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  • Revista de Arqueologia Pblica, n.9, Julho de 2014. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP

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    O SIGNO DA PARTICIPAO: MUSEU E EDUCAO NA PERSPECTIVA DA

    SOCIOMUSEOLOGIA

    The sign of participation: museum and education from the perspective of Sociomuseology

    El signo de la participacin: museo y educacin desde la perspectiva de la Sociomuseologia

    Juliana Maria de Siqueira1

    RESUMO

    O artigo aborda a consolidao da Museologia como campo disciplinar transversal das cin-

    cias sociais, num contexto histrico em que se atribui uma funo social aos museus e do qual

    deriva uma nova viso museolgica, a Sociomuseologia. Sob esse prisma, exploramos os de-

    safios para a consolidao terico-prtica da educao museal, a partir da anlise de uma ex-

    perincia concreta, desenvolvida no Museu da Imagem e do Som de Campinas, entre os anos

    de 2007 e 2012, nos bairros Gnesis, Jardim Nilpolis e So Quirino, Leste da cidade.

    Palavras-chave: Educao museal, participao, sociomuseologia.

    ABSTRACT

    This article addresses the consolidation of Museology as a cross-disciplinary field of social

    sciences, in a historical context that assigns a social role to museums and gives birth to a new

    museological conception: Sociomuseology. From this perspective, it explores the challenges

    to theoretical and practical consolidation of museum education, departing from the analysis of

    a concrete experience, performed by Campinas Museum of Image and Sound, SP, Brazil, be-

    tween 2007 and 2012, in the neighborhoods of Gnesis, JardimNilpolis and So Quirino.

    Keywords: Museum education, participation, sociomuseology.

    RESUMEN

    Este artculo aborda la consolidacin de la Museologia como campo interdisciplinario de las

    ciencias sociales, en un contexto histrico donde se confiere una funcin social a los museos y

    del cual deriva una nueva visin museolgica, la Sociomuseologia. Desde esta perspectiva,

    exploramos los desafos a la consolidacin terica y prctica de la educacin museal,basado

    en el anlisis de una experiencia concreta, desarrollada en Museo de la Imagen y Sonido de

    Campinas, SP, Brasil, entre los aos de 2007 y 2012, en la regin Leste de la ciudad.

    Palabras clave: Educacin museal,participacin, sociomuseologia.

    1Especialista Cultural no Museu da Imagem e do Som de Campinas. Graduada em Comunicao Social pela

    UFMG (1996), MBA em Marketing de Servios pela ESPM (2003), Especialista em Multimeios pela Unicamp

    (2001) e Mestre em Cincias da Comunicao pela ECA-USP (2009). E-mail: [email protected].

  • Revista de Arqueologia Pblica, n.9, Julho de 2014. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP

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    Introduo

    O presente artigo fruto da necessidade de sistematizar e analisar, teoricamente, o

    trabalho educativo desenvolvido no Museu da Imagem e do Som de Campinas (MIS), instiga-

    da pelas leituras e debates a respeito do patrimnio e das transformaes em sua definio. A

    discusso vem contextualizar o terreno no qual se fundamentamessas aes, a Sociomuseolo-

    gia, e identificar os requisitos tericos e metodolgicos que ela desenha para a Educao Mu-

    seal. Reconhecendo que se trata de uma rea de estudos recente, no completamente estrutu-

    rada, busca-se levantar campos acadmicos, teorias e conceitos que, sendo capazes de

    dialogar satisfatoriamente com a Sociomuseologia, possam fornecer categorias-chave para

    produo e avaliao de aes educativas em museus. O exame de uma situao concreta,

    desenvolvida pelo MIS entre 2007 e 2012, na regio dos bairros So Quirino, Jardim Nilpo-

    lis e Gnesis, permitir compreender a necessidade de deslocar prticas e processos museais

    tradicionais para situar, no centro do fazer, a participao social e o desenvolvimento local,

    por meio da produo e gesto do patrimnio de uma comunidade.

    1. Museus na contemporaneidade: a museologia social e seus princpios

    Embora a existncia dos museus como instituies dedicadas preservao do pa-

    trimnio pblico nacional remonte ao incio do perodo contemporneo (JULIO, 2006),

    foi apenas nos anos 1990 que a Museologia consolidou-se como um campo disciplinar espec-

    fico das cincias sociais (SCHEINER, 2012). A trajetria dessa estruturao encontra seus

    antecedentes em fins do sculo XIX, com a profissionalizao do trabalho do museu, o desen-

    volvimento de abordagens cientficas para a conservao (GRANATO & CAMPOS, 2013), a

    criao das primeiras associaes profissionais, o surgimento de publicaes e manuais e dos

    programas pioneiros de formao museogrfica. (PEREIRA, 2004 e 2010) At ento, tratava-

    se de compreender os problemas da preservao de colees e aprimorar os processos inter-

    nos a ela pertinentes perspectiva que caracteriza uma abordagem tradicional dos museus. Na

    primeira metade do sculo XX, as atenes voltaram-se para a democratizao da instituio,

    entendida como sua abertura ao pblico em geral e o desenvolvimento de seu papel educativo,

    ainda que numa perspectiva de elevao cultural dos visitantes. (PEREIRA, 2004)

