o uso do teatro científico

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Cad. Bras. Ens. Fís., v. 27, n. 2: p. 313-333, ago. 2010. 313 O TEATRO COMO FERRAMENTA DE APRENDIZA- GEM DA FÍSICA E DE PROBLEMATIZAÇÃO DA NATUREZA DA CIÊNCIA +* 1 Marcio Medina Colégio Pedro II – Uned-Niterói Niterói – RJ Colégio Qi Rio de Janeiro – RJ Marco Braga 2 CEFET-RJ 3 Rio de Janeiro – RJ Resumo Neste artigo apresentamos uma experiência didática onde as re- lações entre Física e Arte se apresentam através da História da Ciência. O teatro é o elemento motivador de uma metodologia de ensino voltada para uma aprendizagem interdisciplinar, que co- loca em prática os pressupostos indicados na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9394/96 e nos Parâmetros Curriculares Nacionais PCN+ (2002). Na atividade foram desenvolvidas as habilidades e competências necessárias para a vida, a partir da encenação tea- tral de um texto adaptado da peça “A Vida de Galileu Galilei” de Bertolt Brecht. O texto foi adaptado visando explorar o conteúdo de Física, de Astronomia e áreas afins. Pretende-se, a partir daí, + Theater as Physics learning and problem-solving tool of the nature of Science * Recebido: fevereiro de 2010. Aceito: maio de 2010. 1 Trabalho realizado com apoio de CNPq e FAPERJ. 2 Grupo Teknê. 3 Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática.

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Cad. Bras. Ens. Fs., v. 27, n. 2: p. 313-333, ago. 2010. 313OTEATROCOMOFERRAMENTADEAPRENDIZA-GEMDA FSICA E DE PROBLEMATIZAO DANATUREZADACINCIA+* 1Marcio MedinaColgio Pedro II Uned-NiteriNiteri RJColgio QiRio de Janeiro RJMarco Braga2CEFET-RJ3Rio de Janeiro RJResumoNeste artigo apresentamos uma experincia didtica onde as re-laes entre Fsica e Arte se apresentam atravs da Histria daCincia. O teatro o elemento motivador de uma metodologia deensino voltada para uma aprendizagem interdisciplinar, que co-loca em prtica os pressupostos indicados na Lei de Diretrizes eBases(LDB) 9394/96enosParmetrosCurriculares NacionaisPCN+ (2002). Na atividade foram desenvolvidas as habilidades ecompetncias necessrias para a vida, a partir da encenao tea-tral de um texto adaptado da pea A Vida de Galileu Galilei deBertolt Brecht. O texto foi adaptado visando explorar o contedode Fsica, de Astronomia e reas afins. Pretende-se, a partir da,+Theater as Physics learning and problem-solving tool of the nature of Science* Recebido: fevereiro de 2010.Aceito: maio de 2010.1Trabalho realizado com apoio de CNPq e FAPERJ.2Grupo Tekn.3Programa de Ps-Graduao em Ensino de Cincias e Matemtica.Medina, M. e Braga, M. 314alcanar uma maior integrao entre as disciplinas cientficas edestas com as de cincias humanas e sociais. A pea ocorre comoparte de um trabalho sobre a revoluo cientfica, tcnica, arts-tica, econmica e social ocorrida durante os sculos XVI e XVII.O trabalho foi acompanhado de uma pesquisa sobre a aprendiza-gem e interesses dos alunos em relao Fsica onde se procurouavaliar as vantagens edesvantagensdametodologiaadotada.Procuraremos, aqui, descreverasetapasdotrabalhodesdeasprimeiras discusses travadas em sala at a montagem da pea.Nesse processo, os alunos tiveram uma participao efetiva, des-de a idealizao execuo final do trabalho, incluindo os ensai-os, a pesquisa e a produo de cenrios e figurinos, marcao decenas, layout dos programas da pea, do cartaz, etc. Os resulta-dos alcanados apresentaram-se de acordo com as competnciasgerais, habilidades e o letramento, defendidos pela nova educa-o exigida para os alunos do sculo XXI.Palavras-chave:EnsinodeFsica;Interdisciplinaridade; Hist-ria da Cincia; Teatro Cientfico.AbstractThis article shows a new teaching way to approach Physics andArts through History of Science. This methodology puts theTheater as a gear of the interdisciplinary learning that practicesthe Lei de Diretrizes e Bases (LDB) and the ParmetrosCurricularesNacionaisPCN+(2002)requirements. Theactivitydevelopedskillsandcompetenciesforlife, fromthetheatricalproductions of texts of Galileos Life of Bertolt Brecht. The textwas adapted in order toexplore the contents of Physics andAstronomy and related fields. It is intendedtoachieve greaterintegrationbetweenscientificdisciplinesandhumanandsocialsciences. The play takes place as part of a work on the scientificrevolution, technical, artistic, economic and social developmentsduring the sixteenthandseventeenthcenturies. The work wasaccompanied by research on students' learning and interests inrelation to the Physics which sought to evaluate the advantagesanddisadvantagesof themethodologyadopted. We shall try toCad. Bras. Ens. Fs., v. 27, n. 2: p. 313-333, ago. 2010. 