o segredo dos girassÓis - o diÁrio de anna goldin
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O segredo dos girassóis é vencedor de três prêmios, em literatura: -, o prêmio de excelência em literatura, o selo de boa escolha e a palma de bronze de léxico literário "o que quer dizer, que o livro é quase um glossário ") o segredo dos girassóis traz de volta o romantismo do século XVIII, e nos envolve em uma trama cheia de mistérios e aventuras onde a personagem principal Anna Goldin nos mostra que é possível manter a dignidade e a virtude embora o preconceito da inquisição espanhola violasse os direitos das mulheres da é época. A personagem embora seja apenas uma jovem, nos comove com sua determinação e coragem. Vale apena conferir. Boa leituraTRANSCRIPT
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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O SEGREDO DOS GIRASSÓIS
O Diário de Anna Goldin
Adriana Matheus
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Adriana Matheus
São Paulo 2014
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS
O Diário de Anna Goldin
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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A Editora
Ixtlan
Apresenta...
Adriana Matheus
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS
O diário de Anna Goldin
Adriana Matheus
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O Segredo dos Girassóis
O diário de Anna Goldin
Adriana Matheus
“O amor é infinito e solene e quando é verdadeiro
atravessa as barreiras do impossível, para que sempre
possamos estar juntos.”
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por
qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem
permissão expressa da autora. (Lei nº 5.988 14/12/73).
Adriana Matheus
2ª Edição
2014
CIP. Brasil. Catalogação na Publicação.
M427s - Matheus, Adriana, 1970.
O Segredo dos Girassóis/Adriana Matheus - Juiz de Fora - MG. 410 p. : il.
ISBN: 978-85-78-78-028-9
Ficção brasileira. 2. Romance espírita I.Título.
Copyright © Adriana Matheus Projeto gráfico: Editora Ixtlan Diagramação: Márcia Todeschini Edição de Capa: Adriana Matheus Revisão ortográfica: Texto Legal - http://textolegal.weebly.com
Adriana Matheus
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Agradecimentos Especiais
Ao senhor Wanderley Luiz de Oliveira, presidente da
Associação de Cultura Luso-Brasileira/ JF - MG, por todo o
incentivo dado a esta obra.
Ao Senhor Roberto Dilly, diretor do Museu do Crédito
Real/JF - MG, que tão generosamente cedeu o salão para o
lançamento desta obra.
À Drª. Maria Auxiliadora Assis, que é uma das maiores
colaboradoras desta obra e, também, patrocinadora.
Às amigas Átria Maria Alves e Dulcinéia de Assis
Teixeira, cujo apoio e participação foram indispensáveis para
que esta obra fosse publicada.
A Stéphanie Lyanie e à equipe da Texto Legal. Sem essa
equipe fantástica e incrível, esta obra não estaria tão lindamente
corrigida.
Ofereço esta obra à Academia de Letras da Manchester
Mineira/Juiz de Fora - MG, por tanto homenagear os pequenos
e grandes autores de nossa cidade – valorizando, assim, a nossa
cultura literária.
Adriana Matheus
À autora
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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NOTA DA AUTORA
Nesta incrível história de ficção, a autora convida o
leitor a viajar através do tempo astral em uma fantástica
aventura, cheia de suspense, bom humor e sedução. Sua
principal personagem, Anna Goldin, vai mostrar ao leitor que,
mesmo no meio dos horrores da Inquisição, ela ainda conseguiu
sonhar e ser determinada em seus ideais de liberdade e
igualdade, conseguindo manter, também, a dignidade, e
honrando o valor de uma verdadeira amizade.
Mas o que poderiam ter em comum três pessoas tão
diferentes?
Uma bruxa, um monge e um jovem conde, unidos pelo
destino nessa fantástica trama de ódio, amor e intrigas. É isso
que o leitor terá que desvendar. E, por isso, Anna Goldin está
convidando-os a participar desta incrível história! Sejam bem-
vindos!
Como percebi que teria que escrever esta obra?
Na verdade, depois de um acidente, sonhei com toda
essa incrível história durante uma semana, consecutivamente.
Cheguei a comentar com algumas pessoas, que me disseram
não passar de meros sonhos. Confesso que procurei respostas
em muitos lugares. Mas esqueci de um lugar muito simples e
particular: dentro de mim. Pois é lá que está a resposta para
todas as perguntas frequentes em nossas vidas. Muitas vezes,
somos teimosos e medrosos demais para ouvir aquela voz que
está sempre nos mostrando o caminho. Temos medo do que
parece ser imaginário ou sobrenatural, mas não temos medo de
correr o risco de conhecer um desconhecido real da internet. Os
espíritos não podem nos fazer mal algum. Influenciam-nos
somente se abrirmos caminho para isso. O poder está todo em
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nossa mente, na nossa caixinha de segredos, no nosso
computador portátil e inigualável - o cérebro.
Como descobri que era médium?
Na verdade, como todas as pessoas, sempre fui. Só não
aceitava aquela voz dentro de mim.
Como tomei conhecimento da existência do Padre
Ângelo Wallejo Moralles?
Oito meses depois do acidente e já bem melhor, um belo
dia eu estava sentada na frente da creche onde costumava
deixar meus filhos. O mais novo deles estava em adaptação. Por
esse motivo, tinha que ficar até mais tarde presente neste local.
Sentei-me em um banquinho, do lado de fora. Como não havia
nada para fazer, peguei um bloco de notas e um lápis que
sempre trazia comigo. Comecei a rabiscar para ver se
conseguia desenhar o rosto que frequentemente aparecia-me em
sonhos. Mas, para minha surpresa, comecei a perder os
sentidos, como uma tonteira irregular. De repente, minha mão
começou a escrever sozinha. A princípio, tremi - confesso. Mas,
depois, fui dando asas àquele fenômeno. Quando parei para ler,
eram quase duas páginas de mensagens. Detalhe importante:
aquela letra não era minha. Fiquei tão fascinada com aquilo
que comentei erroneamente com várias pessoas, que saíram
achando-me uma doidivanas. Hoje, muitas destas pessoas já
receberam mensagens de seus entes falecidos, psicografadas
por mim. Graças a Deus, aprendi a lidar com meu dom com a
sabedoria do silêncio. Ganhei credibilidade e respeito.
Descobri minha missão. Sempre que tenho tempo, dedico à
caridade espiritual. Mas ainda sou aprendiz.
Quem foi e quem é Anna Shaara para mim?
Anna foi uma grande mulher que não se rendeu às
normas e às vontades dos homens. Na verdade, Anna Shaara
sou eu, é você que está lendo esta obra por mera curiosidade. A
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Anna são todas as mulheres que lutaram, que lutam e sempre
lutarão por um sonho de igualdade; mas - acima de tudo - que
têm um dom e o usam para o bem. Ela é aquela mulher que faz
de tudo para ver seu homem, seu amor feliz. É a mulher sábia
que, ao invés de brigar, cala-se e espera o momento certo de
falar e agir.
A Anna é a voz dentro de cada uma de nós. Ela é o
momento, a oportunidade que temos de nos redimir dos erros e
das falhas do passado.
Quando Anna Shaara voltou em minha vida?
Foi através de uma viagem astral (também chamada de
auto-hipnose), onde mostrou toda a sua sabedoria. Tive certeza
de que estava na hora de contar ao mundo minhas experiências
com os espíritos. Espero que esta obra seja de grande valia
para todos vocês que, mesmo por curiosidade, começaram a lê-
la. Mais uma vez, deixo minha eterna gratidão.
“Se o homem trabalha em prol da caridade, ele deve
tentar entender a verdade, mesmo que a mesma não seja
mostrada pelos olhos do aparelho. Se ele trabalha em prol de si
mesmo, continuará confuso e no escuro constante de seus
pensamentos atordoados. Felizes aqueles cuja compreensão de
reconhecer os seus próprios erros torna-os sábios. E essa
virtude faz com que eles ajudem o seu próximo em caridade e
abstinência, sem interrogações ou especulações. Pois o maior
dom divino está em ouvir e servir com humildade e
perseverança”.