    A criao do Comit Internacional de Museus (ICOM), em 1946, desempenhou im-

    portante papel na clivagem desse processo, por congregar instituies e profissionais e pro-

    mover amplo debate em seus encontros e conferncias, ensejando a emergncia de uma nova-

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    noo do trabalho museolgico, com foco na sociedade e seu desenvolvimento e nfase nas

    dimenses locais/ regionais do patrimnio e na participao comunitria. Merecem destaque,

    como marcos que contribuem para a formulao dessa abordagem social, o Seminrio Regio-

    nal da Unesco sobre a Funo Educativa dos Museus (Rio de Janeiro, 1958), a 8 e a 9 Con-

    ferncias Gerais do ICOM, realizadas em Munique (1968) e Paris/Grenoble (1971), a Mesa-

    Redonda de Santiago do Chile (1972), o I Atelier Internacional da NovaMuseologia, ocorrido

    em Quebec, o Seminrio de Oaxtepec (ambos em 1984) e o Seminrio de Caracas (1992).

    No nos cabe reconstituir o percurso pelo qual a concepo de museu transforma-se gradati-

    vamente, dando origem ao movimento da Nova Museologia, considerando-se que o argumen-

    to j foi satisfatoriamente explorado por Primo (1999), Santos (2002), Pereira (2004, 2010),

    Scheiner (2012) e outros. Mas preciso ressaltar que no se trata, aqui, de um movimento de

    cpula alheio s bases sociais e que as mobilizaes de carter artstico-cultural desde o final

    dos anos 60 foram cruciais na reviso da relao museu-sociedade (SANTOS, 2002).

    Ainda no mbito do ICOM, devemos ressaltar a criao, em 1976, do Comit Inter-

    nacional para a Museologia (ICOFOM), reunindo os principais estudiosos que, desde os anos

    60, dedicavam-se ao debate sobre o campo museolgico e estimulando a elaborao de docu-

    mentos de trabalho que fundamentam a museologia no apenas como atividade prtica, mas

    como cincia com objeto e metodologia prprios. Segundo Scheiner (2012:16), ao final dos

    anos 1980, j se confirmava a existncia de uma teoria da Museologia e definia-se para ela

    um lugar de fala no universo acadmico. Os latino-americanos no estavam ausentes do mo-

    vimento e, sobretudo a partir dos anos 1990, forneceram subsdios ao desenvolvimento da

    Teoria Museolgica. Naquela dcada de intensa produo cientfica, formularam-se os termos

    e conceitos bsicos do campo, inaugurando-se programas de formao universitria e revisan-

    do-se a estrutura curricular dos j existentes. Em Portugal, Mrio Moutinho (1993) concebeu

    a Museologia Social como o esforo de adequao das estruturas museolgicas aos condicio-

    namentos da sociedade contempornea, definindo-a, mais tarde (2007), como uma rea multi-

    disciplinar de ensino, investigao e atuao que articula a Museologia s Cincias Humanas

    e a reconhece como recurso para o desenvolvimento sustentvel da humanidade, baseado na

    igualdade de oportunidades e incluso social e econmica.

    Na virada do milnio, a Museologia estaria plenamente consolidada como trans-

    disciplina dedicada administrao da memria e do uso da herana patrimonial (MENESES

    apud BRUNO, 1996), e ao estudo da relao especfica entre o homem e a realidade, da qual

    alguns objetos so deslocados (musealizados) para serem preservados e utilizados com fins de

    conhecimento, sendo-lhes atribudas novas significaes. Nessa relao, o real tomado em

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    sua totalidade material e imaterial, natural e cultural, e o passado posto a servio do presente.

    Bruno (1996) e Santos (1996) reconstituem o percurso histrico pelo qual as definies do

    campo e do objeto da Museologia foram se configurando e imperativo reconhecer ali a in-

    fluncia da Nova Museologia a princpio, uma via alternativa s prticas e concepes tra-

    dicionais. Pereira (2004) ressalta que esse reconhecimento, ou mesmo a convergncia entre as

    duas correntes museolgicas no foi imediato ou isento de conflitos e demonstra que apenas a

    partir de Caracas (1992), iniciou-se um esforo em direo ao consenso e compreenso par-

    tilhada sobre a substncia e finalidade do campo.

    Embora, no debate terico, haja um empenho para se integrar a vertente social ao

    campo geral da Museologia, esmaecendo os contrastes entre ambos, bem como discursos que

    esbatem as resistncias e conflitos histricos (cf. crticas de PEREIRA, 2004), e se preconize

    que mesmo museus tradicionais tenham importncia para as comunidades a que servem e

    possam atuar segundo os pressupostos do museu integral (SCHEINER, 2012), necessrio

    adotar postura criteriosa na interpretao e aplicao dos princpios museolgicos pelos quais

    se opta. Santos (2008) evidenciaas armadilhas ocultas no apagamento de fronteiras e defini-

    es. Muitos discursos que assimilaram o conceito de desenvolvimento, por exemplo, trazem

    abordagens que vo dos matizes mais revolucionrios aos conservadores, passando pelos me-

    ramente adaptativos. Moutinho (apud SANTOS, 2008) tambm alerta que no fcil para as

    instituies abrirem mo de seu poder, o que gera ambiguidades e confrontos, muitas vezes,

    difceis de solucionar, e cria domnios que permanecem insensveis s mudanas sociais.

