arroios

podres, numa miscigenação de miséria e doenças que não existia no Brasil de 40 ou 50

anos atrás. Havia apenas em alguns locais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Quando eu

morava no Rio, íamos a qualquer lugar sem problemas. Havia o Mangue, a zona da

prostituição, e só. Podia-se passear no Centro da cidade, na Zona Norte, em Ipanema, em

qualquer lugar, assim como em São Paulo, e não havia assaltos. O Brasil mudou, piorou.

Não sei como vai terminar. Não vejo luz no fim do túnel. Sou pessimista, só vejo que as

coisas estão piorando cada vez mais.

Ninguém está tendo a noção do que está acontecendo hoje no Rio de Janeiro. A

violência, a miséria e o crime organizado já estão imbatíveis. Nem dentro das prisões o

Governo consegue ter controle, e isso é um mau sinal. Aquela violência que existia no Rio

há 20 anos, contra o que lutávamos para que não existisse no Rio Grande do Sul, já está

começando a aparecer por aqui.

Em Ilópolis, há poucos dias, um cidadão com sobrenome italiano e outro de

origem alemã operário da Prefeitura de Putinga, reuniram-se numa gangue para seqüestrar

uma dentista. Isso não existia, não se podia imaginar que gente nativa daquela região fosse

preparar um seqüestro. Não havia nem como conceber isso, não passava pela cabeça de

ninguém.

13 No entanto, em Ilópolis, já houve dois assaltos a estabelecimentos bancários; em

Anta Gorda, também; em Putinga, mataram o sogro e a sogra do Prefeito Mário Seixas há

cerca de 10 ou 12 anos. Ele hoje é médico e reside em Santa Maria. Na casa da minha avó,

não havia chave na porta. Largávamos as roupas em um fio no meio de uma rua pela qual

não transitavam carros naquela época, só havia aquele caminho feito pelas carretas que

iam para a roça, com grama de um lado e de outro, onde fazíamos um campinho de

futebol. Minha avó estendia as roupas, camisas, cuecas, calças, lençóis, toalhas, tudo, e

ficavam lá a noite toda sem que ninguém as roubasse. Hoje você não deixa nem cinco

minutos, e qualquer coisa desaparece.

Em Encantado, há cerca de dois anos, dois homens entraram na casa do meu tio,

às 3h da manhã, e colocaram a navalha no seu pescoço e no da minha tia. Levaram em

torno de mil dólares e mais algum dinheiro. Já fazem esse tipo de assalto em cidades

pequenas como Encantado. Não sei onde vamos parar.

Memorial - Como o senhor, que militou na resistência à ditadura, interpreta a

necessidade de encontrarmos respostas institucionais eficazes dentro do quadro

democrático de direito? Se estas respostas não vierem não será pior o risco de um

retrocesso conservador?

Dr. Omar Ferri - Muito pior. Acho que, depois disso, não há mais direita nem

esquerda, é anarquia mesmo, é o caos, tipo Colômbia. Ninguém é dono de nada. O crime

manda. É o caso do Cendero Luminoso, daqueles grupos ligados ao terrorismo ou à

revolução social, como alguns dizem. Só que, para mim, essa época passou. Não há por

quê fazer uma revolução social. Para instaurar o quê? Um regime socialista que já faliu em

todas as partes do mundo? Temos que domar o sistema capitalista. Esse é o mal, mas é ele

que deve permanecer. Não adianta querer viver numa utopia irrealizável.

Memorial - O senhor chegou a ser cassado na Assembléia Legislativa?

Dr. Omar Ferri - Não, só na função pública, na Fundação Brasil Central. Fui

expurgado, e não cassado. Fui demitido por ordem do Comando Revolucionário de

Brasília. Mas, na Assembléia Legislativa não assumi em caráter definitivo. Fiquei próximo,

porque era suplente e, de vez em quando, eu assumia.

Memorial - Sim, entendi, o senhor ficou suplente da bancada e, quando alguém

saía, o senhor assumia.

14 Dr. Omar Ferri - Exatamente.

Memorial - Dr. Omar, e a carreira do Direito?

Dr. Omar Ferri - Vim para Porto Alegre em 1964 com uma “mão na frente e

outra atrás”, como popularmente se diz. Desempregado, com mulher, três filhos,

empregada e aluguel para pagar. Comecei a trabalhar com dois colegas, o Jaime Paz e a

Cléa Carpis, que depois foi Presidente da OAB-RS, no escritório deles, de favor. Fui

melhorando e, após dois ou três anos, aluguei um escritório no Edifício Comendador

Azevedo, no 13º andar, onde fiquei até 1993 ou 1994. O escritório permaneceu neste

endereço por mais de 20 anos.

Em Encantado, advogava muito no Crime e fazia muitos inventários. O meu

sustento era basicamente retirado do trabalho que exercia em Encantado. Modéstia à

parte, eu era considerado um dos melhores advogados de Encantado na época. Éramos

dois, a rigor, bons advogados.