Adriana Matheus
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SUMÁRIO
Capitulo I - O diário de Anna.....................................16
Capitulo II - A iniciação..............................................77
Capitulo III - O Livro das sombras...........................166
Capitulo IV - O Segredo de Elizabeth.......................219
Capitulo V - A Despedida..........................................334
CapituloVI - O Mosteiro............................................454
Capitulo VII - O Segredo dos Girassóis.....................519
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Prólogo
Estou com vinte e seis anos e vejo que minha vida
acabou-se. Vivi nesta curta jornada terrena tudo o que uma
pessoa com seus sessenta anos viveria ao longo de sua
existência. Mas é claro que, em questão de sofrimentos, fui uma
expert. Envelheci muito em três anos aqui, enclausurada neste
calabouço frio e escuro, onde fico relembrando os fatos e as
situações vividas desde a minha mais tenra infância. Outro dia,
pude ver meu reflexo em uma poça d’água que se acumulou no
chão, causada pelas diversas goteiras que caem do teto. Quase
não me reconheci. A maioria dos meus dentes caiu. Estou tão
maltrapilha e suja! Eles quase conseguiram sujar, também,
minha alma. Mas consegui separá-la do meu corpo, para que não
fosse maculada pela perversidade humana.
Sinto tanto frio; estou tão cansada e enfraquecida! As
dores, antes insuportáveis, agora já parecem mais brandas. Já
quase não sinto mais a minha perna. A corrente presa à minha
coxa esquerda já tinha parado a circulação, e a sensibilidade já
não era mais a mesma. Estou presa a este objeto há um ano ou
mais. Não me lembro exatamente de quanto tempo estou aqui. A
princípio, para evitar a loucura e a perda de memória, fiz
tracinhos nas paredes. Mas, com o tempo, fui me esquecendo até
de me levantar para comer o pão e a água que me trazem.
Temo não conseguir colocar neste diário tudo o que me
ocorreu durante toda a minha existência. Tenho a esperança de
um dia alguém me achar ou se lembrar de mim. Caso isso não
venha a ocorrer, sei que minha amiga Juanita encontrará um
meio deste diário chegar até às mãos de Maria. Quero que meus
irmãos de alma saibam o que passei por amar e por não negar
minhas origens. Os horrores e as injustiças que aconteceram em
minha vida, envolvendo seres considerados acima do bem e do
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mal, deixo aqui registrados. Não aumentei e nem inventei
absolutamente nada.
Algumas pessoas que se diziam com o poder de
direcionar o destino de outras, só pelo simples fato de terem nas
mãos um documento chamado Bula Papal, tornaram a minha
vida e a de outras mulheres a mais miserável possível. Pessoas
que se julgavam Deus ou mensageiros Dele. Seres humanos
como eu, mas que pareciam viver em um mundo mental paralelo
ao nosso. Parecia que, ao olharem uma mulher, viam nela outra
forma de vida aparente. Suas formas de manipular a população
eram tão convictas que causavam cegueira e histeria em massa –
e, logo, uma espécie de aliança cega entre a população e os
inquisidores. Na verdade, a voz do povo não era a voz de Deus,
mas sim a voz do inquisidor.
Minha história é muito complexa. Se algum dia esse
diário for encontrado e lido por outras pessoas, elas poderão
ficar atordoadas e confusas com os relatos registrados aqui. Mas
que fique bem claro que este é o meu diário. O diário da minha
vida terrena, onde conto a minha trajetória como mortal, mulher,
bruxa e como um ser humano esquecido pelo mundo
contraditório. Nesta história de vida passada, faço aqui duas
regressões e mostro o lado obscuro real da Inquisição. Conto
como o preconceito contra as mulheres era superior ao
sentimento maior: o amor verdadeiro. A religiosidade era usada
para encobrir o lado negro dos sacerdotes. O dinheiro comprava
e vendia tudo, até a alma humana. Os sacerdotes e seus
monarcas seguidores fanáticos tinham uma única vontade:
manter as mulheres submissas e a população humilde e sem
cultura sob os seus pés. Mas, na verdade, os monarcas também
eram marionetes destes discípulos do diabo. Pessoas que se
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mascaravam com uma bondade hipócrita, para não mostrarem a
verdadeira face escondida debaixo de peles de cordeiros.
Espero, em nome de Deus, que a humanidade um dia
possa evoluir para o seu próprio bem. E que estas almas, ao
encarnarem, também possam redimir-se destes pecados que
cometeram contra a humanidade. Vivi em um tempo muito
desequilibrado e hostil, em que mesmo os que tinham certo
estudo viviam na ignorância e no flagelo espiritual. As pessoas
não tinham o direito de ir e vir. As palavras, nem em
pensamentos poderiam permanecer. Se eu pudesse, aconselharia
todos a refletirem sobre seus atos e as consequências que podem
advir deles. Amem como se hoje fosse a primeira vez.
Esqueçam o passado, deixem as mágoas e quem os magoou para
trás. Porque a única coisa que realmente importa é o amor e o
perdão.
Espero, minha querida Maria, que encontre este diário e
que esta história da qual fez parte seja contada para todos os
nossos irmãos e irmãs, de geração em geração. Tenho certeza de
que não passei por todas estas coisas em vão. Aprendi muito
com a senhora. Sua sabedoria, bondade e benevolência foram
minha fonte de inspiração para eu estar aqui, hoje, lutando em
registrar estas palavras.
Lembra-se, Maria, de quando mais atrás me ensinou a
agradecer a Deus por todos os segundos de nossas vidas, mesmo
que eles fossem os últimos? Agradeço, sim, a Ele, mas nunca
me esqueço da senhora. Minhas orações são para você, bem
como meu amor e gratidão, minha amiga, minha mãe. Sim, pois
a senhora foi a única mãe que conheci.
Embora minha vida tenha sido tão curta, pude refletir e
compreender que nunca devemos parar de lutar pelo que
sonhamos e acreditamos. Sempre lutei e nunca temi ou me
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arrependo de ter chegado às últimas consequências. Nunca
desisti do meu único e verdadeiro amor, embora ele tenha me
traído e me abandonado. Nunca desejei mal a ele, mesmo
sabendo que pode estar nos braços de outra mulher. Não odeio
nem mesmo meus algozes, pois fazem parte da construção da
minha história. Aceitei o dom da mediunidade graças à senhora,
Maria, pois aprendi a ser responsável e mais humana. Sei que
são curtos os meus dias aqui, minha cara amiga. Mas morro com
dignidade e orgulho em saber que me assumo como sou: uma
bruxa.
A senhora ensinou-me que a responsabilidade de um
médium dobra quando ele ensina alguma coisa a outra pessoa.
Espero estar sendo coerente com as palavras aqui. Pois, assim
como fui sua discípula, terei discípulos que ouvirão minha
história e far-me-ão de exemplo. Sei desta responsabilidade e
não quero ser uma lenda e nem um exemplo, pois também
falhei. Apenas quero contar como tudo aconteceu comigo. Achei
que, por amor, poderia superar os sofrimentos que me seriam
impostos. Mas, agora, tenho certeza de que não sabia o quanto
o ser humano pode ser cruel em arquitetar uma forma de
torturar o outro. A maldade do ser humano é infinita e sem
igual.
Seguindo com a minha história...
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I – O DIÁRIO DE ANNA
madrugada estava cinza, como o meu coração...
Senti o vento frio entrar pela janela, beijando
meu rosto suavemente, como se fosse um
cumprimento casual e afetuoso. Estávamos perto do término do
outono. As folhas das árvores caíam como plumas ao chão! E
meus sonhos também.
Sentia-me muito só. Algo em meu coração estava
tentando falar, num silêncio descompassado. Naquela época, eu
via beleza em tudo ao meu redor. Mesmo nas horas de tristeza,
conseguia ver coisas boas. Mas alguma coisa parecia estar
errada.
Minhas noites sem dormir eram agonizantes. Eu tinha
um choro preso na garganta e, às vezes, sentia raiva de nada
aparente. Não sabia explicar o que era e, depois de andar quase a
noite toda pelo quarto, fui à janela observar a rua e senti o vento
úmido, que bateu em meu rosto, ainda molhado pelas lágrimas.
Os poucos transeuntes que se atreviam a andar pelas ruas
pareciam estar congelados e enroscavam-se em seus casacos de
lã, como caracóis em uma conchinha. Um redemoinho juntava
as folhas caídas ao chão, fazendo-as bailar sobre a calçada,
como em uma brincadeira de ciranda.
À medida que a neblina subia, mostrava ao longe o
espetáculo e a beleza escondida por trás daquela cortina
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acinzentada, criada pelo crepúsculo misterioso da floresta negra.
Sentia-me uma privilegiada por morar no fim daquela ruazinha
de pedras calcárias, muito polida pelo tempo. Eu tinha não só a
magia das montanhas ao longe, mas o cenário mais perfeito de
todo o mundo!
O lugar onde morávamos, para mim, não tinha preço.
