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ABRIL 2015 CLAUDIA 135 134 CLAUDIA ABRIL 2015 Reportagem m uma festa agitada em São Paulo – dessas que amanhecem com o néon iluminando a pista, energéticos, DJs e música contagiante –, uma mulher atravessa o corredor de gente que está fumando na área lateral, ao ar livre, única passagem para se chegar ao ba- nheiro. Ela pede licença, vai abrindo caminho no mar de pessoas. Madura, 58 anos, adora dançar. Tem espírito alternativo, estética hipster, braços tatuados. Mas eles estão cobertos pela manga longa da blusa de seda que lhe dá um ar chique e eleva a sua idade à beira dos 65. Uma garota se espanta com a estranha no ninho e dispara, al- to, a sua surpresa: “Olha, uma senhorinha!!!!!” O corre- dor polonês se concentra naquela figura como se ela fosse um macaco raro pulando fora do galho. Só falta atirarem pipocas. Como assim? Por que essa mulher deveria estar em casa jogando baralho com seus iguais? O Brasil não conhece seus velhos. Não sabe que são 26,3 milhões (13% da população), que muitos ainda tra- balham, vivem mais (hoje, 75,4 anos, em média; em 2000, 69,8), detêm 20% do poder de compra (ante 5% registrados há duas décadas), com 30% deles gastando além do que despendiam antes da aposentadoria. Mas é o idoso o último a opinar sobre qualquer assunto, na fa- mília e na sociedade. Essa falta de direito de se expressar fica evidente na reportagem que leva CLAUDIA a uma dupla jornada: nove horas no Centro Público de Atendi- mento ao Idoso, em Jundiaí (SP), serviço que cuida dos velhos enquanto suas famílias trabalham; e outra, de 24 horas, no Lar Sant’Ana, no Alto de Pinheiros, na capital paulista, onde a mensalidade varia de 11,5 mil reais a 14 mil reais. As duas estruturas figuram como oásis: a re- gião de Jundiaí tem 52 mil cidadãos com mais de 60 anos para as 30 vagas desse único centro-dia. No Lar, da Liga Solidária, vivem 97 pessoas em confortáveis apar- tamentos; e elas praticam atividades físicas e de desen- volvimento da autonomia. No nosso enorme país, resi- denciais como esse ou com menor requinte não passam muito de mil. Chamados Instituições de Longa Perma- nência para Idosos (ILPI), eles baniram do vocabulário o assombroso termo asilo. Mas são moradias coletivas. E O VELHO NÃO QUER SÓ COMIDA (quer direitos, diversão, arte... e fazer amor) Claudivânia não tinha roupas nem bonecas e ia de pau de arara para a escola. Hoje é referência para as mulheres da zona rural PATRÍCIA ZAIDAN / FOTOS FILIPE REDONDO 1 João José da Silva, 90 anos, e 2 Marina Reghine Dini, 84, ambos do centro-dia de Jundiaí. 3 Cecília Penteado Cardoso de Almeida, 96 anos, e 4 Odair Buarque de Gusmão, 93, do Lar Sant’Ana, em São Paulo 1 3 2 4 Vinte e quatro horas observando idosos em um residencial e outras nove em um centro-dia revelam que a terceira idade está sem voz e sem visibilidade no país

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A B R I L 2 0 1 5 C L AU D I A 135 134 C L AU D I A A B R I L 2 0 1 5

Reportagem

m uma festa agitada em São Paulo – dessas que amanhecem com o néon iluminando a pista, energéticos, DJs e música contagiante –, uma mulher atravessa o corredor de gente que está fumando na área lateral, ao ar livre, única passagem para se chegar ao ba-

nheiro. Ela pede licença, vai abrindo caminho no mar de pessoas. Madura, 58 anos, adora dançar. Tem espírito alternativo, estética hipster, braços tatuados. Mas eles estão cobertos pela manga longa da blusa de seda que lhe dá um ar chique e eleva a sua idade à beira dos 65. Uma garota se espanta com a estranha no ninho e dispara, al-to, a sua surpresa: “Olha, uma senhorinha!!!!!” O corre-dor polonês se concentra naquela figura como se ela fosse um macaco raro pulando fora do galho. Só falta atirarem pipocas. Como assim? Por que essa mulher deveria estar em casa jogando baralho com seus iguais?