315describe the stages of work since the first discussions in theclassroom until the final act. The results are in accordance withgeneral skills, abilities and literacy, defended by the neweducation required for students of the 21st century.Keywords: Physics Education; Interdisciplinarity; History ofScience; Scientific Theater.I. IntroduoDe acordo com a LDB, a Educao Bsica tem por finalidade desenvol-ver o educando, assegurando-lhe uma formao indispensvel para o exercciodacidadania, fornecendo-lheosmeiosnecessriosparaoseuprogressonosestudos superiores e na vida profissional (art. 22). O trabalho que ser aqui apre-sentadopretendeanalisar umaexperinciaeducacional queprocurouatenderaessas diretrizes. Seu objetivo ir alm do ensino acadmico convencional, mos-trando possibilidades de transformao da escola. Primeiramente num espao dediscusso de ideias, muito mais do que de aprendizagem de verdades inquestion-veis. Depois num espao onde o ensino no seja constitudo de disciplinas estan-ques, limitadas emsimesmo, mas como um local onde o aprender acontea demodo interativo (professor e aluno envolvidos, trocando experincias e saberes) edinmico. Algoquenovejaoprofessor somentecomoprovedor, detentor dosaber, e que no considere o aluno como mero receptor.Pretende-se discutir as possibilidades de utilizao do teatro (to diferentedouniversotcnico-cientfico, emtese) paraalicerar oconhecimentosobreaNatureza da Cincia e mostrar que existem vrias formas entrelaadas de aprendi-zagem, nosomentedaqueles queparticiparamativamentedamontagemdaspeas, mas tambm da plateia. Todos podem aprender mais sobre a construo doconhecimento cientfico, de forma inesquecvel e consistente, saboreando a desco-berta do conhecimento.O ensino de Fsica tem enfatizado a expresso do conhecimento atravs daresoluode problemase da linguagem matemtica. No entanto, para odesenvolvimento das competncias sinalizadas, esses instrumentos seriaminsuficientes e limitados, devendo ser buscadas novas e diferentes formasdeexpressodosaberdaFsica, desdeaescrita, (...), atalinguagemcorporal e artstica. PCN+ (BRASIL, 2002, p. 84)Medina, M. e Braga, M. 316Acredita-se, ento, num trabalho interdisciplinar, baseado na complexi-dade, de forma que os contedos se entrelacem e preparem o aluno de forma sli-da, desenvolvendo habilidades e competncias que o capacitem a se inserir, comsucesso, na realidade.Diversas tentativas tm sido feitas, desde a edio do livro de C. P. Snow(1995), visando reaproximar essas duas culturas, o campo das chamadas cinciashumanas e sociais no qual se insere a arte do campo das chamadas cinciasnaturais e a tecnologia nelas embasada (SARAIVA, 2007). Esforos esto sendofeitos no sentido de humanizar a cincia nos currculos de ensino de cincias emsimpsios, encontros, atividadeseprojetosvinculando cinciaearte(ibidem),visando uma maior aproximao entre esses dois universos e um maior interessepelas questes cientficas por parte do pblico geral.Assim, o desenvolvimento de estratgias educativas que aliem arte e ci-nciapodegerar inovaesparaoensinodecinciasnoambienteformal dasescolas ou nos ambientes de ensino no-formais das mais diversas naturezas.Noentanto, oensinodecinciasumareaemqueseverificaumagrande resistncia a essa mudana. Isso tem repercusses na sala de aula, onde seconstata que a maioria dos alunos encara a priori as disciplinas de Fsica e Qu-mica como bichos de sete cabeas, s acessveis a um nmero muito restrito deestudantes. Avisodecientista vemimpregnada deesteretipos, comumenteveiculadas pelos meios de comunicao (BARRETO et al, 2007).Segundooator CarlosPalma(2006), paraentendermoso todo, no possvel ignorar a cincia, pois ela parte integrante da sociedade, da economia,das nossas aes e da nossa vida. Portanto, a interdisciplinaridade abrange a buscadeumaaproximaoenrgicaecriativaentrecinciasehumanidades. Arteecinciaso frequentemente consideradas reas totalmente opostas. A arte tidacomo entretenimento e vista como uma forma de criatividade baseada em idios-sincrasias pessoais, no tendo necessidade de dar explicaes ou desfazer equvo-cos. A cincia, no entanto, est imersa numa rea de racionalizao pura e met-dica, que explicaobservaes e validateorias combase em fatos. Essa imagemestereotipada provoca uma forte separao entre essas duas atividades. Entretanto,inmeros so os casos que, ao longo da histria, ignoraram e ultrapassaram essaseparao. O prprio Leonardo da Vinci, escultor, pintor, engenheiro e cientista,afirmava que cincia e arte se complementam, constituindo a atividade intelectual.Tanto no Brasil como ao redor do mundo, diversos eventos vm sendo re-alizados com o intuito de fazer arte e cincia interagirem, como exposies, feirase workshops. No teatro j foram levadas cena peas relacionadas com diversasCad. Bras. Ens. Fs., v. 27, n. 2: p. 313-333, ago. 2010. 317temticas que partem de questes cientficas e que so comumente categorizadascomo teatro cientfico.O teatro, sendo um instrumento de comunicao por excelncia, pode terum papel muito importante na formao da opinio pblica e a cincia abrangeumvariadorol deassuntospassveisdeseremrepresentadosdeumamaneirainteressante, divertida e agradvel. As descobertas, as invenes, as aplicaes dacinciano cotidiano, as biografias dos cientistas mais conceituados, so apenasalgunsexemplosdovastouniversodetemaspossveisdeseremdramatizados.Dessaforma, o palco torna-se uma possibilidade de ampliar e cativar os alunosparaquestionamentos, provocaes e reflexes sobre anaturezadacincia, quetocam a humanidade e que esto cada vez mais infiltrados nas preocupaes soci-ais e econmicas (PALMA, 2006).A teatralidade j foi utilizada diversas vezes ao longo da histria comoforma de expresso de contedos tanto cientficos como filosficos. Vide Plato,que escreveu diversos dilogos para expor suas ideias, e Galileu Galilei, que pro-curou seguir o exemplo do filsofo grego e tambm exps algumas de suas ideiasatravs de