Podia ser o mais simples e o mais isolado, mas, com certeza, era
o melhor lugar deste mundo, simplesmente por ser o nosso
habitat.
O cenário era mesmo incrível! Eu jamais me cansaria de
admirá-lo. Da janela do meu quarto, podia ver, desde a esquina,
a outra extremidade da rua sem saída. Havia uma pequena trilha
de terra, que dava para um misterioso bosque Mal Assombrado,
como diziam os viajantes que por ali passavam - também citado
nas cantigas das escravas como Floresta negra, ou ainda
chamado de Bosque dos Mortos pelos supersticiosos do vilarejo.
Muitas lendas foram criadas em torno desse
bosque. Na verdade, não sei se poderiam chamar essas histórias
de lendas, pois em certo ponto do bosque não havia nenhum tipo
de vegetação ou vida aparente. Sua terra era seca, e isso se
ocasionou depois que os moradores mais antigos queimaram
uma jovem amarrada a uma árvore, petrificada, acusando-a de
bruxaria. Eu nunca havia tido a coragem de ir até lá por medo do
que ouvia, mas ficava observando seu estranho silêncio da
minha janela nas noites de solidão. Nunca vi ou ouvi uma ave
gorjear por lá.
Ouvira dizer que nenhum ser vivente ou em seu juízo
perfeito atrever-se-ia a colocar seus pés naquele local obscuro e
sinistro. Eu, nas muitas vezes em que perdia o sono durante a
noite, jurava ter ouvido gemidos e clamores vindos daquele
bosque. Sombras pareciam sair do bosque, ou era apenas a
minha mente que as imaginava? Sempre preferi acreditar que
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fosse a minha imaginação, e nunca mencionei isso nem mesmo
para minha amada Maria.
À frente de minha casa, logo na esquina, antes de subir a
pequena trilha, ficava a mansão dos Sorancos Del Castilho,
gente sisuda, aparentemente orgulhosa e pouco amistosa. Eles
eram judeus convertidos ao cristianismo. Só os víamos nas
missas aos domingos e, mesmo assim, sentavam-se longe de
todos. Eram pessoas que pouco se viam transitar pelas ruas. A
senhora Del Castilho e suas filhas vestiam-se mais discretas do
que o normal, sempre com roupas austeras e escuras.
Não eram nada sociáveis. Não iam a festas, não
convidavam e sempre era possível vê-los observando as pessoas
de soslaio. Eram reservados e isolados. Eu mesma tive a
impressão de ter visto um ou outro me observando pelas costas.
Mas, quando me virava, tentando achar o que estava me
incomodando, não via nada. Eles pareciam fantasmas:
apareciam onde menos esperávamos, e sumiam da mesma
forma. Gentinha realmente estranha...
Diziam que eles eram muito ricos, e que seus dízimos
superavam as expectativas paroquiais. O Senhor Del Castilho
parecia um Lorde, com suas botinas e suas abotoaduras de
brilhante. Em questão de status, essa família, por certo, era a
mais rica do condado. O restante da vizinhança morava a muitos
metros à frente. Por isso, sentia-me muito tranquila em relação à
paz e ao sossego.
Por parte de meus pais, meus avós foram os pioneiros
daquele vilarejo. Eles fizeram muitas benfeitorias, como o belo
caminho feito de cerejeiras, que foram exclusivamente trazidas
da Inglaterra para enfeitar as laterais daquela larga ruazinha - o
que dava, além de graça e beleza, certo mistério ao trajeto. Era
incrível o enorme tapete de flores que se estendia para
passarmos no outono. O vilarejo ainda era pequeno e mais
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parecia um labirinto, porque todas as ruas se cruzavam. Todos
se conheciam, mas poucos eram amigos, e os mais jovens de
certos recursos financeiros eram enviados à Europa para
estudarem e, na maioria das vezes, não retornavam à casa
paterna. A vida no campo não lhes convinha mais. Mas, por
certo, Salamanca cresceria muito com os tempos que viriam.
Se chegasse qualquer estranho ao vilarejo, em questão de
pouco tempo todos os moradores ficavam sabendo da novidade.
Era engraçada a maneira como os habitantes daquele pequeno
vilarejo comportavam-se. Tão primitivos!
Naquele tempo, eu já não era vista com muito bons
olhos. Mas era por motivos corriqueiros e questionáveis, pois as
pessoas achavam-me esnobe. Mas eu não o era. Pelo contrário,
era uma jovem medrosa e muito tímida, esquivava-me das
pessoas por não saber como me comportar no meio delas. E
também tinha o fato de que a minha madrasta nunca me deixara
participar das reuniões do nosso conselho. Muitas das jovens de
minha idade não podiam opinar, mas sempre estavam presentes
a tal evento, pois era uma maneira de se socializar e, claro, de
arrumar um pretendente. Quando raramente eu podia sair, era
sempre na companhia da minha ama Alicia ou de minha amada
Maria, governanta da casa. Assim seguiram-se meus dias, sem
nenhuma emoção ou aventura - o que era um tédio, pois meu
espírito gritava por aventuras e coisas diversas, que nunca pude
realizar na minha curta existência.
Lembro-me, ainda, de minha casa: era bem
grande. Mas não era uma casa acolhedora, porque faltava paz e
harmonia. Fiz uma rápida e breve descrição dos detalhes. Na
verdade, o que eu mais gostava não estava lá dentro. Nunca fui
muito detalhista. Algumas coisas deixei passar em vão, não por
falta de percepção, mas porque esta realmente não era a casa dos
meus sonhos. Quando somos crianças, tudo é bom, tudo são
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flores. Encontramos divertimento até no meio das lágrimas, e
luz no meio das trevas. Fazemos refúgio no silêncio, e nossos
corações não guardam rancor.
Vivi até metade de meus dezenove anos a triste e
turbulenta história que me trouxe a este terrível lugar. E no meio
do ódio, da inveja e da ambição, consegui criar para mim um
mundo imaginário. No meio de coisas velhas e usadas, vivia
minha vida de fantasias.
Cresci amargurada, medrosa, tímida e isolada do
mundo. Sem dúvida, minhas roupas eram caras. Não porque
zelavam por mim, mas porque eu não podia aparecer maltrapilha
perante as pessoas da sociedade. E também isso mostraria a real
situação financeira da minha família: apesar da ostentação, a
falta de recursos financeiros era escondida a todo custo.
A maioria dos vestidos nunca usei, mas minha madrasta
fazia questão de gastar mesmo assim. Por não ter nenhum amigo
com quem pudesse falar, eu ficava a maior parte do tempo no
sótão, na cozinha ou com os criados. Aprendi a fazer muitas
coisas domésticas apenas observando, pois os escravos e criados
não me deixavam tocar em nada: tinham medo de uma
represália. Eu era a sinhazinha, um enfeite de porcelana e sem
nenhuma utilidade. Eu não gostaria que tivesse sido assim, mas
as circunstâncias e a própria época em que vivi ajudaram muito
para isso.
Enfrentei o mundo por amor. Enfrentei os homens e a
Igreja para mostrar que também nós, mulheres, temos o direito à
igualdade, a ir e vir. E que somos livres em expressão de
religião, vontade e igualdade. Enfrentei o ódio nos olhos, no
coração e nas atitudes de muitas mulheres por quem lutei. Mas
eu as entendia. Na verdade, bem no íntimo, todas aquelas
mulheres gostariam de estar no meu lugar - não na dor, é claro,
mas em coragem e determinação! Coragem de nunca se negar e
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de falar o que pensava. E determinação de lutar pelos ideais e
também por um lugar ao sol, entre homens preconceituosos e
ditadores.
Não me arrependo do que fiz, mas do que nunca pude
fazer. Minhas irmãs de almas sofreram muito mais do que eu, no
cativeiro de uma masmorra fria e sombria. Pois viveram a vida
toda sob o jugo dos homens, que muitas vezes eram seus
amados. Embora a maioria delas tivesse escravos, elas eram
escravas do silêncio e da submissão. Ser uma bruxa não foi e
jamais será fácil. Eu vivia em um mundo de falsidades, onde o
luxo e o dinheiro encobriam qualquer falha humana.
Minha casa era muito grande, com muitas passagens
secretas. Algumas descobri a duras penas, para me esconder de
minha madrasta. Os corredores eram enormes e, ao sairmos do
meu quarto, passávamos pelos aposentos do casal e por mais
oito outros, ainda vazios, que às vezes eram usados pelos
hóspedes. Seguindo pelo corredor largo, com uma passadeira
cor de carne e desenhos geométricos, chegávamos ao antigo
quarto de minha mãe, cuja porta nunca era aberta. Os motivos
eram desconhecidos e alheios para mim, até então.
