o trabalho com fábulas: um processo com implicação autoral como os sujeitos-alunos se...
TRANSCRIPT
O trabalho com fábulas: um processo com implicação autoral
Rita de Cássia Constantini TEIXEIRA1
Resumo
Este artigo tem por finalidade apresentar os resultados de uma pesquisa realizada com
alunos do 6º ano do Ensino Fundamental, ciclo II, a qual buscou analisar as implicações
sobre o processo de assunção da autoria nas atividades pedagógicas, tendo como gênero
discursivo a Fábula. Posicionamento este de responsabilidade do dizer, sabendo que as
leituras das Fábulas ainda são vistas com sentidos únicos e fechados cerceando os
espaços discursivos dos sujeitos-alunos. Sendo assim, a pesquisa, que busca olhar para o
processo de escrita, pauta-se na fundamentação teórica da Análise do Discurso
Pecheuxtiana e, com base nas análises, podemos sinalizar como os enunciados evocam
formações discursivas e imaginárias que revelam a tessitura dos sentidos produzidos nas
produções textuais.
Palavras-chave: Autoria, Escrita, Gênero Discursivo- Fábula.
Abstract
This article aims to present the results of a survey of students in the 6th grade of
elementary school, cycle II, which sought to examine the implications of the process of
assumption of authorship in educational activities, with the discursive genre, fable.
Positioning this responsibility of saying, knowing that the readings of the Fables are
still seen with unique and closed senses abridging the discursive spaces of the subjects
students. Thus, the research that seeks to look at the writing process, and based on the
theoretical basis of the analysis of Pecheuxtiana Speech and based on the analysis, we
can flag how the statements evoke discursive and imaginary formations that reveal the
fabric of meanings produced in textual productions.
Keywords: Authoring, Writing, Gender discursive Fable
1 Pós-graduada no Programa de Pós- Graduação em Educação, nível Mestrado, pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP. Foi bolsista Capes, sob orientação da Profª Drª
Soraya Maria Romano Pacífico. E-mail: [email protected]
Sabemos que, ao produzir um texto, o sujeito deixa marcas de estilo e o estilo
garante a presença da subjetividade, que vai renovando os gêneros discursivos e
reconstituindo o estilo de cada um deles. Essa condição de produção somente se garante
pelas práticas de leitura e de escrita que proporcionam ao sujeito-aluno a construção de
determinado gênero discursivo, cuja prática de escrita poderá contribuir para a
constituição do autor.
Observamos, com base nas leituras de Mikail Bakhtin (2011) em Estética da
Criação Verbal, que a forma padronizada reflete menor subjetividade na produção dos
gêneros discursivos, e que a subjetividade marcaria um estilo particular quando o sujeito
constrói com a escrita, podendo, mais facilmente, assumir-se como autor do próprio
texto, e encontrando-se na produção textual um sentimento de pertencimento (Coracini,
1999).
Os gêneros do discurso trazem uma composição diversificada e multiforme,
sendo considerada uma atividade humana que cresce e se diferencia à medida que se
desenvolve em determinado campo, como nos aponta Bakhtin (2011).
Sob o mesmo ponto de vista, dentro do universo oral e escrito, temos uma
diversidade de gêneros que também vão surgindo conforme a necessidade de evolução
da língua e, por conseguinte, de seus falantes, por isso afirmamos, que não há um plano
único para os gêneros discursivos. Apesar desse conhecimento, as mais variadas
instituições de ensino procuram reduzir o trabalho com as práticas de leitura e escrita a
produções extremamente conteudistas, que visam apenas à estrutura dos textos, de
modo a apagar qualquer manifestação polissêmica, tanto no texto oral quanto no escrito
dos sujeitos-alunos.
É do conhecimento de todos os profissionais da área da educação que os livros
didáticos trazem um rol de gêneros discursivos, dentre eles a fábula. As fábulas são
narrativas curtas, lidas para os alunos, desde os anos iniciais de escolarização. Muitas
vezes, os textos literários aparecem no livro didático apenas como um recurso para
trabalhar a gramática, apagando-se o que é próprio do literário (Bragatto Filho, 1995).
