o surrealismo, por uma aproximação ao movimento francês e sua
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
CHRISTY BEATRIZ NAJARRO GUZMN
O surrealismo, por uma aproximao ao movimento francs e sua repercusso
na poesia brasileira: As Metamorfoses de Murilo Mendes
CURITIBA, 2010
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CHRISTY BEATRIZ NAJARRO GUZMN
O surrealismo, por uma aproximao ao movimento francs e sua repercusso
na poesia brasileira: As Metamorfoses de Murilo Mendes
Monografia apresentada disciplina de Orientao Monogrfica II do Curso de
Letras Portugus-espanhol da Universidade Federal do Paran,
Como requisito final para a obteno do ttulo de
Bacharel em Letras com nfase em Estudos literrios
Orientadora: Prof. Sandra Stroparo
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Com amor aos meus pais:
Ana Cristina de Najarro e Alfredo Najarro
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AGRADECIMENTOS
Ao longo do curso muitas pessoas passaram pela minha frente que
ajudaram e inspiraram minha formao acadmica. Uma pgina no bastaria para
cit-las, porm vou mencionar aquelas que interferiram diretamente na produo
desta monografia.
minha orientadora Sandra Stroparo, pela sua dedicao e pacincia na
orientao desta monografia, e por demonstrar com a sua prpria experincia como
professora e pesquisadora de literatura que a literatura uma proposta de
reinveno do mundo.
Ao professor Caetano Galindo por ter aceitado ser banca e avaliar este
trabalho.
Finalmente, de longe agradeo infinitamente a minha famlia por acreditar
em mim, apoiar meus projetos.
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Um grande artista deve conciliar os opostos
(Murilo Mendes)
Qu es la vida? Un frenes.
Qu es la vida? Una ilusin,
una sombra, una ficcin,
y el mayor bien es pequeo:
que toda la vida es sueo,
y los sueos, sueos son. (Caldern de la Barca)
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Resumo
Este trabalho visa explorar os aspectos surrealizantes na obra de Murilo Mendes,
estabelecendo um dilogo com os aspectos estticos e filosficos do movimento
surrealista francs. A reflexo parte da obra As Metamorfoses, onde o autor, diante
da angstia provocada pelo caos que impera na sociedade ocidental da primeira
metade do sculo XX, articula atravs da palavra elementos de diferentes naturezas,
propondo uma reconfigurao do universo.
Palavras-chave: Murilo Mendes, Surrealismo
Resumen
Este trabajo tiene como objetivo explorar los aspectos surrealizantes en la obra de
Murilo Mendes, estableciendo un dilogo con los aspectos estticos y filosficos del
movimiento surrealista francs. Nuestra reflexin se hace a partir de la obra As
metamorfoses, donde el autor frente a la angustia provocada por el caos que
impera en la sociedad occidental de la primera mitad del siglo XX, articula a travs
de la palabra elementos de diferentes naturalezas, proponiendo la reconfiguracin
del universo.
Palabras-clave: Murilo Mendes, Surrealismo
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SUMRIO
Introduo........................................................................................8
Captulo I: O movimento surrealista na Frana.............................12
1. Contextualizao Histrica .....................................................12
2. Elementos estticos surrealista...............................................18
Captulo II: O Brasil e a experincia surrealista............................33
1. A insero do surrealismo
no contexto do modernismo brasileiro......................................33
2. Murilo Mendes e o surrealismo..................................................38
Captulo II: O surrealismo em As Metamorfoses............................50
1. O livro: uma proposta surrealista..........................................50
2. As Metamorfoses: Uma des-articulao de elementos........53
Concluso.......................................................................................77
REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................80
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1. Introduo
No comeo do sculo XX, a Europa experimentava a queda dos
valores que sustentavam a sua sociedade. Isto porque os princpios tecnicistas
que propunham o bem estar social, tambm denegriram a figura humana;
estamos pensando aqui nas consequncias da Primeira Guerra Mundial e da
Revoluo Russa. Paralelamente, os artistas buscavam a autonomia da arte,
tirando dela a sua responsabilidade para com a sociedade e seus valores.
Assim sendo, os artistas das diferentes vanguardas arremetiam contra
a sociedade da poca, fazendo arte de confronto e tendo como objetivo chocar
aos burgueses. Um desses movimentos foi o surrealismo, consolidado em
1924 com a publicao do Primeiro Manifesto Surrealista. Como o de muitas
vanguardas, um dos seus objetivos era mudar a vida atravs da arte,
vivenciando-a a ponto de romper com as fronteiras entre a vida real-material e
o mundo abstrato imaterial. Para tanto, os artistas surrealistas se valeram de
vrios caminhos para descobrir as diferentes possibilidades de associao
dos objetos e das palavras para poder, desta maneira, ressignificar o mundo:
as experincias obtidas a partir do uso de alucingenos, a escrita automtica,
os referenciais mticos da poca medieval, e outros dos quais falaremos no
decorrer desta monografia. Na poesia, encontramos a ressignificao da
palavra, atravs da escrita automtica, isto , a combinao de elementos
dspares no mesmo verso, o que gera novos significados, promovendo um
novo entendimento do mundo. Assim, o surrealismo se posicionou como arte
de choque e de quebra de conceitos estabelecidos.
Tendo isso em vista, podemos dizer que ao contrrio de outras
estticas, o surrealismo transitou entre o real-material e o mundo subjetivo (o
mundo onrico, os estados de loucura e o mundo imaginrio) para propor uma
nova viso de mundo e, desta maneira, alcanar a transcendncia humana.
Esse trnsito permitiu questionar a legitimidade do poder de representao
tanto das imagens como da palavra, o que resultou numa arte acombinatria
(MOURA, 1995), onde os elementos aproximados sofriam um processo de
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ressignificao, transfigurando a vida material no processo de composio
artstica.
O surrealismo chega ao Brasil no contexto do modernismo brasileiro,
momento em que vrios artistas e poetas reestruturavam o conceito esttico.
O interesse dos artistas modernistas brasileiros era trazer para a arte e a
poesia os elementos cotidianos da cultura popular brasileira como uma
tentativa de definir o que ser brasileiro na arte. Por tal motivo, todas as
correntes estticas que valoravam o caminho da abstrao da esfera material
no foram to bem aceitas: este foi o caso do surrealismo. Contudo, houve um
grupo de poetas que se interessou pela concepo de arte e de mundo que os
surrealistas propunham. Um desses poetas foi Murilo Mendes que nunca
aderiu a nenhuma corrente esttica, embora afirme ter feito muitas pesquisas
no campo da esttica surrealista.
Como pesquisador do movimento francs, Murilo Mendes
experimentou algumas tcnicas criativas do surrealismo na sua poesia. Sendo
assim, podemos dizer que a composio potica de Murilo Mendes
caracterizada pela superposio de imagens, a quebra da sintaxe por meio da
combinao de palavras de campos semnticos dspares, e uma tendncia
abstratizante da realidade material (MOURA,1995). Da mesma forma que os
surrealistas franceses o poeta mineiro experimentou com as imagens do
mundo onrico, com as diferentes mitologias e o referencial religioso
proporcionado pela sua f catlica.
A respeito do fator religioso na poesia muriliana, importante lembrar
que este no aparece para afirmar os dogmas catlicos, mas para abstrair a
realidade material, transcender espiritualmente e entrar em um estado de
comunho com o todo que compe o universo.
Todas essas experimentaes obedecem a uma preocupao do autor,
que diz respeito a uma viso de mundo essencialista e totalizante
(MOURA,1995). Aqui importante lembrar a figura de Ismael Nery, j que
alm de ser um amigo de grande estima foi quem o levou de volta para o
catolicismo, o aproximou da esttica surrealista e da filosofia essencialista.
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Esta ltima implicava a hibridao entre o material e o imaterial, o racional e o
irracional, para alcanar a essncia dos elementos, reestuturando a ordem
estabelecida atravs da desordem (ARAJO,2000).
Assim, a potica muriliana caracterizada pelo vetor da dissoluo de
conceitos atravs da combinao das palavras, questionando desta maneira os
princpios da sociedade burguesa para comear desde o marco zero1, como o
prprio Murilo Mendes afirmou numa entrevista.
O livro em que isso se faz mais evidente As metamorfoses,
considerado pela crtica o mais surrealista de toda a composio potica do
autor. Por esse motivo o escolhemos para nossa pesquisa.
Esse livro se apresenta como um universo fechado onde a hibridao
dos elementos impera como uma proposta de renovao da percepo dos
objetos, da relao existente entre eles e o ser humano. O importante dessas
ligaes que muitas delas esto construdas a partir do princpio da
contrariedade, isto quer dizer que os elementos aproximados so de naturezas
diferentes e muitas vezes contrrios entre si. Isto se evidencia nos versos em
que objetos inanimados cobram vida, ou quando animais realizam atividades
humanas, como no poema encontros que ser analisado do terceiro captulo.
Alm das relaes dspares entre diferentes esferas, Murilo Mendes
tambm recorre s diferentes artes que fizeram parte da sua vida: a msica e a
pintura. Por um lado o livro est dedicado a um dos compositores mais
importantes da era clssica: Wolfang Amadeus Mozart. Sendo um msico to
distante em termos temporais e estticos, o leitor mais instrudo poderia se
formular a seguinte pergunta: por que no dedicar o livro a algum msico que
experimentasse a transgresso da ordem dos sons? Primeiro poderamos dizer
que isso se deva simplesmente ao contato direto e ao gosto musical do poeta,
porm a obra de Mozart foi de grande importncia pelo tipo de percepo de
mundo que o compositor expressava atravs da msica, o que ser melhor
explicitado no terceiro captulo.
1 Entrevista concedida revista Veja em 1972. Cf. RIBEIRO GILSON, Leo. Entrevista a Murilo
Mendes: No quero ser popular. VEJA. So Paulo, n 209, setembro, 1972
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Por outro lado, encontramos vrios poemas dedicados a diferentes
pintores, ou fazendo referncia criao plstica: operao plstica, rua,
Maria Helena Vieira da Silva, uma nuvem so s alguns nomes que
poderiam exemplificar tal afirmao. O poema que foi escolhido para
refletirmos sobre a relao de Murilo Mendes e a pintura no demonstra de
maneira explcita essa relao, porm existe uma possvel aproximao de
1941 com a pintura ngelus novus de Klee e da interpretao que Walter
Benjamin fez sobre a tela.