Eu sempre sentia certo arrepio naquele corredor, pois era
de pouca iluminação e dava-me a impressão de ter uma pessoa
atrás de mim. Aliás, toda a casa me dava certo arrepio. Por fim,
chegava a uma escadaria, que era meio em caracol, toda de
mármore branco, com corrimão de madeira muito encerada. Eu
adorava escorregar no corrimão quando não tinha ninguém por
perto. À direita, ao final do corredor, era o sótão onde
guardavam quinquilharias - meus tesouros. Na verdade, toda a
memória da minha família estava lá em cima.
As escadinhas eram estreitas e de madeira; o sótão mais
parecia uma velha torre onde me refugiava da bruxa má. Meu
esconderijo antissurras, pois, quando minha madrasta se
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desentendia com meu pai, era em mim que descontava seu ódio.
Como se eu tivesse alguma coisa a ver com desentendimentos
entre eles... Os dois pareciam cão e gato, não conseguiam ficar
perto um do outro por meros segundos sem se engalfinhar.
Minha madrasta era muito exigente e só queria saber de gastar.
Eu tinha mania de ficar no topo da escadaria, encostada
no beiral, olhando o andar de baixo e escutando as conversas e
discussões de meu pai. Chegava a ficar tonta, pois os ladrilhos
do hall de entrada davam a impressão de vermos um enorme
tabuleiro de xadrez, já que o piso era quadrangular em tons de
preto e branco. À esquerda, seguia-se para o escritório de meu
pai, que era quase como uma passagem secreta, por ficar
embaixo da escada. No fim da escada, à direita, existia um
grande salão de bailes, onde tínhamos a mais bela varanda, toda
em mármore branco.
No salão, existiam enormes pilares, dando certo ar de
templo romano. Por ser tudo muito branco, quando criança eu
pensava ser o céu. Sentia-me uma fada e rodopiava, abrindo os
braços. À esquerda, ainda no final da escadaria, seguia-se para a
cozinha, por um enorme corredor de tábua corrida. Minúsculos
quadros familiares foram pendurados em suas laterais. Eu o
chamava de corredor dos espíritos.
Ao chegarmos à enorme cozinha, tínhamos um
gigantesco fogão de lenha, onde Tereza criava as mais deliciosas
receitas junto à escrava Joana, sua auxiliar. Havia uma grande e
pesada mesa de carvalho, no centro. Panelas de bronze, muito
areadas, foram penduradas por toda parte. Eu ficava ali, em pé,
ao lado das cozinheiras, observando aquela fantástica e
misteriosa forma de alquimia. Era o meu segundo local
preferido.
O simples mexer de Joana com a colher de pau nos
grandes caldeirões fascinava-me. A magia simples da mistura
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dos temperos me fascinava! Nascia em mim o desejo de ter o
meu próprio caldeirão. Por várias vezes, brincando de cozinhar,
juntei algumas ervas e coloquei-as dentro de uma caneca de
água quente, dando à pequena escrava Inaynmin, filha de Joana,
aquele chá com a minha mistura de ervas. Dizia a ela que os
anjos lhe dariam bons sonhos. O estranho é que a menina dizia
dormir muito bem toda vez que tomava meus chás.
A cozinha também era, para mim, um refúgio onde me
escondia da minha madrasta. Pois ela me perseguia por toda a
casa, não importando onde eu estivesse. Mas na cozinha ela não
entrava, porque achava indigno do seu status de senhora.
O sótão já estava ficando vulnerável, e a história que
Maria contava sobre lá ser mal assombrado já não estava
surtindo muito efeito - o que passou as ser perigoso para mim,
pois minha madrasta já não cria mais nos tais fantasmas. Então,
tive de me refugiar nos corredores, dentro das paredes entre um
quadro e outro, como um animalzinho assustado. Algumas
dessas passagens davam nos fundos da cozinha, onde eu
aparecia inesperadamente no meio das cozinheiras que, na
maioria das vezes, levavam um grande susto. Tereza colocou-
me a alcunha de pequena sombra, pois às vezes, quando ela
olhava para trás, lá estava eu como num passe de mágica.
Tínhamos, ao lado de fora, um enorme pátio com uma
fonte d’água e um poço. Da escada dos fundos da cozinha, que
dava para esse pátio, podíamos ver várias montanhas ao fundo.
Sem sombras de dúvida, não existia nada mais lindo do que a
visão daquelas montanhas! O cenário era tão incrível e mágico!
A impressão que eu tinha, ao ver o sol despontando no
horizonte, era que ele as fazia mudar de cor, para um verde
quase azulado. Sentia-me especial por estar fazendo parte da
obra de um Grande Mestre. Nenhum pincel pintaria nada tão
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 24 -
perfeito! Eu não gostava da minha casa, mas amava o lugar onde
vivia.
Essas lembranças de infância vieram à tona
saudosamente. E especialmente naquele dia - vinte e um de
julho de 1819 - acordei muito cedo: exatamente às duas da
madrugada. O galo mal tinha cantado e lá estava eu de pé. Tudo
o que eu tinha aprendido até aquele momento foi com os livros.
Em minha solidão, eu lia muito - o que me foi de grande valia
em meu aprendizado. Muitos desses livros foram encontrados
no sótão, junto aos pertences de minha falecida mãe. Andei de
um lado para o outro do quarto, como uma galinha que havia
perdido seus pintinhos. Algo me estava incomodando em
demasia. Minhas mãos suavam e meus sentidos estavam
aguçados. Por causa dos sonhos confusos e pesadelos - que eram
constantes - eu via sombras nas paredes e vultos ao meu lado,
constantemente. Parecia haver pessoas perto de mim, vozes
falavam ao meu ouvido diariamente. Por não ter nenhum
conhecimento, sentia medo. Não sabia o que eram e o que
queriam comigo. Eu tampava os ouvidos com as mãos, na
tentativa de não as escutar. Outras vezes, eu respondia e
conversava com elas. Às vezes eu as remedava, e tais gestos
faziam minha madrasta pensar que eu era insubordinada.
Apanhei muito por causa das vozes. E elas pareciam
ficar cada vez mais irritadas com a proximidade da minha
madrasta. Erroneamente, eu achava que eram fantasmas. Mas o
pior de tudo isso é que eu não podia contar a ninguém, porque as
pessoas considerar-me-iam insana. Ou me entregariam nas mãos
de um exorcista - o que anteciparia o meu destino.
Especialmente naquela madrugada, elas estavam muito
mais agitadas do que de costume. Antes, elas eram assustadoras
e davam a impressão de estarem muito aflitas. Ora cantavam em
línguas estranhas, ora falavam todas juntas. Isso me confundia.
Adriana Matheus
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Deixei aquelas aflitas lembranças para trás um pouco e
voltei à janela. Fiquei horas observando a montanha e sua
neblina misteriosa Queria esquecer aquelas almas que
desesperadamente me chamavam. Senti-me um pouco egoísta,
mas precisava me distanciar antes que elas voltassem a querer
falar comigo. Pois cada vez que eu pensava nelas, parecia estar
atraindo-as para junto de mim. Além de toda aquela confusão
com as vozes, havia também os maus presságios, que estavam
acarretando o meu espírito e, como nuvens, confundiam também
os meus sentidos. Eu achava que era devido à ausência de meu
pai, e também pela falta de noticias dele. Mas era uma mistura
de saudade, solidão e devaneios, em uma mente jovem e
atordoada por uma mediunidade ainda não trabalhada.
Algo estava para acontecer. Algo que mudaria a minha
vida para sempre. Lembrei-me de Maria, que dizia que eu havia
nascido com dons especiais. E que, ao completar meus vinte e
um anos, as coisas ficariam melhores. Bom, eu faria vinte no
ano seguinte e tinha a esperança de que as coisas pudessem
melhorar a partir dali. E que meus dons, ao aflorarem,
trouxessem-me um pouco mais de paz. Na verdade, não sabia se
eu poderia chamar aquelas tormentas de dons. Só sabia que elas
eram espirituais. O meu medo de vê-los era tão grande que, de
alguma forma, trazia-os para bem perto de mim. Às vezes
pensava serem coisas da minha mente. Mas, com o decorrer do
tempo, meus sentidos foram aguçando ainda mais; passei a ter
estranhas visões de fatos que ainda não tinham acontecido. Na
maioria, eram sonhos que mais pareciam pesadelos. Tudo era
uma incógnita para mim. Maria chamava essas coisas de
premonições. Eu via a vida das pessoas e, se alguém mentisse,
sabia que estava mentindo. Não sabia o porquê de estar
acontecendo comigo. Eu era totalmente leiga nos assuntos da
magia. E isso era algo agonizante, pois me deixava irrequieta e
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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depressiva. Mas o certo é que minha vidinha monótona, sem
graça e atordoada estava para mudar da água para o vinho. E
isso aconteceu muito rápido.