personagens. Por outro, lado, grandes cientistas que, por terem caracte-rsticas to peculiares e marcantes, foram transformados em personagens de tea-tro, como Einstein (Einstein,1998), Niels Bohr e Heisenberg (Copenhagen, 2001),Richard P. Feynman (E agora Sr. Feynman?, 2004), Kepler e Galileu (Dana doUniverso, 2005), Newton e Leibniz (Calculus, 2003) e Lavoisier (Oxignio, 2006).As cincias apresentam um vasto leque de personalidades suscetveis deserem transformados em personagens no teatro. A maioria das peas que abordama cincia no escrita por cientistas, mas por dramaturgos com manifestos conhe-cimentos em teatro, ao exemplo de Bertolt Brecht (Alemanha) e Osvaldo Mendes(Brasil). Talvez por essa razo, estes geralmente abordam o tema na perspectivado cientista e no somente das ideias cientficas.O teatro cientfico, na maioria das vezes, no tem a preocupao de abor-dar os temas numa vertente pedaggica, procurando muito mais questes huma-nsticas. Entretanto, alguns desses textos tambm transmitem ideias sobre a natu-reza da cincia, que permite uma reflexo do pblico sobre o papel social da cin-cia. O teatro procura faz-lo de forma simples, ldica e agradvel, com o objetivode torn-los mais acessveis, prazerosos, ou, segundo Paul G. Hewitt, delightful(HEWITT, 1997). Cabe aos professores remeter a discusso, posteriormente, paraa sala de aula.Atravsdo teatro, possvel atrairo pblico paraassuntos cientficos,com as constantes dvidas, provocaes e reflexes, cada vez mais presentes naspreocupaesdetodosenquanto indivduos. Assim, o teatro cientfico deveserMedina, M. e Braga, M. 318encarado como uma possibilidade de ampliar e cativar o grande pblico, alm deconstituir uma agradvel ferramenta de ensino.A linguagem teatral pode desempenhar um papel poderoso no processode ensino e de aprendizagem. Para as Diretrizes Curriculares Nacionais do EnsinoMdio (DCNEM), acapacidade de abstrao, acapacidade de pensarmltiplasalternativas para a soluo de um problema, a capacidade de trabalhar em equipe,de disposio para procurar e aceitar crticas, etc, tambm so competncias. Des-sa forma, o teatro permite que os jovens encontrem o seu lugar num projeto, quesesintamcompreendidos ereconhecidos, independentementedoseupercursoescolar. Mas h tambm outra faceta no menos relevante: ensina-os a viver e atrabalhar em conjunto com o seu semelhante, a respeitar os outros, a respeitar osseuscompromissos, acumprir regraseater disciplina(horrio, fidelidadeaotexto). Ajuda-osatomarconscinciade que o seu sucesso importante paraosucesso do projeto e de que este sucesso s possvel comdisciplina etrabalho em equipe(teamwork). Oteatro, porsuaformadefazercoletivo,possibilitaodesenvolvimentopessoal noapenasnocampodaeducaono-formal, mas permite ampliar, entre outras coisas, o senso crtico e o exerccio dacidadania (MONTENEGRO et al., 2005).Deve-se relembrar que teatro e teoria tm a mesma origem etimolgica,as duas palavras possuem o mesmo radical grego thea, que significa um ponto devista. No obstante, a cincia possui uma teatralidade prpria, j que o exercciodaatividade cientficapode envolvergrandes controvrsias, disputas, ambies,argumentao, contra-argumentao. Logo, oselementosnecessriosparaumaboa pea esto a presentes.No se pretende, obviamente, defender que todas as cincias devam serabordadas exclusivamente dessa forma, substituindo os mtodos mais tradicionais.A sala de aula e o palco se complementam e os alunos estaro mais receptivos saulas convencionais.Aspeasutilizadasdeverocontemplar desdeaevoluoconceitual emetodolgicadacinciaquantorelaodaFsicaedaQumica, comoutrasreas do conhecimento e com a sociedade. Logo, uma cincia inserida no processohistrico (ZANETIC, 1989).Claro que temos que respeitar o vis do conhecimento, mas traze-mos a questo dos conflitos humanos, da responsabilidade cientfi-ca, dos valores da cincia, da tica da cincia, pois so estes as-pectos da cincia que nos interessam. A funo da arte mostrarCad. Bras. Ens. Fs., v. 27, n. 2: p. 313-333, ago. 2010. 319que avidamudoucomacincia, evai mudarmais(PALMA,2006).A prtica que se prope, ento, introduzir, como um trabalho coletivoda escola sob a forma de projeto (HERNANDEZ; VENTURA, 1998), a encenaode peas teatrais como A Vida de Galileu de Bertolt Brecht; Oxignio de CarlDjerassi e Roald Hoffmann; Frankenstein de Mary Shelley e o Inimigo do PovodeHenrikIbsen. Taistextospossibilitamaosalunosadiscusso de questesrelativas natureza da cincia, enfocando as relaes entre a cincia e seu contex-to humano e social, que por vezes ficam totalmente esquecidos ou mesmo ausentesdas aulas tradicionais das disciplinas cientficas. Esse caminho permite um apren-dizado dascinciasmaisglobalizado, transversale complexo. A opo porumensinobaseadoemprojetosproporcionaapossibilidadedeumaaprendizagempluralista e permite articulaes diferenciadas de cada aluno envolvido no proces-so. Ao alicerar o processo educativo na elaborao de projetos, o professor podeoptar por umensinocompesquisa, comumaabordagemdediscusso coletivacrtica e reflexiva que oportunize aos alunos a convivncia com a diversidade deopinies, convertendo as atividades metodolgicas em situaes de aprendizagemricas e significativas. Esse procedimento metodolgico propicia o acesso a manei-ras diferenciadas de aprender e, especialmente, de aprender a aprender.O processo