O Brasil não conhece seus velhos. Não sabe que são 26,3 milhões (13% da população), que muitos ainda tra-balham, vivem mais (hoje, 75,4 anos, em média; em 2000, 69,8), detêm 20% do poder de compra (ante 5% registrados há duas décadas), com 30% deles gastando

além do que despendiam antes da aposentadoria. Mas é o idoso o último a opinar sobre qualquer assunto, na fa-mília e na sociedade. Essa falta de direito de se expressar fica evidente na reportagem que leva CLAUDIA a uma dupla jornada: nove horas no Centro Público de Atendi-mento ao Idoso, em Jundiaí (SP), serviço que cuida dos velhos enquanto suas famílias trabalham; e outra, de 24 horas, no Lar Sant’Ana, no Alto de Pinheiros, na capital paulista, onde a mensalidade varia de 11,5 mil reais a 14 mil reais. As duas estruturas figuram como oásis: a re-gião de Jundiaí tem 52 mil cidadãos com mais de 60 anos para as 30 vagas desse único centro-dia. No Lar, da Liga Solidária, vivem 97 pessoas em confortáveis apar-tamentos; e elas praticam atividades físicas e de desen-volvimento da autonomia. No nosso enorme país, resi-denciais como esse ou com menor requinte não passam muito de mil. Chamados Instituições de Longa Perma-nência para Idosos (ILPI), eles baniram do vocabulário o assombroso termo asilo. Mas são moradias coletivas.

E

O VELHO NÃO QUER SÓ COMIDA

(quer direitos, diversão, arte... e fazer amor)

Claudivânia não tinha roupas

nem bonecas e ia de pau de

arara para a escola. Hoje é

referência para as mulheres

da zona rural

PATRÍCIA ZAIDAN / FOTOS FILIPE REDONDO

1 João José da Silva, 90 anos, e 2 Marina Reghine Dini, 84, ambos do centro-dia de Jundiaí. 3 Cecília Penteado Cardoso de Almeida, 96

anos, e 4 Odair Buarque de Gusmão, 93, do Lar Sant’Ana, em São Paulo

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Vinte e quatro horas observando idosos em um residencial e outras nove em um centro-dia revelam que a terceira idade está sem voz e sem visibilidade no país

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A decisão de ir para um local assim quase nunca é ba-seada no desejo pessoal. “Vim porque é melhor para os meus filhos. Não achava justo preocupá-los”, diz Cecília Penteado Cardoso de Almeida, 96 anos, quatro filhos, ocupante do apê 247, decorado por ela com vasos e fotos e onde ficam seu computador e uma TV coberta com um xale. É uma amante do rádio e detesta televisão. “Desde que fiquei viúva, há cinco anos, tinha sempre um filho acordando no meio da noite, angustiado, e pensando: ‘Mamãe está sozinha; mamãe vai cair; mamãe não tem com quem contar’. Ora, quem quer ser esse peso morto na família?” Ela se considera moderna e entende que as coi-sas mudaram. “Hoje, o velho não mora mais com uma das filhas, vai para um lar. Elas trabalham muito, vivem ocu-padíssimas.” No atual contexto, Cecília criou uma etique-ta: “Em visita na casa de filho, mantenho a cerimônia.