Quando meu corpo se arrepiava e me dava calafrios, era
a forma de os meus sentidos de bruxa me avisarem que algo
ruim estava para acontecer. Mas, por não ter noção, a depressão
passou a tomar conta de mim. Chorava por qualquer coisa e sem
motivos aparentes. Algo estava errado comigo. E ninguém sabia
como agir: eu precisava de ajuda, mas o socorro não vinha!
Muitas vezes ansiava por ver o mensageiro, que nunca chegava
dando notícias de meu pai. Era mais uma fuga para escapar da
depressão. Estava ficando louca. Meus pensamentos mudavam
de direção, como o vento de lugar.
Onde estaria o mensageiro? Precisava vê-lo. Na verdade,
ele só passaria às sete e trinta, seu horário normal. De quinze em
quinze dias, sempre nos trazia uma carta de meu pai, mas eu já
não estava aguentando de tanta ansiedade. Fazia um mês sem
notícias; meu coração estava apertado.
Não havia conhecido minha mãe. Meu pai, no entanto,
era tudo o que eu tinha naquele momento. Minha madrasta era
perversa e fingia ter um falso afeto por mim. Nunca me pegara
ao colo ou fizera um afago em meus cabelos quando eu ainda
era criança. Pelo contrário, humilhava-me com palavras hostis e
sempre me batia por qualquer motivo. Suas ameaças de me
colocar em um convento eram constantes. Era impressionante a
falsidade e o fingimento daquela mulher. Na frente de meu pai,
sempre me tratava com sorrisinhos forçados e uma delicadeza
inexistente. Aliás, tudo nela era demasiadamente falso.
Lembro-me de certa vez, depois de ter apanhado muito e
ter ficado com o corpo coberto por hematomas, ter sido trancada
dentro do guardarroupa um dia inteiro. Gritei, quase desfaleci,
mas ela não deixou ninguém me tirar de lá. Fiquei em estado
Adriana Matheus
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catatônico. Maria, naquele dia, ficou do lado de fora da porta,
cantando para mim, tentando mostrar que eu não estava sozinha.
Jamais me atrevi a contar para meu pai, pois Maria dizia que ele
não podia ter aborrecimentos, devido à saúde instável. Ele
estava com sérios problemas de coração e bebia muito.
A crueldade de minha madrasta não estava só na forma
como ela me tratava. Também era cruel com os criados e
escravos. Ela deixou um escravo, de nome Sandoval, sem comer
por dias. E o mesmo já havia feito comigo. Só que, por ser
criança, adoeci e fiquei de cama. Maria convenceu meu pai a
chamar o doutor, e ambos quiseram saber por que eu estava tão
debilitada. Minha madrasta entrou no meio da conversa,
dizendo-lhes que eu estava muito angustiada devido às
constantes ausências de meu pai, e que eu havia perdido o
apetite de tanta tristeza. Ela sempre encontrava um meio de se
livrar de sua culpa. Ela tinha certo requinte de crueldade e fazia
meu pai sentir-se péssimo. Ele, naquele dia, bebeu até cair em
um canto da casa. Eu e Maria o achamos e o colocamos para
dormir em um sofá. Maria não tinha medo dela, mas sabia que,
se contasse, ela se vingaria em mim.
Eu estava completamente indefesa e nas mãos daquela
famigerada. Sua beleza e falsidade seduziram meu pobre pai,
que estava carente e solitário, com uma pequena menina recém-
nascida nos braços. Não que Maria não estivesse dando conta do
recado. Mas as cobranças entre os amigos e o preconceito da
sociedade, por ele ser um viúvo ainda jovem, pesaram-lhe
muito. É claro que sua posição socioeconômica e o título de
nobreza dela também colaboraram para aquela união de
conveniências.
Não sei o que fizeram de errado, mas ele se viu obrigado
a se casar às pressas com a jovem condessa Marli Del Prat, filha
do duque e também viúvo George Von Del Prat. Meu pai foi um
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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rico comerciante, mas estava passando por muitas dificuldades
financeiras, causadas pelos gastos de sua jovem esposa. Isso
tudo pesava em seu bolso e em seu coração. Ele era uma pessoa
de pouco se abrir, o que poderia estar causando os seus supostos
problemas de saúde. Alguns de nossos criados estavam conosco
há anos - como Maria, que havia sido praticamente criada em
nossa residência. Seria muito injusto colocá-la na rua de uma
hora para outra. Maria, que abdicou de toda a sua vida para
cuidar de mim, por amor e fidelidade a uma promessa feita à
minha mãe em seu leito de morte... Passávamos por uma enorme
crise financeira, enquanto a condessa gastava horrores em
bailes, roupas e joias, desperdiçando o pouco que ainda
tínhamos.
Por ser muito jovem quando se casou com meu pai,
passou a disputar comigo sua atenção. Era de uma beleza muito
rara em meu país. Era filha de alemães e holandeses. E sua
união com meu pai, que também era um fidalgo, embora falido,
fora de grande valia política. Com essa união, seus parentes
teriam livre acesso de trânsito dentro da Espanha, entre outros
benefícios políticos.
Minha madrasta era uma mulher esbelta, com formas
muito bem definidas e fartas. Cabelos muito negros e olhos
azuis; sua voz tinha um tom suave e aveludado. Deixava os
fidalgos, por assim dizer, abobalhados. Sua pele era rosada
como o pêssego, seus lábios eram finos e havia uma pequena
pinta sobre eles. Vestia-se sempre com as melhores roupas,
embora exagerasse no brilho.
E as joias, então? Eram sempre as mais caras! Não
poupara o seu dote, esbanjando até as economias que meu pai
fez no decorrer dos anos. Por isso, chegamos quase à beira da
miséria.
Adriana Matheus
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Com os gastos irregulares da condessa, meu pai passou,
então, a fazer longas viagens, na tentativa de fazer novos
investimentos para salvar as finanças. A Europa era promissora
e, por isso, ele ficava por meses fora de casa.
Porém, minha madrasta não dava trégua com os gastos e
continuava a esbanjar as poucas economias que nos restavam.
Às vezes, ela parecia fazer aquelas coisas na tentativa
desesperada de obter a atenção do meu pai – pois, devido à sua
rara permanência em casa, estava deixando de lado as
obrigações como esposo.
Mas, na minha cabeça, era por maldade mesmo que a
senhora esposa de meu pai fazia todas aquelas coisas terríveis!
Cheguei a flagrar meu pai soluçando pelos cantos da casa. Mas,
a qualquer proximidade e tentativa de ajudá-lo, ele se esquivava
e saía à francesa.
Por dias trancava-se em seu escritório. Ele
aparentemente não tinha muita alternativa, pois, se colocasse os
pés para fora de seu refúgio, sua esposa o seguia tagarelando,
exigindo e reclamando coisas corriqueiras e sem muita
importância. Eram visíveis, vergonhosas e humilhantes as
discussões dos dois perante a criadagem, que ficava debochando
às escondidas. E quando ele não aguentava mais, a agressão
passava da verbal para a física. Minha madrasta tinha seus
defeitos, por certo, mas eu não suportava ver meu pai
espancando-a. Vi aquela mulher muitas vezes ter que ficar sem
poder colocar o rosto para fora de seus aposentos por causa dos
visíveis hematomas. A desculpa usada era que ela estava
indisposta ou com uma constipação muito forte.
Os amigos de meu pai, por assim dizer, só o procuravam
para farras e bebedeiras. Ele era um fraco e não sabia dar um
rumo à sua vida. Estávamos vivendo em uma guerra fria e
silenciosa. Um jogo de interesses e mágoas, em que a mais
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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prejudicada era eu. Com tanta repressão, também aprendi a
abaixar a cabeça para tudo o que eles dissessem. Cheguei a
pensar em suicídio, mas era covarde demais para isso. E por não
conseguir me imaginar longe de meu pai e de Maria, sempre me
calei, escondendo comigo suas tramoias. Os anos foram
passando e a condessa não tomava jeito mesmo; passou a viver
de armações para arrancar dinheiro de meu pai e outros fidalgos,
que frequentavam minha casa na ausência de meu pai. Nunca
tive voz ativa, meu pai só fazia presença e a pobre Maria não
passava de um capacho, como o resto da criadagem. A
autoridade-mor da casa era mesmo de sua majestade Marli Del
Prat. Entre outras coisas, ela queria tudo só para si. Inclusive, o
meu lugar como herdeira única.