de encenao da pea teatral exigiu a confluncia de diversossaberes, alguns que so parte das disciplinas escolares tradicionais e outros queno se constituem de conhecimentos escolares. Por sua vez, o trabalho em tornode um projeto de encenao teatral envolveu uma problematizao do processo deconstruo do conhecimento cientfico junto aprendizagem de diversos conceitosde Fsica, Qumica e Biologia.Ressalvamos que no basta apresentar espetculos teatrais que abordemtemas relacionados s cincias e/ou vida dos cientistas, sem faz-lo de modo aesclarecer o que fazer cincia. Nesse sentido, os debates que se seguem em saladeaula, noscorredores daescola, emcasa, aps aapresentao das peas, porexemplo, so fundamentais paraincentivare aprofundaros questionamentos deideias sobre a natureza da cincia no contexto da Histria das Cincias(MCCOMAS, 2008).A identidade interdisciplinar se d pela metodologia, pela forma de pen-sar as cincias e a evoluo do pensamento cientfico. H uma necessidade de umensino de Fsicae Qumica contextualizado em sua histria, frisando a sua nolinearidade e as diferentes leituras que dela podemos ter. Diferentes aspectos daMedina, M. e Braga, M. 320histriadacinciae de suaaplicabilidade emsalade aula so apresentados naforma de exemplos concretos possveis para um ensino no-formal.Segundo Joo Zanetic (2005), imprescindvel ao ensino de Fsica, almde um nmero mnimo de aulas, da conceituao terica, da experimentao, daHistria da Fsica, da Filosofia da Cincia e de sua ligao com a sociedade e comoutras reas da cultura. O que favorece a construo de uma educao problemati-zadora, crtica, ativa, engajada na luta pela transformao social.Apresentando aos alunos a Histria da Cincia integrada ao contedo daFsicadiferentedaquelequetradicionalmenteoferecidopermiteensinar aosestudantes que o conhecimento no nasceu pronto e acabado, mas foi motivadoporinmerasdiscussese questes que no foraminstantneas, mas ocuparammuito tempo nas aes dos cientistas. Como no perodo histrico que se seguiu aosefeitos sociais e econmicos decorrentes das grandes navegaes, ao contrrio doqueocorreunoperodofeudal, emqueasdiscussessobreaFsicaevoluramlentamente, seu desenvolvimento foi fundamental para a burguesia mercantil queestava se formando. Esse cenrio influiu tambm na forma de trabalho e comuni-cao entre os cientistas dessa gerao, provocando uma mudana significativa naprticacientfica. NapocadeKepler (1571-1630)eGalileu(1564-1642), eraincomum, entre os cientistas, a troca de informaes entre si; com a criao dassociedades cientficas, houve uma revoluo na troca de informaes, nas discus-ses, nos desafios, alterando assim o relacionamento entre os cientistas. As cin-cias naturais, particularmente a Fsica, comearam a se transformar numa verda-deira instituio social, se bem que ainda longe do status que os cientistas iriamatingir a partir do sculo XIX (ZANETIC, 2005).O uso da Histria da Cincia e, em especial, da Cosmologia, abordadocomo possibilidade de definirrumos para a pesquisa bsica e para mudar para-digmas vigentes. E nessa perspectiva foi escolhido o tema da pea para se traba-lhar o assunto de gravitao universal e cosmologia.II. O projeto educacionalA experincia de trabalho com os alunos ocorreu em um colgio da redeparticular, nacidadedoRio deJaneiro RJ. Depoisfoi repetidanumcolgiopblico da rede federal, na cidade de Niteri RJ. A experincia s pode ser rea-lizada nas duas escolas porque em ambas existia uma vontade coletiva dos profes-soresdeconstruir umaboaformao integral do aluno. Almdisso, contou-setambm com a liberdade dada pelos dirigentes das escolas de utilizar novas for-Cad. Bras. Ens. Fs., v. 27, n. 2: p. 313-333, ago. 2010. 321mas de ensinar que auxiliassem no aprendizado. Sem essas duas vertentes talvezfosse impossvel desenvolver o projeto.A experinciainicialfoidesenvolvidanaescolaparticularao longo doano de 2007. A primeirasrie do Ensino Mdio foi escolhida para principiar oprocesso porque, alm de seus alunos estarem em uma faixa etria mais apropria-da para assimilar o texto, eles tambm estavam vivenciando um processo de sepa-rao do conhecimento cientfico, pois nessa srie passa-se a estudar Fsica, Qu-mica e Biologia como disciplinas independentes. Entretanto foi permitida a parti-cipao de alguns alunos dasegunda srie do Ensino Mdio. A participao detodos no projeto foi voluntria.A primeira etapa do projeto constitui-se na discusso da proposta com osdemais professores. Todos tinham clareza da importncia da liberdade de duvidar,que essencial para o desenvolvimento das cincias. Esse fato levou-os a pensarnuma pea de teatro, que retratasse a luta contra o dogmatismo. Logo, veio men-te de todos a pea A Vida de Galileu de Bertolt Brecht. Sendo o texto bastanteextenso e com muitos personagens, o professor de Fsica adaptou a pea utilizandouma linguagem simples.Na apresentao do projeto aos alunos, alm da comunicao de que setratavadeumaencenao teatral, foi explicitado quehaveriaanecessidadedeuma investigao aprofundada sobre questes cientficas, filosficas, histricas eartsticas da poca. Essa investigao culminaria com uma apresentao dos resul-tados para uma banca formada por professores de diversas reas. Para ampliar aspossibilidades de explorao de questes sobre a natureza da cincia, foi propostaa leitura de um pequeno livro