    A distino entre orientaes do pensamento e da prtica museolgica e o posicio-

    namento consciente no campo da Sociomuseologia embora no constituam valor per se,

    imperativo, tampouco panaceia (SANTOS, 2002) significam a assuno de uma postura

    tico-poltica libertria e implicam a adoo de pressupostos epistemolgicos, tericos e me-

    todolgicos coerentes ainda que, ou, por isso mesmo, plurais. Considerando que os profis-

    sionais de museus lidam em seu cotidiano com realidades complexas e contraditrias s quais

    devem se adaptar, e reconhecendo que a Sociomuseologia no prescreve receitas ou modelo

    ideal, mas incentiva a criao diversa, dentro do possvel (SANTOS, 2002), seus princpios

    serviriam de parmetros para a construo e avaliao de polticas, programas e projetos mu-

    seolgicos. Sob seu prisma, pois, emergem as seguintes categorias de produo e leitura da

    realidade museal: (Cf. MOUTINHO, 2007; SANTOS, 2002 e SANTOS, 2008)

    O museu integral/ integrado comunidade O museu agente social e poltico.

    No mais coletor passivo de objetos a organizar em tipologias, ele interfere na totalidade do

    meio social ao identificar e pautar, com a comunidade, temas de seu interesse atual, evidenci-

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    ando problemas e potencialidades de soluo e atuando como instrumento dinmico de mu-

    dana social. A comunidade, aqui, definida por dois critrios bsicos: interao social e sen-

    so de pertencimento (VARINE apud SANTOS, 2008).

    O desenvolvimento comunitrio/ local como objetivo da ao museolgica A

    incorporao da noo de desenvolvimento, emersa das esferas polticas e econmicas, (PE-

    REIRA, 2009) aos debates a respeito de museus e patrimnio, exigiu esforos para concili-la

    com a atitude de preservao. Sinteticamente, os ajustes dizem respeito incluso das comu-

    nidades nos trabalhos de preservao e interpretao do patrimnio e compreenso de que

    estas no so um fim em si mesmas, mas um meio, e que seu foco no deve ser o objeto, mas

    a significao por meio da qual ele se torna herana, posta a servio do presente.

    A participao como meio de atingir o desenvolvimento Entendida como coope-

    rao e coproduo de processos museais pela comunidade, desde o debate e a tomada de

    decises at a efetiva atuao no trabalho museolgico (SANTOS, 2002), ela mobiliza con-

    ceitos e prticas como protagonismo cultural e autogesto. Supe considerar os sujeitos soci-

    ais ativos e implica horizontalidade e igualdade entre especialistas do museu e comunidade,

    que percebe e exerce sua capacidade de auto-organizao para gerir seu tempo e seu futuro.

    A ao em um territrio A prtica museal baseada em aes sobre o territrio

    de uma comunidade e a totalidade do seu patrimnio, no na formao de colees. Isso per-

    mite interpretar as relaes do ser humano com seu ambiente e a influncia da herana cultu-

    ral e natural na identidade dos indivduos e grupos. (SANTOS, 2002)

    O patrimnio global (natural, cultural, material, imaterial) Meio fundamental

    de desenvolvimento, deve ser gerenciado no interesse de todos. A memria coletiva, no mu-

    seu, ponto de partida para a transformao da realidade.

    A educao libertria Como apropriao permanente do patrimnio e como so-

    cializao da preservao, a essncia mesma do processo museolgico.

    A dimenso comunicativa O museu, como frum, ponto de encontro e convi-

    vncia democrtica, plural e diversa, campo vivo de ao/ performance/ agenciamento. Espa-

    o de construo de experincia por meio do dilogo e exerccio da comunicao, lugar de

    reconhecimento e recriao de identidades e culturas de mltiplos grupos humanos.

    No Brasil, a atual Poltica Nacional de Museus (PNM), definida e implementada pelo

    Ministrio da Cultura (MinC) por meio do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), resultante

    de amplo processo participativo de consulta comunidade museal assume orientao clara-

    mente Sociomuseolgica. De acordo com o documento convocatrio para a discusso da pol-

    tica, lanado em 2003, os museus tm papel fundamental na valorizao do patrimnio cultu-

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    ral (tomado em perspectiva ampla) como dispositivo estratgico de aprimoramento dos pro-

    cessos democrticos. Eles so entendidos como processos a servio da sociedade e do seu

    desenvolvimento, comprometidos com a gesto democrtica e participativa, cujo objetivo

    propiciar a ampliao do campo das possibilidades de construo identitria e a percepo

    crtica acerca da realidade cultural brasileira (MINISTRIO da Cultura, 2003:8). A respeito

    da reverberao dessas propostas no II e III Fruns Nacionais de Museus, ocorridos em 2006

    e 2008, o MinC declarou que seu foco de ateno foram as novas experincias museais e a

    centralidade da museologia social(MINISTRIO da Cultura, 2010: 12).