Partindo do anteriormente mencionado, o objetivo desta monografia
destacar as caractersticas surrealizantes2 da obra potica de Murilo Mendes, e
para tanto analisaremos alguns dos poemas do livro As Metamorfoses,
publicado em 1944 por consider-lo um livro-universo, em que o autor prope a
diluio dos limites estabelecidos entre a esfera material e imaterial, entre a
matria mineral e natural.
O trabalho est dividido em trs captulos: no primeiro abordaremos os
princpios histricos, filosficos e estticos do movimento surrealista na Frana;
no segundo refletiremos acerca do surrealismo no contexto do modernismo no
Brasil e da importncia da figura de Murilo Mendes. Finalmente no terceiro
captulo abordaremos de maneira mais detalhada de As metamorfoses como
proposta surrealista do poeta.
2 Preferimos usar o termo caractersticas surrealizantes porque, em primeiro lugar,
acreditamos que isso explicita o fato de certas caractersticas proporcionarem uma atmosfera surrealista aos poemas, ao invs de s representar aspectos surrealistas dentro do poema.
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2. O movimento surrealista na Frana.
2.1 Contextualizao histrica
A sociedade europia do comeo do sculo XX enfrentava a decadncia
de todos os setores que proporcionavam ao indivduo um tipo de segurana
diante dos fatos da vida, como foram os governos e as instituies religiosas,
gerando na elite intelectual e artstica um sentimento de tdio e agonia
humana. Essa inconformidade intensificou-se com a exploso da Primeira
Guerra Mundial e com os autoritarismos que se seguiram, desencadeando a
configurao de diferentes linhas de pensamento delineadoras de novas
formas de entendimento do mundo e do tempo, e que por sua vez negavam os
princpios estticos, morais e polticos propostos pela burguesia. Este processo
teve lugar dentro do marco conhecido como modernidade3.
Uma dessas linhas de pensamento foi o movimento de vanguarda
conhecido como surrealismo, consolidado em 1924 com a publicao do
Manifesto Surrealista de Andr Breton, onde eram sistematizadas as idias do
grupo que, em 1923, se desvinculou do movimento dadasta. Este ltimo
representou para o surrealismo uma fonte esttica e de viso de mundo, por
representar um movimento de protesto contra os valores sociais e artsticos da
poca, pois suas manifestaes artsticas (do movimento Dada) eram
intencionalmente desordenadas e principalmente regidas por um desejo de
choque e de escndalo, numa sociedade que comeava sua reconstruo
depois da catstrofe da Primeira Guerra Mundial.
3 A esse respeito Matei Calinescu faz a diviso entre modernidade burguesa e modernidade
esttica, sendo a primeira o objeto de crticas acirradas por parte dos artistas e intelectuais da
poca, j que os valores tecnolgicos e capitalista-burgueses denegriam a figura humana. Cf.
CALINESCU, Matei. Cinco caras de la modernidad: modernismo, vanguardia, decadncia,
kitsch, postmodernismo. Trad. Francisco Rodrguez Martn. 2.ed. Madrid: Tecnos/ Alianza,
2003.
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importante ressaltar aqui o processo de reconstruo em que se
encontravam os pases europeus, j que todos os movimentos de vanguarda
vo considerar a dicotomia destruio/reconstruo para propor novas
estticas e novos valores sociais. Desta maneira, no surrealismo (...) busca-se
uma salvao pela arte, mas arte vivida ou arte de viver. Um modo de agir em
que o imaginrio e o real estejam coligados (CUNHA, 2008, p. 64), o que
sugeria a diluio de poderes, normas, preceitos, gerando um forte choque na
sociedade burguesa do comeo sculo XX.
Assim, o surrealismo prope um novo olhar sobre o mundo real-material
atravs da desvinculao dos seus referentes mais prximos e mais ligados ao
campo racional do ser humano. Desta maneira, podemos dizer que:
A partir do dadasmo, e em meio agitao provocada pela revoluo russa de 1917 e pela reao europia cristalizada no fascismo italiano, que chegar ao poder em 1922, com a marcha de Benito Mussolini sobre Roma, surge em Paris outra vanguarda subversiva: o surrealismo, que tomava igualmente o partido dos valores subjetivos ameaados por todos os poderes. O termo surrealismo apareceu, pela primeira vez, numa carta que o poeta Guillaume Apollinaire dirigiu ao dadasta Paul Derme; ele usava essa expresso para definir sua poesia, de preferncia a sobrenaturalismo, observando que surrealismo no se encontra nos dicionrios (NAZARIO, 2008, p. 23)
Luiz Nazario aponta para dois aspectos importantes relacionados com
o nascimento do movimento surrealista: o primeiro destaca a falta de registro
do termo surrealismo nos dicionrios da poca, como apontava Apollinaire,
ativando o principal objetivo do movimento, que era a desreferencializao do
mundo, responsvel por liberar os objetos e as palavras do seu significado: dito
de outra forma, as coisas e as palavras deixaram de significar aquilo que por
conveno estava estabelecido, como analisaremos mais adiante. O segundo
aspecto resgata dois acontecimentos polticos que assolaram a Europa no
comeo do sculo XX: o primeiro refere-se ao fascismo que se instaura em
1922 como uma ditadura que se utiliza da propaganda para difundir princpios
nacionalistas e capitalistas; e da censura para evitar a difuso dos valores
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comunistas. Esse contexto fez com que a descrena no mundo4 se instaurasse
na elite pensante da sociedade europia, promovendo novas propostas de
criao e de entendimento de mundo, como anteriormente referido; isto se v
evidenciado no panfleto de Andr Breton Le peu de ralit (o pouco de
realidade), onde ele expe o mal-estar sentido nesses tempos turbulentos da
sociedade ocidental em que o niilismo apontava para o rompimento com as
normas scio-polticas, culturais e ticas (CUNHA, 2008).
O segundo acontecimento refere-se revoluo russa de 1917, que
dinamizou os valores subversivos dos artistas que aderiram aos princpios
surrealistas, pois o comunismo rompeu com a ordem social que imperava na
Rssia e props novos rumos para sua nao. Isto gerou, anos depois, e
quando o movimento surrealista j estava configurado, a unio entre os
partidrios do comunismo e os artistas surrealistas, que mais tarde seria
dissolvida, pois os ideais no prticos do surrealismo no combinavam com a
prxis comunista.
Assim sendo, Breton chegou a afirmar que o comunismo era a nica
salvaguarda ideolgica (NAZARIO, 2008, p.36) do surrealismo. Ora, se o
comunismo era a nica garantia do surrealismo, isso significa que o prprio
fundador tinha suas dvidas a respeito da legitimidade do movimento? Para
responder a essa pergunta importante ver o que cada uma das duas
vertentes revolucionrias concentra no seu ncleo fundador. Devemos lembrar
que ambas correntes de pensamento representavam ideais revolucionrios que
contestavam, por caminhos diferentes, os princpios burgueses. Por um lado,
se encontra a euforia das exacerbaes subjetivistas do surrealismo, que
rejeitava a ordem estabelecida pelos princpios burgueses; e, por outro, a
ideologia da prxis marxista se apresentava como doutrina que explicava as
relaes existentes entre a humanidade e o capital, numa sociedade regida por
princpios tecnicistas e propunha uma ordem social-econmica em que o
homem seria emancipado pelo trabalho.
4 Devemos levar em considerao que o romantismo e o simbolismo j tinham colocado a
questo da descrena do mundo nas suas configuraes estticas.
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Se no mago do surrealismo se encontra a juno do mundo real-
objetivo e o no-real, como veremos mais adiante, a adeso ao comunismo
representava o ponto de coexistncia entre uma irrealidade, e a realidade
objetiva. Alm disso, Luiz Nazario tambm menciona que os surrealistas se
obrigaram a politizar seu movimento, primeiramente por considerar a revoluo
um meio para atingir outra esfera do mundo, aquela que diz respeito
existncia fsica do ser humano e suas relaes com a vida prtica; e segundo
porque a esttica surrealista no se resolvia s no campo das idias
irracionais, ou no hedonismo pelo hedonismo, mas tambm na concepo
que concebia o pensamento humano como agente transformador da vida,
como Jacqueline Chnieux-Gendron salienta ao afirmar que a esttica
surrealista uma questo poltica5; e em terceiro lugar para evitar futuras
desistncias do movimento surrealista.
Participando paralelamente do partido comunista, vrios adeptos do
surrealismo continuaram suas pesquisas, o que ocasionou a expulso de
vrios deles do partido por no serem to revolucionrios quanto o movimento
precisava, pois a subjetividade utilizada na arte surrealista era considerada
uma espcie fuga da realidade. Desta maneira, Breton, luard e Crevel foram
expulsos em 1933 por terem ousado criticar esse vento de cretinizao que
soprava da URSS (NAZARIO, 2008, p. 42), e por considerarem que o
comunismo recuperava algumas das instituies antigas que tinham
demonstrado serem opressoras da liberdade. Tal fato no significou o
rompimento com a revoluo, j que esta no foi s uma salvaguarda
ideolgica para o surrealismo: ela tambm foi uma forma que os surrealistas
encontraram para atingir a essncia do mundo, ou seja, uma totalidade do
mundo que no era percebida s na experincia material. E nesse intuito de
conhecer e alcanar a totalidade do mundo que os surrealistas comearam a
5 Cf. CHNIUX-GENDRON, Jacqueline. possvel falarmos em Esttica Surrealista.
In:______________________ GUINSBURG, J; LEIRNER, Sheila. O surrealismo. So Paulo:
Perspectiva, 2008
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desenvolver diferentes pesquisas que os levaram descoberta de novos
caminhos de criao.
Poder-se-ia dizer, ento, que o surrealismo surge como uma
contestao realidade da poca, reivindicando o direito de explorar todos
aqueles campos de conhecimento que tinham sido reprimidos at esse
momento, como o so os dos sonhos, da loucura, dos estados alucinatrios
(GUINSBURG, J. 2008 p. 14), que representam a esfera do no-real, referida
anteriormente, e que fazem parte da existncia humana. A unio de ambas as
realidades (material e subjetiva) faria possvel o conhecimento da totalidade do
mundo, pois os surrealistas no concebiam a realidade-material como nico
componente da vida. Desta maneira, a explorao dos estados apontados por
Guinsburg (GUINSBURG, J. 2008 p. 14) significava tambm uma
transformao do sujeito tanto quanto o objeto, num tipo de gnose
(conhecimento), que devia conduzi-lo reconciliao da ao e o sonho
(GUINSBURG, 2008, P. 14), isto , restituir ao ser humano a capacidade de
viver entre as duas esferas.