Nesse caso, os sujeitos-alunos ficam formatados e impossibilitados de se
movimentarem e formar uma consciência crítica e, por isso, ficam presos aos sentidos
prontos que a escola lhes oferece, legitimando ainda mais o discurso dominante.
Ler e reler as fábulas de modo a permitir que os alunos sejam interpelados por
outras formações discursivas, as quais podem gerar outras interpretações, são condições
fundamentais para as práticas de leitura e escrita, dentro da escola. Contudo, no período
em que realizamos nossa coleta de dados, pudemos notar a escassa leitura desse gênero
discursivo nas salas de aula. Geralmente, as fábulas são lidas durante os primeiros anos
do Ensino Fundamental I, mas se perdem com o passar dos anos. Assim, quando esse
gênero foi trabalho em sala de aula, especificamente na sala do 6º ano, para a realização
da pesquisa, o discurso dos alunos resumiu-se em: “fábulas são histórias para crianças”.
A ideia equivocada de linguagem como sendo transparente que a escola ainda
trabalha, sobretudo por conta do sistema educacional, que cobra dos professores e os
coloca em condições controladoras de trabalho, faz com que as atividades pedagógicas
percorram um caminho único, e com as fábulas não seria diferente, como se os textos
tivessem um único desfecho e uma única moral, que regula e engessa o processo de
letramento, relacionando o ensino de língua e de literatura ao paradigma estruturalista,
em detrimento das posições discursivas que os sujeitos-alunos podem ocupar para ler e
escrever; consequentemente, os mesmos não podem ser autores do próprio discurso, ou
tampouco ocupar uma posição discursivo-ideológica diferente da permitida pela
instituição escolar.
Entretanto, apesar de essa ser a formação discursiva dominante, no contexto
escolar, não podemos desconsiderar que outras vozes que ecoam para além dos muros
escolares também produzem sentidos e, por isso, podem interferir nas condições de
produção do discurso dos sujeitos-alunos. Geralmente, a escola não reconhece as outras
agências de letramento, pois a ela não lhes é permitido ou até mesmo garantido que tal
olhar se modifique por conta do advento, fortemente, marcado pelo livro didático ou por
outros materiais de uso contínuo que o sistema educacional delega como principal
objeto de trabalho, ficando, assim, alheia aos conhecimentos que os alunos trazem,
adquiridos em outros espaços.
No que diz respeito ao trabalho com as fábulas, o engajamento dos alunos com
os temas polêmicos poderia oportunizar-lhes a escrever e dar opiniões que seriam
construídas por meio das próprias relações sociais, vivenciadas, quando são autorizados
a participar de práticas de leituras, de escritas ou de produção orais conduzidas para o
deslocamento de novas produções de sentido, não apagando os sentidos construídos
sócio-historicamente. E, para pensarmos sobre o silenciamento e apagamento dos
sentidos, Orlandi (2007) em “Papel da Memória” considera que:
Acontece que esses sentidos-excluídos, silenciados- não puderam e
não podem significar, de tal modo há toda uma nossa história que não
corresponde a um dizer possível. Não foram trabalhados socialmente,
de modo a que pudéssemos nos identificar em nossas posições.
(ORLANDI, 2007, p.66)
Se há sentidos que são excluídos e silenciados, podemos dizer que a leitura e a
explanação das fábulas lidas durante a coleta de dados nos levaram a pensar, mais uma
vez, no sentido único que vigorou sustentado na ideologia dominante. Por isso,
pensamos: As fábulas têm apenas o fundamento didático? Mas, o que é ser didático,
afinal? As fábulas constituem-se como gênero discursivo muito interessante; logo, elas
não poderiam servir para momentos e práticas de leitura reflexiva, de construção da
consciência crítica? Enfim, questões como essas nos permitem percorrer um espaço
interpretativo muito mais amplo, que não reduz a interpretação das fábulas a um sentido
único e fechado, sequer a uma moral. Nessa perspectiva, consideram Romão e Pacífico
(2006), em concordância com a Análise do Discurso que:
[...] que o texto não é um quebra-cabeça, que só pode ser montado de
uma única maneira, senão as peças não se encaixam; ao contrário, o
sentido do texto não está pronto, mas, sim, à espera de um leitor que
percorra o texto, a história do texto, a sua própria história de leitura,
o seu arquivo, para que haja uma cooperação entre leitor e autor na
produção do sentido, um enriquecimento cultural, individual, uma
ampliação do horizonte do leitor. (ROMÃO; PACÍFICO, 2006,
p.11)
Tomando como corpo nesse movimento, a agregação, o deslocamento e o
desprendimento de sentidos acontecem e vão atribuindo uma nova roupagem para os
sentidos produzidos pelos alunos em suas produções. E é nesse processo que o analista
do discurso deve se atentar em olhar e em acompanhar o movimento pendular dos dados
que serão analisados, deixando o discurso já instituído ter a oportunidade de produzir
novos significados e, consequentemente, ressignificar-se.