    Desnecessrio sublinhar em que contexto poltico irrompe o processo de construo

    da PNM. Mas, vale pena relembrar os desafios sociais a que ela se dirige, e em cuja direo

    lana os museus, como agentes estratgicos no seu enfrentamento: superao da histrica de-

    sigualdade social e dos quadros de extrema pobreza, reconhecimento da pluralidade cultural

    brasileira, promoo dos direitos humanos e de polticas afirmativas de combate ao preconcei-

    to e de valorizao das identidades das minorias (em termos de poder) tnicas, de gnero e

    orientao sexual, soluo dos problemas decorrentes do processo de urbanizao acelerada e

    sem planejamento, melhoria do nvel educacional, oferta de oportunidades aos jovens para

    construo de projetos de vida, proteo biodiversidade, fortalecimento da democracia par-

    ticipativa, entre outros. Ao se reconhecer a prioridade dessas questes e a capacidade dos mu-

    seus contriburem para as transformaes necessrias,optando pelo engajamento nessa pers-

    pectiva e assumindo os compromissos sociais, ticos e polticos nela implicados, deve-se

    levar em conta que a prtica profissional configura-se como exerccio de criao coletiva, que

    exige permanente formao e reflexividade. preciso buscar, na prxis, sistematizar as expe-

    rincias concretas desenvolvidas e confront-las criticamente a categorias tericas coerentes

    com esta abordagem. Desse exame crtico, podem resultar contribuies ao avano do campo

    museolgico, tanto na sua epistemologia quanto na sua prtica. Particularmente, interessa,

    neste artigo, explorar algumas implicaes desses pressupostos sobre a estruturao terico-

    metodolgica da Educao Museal.

    2. Desafios para a estruturao terico-metodolgica da educao museal

    A relao entre museus e educao bastante longa, visto que, desde seus mitos de

    origem, o mouseiom guardava uma ligao com o saber. Studart (2004) prope compreender

    essa relao, que ela denomina pedagogia museal, a partir de trs elementos de igual impor-

    tncia: a funo educativa dos museus, isto , aquilo que lhe compete como instituio (o

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    porqu e para qu se educa); as aes educativas efetivamente empreendidas; e a Educao

    Museal ou Patrimonial, rea do conhecimento da Museologia que fundamenta a prtica.

    Vimos que a funo educativa elemento crucial na abordagem Sociomuseolgica e,

    nesse sentido, encontra-se suficientemente fundamentada no campo terico. Mas, a discusso

    a seu respeito antecede em muito ao advento da Nova Museologia. Uma viso histrica bas-

    tante aprofundada sobre as transformaes no seu entendimento construda por Pereira

    (2010), que identifica e discute cinco dimenses que a constituem: a educacional contempla-

    tiva, a cvica, a democrtica, a escolarizada e a socioeducativa.

    no terreno das aes concretas e seus fundamentos que falta mais ampla discusso.

    Em 2006, Cabral (2007) realizou levantamento junto a 192 dos quase dois mil museus brasi-

    leiros que havia ento (hoje so mais de trs mil segundo o Ibram) e constatou que 82% pro-

    moviam algum tipo de ao educativa (a maioria, visitas escolares e do pblico em geral).

    Grande parte dessas instituies estava localizada nas capitais dos estados e menos de 60%

    realizavam avaliaes sobre suas aes. Segundo dados recentes do Cadastro Nacional de

    Museus (IBRAM, 2011), apenas 48,1% dos museus possuem setor educativo constitudo;

    80,6% promovem visitas guiadas, sendo a maior parte (76,4%) realizada com agendamento, e

    pouco mais da metade (50,2%) realizam atividades sistemticas com a comunidade. Embora

    apresentem indcios sobre o tipo de aes empreendidas, as pesquisas no fornecem dados

    qualitativos sobre como se desempenham essas atividades, seu carter e fundamentos. Ainda

    hoje, investigaes dessa natureza apresentam escopos limitados em relao abrangncia

    geogrfica e s tipologias de museus, no sendo possvel compreender o estado da arte das

    aes educativas no Brasil. Estudiosos apontam queapenas recentemente a atividade obteve

    valorizao e, por muito tempo, enfrentou circunstncias adversas como formao no espec-

    fica de mediadores, persistncia do preconceito, insuficincia de publicaes e divulgao

    sobre o tema e descompasso entre discursos e prticas (BARBOSA, 2009 e LEITE, 2005).

    Mas, se o que se produz no dia-a-dia de boa parte dos museus permanece distante de

    reflexo e exame crtico, constata-seque aes educativas de destaque, dos mais bem estrutu-

    rados museus ou dos ecomuseuscom histria consolidada e vnculos com universidades, esto

    fartamente documentadas e relatadas. Tambm a criao da Rede de Educadores em Museus

    (REM), no Rio de Janeiro, em 2003, sob o estmulo do Ibram, foi impulso valioso para a or-

    ganizao dos profissionais e o intercmbio de experincias, a formao continuada, o mape-

    amento de aes e o desenvolvimento de pesquisas e parcerias. A REM multiplicou-se por

    outros estados e Distrito Federal, em carter independente, mas com apoio do Ibram: Distrito

    Federal, Cear e Pernambuco (2008), Mato Grosso e Paraba (2009), Rio Grande do Sul, San-

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    ta Catarina e Gois (2010) e Bahia (2011). Na cidade de So Paulo, em 2013, foi lanado,

    pelo Museu da Lngua Portuguesa, o Centro de Referncia de Educao em Museus.