Partindo dessas consideraes podemos dizer que para os artistas de
vanguarda, e mais especificamente para os surrealistas, existiam dois tipos de
realidades marcadas por tempos e lgicas diferentes. A primeira, que ser
referida neste trabalho como realidade-objetiva, diz respeito vida pragmtica
e progressista, marcada por um tempo que, valorizado por sua importncia em
dinheiro, obedece condio de causa e efeito das diferentes situaes da
vida cotidiana. Paralela realidade-objetiva se encontra outra realidade que
est marcada por uma destemporalizao6, isto , os fatos no acontecem
seguindo a lgica de causa e efeito mencionada nas linhas acima: a esta
chamaremos de realidade-subjetiva7.
6 Como Gumbrecht j mencionara a respeito do pensamento no hermenutico no seu artigo O
campo no hermenutico. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Corpo e forma. Ensaios para uma
crtica no hermenutica. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.
7 Aqui incluiremos o mundo onrico, a loucura e o imaginrio mtico das culturas indgenas e
medievais.
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Esses artistas de vanguarda constituram, portanto, a percepo de que
o passado, o presente, o futuro e o tempo das mais variadas culturas faziam
parte da vida prtica do homem, o que ocasionava uma crise na confiabilidade
por parte desta elite pensante nas instituies da sociedade. Eles entendiam
que o tempo era um processo muito mais complexo que um continuum de
impulsos e respostas, de causalidades e fases interconectadas e auto-
explicativas como grandiosos captulos de uma enciclopdia universal
(SOUZA, 2008, p.55); esse pensamento revelava a insuficincia da
configurao da sociedade daquela poca, e ao mesmo tempo sugeria uma
imploso das estruturas culturais, promovendo uma nova esttica preocupada
com a transformao dos valores sociais.
Para entender esta preocupao importante ressaltar os aspectos
importantes que caracterizaram a esttica surrealista.
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2.2 Elementos estticos surrealistas
No comeo deste captulo foi mencionado que o movimento surrealista
foi consolidado a partir do Manifesto surrealista de 1924, o que promoveu a
catalogao do surrealismo como movimento vanguardista. Ele no entanto
resiste a essa classificao (...) o surrealismo estaria voltado para a vida, o
homem em sua totalidade e a transformao do mundo (GUINSBURG, 2008,
p 14). O que muito interessante, pois ao se desligar do aspecto doutrinador
das outras vanguardas, o surrealismo sugeria uma nova forma de viver, na qual
os valores prezados pela burguesia fossem derrubados.
Alm de definir o surrealismo, Andr Breton tambm elaborou uma lista
de um pequeno grupo de obras (WILLER, 2008, p. 284), que revelavam as
origens da concepo e viso de mundo dos surrealistas. Esta lista tinha como
referncia direta o romantismo e o simbolismo, os dois movimentos que
significavam uma ruptura total com a tradio clssica e neoclssica. por
esta razo que Cludio Willer caracteriza o surrealismo como um movimento
de ruptura e continuidade. Era ruptura em primeiro lugar porque o sentido de
beleza no era o mesmo definido pela tradio artstica ocidental, em segundo
lugar porque propunha a explorao dos campos do inconsciente para
perceber e entender o mundo como um todo e no a explorao da realidade
para o conhecimento deste, j que eles acreditavam que ela no era suficiente.
O surrealismo tambm representou continuidade, por precisar buscar uma
origem nas tradies de ruptura8. A genealogia apresentada por Breton no
manifesto surrealista oferece sustentao filosfica ao movimento, pois l ele
expe que geraes anteriores tambm entendiam que o conhecimento total
da existncia atingvel pelo inconsciente, pela loucura e a abstrao da
realidade (o simbolismo e romantismo por exemplo).
As sries de autores propostas por Breton, em seu exame do romantismo e do simbolismo no Segundo Manifesto do surrealismo e em outros lugares, equivalem ao que Octvio Paz, prosseguindo e ampliando a mesma reviso da histria da literatura, chamaria em Os
8 Termo utilizado pela primeira vez pelo autor mexicano Octavio Paz, no livro Os Filhos de
Barro, 1972.
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filhos do barro, de tradio e ruptura (...) o poeta e pensador mexicano entende o romantismo no como movimento delimitado por datas do final do sculo XVIII e meados do XIX, mas como processo, vertente marcada pela rebelio. Refere-se a uma revoluo romntica, manifestao da tradio da ruptura, pela crtica contraposta ao classicismo (...) o esprito antiburgus dos autores daquela poca e desse movimento foi reconhecido por inmeros outros ensastas. (WILLER, 2008, p. 285-286)
O autor destaca o fato de o romantismo ser percebido como um
processo revolucionrio, e no como algo que teve um incio e um fim. Como
processo, o romantismo pde desencadear diferentes caminhos e vertentes,
pde se aprimorar e pde ser reformulado. Esse movimento foi marcado pela
individuao do sujeito e a busca pela no banalizao da vida que eles
enxergavam nos costumes burgueses do final do sculo XIX; sentimento que
criou uma abominao pela burguesia e pelo crescimento do mercantilismo.
Do simbolismo, o surrealismo resgata o obscurecimento dos conceitos,
isto , a fascinao pelo no dito e as relaes entre aspectos dspares. Alm
disso, o simbolismo tambm explorou a aproximao de conceitos, muitas
vezes dspares, para propor novas relaes entre os objetos. Dessa maneira,
Breton enxergava em Baudelaire uma fonte primordial do surrealismo, pois foi
este ltimo quem comeou a relacionar o mundo concebido "racionalmente" e
artisticamente aceitvel com aquilo que no era erudito; esse tipo de relaes
no era convencional e sim inovador, pois os elementos aproximados
correspondem a campos semnticos muito diferentes, como possvel
observar no poema Bela Nau, onde Baudelaire compara uma mulher a um
barco.
Partindo dessa sustentao histrica de ruptura e continuidade, o
surrealismo definido como uma viso de mundo que representava uma
fora revolucionria na sociedade e como tal recusava os valores morais,
ticos e polticos tidos como verdade nica e incontestvel, o que gerava novas
relaes entre conceitos disjuntivos.
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Foi dessa forma que os surrealistas exploraram o automatismo,
mencionado anteriormente, e que para Jacqueline Chnieux-Gendron uma
reapropriao da teoria das manchas das artes plsticas, no qual o objeto
esquecido e prevalecem pinceladas ao acaso e manchas que no remetem a
formas conhecidas9. A partir disso a autora reflete sobre a concepo de artista
entendida pelos surrealistas, a qual apontava para um esquecimento dos
cdigos culturais.
Transportada escrita, esta tcnica de composio se v refletida no
esquecimento de um raciocnio coerente ao colocar as palavras no papel, isto
, elas deixam de obedecer lgica da sintaxe e da semntica, o que favorece
a multiplicidade de sentidos. A escrita, portanto, no obedece a uma lgica
racional, permitindo uma autonomia da palavra, j que esta no estaria
condicionada por nenhuma pauta social, tica ou moral. Dessa forma, palavras
com significados contrrios ou mesmo opostos entre si se aproximam,
permitindo a criao de novos sentidos, desvinculados do que
convencionalmente aceito.
O automatismo est intimamente ligado ao mtodo psicanaltico de
Freud, que consiste na livre associao de diversos fatos ocorridos ao
paciente, sem que este aplique algum filtro organizador das idias; desta
maneira, elas surgiriam de acordo com a sua importncia e permitiriam que o
psicanalista adentrasse o inconsciente desse indivduo. Freud tambm estudou
o mundo onrico como ferramenta no processo da psicanlise, pois ele
9 Esta teoria poderia estar atribuda a um dos movimentos do Oitocentos italiano: os
Macchiaioli propunham uma atividade artstica que no estivesse viciada pelos preconceitos
culturais (ARGAN, s/d, p. 425), premissa que Breton e os outros artistas surrealistas
sustentavam como um dos princpios delineadores do movimento. Cf. ARGAN, Giulio Carlo.
HISTRIA DA ARTE ITALIANA v. 3. So Paulo: Cosac Naify Edies, s/d. Disponvel em:
(acesso em: 02/03/2010 s 14hrs30min)
http://books.google.com/books?id=nyif8Cz4R4EC&pg=PA425&dq=A+teoria+das+manchas+na
+pintura&lr=&ei=f_ePS8fmC4rczQS2meHGBQ&hl=ptBR&cd=17#v=onepage&q=A%20teoria%2
0das%20manchas%20na%20pintura&f=false
http://books.google.com/url?client=ca-print-cosac_naify_edicoes_ltda&format=googleprint&num=0&channel=BTB-ca-print-cosac_naify_edicoes_ltda+BTB-ISBN:8575032240&q=http://www.cosacnaify.com.br/loja/detalhes.asp%3Fcodigo_produto%3D493%26language%3Dpt%26showPromo%3DTrue&usg=AFQjCNHC4Ef_19OWyTU-SD51eFkZ9Xg0yg&source=gbs_buy_s&cad=0http://books.google.com/books?id=nyif8Cz4R4EC&pg=PA425&dq=A+teoria+das+manchas+na+pintura&lr=&ei=f_ePS8fmC4rczQS2meHGBQ&hl=ptBR&cd=17#v=onepage&q=A%20teoria%20das%20manchas%20na%20pintura&f=falsehttp://books.google.com/books?id=nyif8Cz4R4EC&pg=PA425&dq=A+teoria+das+manchas+na+pintura&lr=&ei=f_ePS8fmC4rczQS2meHGBQ&hl=ptBR&cd=17#v=onepage&q=A%20teoria%20das%20manchas%20na%20pintura&f=falsehttp://books.google.com/books?id=nyif8Cz4R4EC&pg=PA425&dq=A+teoria+das+manchas+na+pintura&lr=&ei=f_ePS8fmC4rczQS2meHGBQ&hl=ptBR&cd=17#v=onepage&q=A%20teoria%20das%20manchas%20na%20pintura&f=false
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acreditava que os sonhos eram interpretveis (FREUD, s/d, p.94), isto , os
sonhos revelam aspectos a respeito da vida do sujeito e suas percepes de
mundo, sendo possvel, atravs disso, conhecer a natureza humana, j que os
sonhos partem de uma realidade material-objetiva, embora esta aparea de
forma aparentemente distorcida, j que nesse momento ela no corresponde
ordem estabelecida pelas normas sociais. Apesar de o mundo onrico
representar um dos caminhos utilizados pela psicanlise para adentrar o
inconsciente humano, a crtica literria, ao analisar textos surrealistas, costuma
separar o processo psicanaltico do mundo dos sonhos. A razo de tal diviso
talvez se encontre no uso que os surrealistas fizeram da psicanlise e dos
sonhos, sendo a primeira uma referncia para a escrita automtica, isto , na
associao de elementos e imagens desconexas colocadas no papel sem que
fossem organizadas de forma a que as frases fizessem sentido; j no caso da
esfera onrica, os surrealistas recuperavam a superposio de imagens que no
mundo real-material no formariam um sentido lgico para propor uma nova
ordem social-cultural. importante lembrar que Freud tambm apontou
apoiado em estudos anteriores a ele para o fato de que o estado onrico
uma viglia incompleta e parcial (FREUD, s/d, p. 77), portanto, o real-material
no desaparece completamente, muito pelo contrrio, ele continua em
constante dilogo com o inconsciente do indivduo, com o diferencial de que
esta realidade no obedece s normas sociais e o que permite que o
conhecimento, os sentimentos e os desejos sejam transformados (FREUD,
s/d, p. 84).