paradidtico (GUERRA et al., 1997) sobre o nasci-mento da cincia moderna. O livro seria apenas uma porta de entrada para a te-mtica.O projeto acabou despertando o interesse para o estudo da cincia de umgrupo heterogneo de alunos, atraindo mesmo aqueles que, atravs da abordagemtradicional, sentiam-se afastados dela (ZANETIC, 2005).A primeira etapa do trabalho, aps a leitura do livro, consistiu-se na rea-lizao, pelos alunos envolvidos no projeto, de uma pesquisa e um seminrio sobrea revoluo cultural do sculo XVII (KUHN, 1978; KOYR, 1979), subdivididaem quatro revolues especficas: cientfica, artstica, poltico-religiosa e filosfi-ca.Medina, M. e Braga, M. 322Revoluo Cientfica Revoluo ArtsticaTeve como cone principalafiguradeGalileu Galilei, e a partir dele cercou-seo tema proposto. Configuraramesseelenco: Aristteles, Ptolomeu, Galeno,Johannes Kepler, Tycho Brahe, NicolauCoprnico, Isaac Newton, etc. Essegrupoeraorientadopeloprofessor deFsica e Coordenador do projeto.Teve como cone principal a figura deLeonardo da Vinci, e a partir dele cer-cou-seo temaproposto. Configuraramoelenco: Michelangelo, Rafael, Boti-celli, Caravaggio, Vermeer, Rem-brandt, o Renascimento, o ManeirismoeoBarroco. AprofessoradeHistriada Arte orientou esse grupo.Revoluo Poltico-Religiosa Revoluo FilosficaPrevalecianoconhecimentodaRefor-ma e Contrarreforma Protestante eSanto-Ofcio. Incluam-se nessa pesqui-sa:Bulas papais, Dinastia Mdici, Ex-panso Martima, Descobrimento dasAmricas, Rotas para as ndias e Brasil,etc. Aprofessora de Histria Geralorientou esse grupo.Teve como cone principal a quebra dopensamento Aristotlico e a partir delecercou-se o tema proposto. Incluam-senessa pesquisa: Iluminismo, Aristte-les, Bacon, Descartes, Galileu, Giorda-no Bruno, Maquiavel, etc. O professorde Filosofia orientou esse grupo.Aps essaetapa, procurou-se realizaralguns testes, onde uma parte dogrupo foidestacada para trabalhar o texto da pea como atores. O restante tevetarefas fundamentais na produo do espetculo, pois seria necessrio estabeleceraindumentria, os cenrios, e o suporte de luze som. Apesarde, nesse ponto,existir a diviso dos grupos, ao longo de todo o processo o conjunto dos alunosparticipou das discusses em sua totalidade.Durante dois meses foram feitas reunies semanais extraclasse com pro-fessores de Histria da Arte, Histria Geral, Filosofia e Fsica para melhor orien-tao dos alunos, onde eram indicadas bibliografias complementares e feitas pre-lees sobre as dvidas levantadas nos encontros.Ao longo da ltima semana, os professores responsveis realizaram umdiagnstico dos slides-show elaborados pelos alunos que seriam apresentados aofinal daquela semana, orientando-os quanto aos assuntos abordados e no aborda-dos, suas relevncias, etc, promovendo uma pr-avaliao do trabalho.Cad. Bras. Ens. Fs., v. 27, n. 2: p. 313-333, ago. 2010. 323Osgruposapresentaramsuaspesquisasparaosprofessoreseparaosdemaiscolegasdeclasse. Asapresentaescontaramcomumdata-show e umcomputador, para exibio dos slides de suas apresentaes. Cada grupo teve umtempo mnimo de 10 minutos e mximo de 20 minutos para realizar suas apresen-taes. Ao final, os professores fizeram suas observaes para o grupo e para aturma, a fim de elucidar algumas ideias brevemente abordadas ou que poderiamter sido aprofundadas.O resultado dessa etapa consistiu na prpria observao dos alunos, quepuderamperceber queos assuntos-temaserelacionavamentresi, tornando-seimpossvel abord-los individualmente, sem citar os outros temas.III. Ensaios: o ensino no-formal dentro da escolaNo primeiro encontro foi decidida a diviso dos alunos participantes doprojeto em dois grupos. O grupo 1 seria formado por aqueles que fariam parte doelenco. Ogrupo 2seriaformado pelosalunosresponsveispelaproduo, quedepois foram divididos em cenografia (Grupo 2A) e figurinos (Grupo 2B).Antes daformao do grupo 1 foram realizados testes de potencial deinterpretao. Nessaetapa, os alunos foram divididos em pares. Durante trintaminutos eles estudaram os primeiros dilogos do texto entre Andr e Galileu. Semqualquer recurso de direo ou cenrio, ficaria por conta deles a interpretao e aimprovisao, naquele teste.Pode-se perceber, nesse momento, que existia naquele grupo uma grandecriatividadeevriasideiasforamsurgindo duranteaquelestrintaminutos. Porsorteio, a ordem das apresentaes foi escolhida. Foi permitido colar, se neces-srio, ou at mesmo improvisar, desde que no sassem do tema central.A partir desse primeiro encontro, j percebemos quais os personagens se-riam necessrios colocar na adaptao e a exigncia que poderia ser feita ao Gali-leu, que possui falas imensas e est em cena o tempo todo.Nos encontros seguintes, os grupos se encontraram com o professor coor-denador doprojetoemhorriosdistintos. OGrupo 2tevequeapresentarumapesquisa sobre vesturio (cores predominantes, estilo, etc.), arquitetura e decora-odapoca. Nesseprocesso, elesrealizaramumaleituraimagticadevdeossobre a poca de Galileu, como O Imprio dos Mdicis (History Channel) e OsPatronosdoRenascimento(PBS). Almdesses, elestambmassistiramaumfilme sobre a montagem de Galileos Life de Bertolt Brecht dirigido por JosephLosey, doTheAmericanFilmTheatre(1975). Essesvdeosestavamemseusidiomas originais (ingls ou espanhol) e contavam com legendas nos respectivosMedina, M. e Braga, M. 