    Aos poucos, foi-se desenhando a necessidade de se criar uma poltica pblica para o

    setor. Em 2005, o IPHAN promoveu o primeiro Encontro Nacional de Educao Patrimonial,

    em So Cristvo, SE. Segundo Lima (2008), o evento proporcionou uma sntese do processo

    de desenvolvimento de aes educativas. Outro momento importante, segundo a pesquisado-

    ra, foi a realizao do I Frum Latino-Americano de Educao Patrimonial, pelo Laboratrio

    de Educao Patrimonial e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas e o Instituto de

    Memria e Patrimnio, durante a Semana Nacional de Museus, de 2008. Ela concluiu, com

    base em seus levantamentos, que era urgente a necessidade de avaliao dos objetivos e pres-

    supostos das atividades educativas museais em curso no Brasil, sendo preocupante o seu qua-

    dro. Em 2010, o I Encontro de Educadores do Instituto Brasileiro de Museus resultou na Carta

    de Petrpolis, que oferece subsdios para a criao de uma poltica nacional de Educao Mu-

    seal. Em julho de 2011, durante o II Encontro Nacional de Educao Patrimonial, ocorrido em

    Ouro Preto, o tema voltou a ser debatido. Nesses dois ltimos, alm de questes prticas, co-

    mo formao de profissionais, legislao, articulao, fomento e gesto, propugnou-se o esta-

    belecimento de amplo debate e aprofundamento de conceitos e referenciais terico-

    metodolgicos, por meio do incentivo pesquisa acadmica nos seus diferentes nveis. Em

    outubro de 2012, o Ibram lanou uma plataforma na Internet de consulta pblica visando

    construo de diretrizes para as aes educativas e a formulao da Poltica Nacional de Edu-

    cao Museal (PNEM). At abril de 2013, 708 usurios cadastrados, dos quais 263 so profis-

    sionais de museus, opinaram em fruns virtuais sobre nove eixos temticos. Em janeiro de

    2014, foi divulgado o documento preliminar com as propostas apresentadas, para discusso e

    votao em plenria no Encontro Nacional do PNEM, previsto para novembro deste ano.

    No que diz respeito ao estabelecimento da Educao Museal como campo cientfico,

    existem trabalhos em trs vertentes que se distinguem segundo as tipologias de museus: a

    arte/educao, a educao patrimonial e a comunicao da cincia (SIQUEIRA, 2010). Embo-

    ra tais campos possam contribuir significativamente para a presente reflexo, no abordam

    exclusivamente a educao em museus. Nesse sentido, a primeira investigao que trata da

    especificidade da constituio da educao museal, baseada na hiptese de que ela possui

    caractersticas que a singularizam e se mantm revelia das diferentes tipologias institucio-

    nais foi empreendida por Martins (2011), na FE-USP, sob orientao de Martha Marandino.

    No entanto, os desafios especficos colocados pela Sociomuseologia consolidao

    desse campo permanecem inexplorados. Acima de tudo, faltam estudos que deem conta da

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    especificidade da educao museal fundada no nas colees ou objetos de museus, no nas

    visitas guiadas e atividades intramuros, mas no encontro com um patrimnio vivo, global de

    uma comunidade, presente em um territrio, e que compreenda o museu no como instituio,

    mas como processo. Evidentemente, as questes relacionadas a esse problema no podero

    ser suficientemente debatidas no mbito deste trabalho, mas possvel verificar aqui a viabi-

    lidade de investig-las a partir do exame de aes educativas empreendidas por um museu,

    que se caracterizem como prticas de Sociomuseologia. Eis o que se prope a seguir.

    3. Experimentando conceitos: o MIS Campinas na regio do Ribeiro das Anhumas

    Vasconcellos (2012) retrata o processo de criao do MIS Campinas, em 1975, como

    resultante de foras distintas e conflitantes de um lado, a atitude colecionista conservadora e

    a necessidade de preservao dos registros oficiais da Prefeitura e, de outro, a inteno mo-

    derna de disseminar a produo e fruio do audiovisual. Assim, na sua prtica museolgica,

    desde sempre conviveram elementos da museologia tradicional e da abordagem social. Nessa

    vertente, enquadram-se diversos programas e projetos desenvolvidos ao longo dos anos, como

    o cinema de arte e cineclube, a exibio de cinema nas escolas, atividades itinerantes, leitura

    crtica de TV, histria oral e o incentivo produo do audiovisual pelo cidado comum.