Minhas noras são duas joias, mas vou, janto e volto”. Para ela, assim está ótimo. “Não ouço mais: ‘Quem vai ficar com mamãe?’ Essa pergunta me matava.” Cilu, como é chamada, tem a seu favor um espírito de menina. “Olho para a janela, vejo uma árvore linda que dei de presente para a minha filha. Tudo simbólico”, explica. “Foi essa for-ma de fantasiar, ao longo da vida, que me trouxe lúcida e íntegra até aqui.” Quando decidiu que desmancharia a casa, chamou os filhos e netos. “Cada um colou uma eti-queta com seu nome nos objetos que queria herdar. Aca-bou tudo rápido.” E ela se mudou para o Lar, onde já vi-viam os irmãos Fernando, que aos 100 anos ainda sai para trabalhar, e Glorinha, 95 anos, mulher de ideias ins-tigantes. “Aqui temos aulas e palestras sobre tudo. Mas gostaria de ver os velhos levando as próprias discussões. A gente podia se organizar, fazer teatro...” Voltando a Cilu:

Reportagem

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“O ENVELHECER É RESULTADO DO AVANÇO DA TECNOLOGIA. E TEM FUTURO. BASTA DESASSOCIÁ-LO DA IMPRODUTIVIDADE”

MARÍLIA BERZINS, MESTRE EM GERONTOLOGIA SOCIAL

1 Chegada ao centro-dia em van escolar. 2 Exercícios de

alongamento, com Marina ao centro. 3 Os nomes indicam os donos dos copos de suco. 4 No Lar Sant’Ana, Cecília paparica a

amiga. 5 Odair se exercita

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ela lembra que “não doeu nada”, abrir mão dos pertences. “Entrei na casa de uma neta, vi meu sofá, meu piano, meu tapete e fiquei feliz. A família tem carinho com as minhas memó-rias.” Os registros que fez do clã em filmes Super 8 e fotos ficaram com dois netos. “Falo mais sobre eles que sobre os bisnetos, reparou? Bisnetos são parentes distantes. Você nunca os vê, já nascem na escolinha.”

ÚLTIMA SAÍDAA luz do quarto de Cilu ainda está ace-sa. Já é madrugada. Ela relê Antologia Poética, de Carlos Drummond de An-drade, à beira do rádio. Menos de 1% dos idosos brasileiros encontra vagas em uma ILPI. No Canadá, são 6%; na Espanha, 5%. “Nem todos precisam morar em uma instituição. Essa deve ser a última alternativa”, afirma Vanes-sa Idargo Mutchnik, terapeuta ocupa-cional e mestre em gerontologia. “Nu-ma ILPI, com padrões e horários inego-ciáveis e onde o idoso é comandado em tudo, há perda de identidade e de cognição.” Para Thânia Rodrigues Ferreira, 57 anos, secretária, deixar a mãe em uma casa de repouso em Mongaguá, no litoral paulista, foi, de fato, a única saída. Aos 77 anos, Walda Rodrigues havia se jogado na linha do trem e, depois, na piscina da casa de Thânia. Repetia que não queria morar com a filha, que não gostava de depender de alguém. Andava agressi-va, vivia emburrada, consumia as atenções de Thânia. “Para não deixá-la sozinha, eu a levava para o meu empre-go, mas a situação foi ficando insustentável. Pedi demis-são.” Ela trancava as portas de casa enquanto tomava um banho rápido, fazia supermercado correndo antes de o marido sair para o trabalho, abriu mão da vida pessoal. “Eu estava estressada, e ela não parava de pedir por uma casa de repouso.” A decisão foi dura. “Senti culpa por não ter contornado a situação”, afirma. Acabou, porém, alivia-da ao notar, nas visitas diárias, que a mãe está mais calma. “Ela até fez amizades e a nossa relação melhorou”, revela.

Pode ser bom para o idoso quando o ambiente é ins-tigador, reconhece Vanessa. “Mas a maioria das insti-tuições não foca na socialização, e sim na saúde. Se o cidadão foi medicado, tomou banho e comeu, está re-solvido o problema”, critica. “Devemos ao velho a opor-tunidade de ter um projeto de vida, de aprender, traba-

lhar, estudar.” No modelo que ela defende, o centro-dia, o inscrito se sente incluído, desenvolve habilidades. “E volta com assuntos para comentar com a família, que o havia posto de lado.” Diante do baixo número de equi-pamentos, ela comenta: “Hoje, estamos apenas apagan-do o incêndio”. E lembra que quem tem 80 anos sofre mais. Pertence à primeira geração que conquistou a longevidade e pegou o país despreparado. Já os de 60, 65 têm conseguido se impor, abrindo espaços a marre-tadas, principalmente no mercado de trabalho, que tor-ce o nariz para quem tem cabelos brancos.