Aqui em Porto Alegre, comecei a trabalhar muito no direito do trabalho, no

direito criminal, depois no direito civil e administrativo. Aos poucos, fui me afastando do

direito trabalhista e fiquei com o direito criminal, direito civil e direito de família.

Ultimamente, estou praticamente aposentado. Não quero mais trabalhar, mas tenho ações

que tenho que levar até o fim. Estou me dedicando mais a ações cíveis, de família e uma

ou outra ação penal.

Houve, entretanto, muitas ações de repercussão. Eu fazia muito Júri. Com o Pedro

Simon, fiz uns dois ou três.

Memorial - O senhor lembra de algum em especial?

Dr. Omar Ferri - Um dos mais falados na época em Porto Alegre foi o “Crime

do Disco”. Ele era gerente de um banco. A esposa comprou o disco Dominique, quando

foram ouvir começaram a discutir. A mulher pegou o revólver e matou o marido pelas

costas. Foi um crime muito comentado, estampado nas paginas dos jornais todos os dias,

principalmente, porque, um ano ou dois anos antes, uma mulher, Nina Gualdi matou um

Promotor Público, marido dela, e ela ia prestar solidariedade a essa outra senhora.

Memorial - A Nina Gualdi era esposa de um Promotor?

Dr. Omar Ferri - Exatamente. Matou-o. O Simon e eu defendemos essa segunda

mulher. Não tinha defesa – matou pelas costas –, mas lutamos para diminuir a pena de

15 todas as formas: violenta emoção, muita briga entre o casal, aquelas coisas todas. No fim,

ela foi condenada a cinco ou seis anos, não recordo, consegui diminuição da pena. Foi um

bom Júri. Naquela época, os jornais interessavam-se pelos Júris, agora não, mudou tudo.

O Júri é um processo enganador. No Júri, o advogado quer ser vitorioso, custe o

que custar. Essa é a lei, e a justiça que vá às favas. Eu não achava isso correto, não sou

favorável ao Júri porque, nele, o que menos interessa para o advogado é a causa, por isso

que me decepcionei, pois o importante é fazer justiça. Dizem que é a maneira mais

democrática de fazer justiça, porque há a participação do povo. Só que os jurados estão

sujeitos a uma série de condicionamentos e injunções, e o que menos se faz é justiça. Essa

minha opinião possivelmente será contraditada pela maioria dos advogados que atuam na

faixa do Direito Criminal, mas essa é a impressão que tenho depois de largos anos e de

algumas dezenas de Júris que fiz em Guaporé, Encantado, Roca Sales, Porto Alegre, São

Leopoldo, Canoas, São Lourenço, Paraná, entre outros.

Defendi um médico no Paraná. Foi um fato muito bizarro. O médico era sócio de

uma plantação de soja. A sociedade, não deu certo. Ficaram devendo para alguém, e esse

alguém contratou duas pessoas para matarem o sócio do médico. Eles mataram e, por

coincidência, os criminosos voltaram para a cidade de Cascavel e foram vistos sentados

num banco defronte ao hospital do qual o médico era o dono. Não me lembro bem o que

é que houve, mas acusaram o médico de ser o mandante do crime, porque, por problemas

da lavoura, médico, e vítima tinham brigado. O médico me contratou e disse que não

havia matado o sócio, mas havia uma testemunha contra ele, que precisava ser vencida.

Enfim, ele era acusado como mandante do crime, mas não havia uma prova direta.

Destaquei-me bem, e ganhei o Júri por sete a zero. Uns dois ou três anos depois,

encontro-me com o médico em Porto Alegre e ele disse: “lembra-se daquele cara que foi

testemunha falsa contra mim? Aquele eu mandei matar”. No Paraná, é assim! Lá como no

Mato Grosso tudo é incrível.

Também atuei na defesa de um rapaz, filho de um empresário em Cuiabá, que

tinha sido denunciado pelo Promotor pelo fato de ter levado uma arma para um sobrinho

de um Senador e um ex-Governador do Mato Grosso, de uma família das mais poderosas,

os Campos. Aconteceu que dois carros colidiram numa esquina, e houve uma briga. Um

dos motoristas, pobre coitado, estava num Volkswagen, bastante usado, com o filho de 9

16 ou 10 anos, e o outro, com um carro, último modelo, conversível. Eles tinham sido

aprovados no vestibular e fizeram uma festa, uma feijoada, em Cuiabá, para a qual foi

convidada a Monique Evans para enfeitar o ambiente. Eles tomaram muita caipirinha e

posteriormente saíram com o carro Mitsubishi Eclipse, vermelho para ir a um

determinado local em Cuiabá. Numa esquina houve a colisão, coisa de pouca repercussão,

pouco dano. O sobrinho do Senador pegou o celular e telefonou para o irmão, que tinha

16 anos, e pediu que trouxesse o revólver. O irmão dele foi lá entregou o revólver e ele

matou o cara na frente do filho. O meu cliente, o rapaz que tinha passado no vestibular

com ele, foi denunciado também, porque uma testemunha viu eles chegarem juntos de

moto. O carro era desse meu cliente, que o emprestou ao acusado. Ele, o meu cliente. Ele

chegou de moto no local do acidente e alguém disse que ele havia entregado a arma,

quando, na realidade, foi o irmão do assassino.