324idiomas(comclosedcaption). Comisso, asdisciplinasdelnguas estrangeirasacabaram se integrando ao projeto.O grupo 1 fez a leitura paragrafada do texto, a fim de conhecer a histriaque estariam contando, quais as intrigas contidas no texto, quais as descobertas,quais ideias eram sustentadas at ento, o que tais descobertas mudariam naquelecontextohistrico, etc. Quandonoerapossvel terminar aleituradascenas,ficava como dever de casa a releitura e pesquisa do texto. A importncia de ler ereler o texto em teatro assumir a verdade do que o texto quer passar, a interpre-tao se torna mais natural quando as personagens assumem essa verdade.Na escolha do repertrio, os alunos levaram Bach, Supp, Albinoni, e di-versas msicas barrocas, clssicos mais modernos, msicas contemporneas. Pro-duziu-se um repertrio bem distinto de qualquer montagem j feita. Na hora dosaplausos foi escolhida De volta ao Planeta dos Macacos da banda de rock brasi-leiraJotaQuest, que se destacavapelasuaprimeiraestrofe que resumiabem aideia insurgente na pea.L fora/ Todos os coraes procuram a sua rbita/ Novas propostas promundo/ Novos encaixes pras coisas/ Que ainda no esto no lugar/ Atentos diversidades ... De Volta ao Planeta dos Macacos, Jota Quest.Logo nos primeiros encontros foi travada uma discusso entre os grupos:algunsalunostomaram, por si s, aliderana, causando algumasdiscussesetenses. Unsapresentavamcaractersticasdemaiorexecuo emdetrimento dareflexo, outros, porsuavez, demonstravam maior esprito crtico em relao aessefazer. Assumir opapel deprodutoresfezcomqueaquelegrupo pensassesobre a situao em que se encontravam. Eles tambm estavam atuando.No sexto encontro os alunos-atores j possuam seus textos decorados. Oprofessor de teatro do colgio organizou questes relativas aos figurinos e ceno-grafia, fez algumas alteraes textuais e iniciou os ensaios.Fotos 01: Ensaios no ColgioCad. Bras. Ens. Fs., v. 27, n. 2: p. 313-333, ago. 2010. 325A pea foi ensaiada durante uma semana at a apresentao, incluindo osbado e o domingo. Foi muito interessante a evoluo desses passos porque con-sistiuemumdesafio tanto parao diretor, quanto paraos alunos:realizarumapea em apenas uma semana de ensaios.A pea foi interpretada pelos alunos em dois teatros da Cidade do Rio deJaneiro: duas apresentaes no Teatro Municipal Caf Pequeno, no Leblon, e umano Teatro do Espao Cultural Solar de Botafogo, em Botafogo. O pblico alcana-do superou a marca de 360 pessoas.Fotos 02: Fotos da Apresentao nos Teatros.N.A.: Asfotosdosalunosforamautorizadasparapublicaopelospaise/ouresponsveis.IV. Os contedos no ensinados que foram aprendidosOs mtodos de trabalho desenvolvidos nas escolas acabaram subvertendooprocessodeensino-aprendizagem. Aquestodaavaliaopor provas, esuantima ligao com a promoo de srie, acabaram retirando o objetivo do proces-so educacionaldaaprendizagemparao fazerprovas. Os alunos no estudampara aprender, eles estudam para fazer provas. A falta de objetivos concretos daaprendizagem acabou desviando o foco para o ato de fazer uma prova. Esse fatodeformou todo o processo. A prova deixou de ser um momento de avaliao parase transformar no objetivo central de todo o processo. Ao ter a prova como objeti-vo, toda a aprendizagem fica contaminada por ela. Uma pergunta to comum nasMedina, M. e Braga, M. 326salas de aula como qual a matria que cai? exprime essa deformao. O alunos precisa saber aquela delimitao dada pelo professor e, se possvel, at o mo-mento da prova. Aps aquele momento no mais necessrio.O trabalho dos grupos tornou a aprendizagem mais significativa porqueexistia um objetivo claro a ser atingido, que era a concretizao do projeto. Nele, oaprendizado no estava vinculado a uma nota, mas ao prazer de realizar algo bemfeito. A necessidade dessa concretizao produziu uma aprendizagem complexa,ondediversasdisciplinasseentrelaaram. Portanto, ficou difcilavaliaronde aaprendizagem da Fsica comeava e onde terminava em todo esse contexto.O fato de ser uma pea sobre Galileu colocou a Histria e Filosofia da Ci-ncianocentrodos interesses. ComquemGalileuestavadialogandonaquelemomento? Com Aristteles ou com a Igreja? Compreender que a Teologia catlicano sculo XVIIestavaimpregnadado aristotelismo foi umponto fundamental.Mas existiam nuances que nunca foram discutidas pelos livros didticos que tam-bm acabaram sendo percebidas pelos alunos. O fato de Aristteles ter construdosua teoria astronmica a partir da condio ptolomaica de uma Terra esttica nocentro do Universo (mas no no centro das rbitas) acarretava tambm a elabora-o de uma Fsica onde todos os graves caam em direo ao centro do universo,dependendodesuaconstituioapartir dosquatroelementos(BRAGAet al.,2004). Ao tirar a Terra do centro do Universo, Coprnico simplificou parcialmen-te a mecnica celeste, mas no deu respostas sobre o porqu dos corpos continua-rem caindo em direo Terra, que no seria mais o centro do Universo. Galileu,apesar de defender o sistema copernicano, tambm no conseguiu dar respostas aesse problema. Essa era uma das questes que impediam a aceitao do coperni-canismonos meios intelectuais italianos. SomenteNewton, comaGravitaoUniversal, foi capaz de dar uma resposta satisfatria a esse problema.Discutir essas questes com alunos forneceu a eles uma viso menos sim-plificadade todaessatrama. Com isso, eles puderam perceber questes sobre anatureza da cincia, que at ento no haviam pensado.No campo epistemolgico, a questo das proposies de Galileu sobre ouso da experimentao e da linguagem matemtica tambm veio tona. Os alunospuderam perceber que existiu uma ruptura fundamental na forma de lidar com anatureza. Um dos livros paradidticos lidos (GUERRA et al., 1997) apontava parao fato de que, j na Idade Mdia, existiam indcios da necessidade de experinciascomo forma de inqurito natureza e da expresso quantitativa das informaescoletadas. Galileu fez uma sntese de diversas questes que j estavam em discus-so j h alguns anos.Cad. Bras. Ens. Fs., v. 27, n. 2: p. 313-333, ago. 2010. 