Desta maneira, podemos dizer que usando a mesma dinmica de
superposio das aes e das imagens nos sonhos, o automatismo verbal,
mencionado linhas acima, libera o crebro para agir sobre a pgina em branco.
Um exemplo deste tipo de escrita observado no poema Estudo quase
Pattico10 de Murilo Mendes, onde, na primeira estrofe, encontramos
aproximaes como um vento em r maior/ desfolha esttuas ou esse mesmo
vento partindo as hlices dos anjos, quatro campos semnticos diferentes por
10
MENDES, MURILO. O visionrio. In ________________________________: Poesia completa e Prosa. Rio de Janeiro: AGUILAR, 1994
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definio; fenmenos atmosfricos, msica, objetos inanimados e o imaginrio
religioso formam parte de uma s estrofe e atuam sem nenhuma passagem
lgica de um campo semntico para outro. Sem dvida nenhuma, o
automatismo verbal em Murilo Mendes obedece no s a uma influncia do
surrealismo europeu, mas tambm a outros fatores que diziam respeito a sua
poca e seu contexto, aspectos que sero analisados mais adiante.
Portanto, a escrita automtica, corresponde a situaes em que
palavras, imagens, sintagmas, so percebidos como entidades com existncia
objetiva, como Cludio Willer j salientara, preexistindo ao momento da
escrita, como possvel observar no poema citado: as imagens apontadas pelo
eu lrico existem no seu imaginrio e, ligadas de uma forma ilgica, geram
uma dinamizao dos sentidos e revela outra face das palavras-imagens.
A respeito dessa conexo ilgica de imagens, outro caminho esttico
explorado pelos surrealistas para atingir o outro mundo foi a destruio do
senso comum: com esta tcnica, a representao de um objeto passa a se
desvincular do mesmo. O precursor neste campo foi o pintor Ren Magritte,
que acreditava que os objetos tinham pouca ou nenhuma relao com o que
representavam; exemplo desse princpio a sua pintura La Trahison des
Images, onde um cachimbo aparece com a legenda isto no um cachimbo.
Com esta tcnica as imagens foram liberadas do seu compromisso de
representao da realidade, o que negava o princpio da mimese, pois os
artistas surrealistas no pretendiam copiar a realidade-material, muito pelo
contrrio, eles partiam dessa realidade para explorar a potencialidade da
existncia humana relacionada com os objetos.
Desta maneira a esttica proposta pelo surrealismo valorizava em
grande medida o observador e o seu olhar. Exigindo desse olhar o abandono
do maior nmero possvel de cdigos, a fim de empregar sua sensibilidade
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sem reserva (CHNIEUX-GENDRON, 2008, p. 93)11 , isto , esquecer as
convenes mimticas da arte e o carter representativo dos objetos, o que fez
com que as normas que delineavam o comportamento social, e hierarquias de
poder, fossem desafiadas e colocadas em xeque, gerando um conflito entre os
artistas e a sociedade burguesa, porque questionava todo tipo de
representao de valores e de poderes, pois uma palavra e um objeto no
deviam necessariamente representar aquilo que era mais prximo deles.
Assim os objetos surrealistas eram aqueles retirados do seu quadro habitual
para serem empregados em usos diferentes que no aqueles para os quais
estavam destinados, ou todo aquele objeto para o qual no se conhecia uma
destinao prtica (NAZARIO, 2008, p. 41). Para conseguir essa autonomia da
imagem os surrealistas se guiavam pela juno de elementos dspares, dando
um espao para as realidades concebidas no mundo dos sonhos e da loucura
que lhes permitiriam chegar a seu objetivo principal, o conhecimento da
totalidade atravs de todos os elementos que circundam o indivduo, mesmo
que eles no apresentem, aparentemente, nenhum tipo de proximidade.
Dentro desta concepo as imagens eram concebidas, tanto por
Magritte como pelo poeta francs Pierre Reverdy, como entidades nicas e
independentes do seu referente, o que oferece uma liberdade maior de criao,
pois tanto o objeto como a palavra desligam-se daquele conceito que os
prende ao mundo objetivo, desvinculando-o da sua especificidade para
chegar ao todo. Criando assim o que Reverdy chamaria de imagem potica,
que Murilo Marcondes Moura aponta sobre a imagtica encontrada na poesia
de Murilo Mendes:
A imagem potica moderna, da qual um exemplo tpico tambm a de Murilo Mendes, consiste na combinatria radical de elementos os mais disparatados, sendo ainda que o seu produto cria algo novo cuja funo expandir a realidade e no reproduzi-la. A proposta de tal criao livre compunha o quadro geral do que ento se dizia moderno, englobando coisas diferentes, como a atitude surrealista da 'receptividade potica' ou outras que propunham uma maior interveno da conscincia artstica" (MARCONDES, 1995, P. 25)
11
No ensaio possvel falarmos em esttica surrealista? Jacqueline Chnieux-Gendron expe que os surrealistas desafiavam o olhar domesticado pelos cdigos impostos pelas convenes, buscando o que se encontra no elemento primeiro de cada objeto.
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Essa criao no s remete combinao de imagens desconexas, mas
tambm destruio de referente/significado que explorava novas formas de
enxergar e entender a realidade tanto externa como interna ao indivduo e que
para os surrealistas no estavam desligadas uma da outra. Elaborava-se assim
uma clara sabotagem a todo tipo de ordem lgico-racional da realidade. O
surrealismo, portanto, no v a imagem em si, v seu alm; no caso da
palavra, o poeta busca o seu elemento primeiro, isto , o que est antes do
signo lingstico, para desvendar os mistrios que ela guarda e para lhe
conceder o conhecimento total do mundo.
No mbito da poesia surrealista, as palavras eram geradoras de
imagens puras, o que quer dizer que elas no estavam mediadas por
metforas claras seguindo a frmula lgica que diz: isto como aquilo, pelo
contrrio, a imagem surgia pela aproximao de elementos contrrios.
Contudo, ela a poesia surrealista encontrou seu referente nas analogias de
Baudelaire, especificamente nas Correspondances, onde as comparaes e as
aproximaes entre imagens e campos semnticos diferentes entre si saltam
aos olhos do leitor, como mencionado anteriormente.
O surrealismo levou ao extremo este tipo de tcnicas, eliminando as
comparaes e colocando termos dspares um do lado do outro e deixando as
estrofes de um mesmo poema sem conexo aparente, o que as torna
independentes entre si. Para tanto, a palavra se torna objeto de
experimentao, sofrendo processos analticos pelos quais se despe de seus
significados-culturais alcanando sua mais pura origem, e desta maneira ela
potencializa seus significados, como mencionado por Ricardo de Souza no seu
ensaio Surrealismo e esprito do tempo, onde ele se vale da metfora utilizada
por Octvio Paz, que se refere ao surrealismo como uma ma de fogo na
rvore da sintaxe, para compreender melhor a quebra de significados
semnticos lgicos. Comparao muito pertinente, pois sendo um movimento
de destruio de convenes e choques morais, a figura de uma ma como
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o fruto proibido ressalta este carter de contestao que o surrealismo
comportava.
O sentido da palavra fogo nesse contexto comporta uma ideia de
incndio que leva destruio das formas, neste caso dos significados e dos
sintagmas, dando lugar a uma potncia da palavra12. Portanto, as
correspondncias para os surrealistas eram mais do que uma tcnica esttica,
eram uma viso de mundo que revelava uma desconfiana nos princpios
lgicos de identidade e no-contradio13:
A vida verdadeira vive-se em passos largos, e no na subservincia das lgicas pequenas. A razo dialtica poderosa, mas seu poder (...) rgido: no se presta s sinuosidades da vida e no tem coragem suficiente para saltar por sobre os abismos do inesperado (...) o surrealismo suporta a evaso estratgica da seduo mortal e faz da destruio do cncer da tautologia a sua profisso de existncia. (SOUZA, 2008, p. 57)
O trecho acima resgata o centro da filosofia surrealista, pois os poetas
desta vanguarda destruam as fronteiras limitadoras das convenes
sintagmticas, propondo novas possibilidades de arranjo, que por sua vez
geravam novos significados e ampliao da palavra. Dessa maneira, as
convenes sociais que tradicionalmente se viam traduzidas nas palavras
eram assim desafiadas, j que a configurao da vida burguesa do comeo do
sculo XX era conduzida por uma srie de valores que possua o seu oposto, o
que para os artistas surrealistas resultava incoerente, j que a
incompatibilidade convivia sem conflito nenhum na vida dos indivduos e suas
sociedades.14 A insuficincia da realidade mencionada existe justamente pela
12
Ral Antelo aponta para os limites da potncia, deixando, neste caso, a palavra no limite entre o que ela poderia ser, mas que nunca chega a ser. Nas correspondncias surrealistas encontramos uma palavra que desvinculada do seu referente mais prximo, portanto, ela deixa de ser, mas ela no se vincula completamente nova proposta de significado, talvez porque o seu interesse no fosse esse. Cf. ANTELO, Ral. O comum e a experincia da linguagem. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. 13
Cludio Willer aponta no seu ensaio Surrealismo: Poesia e potica que esta viso de mundo correspondia viso derrotista do contexto entre-guerras que a Europa enfrentava. 14
A respeito dessa considerao existem vrios estudos como os desenvolvidos pela escola de Frankfurt que avaliam e analisam que os valores burgueses e cientificistas que guiavam uma vida socialmente aceitvel eram os que haviam levado decadncia das sociedades ocidentais da Primeira Guerra Mundial, fascismo e Segunda Guerra Mundial, como j apontara Theodor Adorno no seu livro Dialtica do esclarecimento.