Neste artigo, de fato, daremos atenção especial ao trabalho realizado na sala
onde coletamos os dados, com a finalidade de apresentar os resultados da pesquisa
realizada com a coleta de produções escrita, do gênero discursivo fábula, intitulada
como “O Trabalho com Fábulas: um processo com implicação autoral”. O trabalho
investigou como os sujeitos-alunos se identificaram com a produção desse gênero
discursivo para assumirem a posição discursiva de autor, (Orlandi, 1996), alcançando a
assunção da autoria, momento em que o sujeito-aluno se responsabiliza pelo seu próprio
dizer.
A proposta didática
A coleta de dados teve início no mês de abril do ano de 2014 e, antes de
iniciarmos a pesquisa, pudemos repensar as mudanças ocorridas nas sociedades e em
como, com o decorrer do tempo, as relações sociais se transformam, assumem outro
corpo, outra forma, mas as fábulas perduram, pois elas permitem uma interpretação que
vai além de uma conversa entre animais ou objetos inanimados, já que os temas
explorados nesse gênero discursivo parecem sempre muito atuais. A fábula pode
permitir reflexões acerca dos conflitos sociais para que, assim, possamos nos posicionar
em relação aos temas.
Durante a aplicação do trabalho, a explicação sobre as características do gênero
fábula, aos alunos do 6º ano, teve início com uma pergunta geradora que a professora
lançou à turma - “O que é fábula?” – , seguida da resposta: “Fábula é uma composição
literária em que os personagens são geralmente animais, forças da natureza ou objetos,
que apresentam características humanas, tais como a fala, os costumes, etc., estas
histórias são geralmente para crianças”.
Logo após o conceito, foi realizada a leitura do seguinte texto:
A fábula é uma narrativa em prosa ou poema épico breve de caráter
moralizante, protagonizado por animais, plantas ou até objetos
inanimados. Contém geralmente uma parte narrativa e uma breve
conclusão moralizadora onde os animais se tornam exemplos para ser
humano, sugerindo uma verdade ou reflexão de ordem moral. A
fábula teve a sua origem no Oriente, onde existe uma vasta tradição,
passando depois para a Grécia, onde foi cultivada por Hesíodo,
Arquíloco e, sobretudo Esopo. Neste período o gênero ainda pertencia
à tradição oral. Foram os romanos, entre os quais sobressai Fedro, que
inseriram a Fábula na Literatura Escrita.
Durante a explicação, os sujeitos-alunos foram sendo conduzidos aos sentidos já
legitimados pelas práticas didáticas convencionais sobre a interpretação das fábulas.
Essa prática pedagógica deve ser considerada em nosso processo de análise dos dados,
pois ela tem implicações na relação que os alunos podem, ou não, construir com a
interpretação e, consequentemente, com a produção textual. Se o aluno não interpreta de
forma crítica as condições de produção de leitura, consequentemente a escrita não será
autorizada a gerar novos sentidos, ou seja, o sujeito-aluno continua repetindo o já-dito e,
portanto, o movimento de criação da escrita e ou da oralidade, com base em novos
posicionamentos discursivos, não acontece.
Logo depois, seguiu-se com a leitura de mais um texto:
Cada animal simboliza algum aspecto ou qualidade do homem como,
por exemplo, o leão representa a força; a raposa, a astúcia; a formiga,
o trabalho. É uma narrativa com fundo didático, quando os
personagens são seres inanimados ou objetos, a fábula recebe o nome
de apólogo.