Seu comportamento era detestável e nauseante, pois às
vezes, para chamar atenção, ela se comportava como uma
menininha, fazendo trejeitos e mesuras irritantes. Mas era só
meu pai virar as costas que sua personalidade aflorava, dando
lugar à verdadeira pessoa escondida atrás daquela aparência
frágil e ingênua que a condessa criara como personagem, para
engambelar a todos do sexo masculino.
Mediante tudo isso, eu sabia que era improvável meu pai
acreditar em mim. Eles não se suportavam, mas tinham que
manter as aparências e cumprir seus deveres perante a
sociedade. Se eu não morasse naquela casa e se todos os dias
não estivesse presenciando tanta falsidade e falta de caráter,
certamente também não acreditaria! Pois aquela doce e jovem
senhora e aquele tão elegante cavalheiro eram, na verdade, duas
pessoas repletas de artimanhas.
Quando meu pai viajava - além das festas constantes,
que iam até altas horas -, a condessa também se embriagava
pelos cantos, enquanto eu era obrigada a ficar trancada em meu
quarto, para não ver o que realmente acontecia. Suas risadas
Adriana Matheus
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altas e histéricas no corredor incomodavam-me e, por várias
vezes, tive que tampar meus ouvidos, colocando chumaços de
algodão para não ouvir as atrocidades que saíam ecoando pelo
corredor. Como desejava ter tido outra vida...! Não podia ver,
mas sabia que ela estava com outros homens. Não seria difícil
flagrá-la nas proximidades do nosso jardim com os Lorde e os
fidalgos, frequentadores de suas constantes festas noturnas. E se
alguém a visse, ela se justificava, dizendo que fazia aquilo para
o bem de todos e das finanças.
Se não tivesse vindo de uma família de nobres, eu a
consideraria uma cortesã, devido à sua conduta leviana e vulgar.
Minha vida naquela casa foi triste, sem sentido. Estava a me
transformar em uma pessoa revoltada. Minha luta era comigo
mesma, eu não poderia me transformar naquela pessoa vazia e
sem vida que eles queriam que eu fosse. Maria ensinou-me que,
quando alguém deixa morrer os sonhos, a vida acaba. Ela dizia
que só não sonhava quem não tinha a capacidade para realizar.
Eu tinha sonhos... e eram muitos. Só não sabia onde eles
estavam naquele momento.
Nunca frequentei escola, mas estudei em casa.
Tive aulas de língua estrangeira, piano e literatura. Minha
professora, a Senhorita Ludmila Lavenier, era minha única
companhia, depois de Maria. Tinha mais ou menos trinta anos,
embora aparentasse ser mais jovem. Era de origem holandesa e
herdou o sobrenome de seu avô paterno, que era francês. E por
ter sido criada e educada na França, seu sotaque era encantador.
Por muitas vezes desejei que ela tivesse conhecido meu pai
antes de minha madrasta. Ela era culta, simpática e divertida.
Sua cultura era consequência de suas muitas viagens pela
Europa. Sempre muito elegante, discreta e muito ponderada ao
se dirigir às pessoas. Tinha um tom de voz paciente e educado.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Era admirável ver uma mulher muito além do século XVIII,
conhecedora de várias culturas e mestre em disciplina familiar.
Comentavam as más línguas que ela tinha vários
amantes, e que era uma mulher com ideias muito opostas.
Alguns chegavam a dizer que ela não era nada feminina em seu
jeito de pensar. Mas eram apenas boatos maliciosos. Ela mesma
me contou que amou apenas uma pessoa em toda a sua vida e
que, por proibição dos pais dele, não puderam se casar, por
causa de sua inferioridade financeira. Por isso, ela resolveu
seguir em frente como educadora particular de finas senhoritas.
Suas histórias eram incríveis! Contou-me que certa vez
almoçou com o próprio rei, sentou-se à mesa real como sua
convidada de honra. Não era o tipo de pessoa que desse ouvido
a comentários e mexericos dos outros. Era livre e independente,
como eu gostaria de ter sido. Também me cotou sobre as damas
da corte para quem já tinha ensinado suas aulas de piano, e
sobre os romances secretos no palácio real. Ríamos muito.
Senhorita D`Lú - era como gostava de ser chamada - foi
altamente recomendada pela Senhora Carllota Gonzalez, uma
governanta amiga de Maria, que trabalhava na mansão do
Marquez de Miqueias. Foi uma pena quando meu pai teve de
dispensar seus serviços por causa dos ciúmes da condessa e, é
claro, por causa da nossa situação financeira, que não ia nada
bem. O resto, aprendi por conta própria.
Assustei-me quando Maria entrou em meu quarto sem
bater, com a bandeja de café. Maria era uma mulher gentil,
educadíssima e extremamente respeitável. Podia-se dizer
qualquer coisa sobre Maria, menos duvidar de sua conduta,
inabalável. Era uma mulher de estatura baixa, rechonchuda
como um empanado de frango. Fazia questão de manter seus
cabelos negros presos em um coque perfeito. Tinha os olhos
grandes e negros, lábios largos e era muito severa com os seus
Adriana Matheus
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subalternos. Usava luto constantemente em sinal de respeito à
memória de minha mãe. E ficou muito aborrecida quando papai
casou-se novamente, embora nunca se atrevesse a dizer.
Nunca se exaltava e constantemente usava de ironia em
suas conversas. Acho que herdei sua maneira de ser. Ela nunca
conseguiu dizer-me não. Mas, às vezes, colocava-me de castigo,
o que era pior do que levar chineladas. E ali, naquele momento,
observando-a de costas, percebi que seu peso, embora não
condizente com sua estatura, dava-lhe certo charme, porque
mantinha uma postura elegante e ereta. Deveria ter sido muito
bela quando ainda jovem. Por certo, foi desejada entre os
homens. A pobre mulher não se casou, não tinha filhos, passou a
vida toda se dedicando a mim e a meu pai.
Era filha de espanhóis ciganos. Tinha o estranho costume
de prever o futuro através das cartas do tarô. Por várias vezes, às
escondidas, abriu o baralho para mim, sempre usando um ritual.
Certa vez, quando abriu o tarô para mim, depois de muito fitá-
lo, começou a chorar. Fiquei sem saber o porquê daquele pranto
incessante. Minhas tentativas de interrogação foram em vão, e
de nada adiantava tentar consolá-la, pois seu pranto era
incessante. Maria abraçou-me e disse:
– Tem um triste futuro, minha filha! Precisa comer
alguma coisa.
Abriu as janelas e afastou as cortinas de organza e seda
cor-de-rosa. Ajeitou a bandeja com o desjejum na mesinha de
lanches, que era de cristal e cobre decorado, trazida da Inglaterra
por minha mãe. Em seguida, saiu enxugando as lágrimas e
dizendo, entre dentes, que os afazeres a esperavam, deixando-
me com as respostas ao vento mais uma vez. Sempre tão
atenciosa e dedicada, mas muito meticulosa e misteriosa quando
se tratava das cartas. Detalhei a mesinha novamente naquele
momento nostálgico de minha vida e lembrei-me de meu pai,
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 34 -
que certa vez contou-me que minha mãe ficava horas
escrevendo suas receitas e seus poemas ali. Ele dizia que ela era
cheia de mistérios. Interrompi novamente meus pensamentos,
pois a copeira entrou, trazendo uma ânfora com água morna e
colocando-a na bacia de porcelana chinesa.
– Não vai comer menina? - perguntou a copeira.
– Daqui a pouco, estou meio sem fome agora.
Ela saiu, fazendo-me ameaças de que, se eu não comesse
tudo, chamaria o doutor. Só de pensar, senti arrepios! Ele era um
velhote horrível, com cara de louco. Fumava um charuto
fedorento, o seu cheiro pessoal dava-me náuseas. Sua barriga
salientava-se por cima daquela roupa encardida, que já não via
água há séculos. Sem contar que metade de seu rosto ocultava-
se em algum lugar entre a barba e o tenebroso bigode. Se
olhássemos muito, víamos uma saliva escorrendo no canto
externo dos lábios. Eu ficava doente só em pensar que o teria
perto de mim, colocando-me aquelas mãos amareladas pelo
tabaco. Nunca o vi lavar as mãos para me examinar. Toda vez
que ele ia me visitar quando criança - para exames rotineiros ou
qualquer outra coisa -, se eu estivesse doente, ficava pior. E se
eu não estivesse, aí ficava mesmo. Arregalei os olhos de pavor!