    dessa linhagem que surgiu, em 2003, o projeto Pedagogia da Imagem. Destinado,

    inicialmente, formao de professores para o uso do vdeo em sala de aula, foi gradualmente

    se expandindo e diversificando seus pblicos e atividades. Tornou-se um programa voltado

    apropriao crtica e dialgica do audiovisual, baseada em quatro eixos: conhecimento da

    histria e da linguagem; experimentao da criao; formao de circuitos de fruio cultural

    nas periferias e incentivo cultura de acervo (SIQUEIRA, 2009). Sempre em transformao,

    o programa mantm-se fiel aos princpios da educao dialgica de Paulo Freire e ideia de

    que o audiovisual um potente instrumento de libertao, na medida em que, ao domin-lo, o

    educando conquista um novo olhar, pelo qual descobre em seu ambiente (o bairro da periferi-

    a) sentidos mltiplos, feitos no s de carncias, mas tambm de memrias, saberes e belezas,

    e em si, a potncia para a criao. Esse empowerment base da transformao social ou do

    desenvolvimento, cujas direes e contedos so dados pelos sujeitos em formao e no s

    pelos educadores que tambm se educam e aprendem. Em dez anos de atividades, o pro-

    grama contribuiu para democratizar o perfil de acervos e programaes culturais e o estabele-

    cimento de novas relaes com pblicos que no frequentavam ou desconheciam o museu.

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    Foi em 2007 que se iniciou a relaodo MIS com a regio do ribeiro das Anhumas.

    No Leste de Campinas, esta compreende os bairros So Quirino, Nilpolis, Novo Horizonte e

    Cafezinho e, mais especificamente, a Rua Moscou e o ncleo Gnesis, bem sua margem. Os

    bairros e ncleos originaram-se do loteamento e sucessivas ocupaes da antiga Fazenda So

    Quirino, a partir dos anos 70, quando a cidade experimentou um crescimento urbano acelera-

    do, recebendo migrantes de vrias partes do pas. As favelas ali formadas predominantemente

    por trabalhadores domsticos, da indstria e da construo civil permaneceram por dcadas

    sem regularizao e, portanto, ao largo das polticas pblicas de infraestrutura e saneamento.

    Anualmente, os frgeis barracos eram tomados por enchentes, agravando a situao de vulne-

    rabilidade das famlias. Pouco a pouco, a ausncia do poder pblico abriu espao para a atua-

    o do trfico de drogas, tornando a regio conhecida no apenas pelos baixos ndices de de-

    senvolvimento humano, como tambm pela violncia, gerando estigma social.

    Em 2007, omuseurecebera em doao acervos e equipamentos resultantes do projeto

    Recuperao ambiental, participao e poder pblico: uma experincia em Campinas

    (TORRES e COSTA, 2006) e, como contrapartida, comprometeu-se a produzir exposio e

    vdeo com os arquivos de udio e imagem da coleo. Neles, quatro lideranas da Rua Mos-

    cou contavam suas memrias de vida e luta. Migrantes, suas lembranas eram marcadas por

    diferentes relaes com o ambiente e outros rios. Histrias de batalhas por direitos sociais,

    contra injustias e preconceitos, e saberes profundos sobre o meio ambiente, e como recuper-

    lo por meio da mobilizao. Os depoimentos deixavam claro: no estavam eles margem da

    sociedade, eram sujeitos ativos em busca de ser mais (FREIRE, 1987). O vdeo resultante,

    intitulado 3x4: Retratos da vida margem de um rio foi lanado no MIS, junto com a exposi-

    o fotogrfica Projeto Anhumas, durante a Semana do Meio Ambiente, na presena da co-

    munidade, que os recebeu com entusiasmo. Em seguida, a mostra percorreu os bairros, sendo

    exibida entre 2007 e 2008, gerando debates e aes educativas locais. A ao permitiu aos

    moradores refletir sobre os problemas ambientais da comunidade, ao mesmo tempo em que

    demonstrava seu potencial de transformao, pela valorizao das identidades locais (migran-

    tes, trabalhadores), seus saberes e a histria coletiva, simbolizados pelas lideranas.

    Durante o evento no MIS, estavam presentes duas professoras da EMEI Recanto da

    Alegria, localizada noGnesis. Participantes do curso de formao Pedagogia da Imagem, elas

    se propuseram a atuar, junto ao museu, na integrao entre escola e comunidade, abrindo a

    dinmica educativa aos saberes e memrias coletivos. Ao longo do ano, conquistou-se o apoio

    da equipe gestora, com base no princpio bsico do projeto poltico-pedaggico escolar de

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    integrar-se ao entorno palavra que, em si, denuncia o que est de fora. Foi necessrio vencer

    preconceitos, medos e concepes restritas sobre a funo da escola infantil.