Acompanhamos periodicamente todas as aulas concedidas pela professora e pela
escola para a coleta de dados. A sala contava com dezessete sujeitos-alunos. Os
sujeitos-alunos do 6º ano, que participaram da referida pesquisa, não realizavam leituras
de fábulas, pois esse gênero discursivo só está presente no livro didático do 7º ano, ou
seja, se o professor não proporcionar aos sujeitos-alunos o acesso aos vários gêneros
discursivos, ficando preso ao material didático, o trabalho pedagógico pode se tornar
fragmentado, e sabemos que esse não deve ser o movimento pedagógico com os
gêneros discursivos. Todavia os conteúdos curriculares, geralmente, são divididos por
ano, tendo para cada ano um ensino de um determinado gênero discursivo, acarretando,
assim, a fragmentação do trabalho do professor, que muitas vezes, é obrigado a seguir
tal conteúdo.
Como consequência da ausência das fábulas no livro didático do 6º ano, a
professora da sala leu as fábulas para os sujeitos-alunos advindas de outra fonte, e,
como consequência, apenas ouviram a leitura, sem ter acesso ao texto escrito. As
fábulas foram: “A galinha dos ovos de ouro”; “O cachorro e seu reflexo”; “Cigarra e a
Formiga”; e a “Lebre e a Tartaruga”. A maioria dos sujeitos-alunos já conheciam as
fábulas, enquanto que outros se arriscaram a dar outra moral a elas.
Diante desse percurso metodológico e sem silenciar que a constituição do corpus
já se constitui em um posicionamento do pesquisador, apresentamos, a seguir, as
análises que realizamos.
Análise de dados
Para este artigo trazemos dezessete atividades de produção textual, a
partir do gênero discursivo fábula. Todas as análises estão pautadas no referencial
teórico da Análise do Discurso Pecheuxtiana e nos estudos dos Gêneros Discursivos de
Bakhtin. As observações durante a aplicação da atividade, mais uma vez, serviram-nos
de objeto de análise, pois, como analistas do discurso, não pudemos deixar de
considerar as condições de produção que permearam toda a coleta que envolveu essa
pesquisa.
Ao iniciarmos as análises das produções escritas, constatamos que apenas duas
produções apresentaram os elementos fundantes de uma fábula, como apontados: “a
fábula apresenta-se como narrativa curta, emprega linguagem culta ou coloquial,
dependendo do efeito de sentido que se deseja construir, e, no final, destaca-se uma
moral, com o objetivo de transmitir ensinamento”. (ROMÃO; PACÍFICO, 2006, p. 44).
Partindo das análises e dos postulados da Análise do Discurso, o recorte
apresentado a seguir é uma produção de um sujeito-aluno, I.S.N., do 6º ano, que
conseguiu deixar a marca da autoria e sair da posição de copista, constituindo a própria
escrita de forma a sentir-se pertencente ao contexto e criar sentidos outros para compor
a fábula. A leitura de mais de uma fábula realizada pela professora permitiu que o
sujeito–aluno pudesse criar uma escrita diferenciada e garantir o acesso ao interdiscurso
com uma linguagem instituída pelo movimento da relação com outras leituras.
O sujeito-aluno I.S.N. aponta no discurso escrito marcas da contemporaneidade,
como os aparelhos eletrônicos, os quais parecem necessários para resolver um
problema. Desse modo, o sujeito-aluno consegue atingir a assunção da autoria,
posicionando-se no contexto em que está inserido e, por isso, ampara a escrita.
Vejamos:
Fábula: “A inveja da raposa”
A rapoza estava morrendo de inveja da Dona Coruja, porque ela tinha comprado um
carro lindo.
A raposa então tentou roubar aquele carro mas não conseguiu porque a coruja pegou
ela no flaga. Então, tentou outra vez, mais não conseguiu, tentou, tentou, tentou, mais
não conseguiu.
Então a raposa teve um plano e foi falar com a coruja:
- Dona Coruja, a senhora poderia me emprestar o seu carro?
- Claro! Disse Dona Coruja.