Sentei-me na cama, coloquei a bandeja no colo e comi tudo o
que havia no desjejum, pois, com certeza, ela cumpriria sua
promessa. Ela, sorrindo, parecia ter lido meus pensamentos.
Aliás, sempre fazia isso. Dei uma espreguiçadela gostosa no ar e
empurrei a bandeja vazia. Voltei para a janela, fiquei por horas
observando o jardineiro Joseph, enquanto ele cuidava das rosas
com dedicação e minúcia. Vi Maria levando para ele café e
sequilhos. Ele sempre estava próximo dela e pareciam tão
felizes! Maria sorriu e saiu em seguida, toda faceira.
Adriana Matheus
- 35 -
Não demorou muito e logo estava de volta para buscar a
bandeja. Tinha nos lábios um sorriso que não era habitual.
Definitivamente, Joseph a fazia muito bem. Deu um suspiro
profundo antes de me fazer um convite para passar sua folga
com ela:
– Senhorita Anna, gostaria de passar o fim de semana
comigo na casa da minha irmã que mora no interior?
Perguntei se tinha avisado à senhora minha madrasta, o
que confirmou entusiasmadíssima com a cabeça. Pediu que me
apresasse e saiu toda satisfeita porta afora.
Fazia muito tempo que eu não a via daquele jeito. Maria
sempre tivera permissão para ir visitar seus parentes no interior
e, por certo, não era essa a causa de sua súbita alegria. Daria
tudo para saber o que Joseph tinha-lhe falado. Tomei um banho
caprichado, com os sais que ela fizera para mim. Escolhi um dos
meus mais lindos vestidos. Mas este era adorável, em tom areia,
todo rendado e com muitos babados. Seu decote deixava meus
ombros à mostra. Olhei-me no espelho e senti-me bem ousada,
mas mantive a discrição quanto aos exageros. Gostava de ficar
admirando-me ao espelho e ali, olhando o retrato de minha mãe,
comecei a fazer comparações entre nós duas. Naquele momento,
percebi o quanto me parecia com ela.
Meus olhos eram cor de mel, puxando para verde. Meus
cabelos tinham cachos largos e eram de um tom castanho quase
dourado. Minha pele, morena clara, era perfeita e sem nenhuma
mácula. Meus lábios eram grossos. Definitivamente, eu a
mistura perfeita das raças. Minha mãe era inglesa, de pele muito
clara e olhos muito azuis. Seus cabelos eram de um tom
castanho-claro, quase louro. Fitando-a naquela fotografia, achei-
a parecida com um anjo. Eu havia herdado dela não só a beleza,
mas também a elegância e o tom polido na fala. Minha cintura
era extremamente fina e eu só usava o espartilho por mero
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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capricho. Esse tipo de arrogância e vaidade foi uma coisa das
quais me arrependi de ter tido.
Embora ela tivesse morrido quando nasci, esses eram os
comentários a seu respeito. Na aparência, achava-me igual à
minha mãe, e sentia muito orgulho disso! Meu pai não ficou
atrás. Ele era um espanhol muito alto, olhos cor de mel, pele
bronzeada e cabelos claros e lisos, ombros largos e fortes.
Lembro-me de vê-lo, quando eu era criança, depois de chegar de
suas caçadas, montado em seu cavalo baio. Ele se parecia com
um personagem de contos de fadas. Ficava louca, esperando que
ele me colocasse em sua garupa e me levasse para cavalgar em
seu colo. A sensação de proteção e liberdade era um misto
formidável. Que pena não podermos voltar atrás no passado, no
exato momento em que fomos mais felizes... Neste momento,
mediante tanto sofrimento, é que percebo como eu tinha uma
vida fútil e, por certo, poderia ter feito mais pelo meu
semelhante.
Às vezes ele tentava ser durão com os empregados, mas
seu coração era bom e acabava voltando atrás. E quando sorria...
era perfeito! Seu olhar era penetrante e sedutor. Aposto que
mamãe, ao vê-lo, apaixonou-se imediatamente. Esse era o tipo
de amor que eu queria para mim: eterno e verdadeiro. Eu tinha
certeza de que ele ainda a amava, pois sempre trazia consigo,
dentro do relógio de bolso, um retrato dela. Mesmo casado com
minha madrasta, ele ainda, às escondidas, ficava fitando com
ternura aquele retrato.
Ao se casar com a condessa, meu pai tornou-se
carrancudo e grosseiro, afastando-se de mim dia após dia. Passei
a me sentir culpada por minha mãe ter falecido durante o parto.
E minha madrasta, ao perceber meus temores infundáveis,
passou a agredir-me, chamando-me de pequena maldição. Dizia
ser eu a culpada pela morte da minha mãe e pelo fato de ela
Adriana Matheus
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nunca ter engravidado. Mas, um dia, meu pai a ouviu e interveio
por mim. Disse-lhe que nunca mais queria vê-la fazer-me tais
acusações levianas. A condessa engoliu seu ódio por mim
naquele dia, e subiu para seus aposentos, fingindo estar se
sentindo mal. Não me lembro de ter visto meu pai procurar por
ela e pedir-lhe desculpas, como sempre estava acostumado a
fazer. Essa foi a única vez, desde que me entendia por gente,
que vi meu pai manifestar-se a meu favor.
Usei uma fita negra de veludo ao redor do meu pescoço,
com um camafeu de marfim de minha mãe. Agora só faltava a
sombrinha cor de palha, com delicadas rosinhas azuis e outras
com cor de damasco. Seu cabo era todo talhado à mão, e havia
sido meu avô quem o fizera para mim. Agora sim estava pronta
para meu passeio naquele final de semana, que seria
praticamente um dos últimos com Maria.
Havia meses que eu não saía de casa. Por isso,
não poupei esforços e caprichei naquela manhã. Levei uma
maleta com tudo que julguei ser necessário. Não me esqueci de
colocar alguns mimos para presentear os donos da casa onde
passaríamos o final de semana. Levei comigo minhas
economias. Achei que seria o momento exato de gastá-las.
Maria entrou no quarto, de repente, e fitou-me de
cima abaixo. Ironizou, ao perguntar onde seria o baile. Senti-me
encabulada e corei de imediato. Ela ainda continuou a brincar,
dizendo que, daquela forma, eu iria arrumar pretendentes com
muita facilidade. Sorri meio sem graça e falei que, se fosse
somente para desfilar ao lado de um homem triste e carrancudo
como meu pai, só para mostrar à sociedade que eu era capaz de
arrumar marido, preferiria acabar solteirona e comendo bolachas
com chá.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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– Minha nossa! Pensei que eu iria poder descansar um
dia! Mas, pelo que vejo, vou ter que cuidar de uma solteirona
carrancuda - disse Maria, dando uma sonora gargalhada.
– Ah, Maria! Jamais me apaixonarei! Somente se o amor
for verdadeiro e duradouro. Mas sei que isso será impossível de
acontecer, pois a nossa sociedade só visa o materialismo. E,
levando em conta a situação financeira atual de minha família,
isso será praticamente impossível, pois meu dote não é
considerado tão valioso como o de algumas jovens do condado!
Também temos que levar em conta outro fato não menos
importante.
– E qual seria? - perguntou Maria, curiosíssima.
– O fato de que a senhora minha madrasta pode ter
furtado meu mísero dote antes mesmo de eu ter tido a chance de
usá-lo.
Dessa vez, nos duas caímos em risos. Mas ela ainda
prosseguiu, tentando corrigir o meu pensamento de depreciação
para comigo mesma:
– Não quero que diga sandices, criança tola. Por certo,
um jovem mancebo irá se apaixonar por ti do jeito que é. Não
podemos julgar todas as pessoas somente por conhecermos uma.
Afinal, os dedos das mãos não têm o mesmo tamanho.