Memorial - O próprio irmão do assassino?

Dr. Omar Ferri - O próprio irmão levou a arma. Fizemos reuniões em Porto

Alegre, fizemos reuniões em Cuiabá. Eles queriam tirar fora esse rapaz de 16 anos. O

advogado de Cuiabá dizia que conseguia tudo, inclusive engavetar. Como é que se vai

engavetar um processo de homicídio? Eu não concordo com tal estratagema.

Então, orientei o meu cliente para que dissesse o que havia acontecido, o que era

fácil de provar. A família Campos, que era poderosa, pressionou a mãe dele, e cinco

minutos antes do interrogatório ela chegou no fórum e disse: “Dr. Omar, eu assumo toda

a responsabilidade. O meu filho não vai dizer que foi o irmão dele que trouxe o revólver,

senão eles me destroem economicamente”. Respondi que iria fazer o interrogatório

naquele dia, mas que depois ela deveria procurar outro advogado.

Isso realmente aconteceu. No ano passado, em Santa Catarina, na cidade de

Garopaba fui procurado pela família. Tinham matado o pai dele. “Empresário gaúcho

morto, assassinato na pousada de sua propriedade em Florianópolis”. Saiu nos jornais de

Porto Alegre.

Memorial - E era o mesmo?

Dr. Omar Ferri - Era o pai do meu cliente. A mãe depois me disse que tiveram

que pegar um outro advogado, mas que tudo aquilo que eu tinha dito aconteceu. Não

engavetaram o processo de homicídio, e já estava na fase do despacho de pronúncia, em

17 que o Juiz manda os réus para o Júri. Eles queriam contratar-me para ser advogado deles

de novo, mas eu não quis.

Memorial - E quando é que foi esse caso?

Dr. Omar Ferri - Faz uns 4 ou 5 anos. É recente. De tal maneira que você vê

como é que está a Justiça neste País. É pressão de um lado, pressão do outro.

Memorial - Dr. Omar, o senhor chegou a se inscrever para um concurso do

Ministério Público, não é?

Dr. Omar Ferri - Essa história é muito boa. Inscrevi-me no concurso para

Promotor Público. Naquele tempo, o art. 529 do Código de Organização Judiciária, no

capítulo do Ministério Público, dispunha que o Conselho Superior do Ministério Público

poderia recusar a inscrição imotivadamente, sem precisar justificar, atendendo as

qualidades morais e à vista dos documentos apresentados. Isso significava o seguinte: um

candidato com antecedentes criminais inscrevia-se e eles, consultando a sua folha-corrida,

o recusavam imotivadamente. Esse era o objetivo. Só que o meu era político. Recusaram a

minha inscrição, e eu não fiquei sabendo.

Memorial - Dr. Omar, em que ano ocorreu este fato? Foi durante o regime

militar?

Dr. Omar Ferri - Sim, ainda no regime militar, logo depois de 1964, quando

comecei a residir e advogar em Porto Alegre.

Eu tinha desistido do concurso, porque já estava indo bem profissionalmente e

não queria mais ir para o Interior. Pois me mandariam para Erechim, depois para São

Borja, depois para Torres, para só depois de uns 15 anos retornar para Porto Alegre. Isso

mexeria com a estrutura da minha família. Falei com a minha mulher que com o que eu

ganhava dava para sobreviver, e decidimos que eu não faria o concurso.

O Dante, Promotor de Justiça, era o secretário do concurso. Não me lembro do

sobrenome dele, mas era casado com a Nair Bergamaschi, tia do Décio Freitas. Agora

lembro seu nome, Dante Gabriel Guimarães. Naquela época, íamos, todo sábado e

domingo, para a Rua da Praia, na frente do Rian e no Largo dos Medeiros. Lá

encontrávamos todo mundo, Deputados, Senadores, políticos, doutores. Eram as reuniões

dos domingos de manhã. Era uma beleza! Encontrei-me com o Dante e ele disse: “como

é, Ferri, tudo bem?” Eu disse-lhe: “vou desistir do concurso”.“Então, vamos lá, faz o

18 requerimento de desistência”. Depois liguei os fatos. Fui, num sábado de manhã, no

Ministério Público, onde era o Colégio Júlio de Castilhos, e agora o Arquivo Público, e

efetivei a desistência.