Mas, Dona Coruja era muito esperta, ela colocou um dispositivo no carro, se caso
alguém saisse da cidade com o carro, o carro explodia.
A raposa saiu da cidade e o carro explodiu.
Moral: Quem tudo quer tudo perde.
A leitura desta fábula criada por um sujeito-aluno que cultiva na escrita
elementos diferenciados nos permite olhar para a ideologia que sustenta a formação
discursiva e imaginária do autor, sujeito-aluno, quando resolve colocar um dispositivo
no carro para resolver um problema de roubo ou furto e, assim, passa a compreender
que a polifonia instala um novo movimento dos sentidos.
Konder (2002), com estudos sobre Bakhtin, confirma que “A polifonia, para
Bakhtin, relativizava as distorções ideológicas favorecidas pelo discurso monológico,
pela linguagem dogmática, sacralizada, comprometida com a pretensão da autoridade”.
Por isso, no recorte apresentado anteriormente, interpretamos que o sujeito-aluno se
permite, sente-se autorizado a criar sentidos novos, atualizando as possibilidades da
fábula, partindo para um discurso polifônico.
A seguir, apresentaremos três produções realizadas, ainda, pelos sujeitos-alunos,
sendo a primeira delas o recorte do sujeito-aluno L.N.R. Observamos que, em uma das
explicações, durante a coleta, a professora menciona que objetos também podem fazer
parte de uma fábula e o sujeito-aluno, então, sente-se autorizado a escolher como
personagem um videogame. Acreditamos que a troca do objeto pelo animal tenha
causado, para o sujeito-aluno, uma escolha necessária para a escrita e, por conseguinte
acredita ter elaborado uma fábula. Vejamos:
Fábula: Que coisa estranha!
Serto dia acordei e ouvi vozes, eram os aparelhos eletrônicos fui até a sala e meu
próprio vídeo game falou comigo, como ele era portátil eu o peguei e o levei para o
quarto, e lá nos conversamos:
- Oi, Luís (Video Game)
- Oi P&P (Eu)
- Porque você nunca flou comigo antes (eu)
- tenho vergonha (Video Game)
- Entendo, vamos jogar? (Eu)
- Claro (Video Game)
- Que jogo você quer jogar? (Eu)
Orlandi (2007) faz algumas considerações sobre a interpretação e a produção
de sentidos:
[...] a interpretação é uma injunção. Face a qualquer objeto
simbólico, o sujeito encontra a necessidade de ‘dar’ sentido. O que é
dar sentido? Para o sujeito que fala, é construir sítios de significância
(delimitar domínios), é tornar possíveis gestos de interpretação.
(ORLANDI, 2007, p.64).
Levando em consideração os apontamentos da autora, podemos observar, na
produção desse sujeito-aluno, a significação para o objeto que vai lhe dando vida e
concatenando outros sentidos.
Outra consideração fundamental neste percurso de escrita apresentado são as
marcas da subjetividade que são postuladas no discurso do sujeito-aluno quando coloca:
“como ele era portátil eu o peguei e o levei”. Percebe-se que há a utilização da
materialidade da língua escrita para falar de si.
O sujeito-aluno igualmente garante a autoria com coesão e a coerência
textual, fazendo a retomada dos espaços e não se perdendo na deriva, quando discorre:
“levei para o quarto, e lá nós conversamos”. A utilização do advérbio de lugar “lá”
demonstra que o sujeito-aluno está totalmente situado no próprio texto e consegue
amarrar rapidamente as lacunas para que o leitor possa compreender a leitura. Essa
preocupação continua a transparecer ao longo do texto, ao apresentar, entre parênteses,
os personagens, que são apontados ora por “(videogame)”, ora por “(eu)”. Essa
preocupação em demarcar os falantes é uma marca expressiva de autoria.
A autoria se instala tão fortemente ao enunciar o título da fábula “Que coisa
estranha!” e ao fazer uma relação com a moral “As coisas acontecem quando menos se
espera” nos leva a pensar em como a posição discursiva do sujeito-aluno é marcada pela
liberdade de escrita que o fez acreditar nas próprias relações, relações estas coesas e
repletas de autenticidade, compreender que um fato estranho é algo inesperado e, que
“menos se espera” são formações imaginárias e discursivas que o levaram para assumir
esta construção. E, ainda, o modo como ele se inscreve no discurso, deixando de se
preocupar e de seguir a proposta dada pela professora, assumindo a responsabilidade do
dizer.