327Aaprendizagemdetudo isso se deu numprocesso bastante complexo,onde se mesclaram leituras de livros, conversas com professores, consultas in-ternet, etc. As discusses do grupo acabaram fechando o processo. Compartilhou-se o conhecimento.V. Uma pequena investigaoPara avaliar a aprendizagem dos alunos ao longo do projeto, foi realizadauma pesquisa qualitativa, que poderia ser dividida em dois momentos distintos. Oprimeiro foiconstitudo porumainvestigao de base etnogrfica. Ao longo detodo o processo, o professor procurou anotar diversas informaes sobre a presen-a nas reunies, comportamento durante as atividades, postura frente aos conflitossurgidos no desenvolvimento do projeto, fontes de consulta e formas de resoluodos problemas encontrados. O segundo, realizado aps o trmino da pea, consti-tui-se de um focus group, uma entrevista aberta onde os alunos puderam avaliarsua participao no projeto, sua aprendizagem e discutir sobre o trabalho de todos.Essa avaliao foi gravada em vdeo para posterior anlise.Em princpio, o professor procurou identificar os interesses de estudo dosalunos em termos de uma diviso entre reas de estudo:Cientfico-Biomdica 12,7 %Cientfico-Tecnolgica 16,2%Econmicas 9,1%Humanas e Sociais 62%Verifica-se que o grupo participante do projeto no era constitudo de a-lunos interessados em Fsica. Esse fato pode ser explicado pelo objetivo do projetoser a encenao de uma pea teatral, ainda que a temtica fosse ligada cincia.No focus grup foramlevantadas algumas ideias centrais recorrentes aolongo da fala dos alunos. Vamos enumer-las a seguir:Medina, M. e Braga, M. 328Os alunos voltados para as reas tecnolgicas (6) responderam que as i-deiasdeGalileuse relacionamcomtudo no mundo, jos demais se dividiramentre a descoberta do Sistema Solar e o desenvolvimento da Cincia como a maiorcontribuio do cientista.Unanimemente, osalunosapontaramLeonardo DaVincicomo o maiscompleto cientista do mundo, pois dominava as Artes, a Cincia, a Matemtica, aBiologia, etc. De fato, ele demonstrava maestria tanto como cientista quanto comoengenheiro e inventor, uma vez que utilizava, frequentemente, a tecnologia na suaobra.Todos concordaram que no percebiam que as reas de conhecimento es-tavam to relacionadas antes do desenvolvimento do projeto, reconhecendo que aviso do mundo que eles tinham se modificou durante e aps a execuo da pea.O grupo da srie mais adiantada revelou que, ao aprender Histria Geral,pdeperceberquemuitascoisasestavammais claras quanto s transformaesocorridas naquele perodo.O grupo reconheceu que, para eles, a ideia do sistema no ser heliocn-trico eramuito difcil deserentendida, pois eles s haviamaprendido daquelaforma. Apesar de que, para dois deles, a observao diria do cu provocava nelesa mesma sensao que motivou Aristteles.Apenas um aluno reconheceu que, na cena onde Galileu e o Papa conver-savam, havia ocorrido um exemplo de relatividade, os demais no perceberam doque se tratava.Na pergunta formulada no final da entrevista sobre a avaliao do projetocomoumtodo, pode-severificar quetodosconcordaramqueaprenderapartirIdeiasN0dealunosa) Sabiam desde o incio que Galileu era fsico ou cientista. 27b) Sabiam que ele havia inventado a luneta. 19c) Disseram que ele havia estudado a queda dos corpos. 08d) Reconheceramque ele foi um revolucionrio, que quebrou comuma Astronomia de dois mil anos (como diz a pea).22e) Indicaram-nocomooprimeirocientistaaenunciar asleisdaFsica.27f) Disseram que achavam Fsica coisa de gente maluca, mas reco-nheciam que Galileu havia modificado a histria, a economia e/ou acincia.20Cad. Bras. Ens. Fs., v. 27, n. 2: p. 313-333, ago. 2010. 329dessa experincia era mais interessante e divertido. Todos adoraram a experinciateatral e amudanadaatmosferadaaula, permitindo umaparticipao maisefetiva e afetiva com os professores, quebrando a atmosfera da aula convencional.Reconheceram que um dos pontos-chave do trabalho foi a liberdade de interagircom o assunto de uma maneira no-formal, mais aberta s dvidas e aos questio-namentos. Apontaram que, alm de terem aprendido a atuar, o melhor aprendi-zado foi o de trabalhar em equipe, onde o sucesso do trabalho depende, no s departe do grupo, mas, de todos.Durante aentrevistafoiperguntado qualo maioraprendizado deles aofazeremapea. Os alunos destacaram que adquiriram tolerncia de suportar asdificuldades dos companheirosduranteosensaios, aprenderamasuperar suasdificuldades, principalmente de falarempblico, assumir a responsabilidade deum projeto e ter dedicao e comprometimento, que so valores no mensurveis eque transcendem a sala de aula e a escola.A entrevista