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reduo de caminhos de opes de criao e de entendimento da existncia do
homem e dos objetos no mundo.
Dentro dos caminhos comentados o automatismo verbal e a
destruio do senso comum o poeta compreendido como um vidente, que
exprime toda experincia tangvel e intangvel do mundo, capta os objetos e os
sentimentos e os decompe de tal forma que eles fiquem na sua mais pura
acepo, para que ele, o poeta, possa reconstruir o mesmo objeto captado no
comeo do processo a partir desse momento zero. Vemos, portanto, que dois
movimentos so realizados por esse poeta-visionrio: o primeiro a destruio
da conveno, pois o objeto desvinculado do seu significado mais imediato,
gerando o segundo movimento que se dirige numa linha reconstrutora, s que
este ato no busca a instaurao de um novo significado incontestvel, mas a
multiplicidade de sentidos, desta maneira o objeto se torna em lugar de
incertezas (FRANA, 2008, p.97). Desta maneira, o olhar dos poetas e
artistas se desvincula dos cdigos ocidentais em prol de uma abertura para o
primitivismo, (CHNIEUX-GENDRON, 2008).
Em primeiro lugar importante ressaltar o objetivo de desvincular-se de
cdigos ocidentais, porque ele revela que a revolta sentida pela comunidade
artstica da poca era contra os princpios morais, estticos, polticos e ticos
da cultura ocidental, o que poderia supor que os surrealistas desviaram o olhar
para aquelas culturas que proporcionavam no dicotomias e sim uma
multiplicidade de conceitos, figuras e sentidos. Num poema como O
Observador Martimo de Murilo Mendes, podemos observar este tipo de
caracterstica: nele coexistem crenas religiosas, coisas da vida comum das
pessoas e um pouco de mitologia15. Esse eu lrico que se posiciona como se
estivesse num pedestal observa tudo o que acontece nesse mundo marinho.
Os acontecimentos vistos por esse eu lrico no tm conexo um com o outro,
mas todos esto ligados pelo mesmo campo semntico: o mar.
15
Neste poema existem algumas figuras importantes: a primeira o mar e algumas das mitologias que surgem em volta dele como os leviats e a figura da sereia. Os primeiros formam parte de uma cultura fencia retomada na bblia; e a segunda forma parte de varias tradies culturais, como por exemplo a grega, e suas variantes nas culturas indgenas. MENDES, Murilo. Os quatro elementos. In________________:Poesia completa e Prosa. Rio de Janeiro: AGUILAR, 1994
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Desta maneira o eu lrico perde a vista (CHNIEUX-GRENDON,
2008, p. 87), porm ganha a viso que lhe permite enxergar todos os
acontecimentos de forma simultnea. O interessante que neste ato
simultneo, o eu lrico no s enxerga a superfcie das coisas, ele tambm
enxerga o que cada uma delas de certa forma contm; assim ao falar das
embarcaes, tambm fala da fome dos passageiros de terceira que se
encontram dentro delas, tambm fala sobre as armas para o massacre dos
coloniais e do assassnio dos peixes indefesos, fatos que o eu lrico no
pode ver de uma s vez, porque no esto ao alcance dos seus olhos, porm o
seu poder visionrio lhe permite o acesso a eles.
Conforme o anterior, podemos dizer que a esttica elaborada pelos
princpios surrealistas diz respeito visualidade dos objetos e o que estes
podem sugerir na sua ambigidade, isto , os artistas surrealistas defendem
uma esttica do olhar, que remete no s ao simples ato de ver e apreciar
os objetos, mas tambm alude ao poder de viso do artista e do poeta para
encontrar um alm do objeto, ou melhor, encontrar um alm da imagem desse
objeto. Esta diferena feita entre o objeto e sua imagem de suma
importncia, pois diversos estudos mostram que a imagem no uma
reproduo fiel do objeto. A respeito dessa perda da legitimidade da imagem,
importante lembrar as contribuies que a psicanlise fez sobre os objetos e
suas representaes imagticas, e como os artistas surrealistas se valeram
desses aportes para sustentar sua esttica do olhar.
Maria Ins Frana problematiza a questo da representabilidade dos
objetos. Seu estudo se baseia nas teorias freudianas e lacanianas que
apontam para o descompasso existente entre objeto e a sua imagem percebida
pelo sujeito, desta maneira o olhar adquire uma grande importncia.
De acordo com Lacan, o olhar sempre algum jogo da luz com a opacidade. O que ele quer marcar a respeito do triunfo do olhar sobre o olho a dialtica da aparncia e do mais alm dela. No mais alm da aparncia no h coisa em si, h o olhar. Nesta abordagem psicanaltica, a imagem que faz parte do imaginrio uma produo, pois trata-se do olhar entre o sujeito e a imagem, que impede de
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simplesmente ver, o que desloca a imagem do emprico. (FRANA, 2008, p.98)
Frana destaca da teoria lacaniana o carter ficcional dos objetos, pois
sendo o olhar produto do jogo da luz com a opacidade, a imagem ser mais
ou menos fiel ao objeto de acordo com a proporo de luz e de opacidade
recebida e/ou refletida por ele, e que responde subjetividade do ser humano.
Este tipo de concepo problematiza o carter de real das imagens, pois se
sua capacidade representativa depende da proporo mencionada, isso quer
dizer que ela est sujeita a fatores que no so intrnsecos a ela. Desta
maneira, a imagem configurada por duas instncias: a primeira diz respeito
aparncia, aquilo que percebido pelos olhos, e a segunda o seu alm,
sendo este ltimo elemento dominado e determinado pelo olhar, isto , pela
subjetividade de quem olha. Uma vez que salientada esta diferena, a
imagem deslocada do emprico, no obedecendo mais ao campo da
experincia.
essa separao que os surrealistas aproveitaram para desenvolver
sua esttica do olhar, pois ao ser liberada da experincia sensvel, a imagem
sofre uma abertura, o que quer dizer que ela pode levar a uma multiplicidade
de conhecimentos que no estariam disponveis ao ser humano na praticidade
e no carter material da realidade. Dessa forma, a esttica do olhar prope um
alm da imagem que s atingido pela viso do artista. Conforme o anterior,
podemos dizer que a esttica surrealista predominantemente subjetivista, que
reflete uma noo de modelo interior e de asselvajamento do olho
(CHNIUX-GENDRON, 2008). Aspectos que dizem respeito a uma explorao
do inconsciente e do processo de des-civilizao do olho, isto , esquecer das
convenes sociais que formam uma civilidade16, pois elas limitam o carter
criativo e libertador da ao humana.
16
importante lembrar que o conceito de civilizao existe dentro de uma concepo ocidental de mundo. Jean Starobinski define a palavra: empregada para exprimir a ao de civilizar ou a tendncia de um povo a polir ou, antes, a corrigir seus costumes e seus usos, produzindo na sociedade civil uma moralidade luminosa (...). Cf. STAROBINSKI, Jean. As mscaras da civilizao: ensaios. So Paulo:Companhia das letras, 2001. Disponvel em: (acesso: 09 de setembro de 2009 s 11hrs49min) http://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=5B-kZ3O_ZowC&oi=fnd&pg=PA9&dq=conceito+de+civiliza%C3%A7%C3%A3o&ots=etWe071BQW&sig=VEVpSeXZCU8v6qIEDwFLHYWRl2I#v=onepage&q=conceito%20de%20civiliza%C3%A7%C3%A3o&f=false
http://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=5B-kZ3O_ZowC&oi=fnd&pg=PA9&dq=conceito+de+civiliza%C3%A7%C3%A3o&ots=etWe071BQW&sig=VEVpSeXZCU8v6qIEDwFLHYWRl2I#v=onepage&q=conceito%20de%20civiliza%C3%A7%C3%A3o&f=falsehttp://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=5B-kZ3O_ZowC&oi=fnd&pg=PA9&dq=conceito+de+civiliza%C3%A7%C3%A3o&ots=etWe071BQW&sig=VEVpSeXZCU8v6qIEDwFLHYWRl2I#v=onepage&q=conceito%20de%20civiliza%C3%A7%C3%A3o&f=falsehttp://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=5B-kZ3O_ZowC&oi=fnd&pg=PA9&dq=conceito+de+civiliza%C3%A7%C3%A3o&ots=etWe071BQW&sig=VEVpSeXZCU8v6qIEDwFLHYWRl2I#v=onepage&q=conceito%20de%20civiliza%C3%A7%C3%A3o&f=falsehttp://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=5B-kZ3O_ZowC&oi=fnd&pg=PA9&dq=conceito+de+civiliza%C3%A7%C3%A3o&ots=etWe071BQW&sig=VEVpSeXZCU8v6qIEDwFLHYWRl2I#v=onepage&q=conceito%20de%20civiliza%C3%A7%C3%A3o&f=false
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Apesar de que nesta abordagem do surrealismo tem sido privilegiada a
composio potica, importante lembrar que a pintura e a msica tambm
fizeram sua contribuio para o movimento surrealista. As consideraes feitas
por Chniux-Gendron tambm dizem respeito a uma criao plstica, pois
antes de ter um carter potico, a imagem, pela sua prpria natureza, tem sido
mais ligada ao campo pictrico do que poesia. Dessa maneira, Maria Ins
Frana destaca alguns elementos da pintura no contexto do surrealismo:
Pela adeso ao modelo interior (...) Picasso o grande exemplo de um artista moderno pois deu corpo fantasia dos poetas com suas obras posteriores a 1909. Ao atacar de frente as coisas sensveis, e sobretudo, seu aspecto habitual, o artista vai alm da pintura, dando um passo ulterior com a adoo da colagem em suas obras, nas quais consegue realizar uma sntese entre os aspectos visuais e verbais. Produtor de um drama, cujo nico palco o esprito (...). Por sua vez Ernst rene objetos disparatados segundo uma ordem diferente da habitual e evitando, na medida do possvel, qualquer inteno preconcebida, Ernst afirma, por intermdio da imagem, novos tipos de relao que aproximam a pintura da poesia. (FRANA, 2008, p. 482)
Ao falar de Picasso, Annateresa Fabris lembra o tipo de percepo dos
objetos defendida por Lacan, retomada pelos poetas surrealistas de um jogo
de luz e opacidade, como salientado por Maria Ins Frana, pois o pintor
olhava os objetos, mas eles eram decompostos nas suas telas at alcanar
uma possvel essncia do mesmo; para tanto, o pintor utilizava a tcnica da
colagem, combinando elementos verbais, que se materializam na tela mediante
a decomposio de um objeto nos seus vrios planos, dinamizando o quadro
para realizar o verbo, isto , realizar a ao na composio pictrica; e
elementos visuais que se veem referidos na mesma natureza imagtica da
pintura.