Dias depois encontrei o Ney Faiet e um outro inscrito de nome Solon, de Santa

Maria, cujas inscrições haviam sido, também, impugnadas. Eles me convenceram a

recorrer. Desisti da desistência e recorri. O recurso deles foi aceito; o meu não. Eu era um

político muito comprometido contra o golpe militar, contra o Governo Meneghetti. Nos

meus discursos eu criticava fortemente o governo.

Recorri da recusa da minha inscrição e abordei, dentre outras coisas, razões de

ordem legal. Naquele tempo, o artigo 529 era acionado para evitar que mulheres fizessem

concurso para Juiz de Direito e Promotor Público.

Memorial - O seu caso enquadrou-se nesse artigo, que foi criado exatamente para

impedir as mulheres?

Dr. Omar Ferri - Exatamente. Ninguém podia discutir sobre os documentos

apresentados e as qualidades morais. Resolvi abordar isso. Pedi direito à sustentação oral.

Negaram o direito à sustentação oral, como também ao recurso. Impetrei um mandado de

segurança redigido por quem fez a lei: Floriano Maia D’Ávila, que havia sido Procurador-

Geral de Justiça do Estado. Surpreendentemente! Perdi por 21 a 0 no nosso Excelso e

Egrégio Tribunal. Claro, perdi pelas minhas convicções políticas e pela própria atmosfera

política da época.

Briguei muito com o Ministério Público. Numa ocasião, as violências e as

arbitrariedades da Polícia do Rio Grande do Sul eram fantásticas, e o Ministério Público

encolheu-se de tal forma que foi até um escândalo. O mundo estava caindo, aconteciam

violências, arbitrariedades, lesões aos direitos humanos. Num belo dia, o Procurador-

Geral de Justiça baixou uma portaria dizendo que, nas regiões de plantação de laranja, eles

deveriam estar preparados para auxiliar as comunidades no combate ao cancro cítrico.

Denunciei a Instituição, desinteressada pelas funções para as quais fora criada para se

envolver no combate ao cancro cítrico. Devo ter ainda qualquer coisa sobre isso, muita

coisa desapareceu, outras coisas expurguei.

Memorial - Dr. Omar, isso foi nos anos 70?

19 Dr. Omar Ferri - Nos anos 70, fim da década de 60, nesse tempo da ditadura

militar. Foram os Juízes os primeiros a resistir. Talvez, o primeiro Juiz que deu uma

sentença corajosa contra os abusos do governo chamava-se Dr. Ruy Rubem Ruschel. Foi

uma sentença tão corajosa – ele era Juiz de uma Vara da Fazenda Pública – que o Décio

Freitas e eu fomos cumprimentá-lo. Estávamos em evidência na época. Eu defendendo

Lilian Celiberti e Universindo Dias, e juntamente com o Décio, defendendo a Flávia

Schilling. Foram duas campanhas memoráveis.

Memorial - O senhor advogou em importantes processos, como o caso de Lilian

e Universindo. Dá para contar como esse processo chegou até o senhor?

Dr. Omar Ferri - Isso está dito no meu livro, mas nele existe uma inverdade. Fiz

isso para preservar o nome da pessoa que me telefonou, que vou revelar agora. Recebi um

telefonema, conforme o primeiro capítulo do meu livro, do Luís Eduardo Greenhalgh,

hoje Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, Deputado Federal

do PT. Ele era membro do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do

Cone Sul, entidade vinculada à Arquidiocese de São Paulo e conhecida pela sigla

CLAMOR.

Na realidade, ele não me telefonou, mas combinamos que o nome dele deveria

surgir, porque a pessoa que me ligou não queria aparecer. Ela era muito ligada ao grupo

CLAMOR (Comitê de Defesa dos Direitos Humanos ligada à Diocese de São Paulo), mas

era também a correspondente da BBC de Londres e não queria que a emissora ficasse

sabendo que estava envolvida em problemas políticos de defesa de direitos humanos no

País. Ela estava aqui para ser jornalista, e não para participar como ativista. Efetivamente,

ela participava como ativista. Seu nome era Jan Deirdre Rocha, Rocha porque ela casou

com um advogado de São Paulo, Plauto Rocha, um velho amigo meu. Então,

encontramos o nome do Luís Eduardo Greenhalgh, que se prestou para isso com muita

galhardia e coragem.

O que me estavam informando esses telefonemas de São Paulo? Que morava, na

Rua Botafogo, aqui em Porto Alegre, um casal, Lilian Celiberti e Universindo Dias. Ela

tinha dois filhos, e eles tinham desaparecido fazia quatro ou cinco dias. Os companheiros

(exilados uruguaios) de São Paulo não conseguiam comunicar-se com o casal. Como isso

nunca tinha acontecido, estavam muito preocupados. Isso foi numa quarta ou quinta-feira.

20 Na sexta-feira, fiz um Júri, eu era advogado de um Oficial de Justiça chamado Delaro

Severino, que, por uma dessas coincidências inexplicáveis, quase surrealistas, era irmão de

Elenira Faustina Severino, funcionária do DOPS, que o DOPS matou para evitar que ela

fosse ouvida na Comissão de Inquérito instaurada na Assembléia Legislativa do Rio

Grande do Sul. Ele havia matado a amante com um disparo e depois se jogou do alto do

Morro da Polícia com o carro, que ficou preso a uma árvore, e ele se salvou.