revelou que os alunos que realizaram a pea estavam inte-ressados, na sua maioria, em repetir a experincia, referindo que o fato de teremsido atores de uma pea cientfica foi um aspecto motivador para a aprendizagemdas Cincias. Eles manifestaram, tambm, interesse pela existncia de peas queabordassem essa temtica, em outras matrias. Por fim, importante salientar queosalunos, nasuamaioria, responderamcorretamentes questes que abordamfatos cientficos, o que sugere que os contedos transmitidos foram assimilados.VI. ConclusoPercebemos claramente pelas respostas que o desenvolvimento do traba-lho proposto atendeu positivamente s competncias I, II e IV, s habilidades 1, 4,5, 18, 19 e 21 propostas pelo INEP/ENEM e aos objetivos 2 e 3 de letramentoexigidos pelo OCDE/PISA.A produo de um saber est intimamente ligada ao reconhecimento daexistncia de um processo evolutivo que caracteriza a ideia de transposio. Dian-te disso, pode-se destacar a diferena sutil entre o saber e o conhecimento que, naprtica, aparece pouco realada. Para o meio cientfico, o saber , na maioria dasvezes, caracterizado porserrelativamentedescontextualizado, despersonificado,isto, maisassociadoaumcontextoacadmicoepropedutico. Conceitoqueagora vem sendo derrubado, j que a cincia no pode estar desvinculada de ou-tros contextos.O mundo repleto de incertezas, contradies, paradoxos, conflitos e desa-fios impele-nos ao reconhecimento danecessidade de umaviso complexa, queMedina, M. e Braga, M. 330significarenunciar aoposicionamentoestanqueereducionistadeconviver nouniverso.O saber cientfico deve contribuir tambm para o desenvolvimento crticodo aluno, dando prioridade aos valores ticos da educao. Sendo assim, a finali-dade educacional maior desse saber cientfico deve estar ligada s questes essen-ciais dos problemas humanos. Faz-se necessrio viabilizar essa reforma didticaquegarantiraelaborao de umametodologiapedaggicainterdisciplinar, vi-sando a uma pedagogia transdisciplinar.Dentro dessa dinmica, necessrio criar condies que, quase que im-plicitamente, auxiliem e determinem a relao entre quem ensina e quem aprende,de modo que cada uma das partes assuma o seu papel dentro desse contexto. Cabeao professor apresentar as propostas, as crises, os paradigmas, e fazer com que oaluno constate, analise, discuta, promova debates, critique, concorde, isto , assu-ma a responsabilidade de seu aprendizado.A aprendizagem interdisciplinar um processo contnuo, requer uma a-nlisecuidadosadesseaprender emsuasetapas, evolueseavanos; requer,tambm, um redimensionamento dos conceitos que aliceram a possibilidade dabusca e da compreenso de novas ideias e valores.Entende-se que o verdadeiro caminho para a construo de uma aprendi-zagemsignificativae slidaestrelacionado como aprenderaaprender, ex-pressomuitodifundidaatualmentequeconsolidaasconquistasefavoreceascondies fundamentais do ensino comprometido com a concepo de aprendiza-gemhumanacomoumprocesso deconstruo, dinmico, flexvel, e, porisso,inesgotvel.A propostados projetos foiao encontro das diretrizes daflexibilizaocurricular medida que prev a realizao de atividades acadmicas no restritass disciplinas, desenvolvendo uma perspectiva interdisciplinar, integrando ensinoe pesquisa.Atravsdequesteseentrevistas, gravadas emvdeo, pudemos avaliarque os alunos compreenderam os conceitos trabalhados, assim como passaram aentender alguns aspectos da produo cientfica. Como consequncia, desenvolve-ram-se certas habilidades, tais como: oralidade, leitura e interpretao, desinibi-o, tolerncia, trabalho em equipe...Atendeu-se tambm s exigncias dos rgos responsveis em avaliar na-cionalmente (INEP/ENEM e SAEB) e internacionalmente (OCDE/PISA) a educa-o no Brasil quanto aos objetivos: habilidades e letramento, requeridos, respecti-vamente, por eles.Cad. Bras. Ens. Fs., v. 27, n. 2: p. 313-333, ago. 2010. 331A relao entre Histria, Filosofia da Cincia e Teatro fez-nos pensar a-cerca de diferentes problemas que inquietam a essncia humana: a tica, a honra,o carter, o valor, o uso de instrumentos cientficos, as contradies e os obstcu-losdo desenvolvimento cientfico. Ao mesmo tempo, o trabalho comos alunosprocurou delinear ligaes entre cincia, vida social e poltica, enfatizando a con-trovrsia das mudanas de paradigmas. Justifica-se, assim, o uso do recurso cnicocomo sendo capaz de colocar a temtica da cincia em discusso.Acreditamos que atingimos o objetivo principal: o incentivo inovaonas prticas educativas, a importncia da criatividade e da ousadia no ensino daFsica, como forma de resgatar o interesse e a credibilidade do aluno que j no vna sala de aula nenhuma correspondncia com o mundo de que faz parte.RefernciasBARRETO, M. B. P. M.; PORTO, P. A.; FERNANDEZ, C. Anlise das concep-es dos alunos do 1o ano do Ensino Mdio sobre cincia e cientistas a partir dequestes levantadas na pea Oxignio. In: REUNIO ANUAL DA SOCIEDADEBRASILEIRA DE QUMICA, 30, 2007, guas de Lindia, SP. Atas... Disponvelem: . Acesso em: 15 jan.2010.BRAGA, M.; GUERRA, A.; REIS, J. C. Breve histria da cincia moderna: dasmquinasdo mundo ao universo mquina. Rio de Janeiro:Jorge ZaharEditor,2004. v. 2.BRASIL Parmetros Curriculares Nacionais (Ensino Mdio):Parte III Cin-cias da Natureza, Matemtica e suas Tecnologias. 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