A autora tambm fala a respeito da tcnica utilizada por Ernst, que
juntava elementos dspares no mesmo contexto, provocando uma
desreferencializao dos objetos da realidade objetiva, como comentado
anteriormente a respeito das palavras. Dessa maneira, a pintura e a poesia
relativizam o significado convencional das imagens e das palavras, propondo
um novo entendimento do mundo atravs do mundo.
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30
Nesse sentido a poesia e a pintura se interligam rompendo com a
legitimidade de representao de cada uma das linguagens expressivas.
Certamente a ligao de ambas as artes no foi esgotada nesta brevssima
considerao, porm importante lembrar que no contexto vanguardista as
artes buscavam a renovao da expresso e, portanto, o dilogo entre poesia e
outros meios de criao artstica.
Dentro desse dilogo, a poesia surrealista tambm deu ateno
produo musical moderna:
As relaes entre o movimento surrealista e a msica foram poucas e tmidas (...). No entanto, existem pontos em comum entre certas questes estticas do surrealismo e uma parte da msica do sculo XX (...). Andrea De Chirico introduz na msica erudita certo estranhamento: a frase termina com uma fermata sobre uma pausa, criando uma suspenso de ritmo no silncio e isolando-a do que se segue na composio. (TRAGTENBERG, 2008, 465)
Em primeiro lugar importante ressaltar que assim como o crtico
afirma que o dilogo existente entre msica e produo surrealista foi pouco e
tmido, nesta considerao acerca da msica e o surrealismo no
pretendemos aprofundar nas teorias musicais e muito menos esgotar o tema
referente ligao das duas expresses artsticas.
E em relao a essa ligao Lvio Tragtenberg ressalta a importncia
de Andrea De Chirico na msica, j que este introduz na sua composio
musical uma inadequao que o crtico explica como o uso de pausas
prolongadas no final das frases musicais, gerando um silncio que suspende o
ritmo. Na poesia possvel ver esse tipo de tcnica em poemas como os de
Henri Michaux: In the song of my anger there is an egg, / and in this egg is my
mother, my father, my children, / () I am gong and cotton and snow-like song,
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31
I say it and im sure of it.17 Onde cada verso corresponde a uma ideia sinttica
fechada e cada vrgula a uma pausa que suspende na leitura a rtmica do
poema.
importante ressaltar que esse tipo de tcnica libera a poesia dos
modelos tradicionais, onde o poema era musical desde que preservasse uma
rtmica e uma mtrica bem diferenciada e identificvel.
Sem dvida nenhuma a msica esteve muito presente desde a
antiguidade clssica dentro da produo potica. Contudo, na poesia
surrealista muitas vezes foi difcil identificar alguma relao pelo mesmo
princpio que dizia respeito a uma desvinculao do aspecto formal do poema e
o seu contedo. O que no quer dizer que os artistas surrealistas no
estivessem preocupados com a forma expressiva, pois as diferentes tcnicas
surgidas a partir de jogos e experincias revelam sua profunda preocupao
com a forma potica. O que a relao da poesia com a msica e as artes
plsticas mostra uma preocupao pela renovao da criao potica atravs
do dilogo estabelecido com ambas as artes.
Levando tudo o que foi comentado at agora em considerao, podemos
dizer que o surrealismo surgiu como viso de mundo e corrente esttica que
reavaliava os princpios que sustentavam a sociedade do comeo do sculo XX
e que a partir da inconformidade com a realidade-material e objetiva,
experimentou diferentes formas para abranger as diferentes possibilidades de
existncia no mundo. Sua esttica se baseou na busca do irracional e do
incivilizado e do selvagem, explorando a experincia do olhar. Isso tudo com
o intuito de propor uma nova ordem e ascender atravs da arte, j que como
mencionado no incio deste captulo, os artistas surrealistas e os das outras
vanguardas acreditavam que era a arte que salvaria a humanidade da
decadncia provocada pelo progresso.
17
Cf. Henri Michaux / Louise Landes Levi. Toward Totality I (Vers La Completude) & Toward Totality II (Vers La Completude) . Longhouse, 2006. First edition. Disponvel em: (acesso em: 02 de outubro de 2009) http://www.longhousepoetry.com/landeslevi.html.
http://www.longhousepoetry.com/landeslevi.html
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32
Como proposta de movimento esttico e filosfico, o surrealismo chega
ao Brasil num contexto marcado pelas revoltas de 1920 e pelo populismo de
Getlio Vargas na dcada seguinte, e por preocupaes estticas que estariam
voltadas para a criao de uma brasilidade. Portanto, elas definiam um modo
de ser brasileiro dentro das diferentes expresses artsticas. Isto ocasionou a
falta de uma recepo muito grande, pois os princpios modernistas cannicos
seriam incompatveis com uma esttica que queria no reduzir conceitos e sim
explorar a multiplicidade deles, o que no quer dizer que no houve artistas e
poetas que aderiram a alguns dos princpios surrealistas.
Entre estes poetas esto Jorge de Lima e Murilo Mendes.
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3. O Brasil e a experincia surrealista
3.1 Insero do surrealismo no contexto do modernismo brasileiro
A partir das consideraes sobre o surgimento do movimento surrealista
na Frana, tentaremos analisar neste captulo de que maneira se deu a
recepo da esttica surrealista pelos artistas brasileiros no contexto da
primeira e segunda fase do modernismo, isto , nas dcadas de 1920 e 1940,
momento em que Murilo Mendes publica suas obras de maior teor surrealista.
Para entender esse processo, devemos compreender que no comeo
do sculo XX, como muitos pases, O Brasil passava por um processo de
reestruturao esttica, tendo como principal preocupao artstica a busca de
uma reverificao do instrumento de trabalho para que os artistas se
expressassem com identidade (ANDRADE, 1974, p. 244), j que os
movimentos estticos finisseculares se encontravam desgastados, por serem
considerados arqutipos que seguiam, sem contestao, o academicismo
(SIMON, 1990, p. 120) da tradio cannica principalmente europeia e que em
nada dizia respeito realidade nacional. Para isso, reivindicou-se a
revitalizao da cultura popular e do elemento cotidiano da cidade. Dessa
maneira, a esttica modernista brasileira se preocupou em buscar uma
identidade para a arte, dotando-a de um rosto nacional, embora essa busca
identitria no fosse a mesma do momento romntico18. Essa preocupao
levou os artistas modernistas busca de uma atualizao da inteligncia
artstica brasileira; a estabilizao de uma conscincia criadora nacional e o
direito permanente pesquisa esttica, (ANDRADE, 1974, p. 242). A respeito
deste ltimo princpio, os artistas modernistas tiveram que voltar seu olhar para
fora das fronteiras estticas e seu referente cultural foi a produo artstica
18
importante lembrar que o romantismo, tanto no Brasil, como nos demais pases da Amrica Latina, serviu como criador de mitos, que recuperava aqueles elementos da cultura popular que tinham sido esquecidos pela tradio europeizante das letras, isto para poder configurar a ideia de nao.
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europeia, embora esta no significasse um programa fechado a ser seguido e
sim uma espcie de catalisador do processo de modernizao das letras
brasileiras.
Dentro desse contexto, o surrealismo no recebeu uma ateno
minuciosa nem por parte da crtica artstica e literria, nem pelos prprios
artistas que lideravam o modernismo brasileiro, talvez principalmente porque os
princpios filosficos e estticos surrealistas no visavam uma potica
nacional, muito pelo contrrio, os artistas surrealistas entendiam que nem a
arte, nem o ser humano podiam reduzir-se ao espao fsico-material, j que
esta no era suficiente para satisfazer s necessidades do homem, pois o uso
mecnico e mercantilista de todas as coisas (NEWTON, 2008, p. 64) denegria
a figura do humano, como apontado no primeiro captulo desta monografia.
Contudo, no podemos afirmar que no houve artistas que aderiram a alguns
dos princpios surrealistas, como veremos mais adiante ser o caso de As
Metamorfoses de Murilo Mendes.
Poderia dizer-se ento, que apesar da falta de uma ateno meticulosa
aos princpios estticos surrealistas por parte da comunidade artstica do
comeo do sculo passado, houve artistas que abraaram a filosofia
transformadora do movimento, como salienta o crtico Srgio Lima.
(...) veio o movimento surrealista, um movimento aberto ao porvir e no um programa fechado, nem dogmtico ou preso s ortodoxias, tampouco obediente aos cnones de que se valem todos os seus detratores (...) Sendo o movimento surrealista uma atividade internacional e internacionalista, os episdios brasileiros que lhe dizem respeito extrapolam o local, a 'cor local', etc., pois vinculam-se a um contexto pluralista - no contexto cosmopolita, internacional e no regional (...) O movimento dos surrealistas posicionou-se sempre a contrapelo, no avesso do tradicionalismo, longe do fator caracterstico, sempre dizendo no ao domstico e ao regionalista (...). Ora, o movimento surrealista configurou-se enquanto revolta de esprito e, desde o incio, fez sua as premissas de Rimbaud e Marx: mudar a vida' e transformar o mundo. (LIMA, 2008, p. 224)
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Nessa breve considerao sobre a chegada e a recepo que o
movimento teve no Brasil, Srgio Lima destaca vrios elementos que gostaria
de analisar com mais cuidado. O primeiro diz respeito abertura do
movimento: ao caracterizar o surrealismo como algo aberto ao porvir, o crtico
flexibiliza a estrutura filosfica e esttica do movimento, j que aponta para a
possibilidade de novos rumos para tanto para atividade criativa como para a
atuao do ser humano na sociedade.