Pensando nessa relação ideológica, conferimos as relações de Orlandi (2011)
em “Autoria, Leitura e efeitos do trabalho simbólico”:
[...] não há sentido sem interpretação mas este processo de
constituição de sentido ( sua historicidade) não é transparente para o
sujeito. Ao contrário, é através de um processo imaginário que o
sentido se produz no sujeito na relação que interliga linguagem/
pensamento/ mundo. A interpretação, assim como a ideologia, é
igualmente necessária. (ORANDI, 2011, p.133)
Desse modo, a relação de escolha depende tão fortemente da relação ideológica
e da posição discursiva para constituir o próprio discurso.
Em outro recorte, um sujeito-aluno K, do 6º ano, escolhe o objeto (skate-SK8)
para compor o texto. Vejamos:
O SK8
Era uma vez uma menino que gostava de andar de SK8 e que um dia o SK8 ficou com
vida e eles foram na pista de SK8 ele caio e falou eu nunca mais vou andar de SK8 ele
falou vou começar andar mais melhor e eu ficou bem melhor e foi no torneio de SK8 e
foi ganhando e até que um dia ele perdeu e ficou triste e nunca mais andou de SK8 e o
menino falou se você meajudar eu volto andar de SK8 me ajuda por favor e o menino
chegou em casa e falou isso e mentira e o SK8 falou não e mentira e eu ficou amigo de
toda munde eu era famoso emgual uma estrela. Todo mundo conhecia eu e começou
ovir vozes e falou isso e doidisse e o SK8 flou não e doidera.
Moral: quen sempre anda de SK8 e começa ganhar toneio vira estrela.
Acreditamos que a escolha do objeto está muito relacionada com a faixa
etária em que se encontra o sujeito, pois, no município em que foi realizada a pesquisa,
especificamente os sujeitos do bairro têm fortemente constituído como cultura local
uma pista de skate. Mais uma vez, podemos notar a posição ideológica constituindo
sentidos quando o sujeito-aluno é autorizado a escrever com liberdade, no entanto, para
garantir que cumprirá o enunciado estabelecido pela professora, instala uma moral
coerente para o texto que acredita ser uma fábula. Orlandi (2011), em “Autoria, Leitura
e efeitos do trabalho simbólico”, faz considerações importantes sobre os gestos de
interpretação e analisa que:
O que caracteriza a autoria é a produção de um gesto de
interpretação, ou seja, na função-autor o sujeito é responsável pelo
sentido do que diz, em outras palavras, ele é responsável por uma
formulação que faz sentido. O modo como ele faz isso é que
caracteriza sua autoria. Como, naquilo que lhe faz sentido, ele faz
sentido. Como ele interpreta o que o interpreta. (Orlandi, 2011, p.97)
Ao olharmos para os próximos recortes, verificamos como a subjetividade se
instala logo no título que, em outra produção, também do 6ºano, o sujeito-aluno
L.F.D.S. procura dar o texto. Com a construção do título “O preconceito nunca leva a
nada”, o gesto de interpretação materializa-se no discurso escrito e procura deixar
evidente a liberdade que encontrou para expor, mesmo que de modo inconsciente,
deslocando os sentidos da sua subjetividade para um processo discursivo perpassado por
uma ideologia, intensamente, marcado em si e, logo em seguida, já anuncia a moral do
texto “Nunca juga ninguém pela aparência” que continua sendo amparada por este
envolvimento discursivo-ideológico. Não há preocupação em seguir alguma estrutura
formal para compor o texto, apenas em deixar evidente a marca da subjetividade que
tanto o afligia. Para nos instalarmos no campo da reflexão, pensamos sobre a posição
discursiva de Orlandi (2011), que aponta:
Se a noção de estrutura nos permite transpor o limiar do
conteudismo, ela não basta pois nos faz estacionar na ideia de
organização, de arranjo, de combinatória. É preciso uma outra
noção. Esta noção, a de materialidade, nos leva às fronteiras da
língua e nos faz chegar à consideração da ordem simbólica,
incluindo nela a história e a ideologia. (Orlandi, 2011, p.46)
Vejamos o recorte na íntegra:
Fábula: “O preconceito nunca leva a nada”
Moral: Nunca juga ninguém pela aparência
Um menino da Africa se mudou para o Brasil e comesou a estuda tinha um menino que
colocava muito apelido nas pessoas ai o menino entra na sala ai o menino que colocava
apelido em todo mundo falo
- Menino carvão
O menino ficou sentado na carteira deita e todos os di ele sua o menino
Um dia ele contou para os pais ai os pais ligo para escola para fala que tem um menino
da sala do filho dele que fica colocando apelido nos alunos ai a diretora falo com o
menino e os pais dele ai e virou amigo dele.