    Superada essa etapa, realizou-se a primeira ao voltada para a comunidade, com o

    objetivo de promover o aprendizado audiovisual, tendo os moradores como protagonistas,

    autores das imagens e discursos. Escolheu-se a fotografia como linguagem introdutria. Foi

    oferecida uma oficina de fotografia digital, qual acorreram pessoas de 10 a 60 anos, com

    perfis variados. A metodologia desenvolvida alternava encontros de aprendizado sobre o uso

    do equipamento e a linguagem, e passeios fotogrficos pelo bairro, cujos roteiros e pontos de

    interesse eram definidos pelos participantes. Durante os percursos, amizades se formavam,

    histrias e casos eram compartilhados, saberes locais revelados. Ao final, os aprendizes atua-

    ram como curadores da exposio fotogrfica, intitulada Recantos, selecionando 40 imagens e

    criando seus ttulos. A abertura populao deu-se na EMEI, em fins de 2008. No ano se-

    guinte, em maro, seria inaugurada no MIS, e um vdeo homnimo foi produzido para regis-

    tro da experincia. Das fotografias produzidas, 700 foram doadas ao acervo do museu, preen-

    chendo duas lacunas: a de registros contemporneos da periferia da cidade e a do olhar no

    oficial e no elitizado. Em seguida, a exposio percorreu o bairro, sendo montada nos equi-

    pamentos comunitrios, da Assistncia Social e ONGs dedicadas a crianas e adolescentes.

    Em 2009, o objetivo era desenvolver uma oficina de vdeo, mas as diretrizes da Se-

    cretaria de Educao exigiram mudana de planos. Por determinao da escola, as professoras

    deveriam trabalhar exclusivamente em projetos da brinquedoteca escolar. Uma das educado-

    ras deixou o grupo. As possibilidades de trabalho na brinquedoteca eram limitadas e optou-se,

    ento, por transform-la, incorporando a ela dimenses imateriais os saberes e memrias

    sobre brincadeiras, brinquedos, histrias e cantigas de infncia, compartilhadas por familiares

    das crianas e membros da comunidade. O objetivo era produzir e lanar um vdeo e realizar

    uma oficina em um Dia de Brincadeiras, ao final do ano. Foram identificados colaboradores

    com a ajuda do Centro de Assistncia Social (CRAS) e, com o apoio de estagirios de Hist-

    ria e Cincias Sociais da Unicamp, gravaram-se os depoimentos. O vdeo editado Infncia:

    memrias e brincadeiras uma breve sntese do muito que a comunidade apresentou. Bem

    mais que lembranas de brincadeiras, os depoimentos revelaram concepes sobre a infncia,

    a educao, trabalho infantil e direitos, vestgios de uma cultura popular caipira, em choque e

    hibridao com a cultura de massa e consumo elementos extremamente potentes para serem

    discutidos no mbito da escola. A exibio do vdeo, ao final do ano, foi realizada na EMEI,

    em condies precrias. O Dia de Brincadeiras no se realizou e a parceria dava sinais de es-

    gotamento. Nos anos seguintes, 2010 e 2011, o MIS trabalhou com o CRAS, que enviou duas

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    profissionais ao curso Pedagogia da Imagem. A comunidade tambm passava por transforma-

    es, com a urbanizao promovida pelo Programa de Acelerao do Crescimento (PAC). As

    concepes e possibilidades de trabalho, no entanto, eram mais limitadas e optou-se, enfim,

    pela realizao de exibies e debates dos vdeos e montagem das exposies disponveis.

    Em 2012, o MIS tentou realizar um novo vdeo com os protagonistas do 3x4. Das

    quatro personagens, apenas uma senhora cedeu seu depoimento. Foram feitas imagens do

    bairro e coleta de informaes junto assistente social. Ficou claro que a urbanizao interfe-

    riu significativamente na dinmica local. De um lado, valorizando os imveis prximos e hi-

    gienizando e padronizando as moradias. De outro, alterando modos de vida e convivncia e

    desarticulando lideranas. Percebeu-se que o processo havia se dado de cima para baixo, sem

    considerao por aspectos socioculturais e histricos. Em todo caso, o CRAS props ao MIS

    realizar nova oficina fotogrfica, com o objetivo de registrar a atual fisionomia do bairro. Um

    grupo de adolescentes que se profissionalizam em uma ONG da regio interessou-se pelo

    projeto e empregou-se a metodologia anteriormente desenvolvida. A exposio Gnesis: per-

    cursos da criao foi inaugurada em 2012 no CRAS, com debate pblico sobre meio ambien-

    te, as transformaes locais e o processo educativo. Em 2013, foi levada ao MIS e aberta na

    Semana do Meio Ambiente. A experincia demonstrou que, a despeito das dificuldades de

    articulao, a participao e mobilizao em torno do patrimnio global, tendo o audiovisual

    como instrumento de registro e exerccio do protagonismo cultural, via poderosa para se

    estimular o desenvolvimento local. Isso porque a comunidade ainda possui problemas a en-

    frentar, tanto quanto riquezas ambientais, culturais, materiais e imateriais a serem explo-

    radas, a fim de se tornarem herana, recurso para o presente. E essa linguagem, to contempo-

    rnea, articula, confronta, confere visibilidade e amplitude aos discursos da populao.