“O envelhecer é resultado do avanço tecnológico, que aumentou o bem-estar e a saúde. E tem futuro”, diz Marília Berzins, mestre em gerontologia social e presi-dente da ONG Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (Olhe). “Para isso, basta desconstruir o modelo que associa o velho à incapacidade e à impro-dutividade.” Um bom começo é perguntar aos garotos de 6 ou 7 anos o que vão ser quando ficarem idosos. Se eles desejarem algo para o tempo que virá, muda-se a cultura. Outra coisa é fazer o empresariado enxergar a oportunidade de negócio. “O velho participa do PIB”, diz Marília, que tem ouvido muitas recusas ao buscar financiadores para projetos da Olhe. “O idoso mudou,

1 João José toma café da manhã sem tirar o chapéu: “Não gosto de ser careca”. 2 Cecília, em seu apartamento, responde aos e-mails de amigas e familiares: “São como telegramas. Têm que ser curtinhos”

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“NEM TODOS PRECISAM MORAR EM UMA INSTITUIÇÃO. ESSA DEVE SER A ÚLTIMA ALTERNATIVA” VANESSA MUTCHNIK, MESTRE EM GERONTOLOGIA

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Reportagem

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1 Marina,na aula de artes: “Descobri que gosto de desenhar”. 2 João dança com Maria de Lourdes. 3 Cecília tranca seu apê. 4 Odair fala da crise do país, depois do jantar

rompeu o portão de casa. Ele está em todos os lugares, fala de homossexualidade, como o casal Fernanda Montenegro e Nathália Timberg na novela Babilônia.”

Dos que não ultrapassaram o portão, 25%, conforme uma pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universi-dade de São Paulo, necessitam de algum tipo de cuidado – que, em geral, a família não consegue suprir. Por outro lado, o panorama é alentador: 75% poderiam ter autono-mia, gerir a própria vida e morrer bem. Nos casos em que dependem de ajuda, o Estado deve ser o provedor, confor-me a Política Nacional do Idoso, de 1994, e o Estatuto do Idoso, de 2003. “Há, porém, um longo abismo entre os instrumentos legais e a realidade”, afirma Marília. “O Bra-sil acredita que é um país de jovens e não criou políticas públicas, como preparar cuidadores que atendam o velho na casa onde vive sozinho.” O profissional vai com ele às atividades físicas, às compras, ao cabeleireiro, à igreja. A Prefeitura de São Paulo já oferece esse serviço a 2,5 mil paulistanos, um contingente ainda muito pequeno.

A MORTECecília anda lépida a caminho do refeitório para o café da manhã. É exuberante até ao falar naquele tema árido que todos evitamos. “Acho que está na minha hora de morrer. Fiz tudo que precisava, a família caminha bem, estou tão realizada que já posso partir”, discursa, eloquente. “Trato disso com naturalidade com os filhos; digo que tenho meu amor para rever do outro lado. Estamos preparados, embora eles queiram que eu me demore um pouco mais.”

Os outros entrevistados também mantêm a morte na vizinhança. “Vi seis filhos morrerem. Então, ela não me espanta mais”, afirma Marina Reghini Dini, 84 anos, quatro filhos. Todos os meses, ela paga 280 reais para um conhecido levá-la de carro até o centro-dia. Viúva, vive sozinha. “Não é uma escolha. Não me sinto bem, mas até um cachorro gostaria de ter companhia.” Ex-faxineira, ela explica a solitude com abnegação: “Eu sou idosa, estou mais sensível e nervosa. Uma pulga vira cavalo. E isso ninguém quer”. Os filhos não se ofereceram para acolhê--la. “Eu entendo. Uma filha já sofreu muito. Por que teria que passar por mais isso? A outra mora num sobrado; seria difícil para eu subir e tomar banho. E os filhos têm suas mulheres.” Apoiada em uma bengala, com proble-mas de circulação, artrose e as pernas inchadas, diz o que mais a entristece. “O desprezo na relação do novo com o velho. Não tem nada que me doa mais.” Exemplos? Sua colega Nair Souza Lima, 86 anos, cita um: “Sou alegre. Se falo ou brinco além da conta, a família censura, diz que estou virando criança de novo”. Marina intui quando uma nora se sente incomodada com sua presença. E co-