A partir da produção, podemos refletir que, imediatamente, no primeiro
parágrafo, o sujeito-aluno já situa o leitor de que “Um menino da África se mudou para
o Brasil” aqui, neste trecho, observamos como o mesmo não se sente pertencente ao
próprio contexto e precisa sustentar a sua história arraigada em outro contexto.
Essa produção mostra como o sujeito-aluno, no momento de prática escrita,
sentiu a necessidade de transpor uma história sem a regulação do modelo pronto
instituído pela escola, ainda que fosse exigido na coleta de dados da referida pesquisa.
A produção tem o efeito de denúncia suscitada na moral e mantida no corpo
do texto, quando denuncia uma prática ainda encontrada nas instituições de ensino, o
bullying, ao dizer que o menino que veio da África era chamado de “Menino carvão”.
Muitas vezes, achamos que falamos do texto pelo texto (coesão, coerência, tema,
figura), enquanto que nossas formações imaginárias nos levam, mesmo que de modo
inconsciente, a promover a reflexão e o posicionamento discursivo.
Lembramos sempre que a fábula é um gênero discursivo que não
necessariamente deveria ter como leitura a redução e a fragmentação dentro das
escolas, colocando-as apenas para as séries iniciais do Ensino Fundamental, pois elas
promovem uma leitura para o despertar da consciência crítica, para o debate e para
pensar na questão humana a partir de muitos elementos que estão perpassados pela
ideologia e pelas formações imaginárias.
Considerando esse o caminho para a leitura das fábulas, trazemos as
considerações de Romão e Pacífico (2006):
A nosso ver, o trabalho com a fábula é de grande relevância na sala
de aula, principalmente, quando a concepção de leitura ultrapassa a
visão reducionista de repetição do sentido literal do texto.
Defendemos isso, pois a fábula é muito mais do que histórias sobre
animais e deve ser lida e interpretada considerando-se a denúncia
sócio-histórica que nela se encerra. (ROMÃO; PACÍFICO, 2006,
p.39)
Baseados nas produções textuais dos alunos, podemos compreender, com base
no referencial teórico da Análise do Discurso de Matriz Francesa Peuxchetiana e nos
estudos sobre os Gêneros Discursivos, que, nesta pesquisa, também se pôde construir o
movimento “pendular” tão bem organizado por Petri (2013) em seus estudos, quando
argumenta que “[...]‘Pêndulo’, porque temos que entender também as especificidades
desse movimento e porque ele é tão significativo quando se trata de analisar o discurso,
desconstruir conceitos e produzir deslocamentos de sentidos [...]” (PETRI, 2013, p.41).
É pensando nesse movimento que a agregação, o deslocamento e o
desprendimento de sentidos acontecem e vão atribuindo uma nova roupagem para os
sentidos produzidos pelos alunos em suas produções. Nesse processo, a escola deve se
atentar em olhar e em acompanhar o movimento pendular, pois ele acontece dentro das
escolas e, principalmente, na sala de aula, deixando o discurso já instituído ter a
oportunidade de produzir novos significados e, consequentemente, ressignificar-se.