Quando terminou o Júri, a sala ficou cheia de jornalistas. Eu conhecia alguns: “o

que vocês querem aqui? O réu foi condenado a cinco anos de cadeia, decisão do Júri.

Estou contente com a decisão, diminuí até onde foi possível”. Nada tenho a acrescentar.

Eles disseram: “queremos saber sobre isto aqui”. Eles tinham um bilhete meu. Quando eu

recebi aquele telefonema de São Paulo, saí do escritório um dia antes do Júri, passei pelo

apartamento, não encontrei o casal e deixei um bilhete embaixo da porta: “Lilian, me

chamo Omar Ferri, moro em tal lugar, o meu telefone do escritório, e o telefone de casa.

Preciso entrar em contato urgente com vocês. Por favor, me liguem”. É claro que eles

nunca me ligaram!

Então fiquei sabendo que dois jornalistas também tinham ido ao apartamento e

encontrado lá dentro o Pedro Seelig com o Didi Pedalada e outros policiais, mas eles não

sabiam quem eram. Os policiais praticamente prenderam os dois jornalistas, revistaram e

quando souberam que eram jornalistas disseram: “aqui nós estamos tratando de coisas de

subversão. Vão embora! Não queremos ver vocês!” Liberaram os jornalistas, que

amedrontados foram embora. Eles me disseram então que, possivelmente, tinha ocorrido

um seqüestro e pediram minha opinião.

No contato com São Paulo, fui informado desse tipo de “desaparecimento”. Eles

diziam que isso acontecia no Uruguai, na Argentina, no Paraguai. Possivelmente, as forças

repressivas do Cone Sul, como tantas vezes aconteceu, tenham vindo aqui e seqüestrado o

casal e seus filhos. E toda a história encaixou-se de tal forma, pela pesquisa que fiz

naqueles dois ou três dias, que denunciei que tinha havido um seqüestro e que as polícias

políticas do Cone Sul eram as responsáveis. E acertei na mosca!

Tenho convicção que salvei o casal da condição de desaparecimento perpétuo.

Memorial - E descobriu a Operação Condor.

21 Dr. Omar Ferri - Era o início da Operação Condor, pelo menos com relação ao

Brasil. Isso estourou na imprensa de todo o Brasil, e a Polícia começou a negar: “não é

verdade, não temos nada a ver com isso”.

Dois episódios me deram certeza do seqüestro e de seis outros. Primeiro, parei

para pensar no que eu deveria fazer, porque, logo depois, à mãe da Lílian me passou uma

procuração. Representei em nome do casal no DOPS, na Polícia Federal. Eu solicitava

oficialmente a investigação policial em relação ao “desaparecimento”. Estava fazendo o

que era possível, estava sozinho no caso. Resolvi enfrentar os homens no DOPS. Fui lá

com o requerimento embaixo do braço para falar com o seu Diretor, que se chamava

Leônidas Reis. Sentei na sala de espera e fiquei aguardando. De repente, entram dois

cidadãos que eu conhecia. Um era o ex-Prefeito de Uruguaiana, Chiarello, e outro era o

Agamenon Wladimir Silva, que era assessor do MDB na Assembléia Legislativa, estavam

no DOPS para buscar declarações de que não havia nada contra eles lá. A época quem

pretendia emprego público tinha de conseguir um documento no DOPS, uma espécie de

salvo-conduto para possibilitar a nomeação.

Memorial - Ficha corrida do DOPS.

Dr. Omar Ferri - Isso. O Chiarello foi lá e o Wladimir acompanhou o ex-Prefeito.

O Wladimir era um amigo fraternal, desde dos tempos de Deputado Estadual.

De repente, chegou o Marco Aurélio e disse: “O senhor é o Dr. Ferri?” “Sou. O

que o senhor deseja?” Disse para ele o que desejava. Expliquei que o casal havia

desaparecido, que eu estava lá com uma representação. “Podes me dar à representação um

momentinho? Depois tu protocolas!” Entreguei-lhe a petição, e ele atendeu o Agamenon

e o Chiarello. Antes de os dois saírem, ele chegou para mim e disse: “telefonei para a

Polícia Federal. A Polícia Federal não tem conhecimento de nada. Nós não temos nada

registrado. Para nós, isso é um mistério tanto quanto é para você. Não temos nada com

isso”. “Não, mas eu insisto em deixar aqui esse pedido de providências, porque o casal

está desaparecido.” “Isso você tem direito!” Então, protocolei tudo direitinho.