menta com o filho, que desconversa: “Isso não existe, é coisa da sua cabeça”. Ela resmunga o desabafo: “Minha cabeça é livre para pensar, está boa, me lembro de coisas da infância. E meu coração é para sentir”. Mais uma pul-ga vira cavalo no domingo quando um dos filhos a visita e dá uma desculpa qualquer para não ficar para o almo-ço. “Não sou boba, percebo.” Nair faz uma observação sobre a velhice: “Tem uma inversão injusta que a nature-za faz com a gente. O corpo fica fraco, na melhor hora para se viver. Depois de aprender e trabalhar tanto, a gen-te merecia a liberdade. Sem depender dos filhos”.

AMOR, AMORO café da manhã em Jundiaí é interrompido quando o fotógrafo chega. Blandina Visinho, 93 anos, o saúda: “Que bom, um homem! Aqui quase não tem”. Tanto nos ILPIs quanto nos centros-dia, o sexo masculino é mino-ria, já que vive menos (em média 71,88 anos ante os 79 anos do sexo feminino) e também porque a família acha mais fácil ficar com o velho. “Quando eles são mais lon-gevos, têm melhor qualidade de vida. A mulher se depri-me e sente a demência mais rápido”, explica a psicóloga Lilian Lourencini, gerente de saúde da Cidade Vicentina Frederico Ozanan, que, em parceria com a prefeitura, se encarrega da linha de atendimento do centro. Mesmo com poucos homens, os romances ocorrem. “Muito obri-gada por permitir que eu falasse do meu amor”, encerra, Juracy da Silva, 80 anos, o seu relato sobre a paixão por José Maria, morto oito meses atrás, de infarto. Eles se conheceram entre as aulas de alongamento e artesana-to. A história ganhou os contornos comuns de qualquer relação afetiva. “Eu tinha muito ciúme, ele era paparica-do pelas mulheres daqui”, lembra. Numa sexta-feira, Juracy ligou e percebeu que o amado estava passando mal. “Fui a última a falar com ele. Eu nem sabia, era a nossa despedida. A saudade não quer passar.”

O SEXO“As melhores lembranças são da vida amorosa de antes de casar, dos banhos de mar em Santos (SP), onde vivi, da casa que fiz para minha família em São Paulo. E do sexo. O ato em si é uma bela memória”, conta Odair Tei-xeira Buarque de Gusmão, 93 anos, despachante adua-neiro aposentado, morador do Lar. Aos 90, ele procurou um urologista, intrigado por não ter uma vida sexual comparada a de um amigo, da mesma idade, que gabava--se de satisfazer as mulheres. “O médico disse: ‘Me traga esse fenômeno’. Nesse momento, percebi que não havia mais chances, o que me entristeceu. Gostaria de ter, de novo, o prazer.” Odair é assíduo no grupo de homens que,

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“AS MELHORES LEMBRANÇAS SÃO DA VIDA AMOROSA DE ANTES DE CASAR, DOS BANHOS DE MAR EM SANTOS, ONDE

VIVI, DA CASA QUE FIZ PARA MINHA FAMÍLIA. E DO SEXO” ODAIR BUARQUE DE GUSMÃO

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mediados por um psicólogo, falam, entre outras coisas, da virilidade que muda de conotação. Ele aprendeu a re-velar ali suas dúvidas e angústias. “Mas os outros não se revelam tanto.” Depois do jantar, Odair conta que a labi-rintite está atacada. “Foram as notícias da crise financei-ra e moral do país”, diz ele a uma colega, com quem con-versa bastante. “As mulheres são mais abertas.”