E, ao ressignificar-se, a fábula traz momentos de novas formações imaginárias e
novos posicionamentos discursivos, autorizando os sujeitos-alunos a se encontrarem no
contexto social e cultural e, por isso, assumirem a posição autor. Assim, vejamos uma
consideração de Romão; Pacífico (2006) sobre este posicionamento de autoria:
A leitura da fábula pode estimular a discussão (portanto, permite que o
discurso polêmico se instale) acerca do relacionamento social, ou seja,
faculta a realização de uma leitura polissêmica e, sendo assim,
apresenta várias possibilidades de leitura. Diante disso, julgamos que
os leitores podem usufruir a interpretação da fábula para contestar
determinada situação que esteja fora da ordem. (ROMÃO;
PACÍFICO, 2006, p.40).
Ainda, observamos que quinze produções, realizadas pelos alunos do 6º ano, têm
traços característico de contos de fada, com elementos significativos como: “Era uma
vez” e “viveram felizes para sempre”, e não de fábulas. Observemos o recorte do
sujeito-aluno: K.V.O:
Fábula: A pata e o Pato
Em um dia belo, um casal de patos estava nadando... E, então um dia eles se casaram-
se e viveram felizes para sempre.
Isso, a nosso ver, comprova que o ensino dos gêneros discursivos, no caso da
pesquisa, a fábula, fica reduzido a leituras conteudistas e estruturais, como se essa
prática garantisse o aprendizado de cada um.
Considerações Finais
Quando trabalhamos com produções de textos, podemos ter em mãos discursos
que deixam traços da subjetividade do autor. As pistas de subjetividade são indícios
muito significativos da posição discursiva que o sujeito-aluno ocupa, e também
indiciam os traços da ideologia que circulam nos discursos e fazem parecer natural que
os sujeitos escrevam de um modo e não de outro.
As análises apontaram que as condições de produção afetam sobremaneira a
constituição dos sujeitos e dos sentidos. Se o sentido para a escrita é determinado, a
tendência é de que o aluno se mantenha na paráfrase; se há espaço de discussão e
debate, se múltiplos sentidos são permitidos, a possibilidade que o sujeito se identifique
com uns e não com outros é maior, vigorando a polissemia, embora esse movimento
tenha sido pouco observado, no momento das análises.
Essa pesquisa apresentou a análise dos dados e, por meio deles, podemos dizer
que observamos um movimento de retorno aos modelos valorizados pela instituição
escolar, configurando o que Orlandi (1996) chama de circularidade do discurso
pedagógico; por outro lado, observamos que a liberdade da escrita impulsiona o sujeito-
aluno a se identificar com determinados sentidos e, consequentemente, produzir
discursos os quais nem sempre seguem tais modelos legitimados e institucionalizados.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal/ Mikhail Mikhailovitch Bakhtin;
prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo Paulo
Bezerra. – 6ª. Ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, M.M. Língua, Fala e Enunciação. In: Bakhtin, M.M. Marxismo e filosofia
da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem/
tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira- 13. ed. – São Paulo: Hucitec, 2009.
BRAGATTO FILHO, P. Pela leitura literária na escola de 1º grau. São Paulo: Ática,
1995.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa. Secretaria de
Educação Fundamental. 2ª ed., Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
CORACINI, M.J. Interpretação, autoria e legitimação do livro didático: língua
materna e língua estrangeira. Campinas- SP: Pontes, 1999.
GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
KONDER, L. Em Bakhtin. In: Leandro Konder. A Questão da Ideologia. São Paulo,
Companhia das Letras, 2002.
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso. In: Orlandi, Eni P. Introdução às Ciências da
Linguagem: Discurso e Textualidade, 2006.
ORLANDI, E. P. Papel da Memória/ Pierre Achard... [et al.] tradução e introdução:
José Horta Nunes – 2ª Edição, Campinas, SP: Pontes Editores, 2007.
ORLANDI, E. P. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. 3ª ed. Campinas-
SP: Pontes, 2001.
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6ª ed.
Campinas-SP: Pontes, 2007.
ORLANDI, E. P. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5ª ed. Campinas-
SP: Pontes, 2007.
ORLANDI, E. P. Gestos de Leitura: da história no discurso/ Eni. P. Orlandi (org) [et
al.] 3ª ed. – Campinas, SP: Editora Da Unicamp, 2010.
PACÍFICO. S.M.R. Argumentação e autoria: o silenciamento do dizer. Tese de
doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-
USP, 2002.