Fiquei lá fora e esperei a saída do Agamenon. “Agamenon, só vou te fazer uma

pergunta: tu ficaste o tempo todo com o Leônidas?” “Fiquei”. “Ele deu algum

telefonema?” “Não deu nenhum.” “Nem para a Polícia Federal?” “Não deu nenhum.”

Conclui que o Diretor do DOPS mentiu. Então, comecei a pisar em terreno firme.

22 No mesmo dia, a tarde fui para a Polícia Federal. Protocolei a mesma

representação, exigindo providências, porque eram estrangeiros, e a Polícia Federal tem de

responder pelos estrangeiros. Percebi que os policiais se atrapalharam, eles estavam

nervosos. Contudo, havia lá um Delegado amigo meu, que ao passar por mim e disse em

voz alta: “só pode ser coisa do Pedrão”. O Pedrão era o Pedro Seelig. E eu arquivei na

memória essas coisas todas, elas não aconteceram por acaso.

Concomitantemente, o DOPS pegou a Lilian, que tinha, calçados italianos

maravilhosos, uma roupa bonita, e se apropriou de tudo. Junto havia uma caderneta de

endereços dela. E o Seelig, do gabinete dele, obrigou a Lilian a telefonar a Paris para saber

quando eles viriam fazer reunião no Brasil. Eles queriam prender os outros, porque o

Universindo já estava preso no Uruguai. Era uma armadilha para pegar o restante do PVP,

Partido por la Vitória del Pueblo. E a Lilian fez questão de dizer que ia haver essa reunião,

porque era a única maneira dela cair fora do Uruguai e não ser morta, não ser assassinada.

O plano era matar, mas foi estratégia dela, ela voltou. O Seelig telefona para Paris e fala

com o Prieto. Escrevi esses fatos no último capítulo do meu livro, sob o título: “Operação

Zapato Roto”. E ele obriga Lílian a falar com o Gordo. Ela falou de forma estranha,

perguntando por que eles não tinham vindo. Ele, sabendo que eles vieram e falaram com

ela, desconfiou. No que ela termina de falar, o Prieto pega o telefone e liga para Milão, fala

com a Mirta, que liga para o Uruguai e comunica à mãe. A mãe dela embarca em um

ônibus, vem para Porto Alegre e diz para o chofer de praça: “quero ir para este jornal”.

Era à Zero Hora. Quando chega na Zero Hora é atendida pelo Mílton Galdino, que,

sendo meu amigo, sabia que eu estava completamente envolvido com esse “affair” e

telefonou para o meu escritório. Fui à Zero Hora.

Na Zero Hora, ela dá uma entrevista, que repercutiu em todo Brasil. Ela disse

chorando: “entreguem, pelo menos, os meus netos!” A súplica dolorosa foi publicada em

tudo quanto foi jornal brasileiro. Aí começamos a desmontar o negócio, porque tínhamos

certeza do que tinha acontecido.

O telefonema do Seelig tinha desmoronado a estratégia policial e serviu para que o

Juiz Mario Rocha Lopes viesse a condená-lo. Foi um voto corajoso, contra dois

Desembargadores que o absolviam.

23 Agora, vem a parte final disso tudo. Eu tinha sido advogado do Delaro Severino

naquele Júri. A Faustina Elenira Severino telefona para minha casa e não diz quem é, mais

tarde tivemos certeza que havia sido ela. A minha filha atende ao telefone, e ela diz: “devo

favores ao Dr. Ferri”. Ninguém me devia favores, a não ser ela, porque era irmã do

Delaro. Fiz o Júri a pedido dos Oficiais de Justiça e não cobrei nada dele. Tenho uma

placa de agradecimento dos Oficiais de Justiça por causa daquele Júri.

A Faustina disse: “devo favores ao Dr. Ferri”. Diz para ele agir rapidamente,

porque o objetivo é matar o casal e entregar as crianças para famílias de militares

Uruguaios”. Eles faziam isto na Argentina também: eliminavam os pais, e as crianças eram

entregues aos militares.

Então convoquei uma coletiva de imprensa. Telefonei para os jornais. Todos

compareceram, inclusive as televisões. Então claramente denunciei a polícia política do

Rio Grande do Sul (Departamento de Ordem Política e Social – DOPS), como

responsável pelo seqüestro, a pedido da Companhia da Contra-Informações do Exército

Uruguaio. Por sua vez acusei os militares uruguaios de ter invadido o território brasileiro,

para que, numa operação conjunta praticarem o hediondo crime de seqüestro. A seguir,

com o Jair Krischke, o Agustino Veit, o Desembargador aposentado Celso Franco Gaiger

e o Padre Jesuíta Albano Trinks e outros fundamos o Movimento de Justiça e Direitos

Humanos. Por causa da invasão dos esbirros da ditadura Uruguaia, a Seccional do Rio

Grande do Sul da OAB me prestou solidariedade, o mesmo tendo acontecido com a

Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. O que sucedeu foi uma verdadeira

explosão. O seqüestro ecoava em todo o Brasil. Aí então começou a verdadeira luta,

política, jurídica e parlamentar. Infelizmente, apenas um réu foi condenado o Didi

Pedalada. Quanto aos outros, a Justiça que responda, somente ela poderá dizer porquê da

absolvição do Seelig e seus companheiros.