De fato, elas se expõem mais. Lenyr Novaes Olyntho, 74 anos, educadora, fala sobre sexo no debate proposto por CLAUDIA depois da exibição de E Se Vivêssemos To-dos Juntos?, de Stéphane Robelis. No filme, em que cinco amigos setentões enfrentam a velhice morando em regi-me de república, a personagem de Jane Fonda confessa que se masturba. “O idoso tem vergonha e medo de falar. A gente pensa em sexo, sim, se masturba, sim”, afirma, segura, Lenyr. “A sociedade nos nega mais esse direito. Como se não pudéssemos ter fantasias.” Ela sofreu dois acidentes vasculares cerebrais e crises de ausência; por isso mora no Lar. “Mantenho a capacidade intelectual, escrevo, ajudo terapeutas daqui nos trabalhos para a uni-versidade. Por que não posso continuar a ser eu mesma?” Em Jundiaí, o assunto deixou de ser tabu. “Alguns man-têm a libido”, diz Lilian. “E a tendência das famílias é, de fato, coibir, como se não fosse próprio do ser humano. Aqui, não coibimos nem promovemos, mas orientamos.”

ALGUM PODERJoão José da Silva, a 11 dias de completar 90, havia che-gado ao centro-dia às 7h45, tomando dois ônibus. Sozi-nho. É vaidoso, conta que tem muitos chapéus e bonés porque não gosta de ser careca. Está bem-disposto, ape-sar da miocardiopatia e da pouca audição. “Queria muito morar num sítio e tomar conta de uma plantação. Gosto de trabalhar.” Talvez não pudesse, mas o sonho o alimen-ta. Há poucos anos, ainda mantinha um carrinho de lan-ches, conhecido pela qualidade do hot dog. “Ganho três salários mínimos de aposentadoria ( foi vigia em uma

fábrica), gasto pouco e acho bom dar o dinheiro para ajudar na casa do meu filho, onde moro.” No seu univer-so particular e familiar, o valor é alto e bem-vindo. O dinheiro está no centro das preocupações dessa popula-ção, como revela Odair. “Passei uma vida trabalhando e, felizmente, posso bancar as despesas no Lar. Minha filha cuida das finanças, o marido dela ajuda, porque sabe aplicar os recursos.” Realidade nada comum num país em que a previdência oficial está quebrando. “Quem vai pagar as contas de uma existência tão longa?” é pergunta recorrente e angustiante para muitos brasileiros.

João, que vendeu três imóveis, vive em harmonia com a nora, com os netos, se sente entrosado. “De noite, meu filho lava a louça e eu enxugo.” Para ele, estar no centro--dia é uma oportunidade de ver gente, fazer cestos de papel na aula de artes, se cuidar e dançar. “Sou baiano, filho de músico de baile”, define-se. Bom de forró, é dis-putado por duas Marias, suas colegas, assim que a mú-sica começa. Uma delas, a Maria de Lourdes da Silva, 80 anos, é uma dama interessante, que se retira para o jardim, enrola e acende um cigarrinho de palha. Jamais tira o lenço do pescoço e a calça, que compõem seu traje, embaixo do vestido, como ela usava na roça. “Aceitar que o velho mantenha seu jeito, sua história, sua perso-nalidade é fundamental”, afirma Maria Lígia Pagenot-to, jornalista e mestra em gerontologia, que escreve so-bre o tema. “Nunca se dirija a ele no diminutivo. Idoso detesta que o chamem de bonitinho, que lhe ofereçam uma cadeirinha, um chazinho”, diz. Também abomina a expressão melhor idade; 90% veem nisso uma forma de tapar o sol com a peneira. Maria Lígia lembra, ainda, que a sociedade precisa deixar de valorizar o folclore, o velho que contraria a ordem natural das coisas, saltan-do de paraquedas e namorando mocinhas. “É uma cari-catura desnecessária.” O mais sensato está em prestar atenção e ouvi-lo se quisermos compreender a velhice e entender para onde todos estamos caminhando.

Reportagem

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1 João José descansa no intervalo das atividades. 2 A decoração com a cara de Cecília. 3 Os armários de objetos pessoais no centro-dia. Col

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