A este elemento se conecta a finalidade modificadora da vida atravs
da criao artstica, ressaltada pelo crtico. Sem dvida nenhuma ao ser
caracterizado como um movimento aberto ao porvir, o surrealismo expande
as possibilidades de criao artstica que por sua vez, so decorrentes de uma
mudana de pensamento nos indivduos e consequentemente nos artistas;
segundo essa perspectiva a comunidade artstica produziria uma
transformao no mundo. Esse ideal diz respeito a uma concepo
emancipadora da arte que foi assimilada pelos artistas brasileiros que aderiram
ao surrealismo.
Isto talvez fosse resultado da situao scio-poltica que o Brasil
enfrentava nas primeiras dcadas do sculo passado. As duas revoltas
militares, por exemplo, nas dcadas de 1920 e 1930: a primeira, em 1924,
conhecida como revolta paulista ou a revoluo esquecida (CARONE, 1965,
p. 50), quando as foras militares tentaram depor o presidente Epitcio Pessoa
por este representar um governo anti-militarista19; a segunda, a que culminou
com o golpe de 1930 liderada por Getlio Vargas, intensificando a disparidade
entre as classes sociais.
Levando em considerao o que j foi mencionado, podemos dizer que
ao chegar ao Brasil o surrealismo no pretendia seguir o sistema programtico
da esttica modernista mais dogmtica que visava uma arte representante da
realidade nacional, j que esta no era de todo satisfatria, pois os processos
econmicos e polticos que a sociedade brasileira enfrentava desde a
19
CARONE, Edgard. Revolues do Brasil contemporneo. So Paulo: editora S.A., 1965
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declarao da independncia levaram a uma sociedade que submetia seus
cidados.20
Decorrente desse pensamento no-regionalista dos artistas brasileiros
que aderiram ao surrealismo se encontra o carter internacionalista
mencionado por Srgio Lima, e que se explica como a reivindicao da
liberdade no sentido mais amplo do termo: liberdade de pensamento, liberdade
de criao e liberdade expressiva. Para tanto, os surrealistas recorreram ao
passado literrio no-oficial (pelo menos at as primeiras dcadas do sculo
XX), isto , autores simbolistas que exploravam questes que no diziam
respeito realidade nacional do final do sculo XIX, e que procuravam, ao
invs de retratar uma sociedade burguesa nascente, tratar da temtica da
desesperao existencial e o transcendentalismo teocntrico e/ou ocultista
representados por Cruz e Souza (MOISS, 2001, p.263); alm disso, os
surrealistas brasileiros recorreram a alguns dos princpios do anarquismo e do
ocultismo da Tradio Antiga, da qual tiveram notcia atravs da leitura da obra
potica do poeta simbolista paranaense Dario Velloso21. importante assinalar
que o surrealismo se desenvolve no Brasil quase paralelamente ao movimento
francs, isto foi possvel graas participao de Benjamin Pret na Revista de
Antropofagia a partir de 1929.
Partindo desses dois acontecimentos a redescoberta de artistas e
poetas simbolistas e o contanto com Benjamin Pret o grupo de poetas que
no compartilhava dos ideais identitrios dos modernistas cannicos22,
20
Com isto, no queremos dizer que os artistas que aderiram a alguns dos princpios da esttica e filosofia surrealista no fossem modernistas, muito pelo contrrio, eles eram modernistas a partir do momento em que existia uma ruptura com as tradies cannicas artsticas da poca, no obstante, estes artistas no procuravam a identidade nacional atravs da palavra. 21
No ensaio Notas acerca do surrealismo no Brasil (da dcada de 1920 at os dias de hoje), Srgio Lima comenta este tipo de filosofia, como o ocultismo e as referncias da Tradio Antiga expandiram a viso de mundo dos artistas que realizavam pesquisas no campo do surrealismo. 22
Vale a pena esclarecer que as consideraes que dizem respeito separao entre os artistas e poetas modernistas que procuravam uma brasilidade, e a comunidade artstica que aderiu aos pressupostos surrealistas no significa a falta de dilogo entre ambos os grupos artsticos, mas sim uma discordncia de princpios, pois enquanto os artistas da primeira fase do modernismo buscavam uma esttica que dissesse respeito a uma identidade que retratara o cotidiano da vida brasileira, os surrealistas buscavam a direo contrria, isto , buscavam
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procurava desenvolver diferentes temticas e usos da linguagem que
promovesse um novo olhar sobre a esttica e o mundo. Lembrando que, tanto
na Frana como no Brasil, o movimento surrealista no significou pelo menos
para seus adeptos uma nova escola esttica, muito pelo contrrio, significava
a re-estruturao dos pilares que guiavam a sociedade da poca, pois todas as
pesquisas desenvolvidas nos campos das cincias ocultistas, a psicanlise, e o
mundo dos sonhos, ao serem repensados pela arte apontavam para a
mudana e para a transformao de um mundo que no respondia mais s
preocupaes existenciais do ser humano.
escapar dessa realidade cotidiana e local numa sociedade marcada pelas problemticas poltico-econmicas do comeo do sculo passado
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3.2 Murilo Mendes e o surrealismo
Murilo Mendes considerado pela crtica literria como poeta
surrealista dentro do contexto do modernismo brasileiro, mas o que nos leva a
pensar que verdadeiramente surrealista? Murilo Mendes um poeta
surrealista, ou apresenta caractersticas surrealistas? Para comear a
responder a essas perguntas importante voltar o olhar para a cidade em que
o poeta nasceu. No comeo do sculo passado a cidade de Juiz de Fora,
segundo as consideraes de Jlio Castaon Guimares, estava dividida
geograficamente em dois lados pela Rua Halfel. Um deles estava ocupado por
cidados que guardavam os preceitos tradicionais de uma elite burguesa crist,
no qual Murilo Mendes morava com a sua famlia. O outro grupo da cidade era
formado por pessoas mais liberais, onde os cinemas, as praas de namoro, a
zona de prostitutas e a maonaria (GUIMARES, 1993, P. 16) faziam parte do
cotidiano. Assim percebe-se que Murilo Mendes se deparou desde criana com
duas realidades completamente diferentes e opostas entre si, mas que
coexistiam unificando a cidade como um todo, o que poderia ter gerado um
primeiro desconcerto e desconforto por parte do autor frente a uma realidade
to complexa.
Certamente os dados biogrficos de um autor no so suficientes para
analisar aprofundadamente a sua obra, e muito menos se este autor se insere
numa poca em que a maioria dos artistas e poetas saudavam a separao da
vida pessoal da criao artstica, ressaltando desse modo o carter artificioso
da arte; no obstante, ao lembrar o salientado por Newton Cunha, podemos
dizer que a filosofia surrealista repousava sob o princpio que dizia respeito
ligao da experincia do eu do prprio poeta com a criao artificiosa da arte
(CUNHA, 2008). Assim talvez a incluso da vida do autor na sua criao
potica se deva a certo desconforto de parte do autor diante da sua realidade:
Essas caractersticas, de resto, foram assinaladas desde o incio pelo prprio Murilo Mendes (...), o que ainda continua a ser necessrio, analisar em profundidade as manifestaes e consequncias de tal
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atitude totalizante em Murilo Mendes, que aspirava no apenas a uma poesia inclusiva, mas tambm poetizao ou transfigurao da prpria biografia. (MOURA, 1995, p. 16)
A partir dessa perspectiva, podemos dizer que o poeta buscava a
incluso da sua prpria vida na criao potica para uma poesia totalizante,
conceito que analisaremos mais adiante, pois atravs do trabalho artificioso da
poesia a vida poderia ressignificar-se e tomar, desta maneira, rumos que
permitissem explorar outro entendimento da realidade do seu contexto.23 Sem
dvida nenhuma estes aspectos confluram juntos para uma composio que
apontava para um entendimento do mundo como um todo sem as delimitaes
estabelecidas pelas normas da sociedade burguesa ocidental, o que gera no
interior do poema uma situao conflitante entre o ser humano e a realidade
pautada por essas regras. Dentro desse entendimento, em que vemos referida
a interligao da vida e da arte, Murilo Mendes tambm se viu influenciado por
alguns encontros com figuras artsticas da poca; um desses artistas foi o
pintor Ismael Nery:
(...) em 1921, passa a ser seu colega de trabalho Ismael Nery, recm-chegado da Europa e nomeado desenhista da seo de arquitetura e topografia. Pintor, arquiteto, filsofo, poeta e danarino (...), Ismael Nery foi importante veculo para que Murilo tivesse conhecimento atualizado das obras surrealistas (...) a figura de Ismael Nery significou um catalisador de questes essenciais no desenvolvimento de universo intelectual de Murilo. (GUIMARES, 1993, p. 23-25)
Desta maneira, nesses primeiros anos de produo potica, a figura de
Ismael Nery foi de muita importncia para Murilo Mendes, pois as viagens
feitas pela Europa nos primeiros anos do sculo passado permitiram ao pintor
adquirir informaes sobre as tcnicas de composio pictrica surrealista, o
que influenciou e dinamizou a obra potica de Murilo Mendes. Alm da
influncia artstica, Ismael Nery participou de forma ativa na converso do
poeta ao catolicismo, isto no s teve repercusses na vida espiritual do poeta,
23
Devemos lembrar a esse respeito que os surrealistas franceses acreditavam que s a arte podia salvar o estado decadente da sociedade do comeo do sculo passado, como salientado por Newton Cunha ao dizer que a arte devia ser vivida, ou melhor, deveria existir a arte de viver. Cf. CUNHA, Newton. Filosofia e surrealismo: a insuficincia da realidade. In:__________________ GUINSBURG, J.; LEIRNER, Sheila. O surrealismo. So Paulo: Perspectiva, 2008
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mas tambm na sua produo potica, pois tanto para Nery e posteriormente
para Murilo Mendes, a religio era um modo para encontrar a essncia da
existncia, diferena dos surrealistas franceses, que acreditavam que a
religio, e aqui pensamos na tradio crist, limitava o espao de ao do ser
humano, pois seus dogmas no permitiam explorar todos os campos de
conhecimento.