De qualquer maneira um fato espantoso repercutia em todo o Cone Sul da

América Latina. Ficava provado consumativamente, por sentença transitada em julgado,

que as polícias políticas do Cone Sul se entendiam, se mancomunavam na promoção de

ações de seqüestros. E esse fato inusitado a Nação deve a Juizes do porte de Moacir

Danilo Rodrigues, Carlos Mangabeira e o Desembargador Mário Rocha Lopes, que

proferiu o voto vencido que condenou Pedro Carlos Seelig.

24 Mais tarde, o Ministério das Relações Exteriores admitiu que a polícia brasileira

agiu com torpeza, todavia não tendo ficado comprovado que os agentes estrangeiros

participaram da operação, o Ministério das Relações Exteriores dava o caso por encerrado.

A verdade é que eles queriam vir aqui seqüestrar, mas um Coronel disse que não poderia

ser assim, que existia autoridade no Brasil. Eles então se acertaram com o Coronel

Rohrzetzer, que pediu o concurso do DOPS. O DOPS seqüestrou o casal e os filhos e os

entregou aos uruguaios, senão caracterizaria violação de nossas fronteiras, agressão à

nossa soberania, iria criar um problema internacional entre o Brasil e o Uruguai. Foi o

momento em que entrou o DOPS. Quem prendeu a Lilian, na rodoviária, às 9h da manhã

de um domingo, 12 de outubro, foi o Seelig.

Memorial - O senhor acredita que outros casos, além do da Lilian, ocorreram da

mesma forma, quer dizer, outras pessoas foram retiradas do Rio Grande do Sul desse

modo?

Dr. Omar Ferri - Sim, ouvíamos falar que era muito comum, na Fronteira, as

Polícias se aliarem. Quando um cidadão que a Polícia procurava do outro lado vinha para

cá, a Polícia pegava e entregava, sem o atendimento das formalidades legais. Recebemos

muitas denúncias. É que a prova desses fatos era muito precária, não havia como provar.

Todo mundo sabia, mas como provar?

Agora, com relação ao Uruguai, Argentina e Paraguai, eram dezenas de casos. Com

relação à Argentina, foram casos famosíssimos. O Deputado Federal Gutierrez Ruiz, e o

Senador Zelmar Micheline, foram assassinados. Os argentinos os prenderam, os uruguaios

foram buscá-los em Buenos Aires e os mataram. Foram dezenas de casos. Tanto que o

Senador Aldunate, por questão de horas, conseguiu exilar-se numa embaixada e foi para a

França. Assim foi que ele se salvou. Depois foi candidato a Presidente da República pelo

Partido Blanco. Conheci pessoalmente vários Senadores, que estiveram em minha

residência – jantei com Aldunate –, houve vários relatos.

No Memorial do Rio Grande do Sul está toda a documentação dos desaparecidos

no Uruguai (uns 40 ou 50), temos todas as declarações, as fotografias e o histórico de

como as coisas aconteceram. Doei o material para o Memorial.

Memorial - A sua participação e da imprensa foram decisivas.

25 Dr. Omar Ferri - Foram decisivas. No início, somente minha, em questão de

denúncia. A imprensa, evidentemente, publicava essas denúncias, mas posso dizer que

salvei o casal pela denúncia vigorosa que fiz.

Memorial - Quem encontrou o seu bilhete?

Dr. Omar Ferri - O jornalista do Globo e o Mitchell, do Jornal do Brasil.

Memorial - Eles encontraram o bilhete no apartamento, ou seja, entraram no

apartamento.

Dr. Omar Ferri - Coloquei o bilhete em baixo da porta. Quando os repórteres

estiveram lá, a dona do apartamento estava limpando. Ela foi quem entregou o meu

bilhete e foram me procurar no meu escritório. A minha secretária comunicou que eu

estava fazendo o Júri do Delaro Severino. Eles se dirigiram para o Tribunal do Júri, onde é

hoje o Memorial do Judiciário, local de trabalho de vocês. Foi nesse momento que o

seqüestro foi denunciado.

Memorial - Com relação à Assembléia Legislativa, qual foi o seu papel na ocasião?

Dr. Omar Ferri - Foi decisivo. A Assembléia Legislativa ouviu testemunhas,

juntou documentos, fez um relatório muito bom. O primeiro relatório foi feito pelo Jarbas

Lima. Ele contratou o Manoel Braga Gastal, PL, cujo parecer fez o jogo da Polícia e o

jogo da Arena que negavam a existência do seqüestro.

Memorial - Era o Governo de Sinval Guazzelli, e o Amaral Vice.