    Para o MIS, essa trajetria de cinco anos, se no conta a histria linear de um caso de

    sucesso, ensina novas formas de conceber prticas como a identificao, seleo, interpreta-

    o, preservao e comunicao do patrimnio. Ao compartilhar a autoria do processo museo-

    lgico com a comunidade, partindo do pressuposto de que ela possui legitimidade para tal, o

    museu deixa de ser a instituio pr-existente, enclausurada, e se torna criao viva e singular,

    como se a ao educativa possibilitasse a atualizao de virtualidades e potncias latentes,

    sendo o ato pelo qual, mutuamente, se significam e configuram trs faces de uma mesma rea-

    lidade: comunidade, museu e patrimnio. Mediar, aqui, no se colocar no meio dessa rela-

    o, como especialista que regula e valida sentidos: abrir fissuras e construir pontes atravs

    das quais o outro possa contaminar o museu e transform-loem novo. Se os gestores das pol-

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    ticas pblicas compreendessem a fora desse ato na busca de solues para os problemas ur-

    banos, os museus-processo seriam mais frequentemente convocados a dar sua contribuio.

    4. Caminhos a trilhar: a educao museal produzindo um novo museu?

    No bojo do desenvolvimento da Poltica Nacional Setorial de Museus, a discusso

    sobre a Educao Museal coloca-se como estratgica. Trata-se de um campo de reflexo e

    ao social de desenvolvimento recente e que reclama o estabelecimento de fundamentos e-

    pistemolgicos, tericos e metodolgicos coerentes, conforme evidencia o empenho coletivo

    para a construo do Plano Nacional de Educao Museal, encabeado pelo Ibram, em 2013.

    E, quando contextualizada no campo da Sociomuseologia, exige esforos ainda maiores para

    o deslocamento de conceitos oriundos da museologia tradicional.

    A experincia educativa do MIS Campinas, nesse sentido, foi um laboratrio no qual

    puderam ser testadas algumas dessas possibilidades. Em primeiro lugar, seu ponto de partida

    no foram as colees preexistentes de fotos, equipamentos e filmes, tampouco o Palcio que

    lhe serve como sede. Ao contrrio, iniciou-se no encontro com a comunidade, em seu territ-

    rio concreto, os bairros, estabelecendo-se um dilogo cujo foco era revelar seu patrimnio-

    global. Nesse deslocamento, o MIS no perdeu sua identidade ao contrrio: buscou integrar

    sua misso (a preservao do audiovisual) aos objetivos e interesses locais de desenvolvimen-

    to por meio das oficinas e mostras.A educao museal, vista como processo de apropriao,

    ao conjugar a aprendizagem do audiovisual com a criao reflexiva sobre a realidade mesma

    dos sujeitos envolvidos, configurou-se, pois, libertria, uma vez que resultou na identifica-

    oe projeo de potencialidades existentes para a ao. Para que a transformao se torne

    efetiva, porm, necessrio o envolvimento e a mobilizao de inmeros agentes, quer da

    comunidade,quer do poder pblico ou do terceiro setor.Assim, a educao museal, no contex-

    to da Sociomuseologia, no pode ser efetivada de maneira isolada pela instituio, mas na

    tessitura de redes. Alm disso, em cada comunidade ela se dar de maneira diferente. No caso

    do MIS, na medida em que novos registros eram produzidos (na ao educativa, pelos pr-

    prios educandos), a definio mesma de patrimnio audiovisual tornou-se alargada, tanto em

    termos conceituais (quem o produz/ de que trata/ quais os meios) quanto em termos prticos,

    pela ampliao e diversificao das colees do museu. Ao exp-los, lado a lado com os de-

    mais, o MIS configura-se como frum, permitindo novas conexes e interpretaes de seu

    acervo.

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    Portanto, ao se assumir o conceito de patrimnio de maneira ampla e diversa, um de-

    safio se impe, imediatamente, aos museus que se posicionam no campo da Museologia Soci-

    al: o de recorrer a uma concepo de museu como processo e adotar um modelo museolgico

    menos centrado na instituio e mais afeito rede e ao fluxo um museu que se redefina de

    maneira plural em cada ponto de conexo onde a educao promova a sua apropriao, de

    acordo com os significados de que o patrimnio ali se reveste. Que o museu assuma essa con-

    figurao fluida no depende de sua tipologia, mas da sua capacidade de tecer relaes dial-

    gicas, de cogesto e de mediao com as diferentes comunidades que constituem essa rede.

    Assim, a identidade do museu-processo e sua funo/significao social no so dadas pelos

    seus acervos, mas pela natureza especfica das operaes por meio das quais se promove, par-

    ticipativamente, o reconhecimento e a salvaguarda do patrimnio de uma comunidade. A

    reside a sua singularidade seu modo particular de identificar, organizar, contextualizar e

    reconstruir referncias sociais para os elementos culturais, das identidades e memrias coleti-

    vas, bem como de coloc-las em dilogo, como frum, no espao pblico.

    Nesse caminho, a educao deixa de ser elo final entre funesmuseais desempenha-

    das por especialistas e o pblico, para tornar-se a essncia do museu, criado e apropriado co-

    laborativamente. Deslocam-se, ento, prticas e processos museolgicos tradicionais, como o

    inventrio, a preservao, a curadoria e a mediao, cuja centralidade no est mais nos obje-

    tos, mas nos sujeitos que participam, se desenvolvem e se libertam em comunho.

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