A partir do encontro com Ismael Nery, Murilo Mendes se aproxima do
surrealismo e, dessa maneira, empreende sua prpria pesquisa sobre as
questes filosficas e estticas do movimento francs, o que no significa que
sua obra seja necessria e completamente surrealista:
Desde a primeira poca da formao do surrealismo, informei-me avidamente sobre essa tcnica da vanguarda (valorizao do elemento metafsico), a qual, embora eu no adotasse como sistema, me fascinava, compelindo-me criao de uma atmosfera inslita, e ao abandono de esquemas fceis e previstos. Tratava-se de um dever de cultura. O Brasil, segundo Jorge de Sena, surrealista de nascimento de modo que a minha converso, ainda que parcial, quele mtodo, no foi difcil (MENDES, 1994, p. 1270)
Murilo Mendes, ao falar da problemtica metafsica tratada pelo pintor
Giorgio de Chirico, revela que o seu interesse no modo de criao da
vanguarda surrealista obedece a um dever de cultura, pois como apontado na
primeira parte deste captulo, os fatos que diziam respeito situao poltico-
social do Brasil restringiam o ser humano a uma espcie de rob que
obedecia aos valores capitalistas, alm de o governo significar uma fonte
opressora do pensamento. No que se refere ao mbito cultural, os modernistas
negavam e rompiam com o passado esttico. Diante dessa situao e como
poeta modernista-surrealista, Murilo Mendes expressava esse cansao da
realidade e propunha uma nova compreenso da realidade. Alm disso, Murilo
Mendes acreditava que a aderncia a alguns princpios surrealistas era dever
de cultura no s pelas razes j explicitadas, mas tambm porque acreditava
no que Jorge de Sena pensava sobre o pas: o Brasil surrealista de
nascimento, e que isso talvez se devesse s diferentes culturas que
configuraram o pas, desde a sua fundao.
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Por estas razes, Murilo Mendes se interessa pelo elemento metafsico
do mundo, construdo atravs de atmosferas inslitas e a rejeio aos
esquemas fceis, o que constatado pelo leitor ao encontrar, nos diferentes
poemas, uma confluncia de imagens superpostas umas s outras sem serem
necessariamente iguais ou correspondentes, muito pelo contrrio, na maioria
das vezes essas imagens so completamente opostas e contrrias entre si, o
que produz uma ressignificao das mesmas, isto , as imagens ganham
novos sentidos. Partindo dessas consideraes vamos enumerar alguns dos
traos surrealistas que se encontram na poesia muriliana, e mais adiante
veremos como isso se resolve mais especificamente no livro As Metamorfoses.
Murilo Marcondes Moura identifica na obra do poeta uma busca pela
totalidade, o que define como sendo a unificao do mundo como um todo
reunindo e destacando muito mais as suas contradies do que as suas
correspondncias:
Murilo Mendes sempre perseguiu a totalidade e essa busca imprimiu em toda sua obra caractersticas de uma arte combinatria (...) e podemos identific-la com uma operao obstinada de reunio e sntese de elementos heterclitos. As caractersticas resultantes dessa concepo so conhecidas: a enorme incidncia de contrrios e a busca por um ponto de vista unificador, valorizao da imagem, o dilogo com outras artes e a interao entre arte e vida. (MOURA, 1995, p. 13)
O crtico aponta para uma caracterstica essencial da obra muriliana:
uma busca pela totalidade, que se v refletida no uso diferenciado que o autor
faz da linguagem e que por sua vez resulta no que o crtico chama de ars
combinatria (grifo do autor). Para tanto, Murilo Mendes trabalha com a
potncia da palavra, retirando-a do seu contexto habitual e dando a ela novas
possibilidades de significados. Essa totalidade responde ao princpio surrealista
que diz respeito insuficincia da realidade-material e circundante.
Na leitura da poesia muriliana, podemos observar que essa arte
combinatria se d em trs planos diferentes. De forma didtica
apresentaremos os trs e posteriormente faremos um desdobramento de cada
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um deles. O primeiro diz respeito aos objetos que designam significados
opostos; o segundo aponta para a relao estabelecida entre a tradio
religiosa-crist, mais especificamente catlica, e as diferentes mitologias ou
tradies msticas; finalmente o terceiro nvel se direciona para a interligao
que existe entre a poesia e outras artes: msica e artes plsticas.
Em relao ao primeiro nvel, importante ressaltar entre os princpios
estticos do surrealismo se encontrava a desvinculao dos objetos dos seus
referentes mais imediatos e sua posterior recolocao em contextos
completamente diferentes. Isto gera a aproximao de elementos contrrios e
opostos entre si, o que ocasiona a destruio de significados lgico-semnticos
e prope uma reconfigurao do mundo, e um novo olhar sobre as coisas,
como se verifica no poema ANTI-ELEGIA N 1, do livro Os quatro
elementos24, e onde os elementos considerados opostos por natureza so
equiparados, eliminando suas fronteiras e demonstrando para o leitor que
esses elementos contrrios se ligam entre si formando um todo completo.
O dia e a noite so ligados pelo prazer E pelas ondas do ar A vida e a morte so ligadas pelas flores E pelos tneis futuros Deus e o demnio so ligados pelo homem. (MENDES, 1994, p. 266)
25
Os opostos cannicos e mais lgicos so retirados das suas caixas
fechadas de significado e re-colocados num mesmo universo onde eles
transitam, e/ou se ligam um com o outro sem nenhuma dificuldade. As
justaposies feitas entre dia/noite; vida/morte; Deus/demnio fazem com que
as palavras ganhem novos significados, assim o dia no representa mais aquilo
24
Neste livro Murilo Mendes prope uma reflexo ontolgica do homem como ser reinante sobre esses elementos e com eles misticamente fundido (ARAJO, 200, p. 82), o que j um encaminhamento para uma potica surrealista, aonde o homem e os demais elementos do mundo se combinam para alcanar a essncia da existncia.
25
MENDES, Murilo. Os quatro elementos. In:_________________ Murilo Mendes: Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994
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que por conveno lhe atribudo. Isto , o dia no mais o tempo em que as
pessoas trabalham, e em que as normas de comportamento so monitoradas,
pois o ser humano est exposto luz e aos olhares dos outros. O dia se
transforma em um tempo em que as normas sociais podem no ser
respeitadas ou valorizadas. Da mesma forma, a vida no se diferencia da
morte pelo fato de um elemento apresentar caractersticas biolgicas de
existncia, ela se aproxima pelas flores, e interessante o uso das flores
aqui, pois sendo vida vegetal, tambm representam convencionalmente a
morte.
O verso seguinte revela uma tradio tanto crist como pag, j que
muitas religies acreditam na outra vida aps a morte. E o ltimo verso
aproxima os maiores opostos sociais e religiosos, como o so Deus e o
demnio. Nesta associao Deus desce do pedestal em que foi colocado e o
demnio ganha um pouco de divindade, ambos so equiparados em poder,
nenhum dos dois mais ou menos poderoso do que o outro, desafiando as
fronteiras limitadoras da religio crist e sem elas, e desta maneira, o ser
humano obtm maior liberdade de ao.
A respeito da relao entre a religio crist catlica e outras tradies
msticas podemos dizer que, Murilo Mendes abrange desse modo, o mundo
material, o imaginrio e o mundo religioso, o que permite que as dicotomias
homem/Deus; visvel/invisvel; material/imaterial que aparecem na poesia
muriliana no funcionem como afirmao de si prprias; muito pelo contrrio,
elas se aproximam e se configuram como tendentes para o absoluto e
expostas, entretanto, s contingncias de uma experincia terrestre (ARAJO,
2000, p. 76), isto , esses elementos no funcionam de forma isolada e
fechada, ganhando permeabilidade, o que permite a interferncia e a
dependncia entre eles, embora limitados pelo espao material-fsico.
Esses tipos de relaes so referidas em poemas como A esfinge, no
qual o poeta se vale do mito grego conhecido como o enigma da esfinge,
encontrado na pea grega dipo Rei. No caso dessa pea, o leitor se depara
com o desafio que a esfinge lana a dipo: de manh tem quatro pernas, ao
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meio-dia tem duas e ao entardecer trs (SCHWAB, 1994, p. 273), ao qual
dipo responde corretamente, fazendo com que a esfinge se atire de um
rochedo. J no poema de Murilo Mendes encontramos um eu lrico, que se
coloca no lugar da esfinge, pedindo a Deus que o decifre Deus/ eu nasci
para ser decifrado por ti/ com um p no limbo, o corao na estrela Vnus e a
cabea na Igreja (MENDES, 1994, p. 291). interessante observar que
nesses primeiros versos o eu lrico lana a Deus uma espcie de enigma
sobre sua humanidade, mas que no resolvido no final do poema. Ao se
colocar no lugar na esfinge, observamos um processo contrrio ao encontrado
no mito grego, assim como tambm a inverso das hierarquias no mundo
cristo, que acredita que Deus onipresente e onipotente e, portanto, conhece
a natureza humana. No poema, o Deus representado no conhece esse eu
que fala, pois ele no um ser unificado e simples.
O elemento religioso encontrado em Murilo Mendes um diferencial
entre sua potica e a dos surrealistas franceses, pois estes no consideravam
a religio como um meio que levasse esses artistas apreenso da totalidade
do mundo; muito pelo contrrio, a religio crist era condenada pelos
surrealistas, pois a Igreja, com os seus dogmas mais ortodoxos, eliminava o
campo de ao do homem, alm de fazer parte dos valores da burguesia do
comeo do sculo passado. Como Breton j apontara a respeito da separao
do surrealismo e o comunismo: Breton observou o processo de regresso
rpida da Revoluo Russa que recuperava a ptria, a famlia, faltando apenas
restabelecer a religio (NAZARIO, 2008, p. 43).
Finalmente, o ltimo nvel ressaltado por Marcondes Moura aponta
para a interligao entre a poesia e outras artes, entre elas a pintura e a
msica, ambas muito presentes em toda sua obra. A relao entre as artes
plsticas na poesia muriliana se verifica de forma temtica e estrutural. No
primeiro caso importante lembrar que as questes que dizem respeito
pintura estiveram muito presentes na vida de Murilo Mendes. Assim sendo,
encontramos inmeros poemas que so dedicados a diversos pintores, na sua
maioria de carter surrealista; isto tambm verificvel em poemas como uma
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nuvem, que se encontra no livro As metamorfoses, em que o eu lrico fala
sobre um quadro de Domenico Theotocopoules (El Greco). J no segundo
caso M