Dr. Omar Ferri - Exatamente. Coloco no livro que o Jarbas Lima concluiu que,

não havendo provas do delito, não haveria autoria e não houve o episódio. Dessa forma

não havia como o relatório apontar responsáveis. Então, pediu arquivamento. O parecer

dele foi rejeitado. A Assembléia Legislativa designou o Ivo Mainardi, que era Promotor,

Deputado e que deu um parecer excelente que foi aprovado, e remetido ao Ministério

Público. Isso serviu de base para a denúncia ou entrou como prova na Ação Penal que,

enfim, resultou apenas na condenação de Didi Pedalada.

Memorial - O senhor chegou a ir para o Uruguai? Veio a conhecer a Lilian depois

do episódio. A encontrou pessoalmente?

Dr. Omar Ferri - Sim, fui com a Assembléia Legislativa, o Deputado Carlos

Araújo requereu uma comissão (eu e o Dilamar Machado) para visitar os familiares.

26 Memorial - Ela estava presa?

Dr. Omar Ferri - Não, ela já tinha sido solta. Nós fomos lá pedir desculpas em

nome do Rio Grande do Sul. Dei um discurso em frente à casa dos pais dela: “ainda há

uma ditadura de pé e nós temos o dever de derrubá-los”. As pessoas se apavoraram

porque estavam em plena ditadura no Uruguai. Foi incrível!

Memorial - Foi neste momento que o senhor a encontrou pela primeira vez?

Dr. Omar Ferri - Foi aí que a encontrei pela primeira vez, pessoalmente. Depois,

ela veio para Porto Alegre e se hospedou em minha casa, muitas vezes. Você viu os

bilhetes dela?

Memorial - Vi, ela os redigia sobre o papel alumínio das carteiras de cigarros, em

uma letra miudíssima, cinzelada.

Dr. Omar Ferri - É, o pai ia lá com uma carteira de cigarros. Ela tinha a mesma

carteira de cigarros e escrevia isso, dobrava e colocava dentro da carteira de cigarros o

bilhete. Então, foram esses os bilhetes, e todos eles vieram parar nas minhas mãos. Por

meio deles, eu tinha a segurança do meu trabalho, eles garantiam a verdade das coisas, a

verdade do seqüestro.

Memorial - O senhor falou do caso do Doge.

Dr. Omar Ferri - Estou muito esquecido, mas fui advogado de pessoas que eram

presas e não sabíamos por quem. Eram denunciadas por terrorismo, subversão, e

apareciam os familiares dizendo que haviam desaparecido. Essas coisas eram comuns na

época. Lembro-me do nome de um deles, um tal de Carbone. O pai, com 80 anos, veio de

Pelotas para Porto Alegre, dizendo que o seu filho havia desaparecido depois de ter sido

denunciado como terrorista. O DOPS, a Secretaria de Segurança e o Exército negavam

qualquer envolvimento. Então, íamos para esses locais, como advogados contratados pela

família, (não recebíamos pagamento por estes trabalhos) para pedir informações.

Representamos sobre tortura muitas vezes. Todos negavam, os Delegados de Polícia

também negavam, como é, possivelmente, até hoje. Eu denunciava os engavetamentos de

inquéritos, as torturas, tudo o que a Polícia fazia, com prazer, até porque era verdade.

Memorial - O senhor gostaria de acrescentar mais alguma coisa ao seu

depoimento?

27 Dr. Omar Ferri - Foram muitos processos de lesão aos direitos individuais de

muitas pessoas humildes, que depois foram assassinadas, como foi o caso do Cleber Leal

Goulart e do Doge. Infelizmente, não conseguíamos uma prova mais robusta, mais

concreta, e os réus, na maioria das vezes, terminavam sendo absolvidos, algumas delas

com a conivência do Ministério Público e com a fraqueza, uma vez ou outra, de um ou

outro julgador. Infelizmente, isso aconteceu naquela época. Mas acho que fizemos muita

coisa, pelo menos eu e outros companheiros meus, como o Jair Krischke. Um herói que

anda lutando por aí, o Agostino Veit, o Padre jesuíta Albano Frink. Tínhamos algo

diferente dos outros. Nós nos jogávamos à luta, as denúncias e ao trabalho contra as

violações dos direitos humanos, como apaixonados. Nós “quebrávamos a casa”, ma esse

era o nosso sistema de luta.

Apareceram muitos defensores dos direitos humanos oficiais, havia até membros

da Comissão de Direitos Humanos da ONU, como uma senhora de Pelotas, que não vou

citar o nome, personagens que se diziam defensores de direitos humanos, só que nós

éramos os únicos, enfrentávamos mesmo, denunciávamos sem temor, buscávamos a

verdade em primeiro lugar. Não sei se isso foi virtude ou defeito, porque isso resultou em

muita inimizade, em muito processo, em muito dissabor. Entretanto, esta é a nossa vida, e

assim foi que vivemos nesse “período medieval”, obscurantista da ditadura militar

brasileira.

Memorial - Obrigada.