– Hummm... E quem seria essa pessoa tão escrupulosa e
tão pouco materialista, que vê uma moça pelo que ela é, e não
pelo dote que ela possui? E quanto aos dedos das mãos, Maria,
eu já os observei. Não são iguais, por certo, mas têm o mesmo
tamanho, só estão posicionados de forma diferente. Basta
observá-los e verá que estou correta. Ah, Maria, nós fazemos
parte de uma grande peça teatral, na qual só mudam os
personagens! E o cenário? Às vezes! Mas a história é sempre a
mesma. Principalmente para nós, mulheres, que somos nada
mais nada menos do que meras marionetes nas mãos dos nossos
Adriana Matheus
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senhores. Não existe casamento sem conveniência, Maria.
Valemos o dote que possuímos, ou seja, o dote que levamos
como bagagem. Ouso dizer que a própria condessa foi uma
dessas vítimas.
– Agora sei que a senhorita já não está mais em seu juízo
perfeito! A senhora Del Prat? Uma vítima? Nunca!
– Maria, acha que ela também não foi obrigada por seu
pai a casar com um homem viúvo, que ainda trazia de bagagem
uma filha nos braços? Pense bem, não deve ter sido fácil para
ela, ter que se casar só porque já estava com vinte e oito anos.
Temos nossas diferenças, isso é certo. Mas não posso culpá-la
por ser como é. Ela é mais uma vítima de nossa sociedade. Já
pensou o que é ter que ver seus sonhos sufocados? E se ver
aprisionada a uma vida infrutífera e sem volta? Não é a senhora
mesma quem disse que, quando os sonhos morrem, morremos
com eles? Por isso ela desconta toda a sua ira em mim. E ainda
deve, por certo, sentir-se completamente frustrada por não poder
ter tido filhos. Até agora, com quarenta e oito anos, isso deve ser
horrível! Imagine só como a sociedade em que ela vive cobra
dela o tempo inteiro. Todos nós temos problemas. Os delas são
ainda piores que os meus. Acredite!
– A senhorita está completamente certa. Mas isso não
quer dizer que ela deva sair por aí, pisando nas pessoas menos
favorecidas.
– Concordo com a senhora! Mas não somos ninguém
para julgá-la. Ela foi criada com tudo do bom e do melhor,
nunca soube o que é sequer trocar a própria roupa. Ela foi
mimada em demasia. Tornou-se prepotente, ou quer que a
vejamos assim. Já a flagrei muitas vezes, depois de suas festas,
fitando o horizonte, visando sabe-se lá Deus o quê! Ela, de fato,
não ama meu pai, mas ainda prefere ficar com ele a voltar para
sua casa na Alemanha. Imagine o que diriam de uma mulher,
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 40 -
com o título de nobreza que ela possui, se alguém soubesse que
ela saiu da casa de seu marido? Não a veriam com respeito. E o
que ainda é pior, não se casaria novamente, principalmente por
não poder dar futuros herdeiros. Tenho certeza de que a
severidade do conde, seu pai, e ainda as cobranças da sociedade
repressora são piores do que os apertos e a solidão que tem
passado aqui. Ou a senhora acha que uma pessoa como ela não é
solitária?
– Por certo tem razão, minha querida e doce Anna, mas
não consigo entender como consegue achar qualidades em
pessoas como essa senhora.
– Não é questão apenas de ver qualidades nela; é questão
de entendê-la, como mulher e como ser humano. E ela só é
maldosa porque é revoltada. Prefiro ver as pessoas por outro
ângulo. Caso assim não fizesse, odiaria mais gente do que a
quantidade de cabelos que tenho em minha cabeça. Não me
importo com o que ela faz comigo. Vai ver ela está certa, nunca
encontrarei um bom homem para mim.
– Pois lhe digo que isso acontecerá em breve, e rezo para
que Deus lhe perdoe pelo passo que terá que dar. Sinto não
poder interferir em seu destino, minha filha. Pois, caso pudesse,
garanto-lhe que ele seria muito mais ameno do que o previsto. E
agora pare com suas ideias mirabolantes e inocentes a respeito
do ser humano. Para mim, pessoas más escolhem ser como são.
E saiu, olhando os dedos das mãos.
– Por que, Maria? - gritei. Viu isso em suas cartas de
tarô?
Estiquei meu pescoço, tentando achar sua face. Quando
ela se virou abruptamente para mim, notei profunda tristeza em
seu olhar.
– Por que nunca me responde a essa pergunta tão
simples? - indaguei insistente.
Adriana Matheus
- 41 -
– Talvez porque esta resposta seja simples demais, e só
possa ser respondida pela senhorita! Lembre-se: todas as
respostas estão dentro da gente. Agora chega de conversa e siga-
me, pois vamos acabar nos atrasando.
Segui-a, em silêncio e cheia de controvérsias
mentais. Se todas as respostas estavam dentro de nós, por que
sempre errávamos em nossos julgamentos?
Ao descermos a escadaria, Maria foi até a cozinha para
dar as ordenanças finais à criadagem. Fiquei entre os dois
últimos degraus, observando tudo à minha volta. A mobília,
embora fosse muito cara e exuberante, era de extremo exagero e
de um mau gosto imperdoável. Observei tudo a meu redor e
fechei os olhos para me lembrar até dos mínimos detalhes.
Estranhas a sensação de perda e a saudade antecipada que
tomaram conta de mim naquele momento. Era como se eu não
fosse mais ver aquilo tudo de novo. Senti medo e tristeza.
Minha madrasta observava-me do alto da escada. Ela era
como uma sombra constante em minha vida. Às vezes, tinha a
impressão de tê-la em frente a mim enquanto dormia. Não
resistindo, ela disse algo para me ofender.
– Desse jeito voltará casada, com um plebeu. Aliás, é
bem o seu tipo. Nunca se parecerá comigo, não conseguirá um
bom partido e jamais terá um homem a seus pés. Acha mesmo
que pode copiar-me? Criança tola! Não tente, não sou sua mãe,
nunca quis ser. Não vê que sou a mulher do seu pai, e que ele já
a esqueceu há muito tempo? O seu reinado acabou, minha
querida - se é que um dia existiu!
A condessa disse essas coisas enquanto descia a escada,
cambaleando. Dessa vez, excedeu-se em sua soberba, arrogância
e presunção. E a maneira com a qual falava a respeito de meu
pai ferveu meu sangue. Mas Deus me deu forças para não perder
a paciência. Levei em consideração que ela não estava sóbria
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 42 -
naquele momento. Na verdade, senti pena dela. O cheiro da
bebida era tão forte que me tonteou, devido à pouca distância
que ela fez questão de manter para me assustar - o que
conseguiu. Em seus olhos, percebi um ódio aterrorizante.
Fiquei tão nervosa e indignada – e, ao mesmo
tempo, assustada -, pois não sabia o porquê de ela realmente me
odiar tanto. Eu sabia que eu poderia ter respondido à altura. Mas
não o fiz. Desvencilhei-me dela o mais rápido possível, e saí
porta afora, às pressas. Pude, ainda, ouvir seus gritos histéricos e
rompantes pelo lado de fora.
– Vê se arruma um plebeu, velho, gordo e fedido por lá e
suma com ele para bem longe das minhas vistas. Assim, vai
poupar-me o trabalho de ter que eu mesma despachá-la para o
inferno!
Ergui minha a cabeça e fui até o jardim, onde estava
nosso jardineiro Joseph. Aproximei-me dele e abaixei-me para
cumprimentá-lo melhor. Eu estava tremendo tanto que ele,
parecendo ter percebido, mas também não querendo deixar
transparecer para que eu não ficasse ainda mais constrangida,
cortou um botão de rosas com um gesto de delicadeza, dando-
me em seguida. Por fim, disse, ainda de cabeça baixa:
– Uma rosa para uma linda flor! Sabe, senhorita,
a patroa ladra mas não morde. No fundo, ela sente tanto medo
da senhorita quanto a senhorita dela.
Sorri em agradecimento e aproximei-me, inclinando-me
e segurando sua cabeça com as mãos para lhe dar um beijo na
testa. Na verdade, eu compreendia o que ele estava tentando me
dizer. Imagine só: minha madrasta com medo de mim! Embora
parecesse hilário, era a mais pura verdade. Só que, naquele
momento, eu só conseguia ver o medo que eu sentia dela.
Joseph era um velhinho simpático e muito agradável.
Quando eu era criança, sempre me contava histórias e contos
Adriana Matheus
- 43 -
folclóricos sobre o povo cigano, e era fantástico ouvi-lo.
Levantei-me para olhar ao redor e admirar o esplendor do
magnífico jardim. Eram tantas flores! Rosas de todas as cores e
tamanhos, margaridas, gerânios, florzinhas do campo, violetas,
dálias, cravos, jasmins, orquídeas, papoulas, plantas
ornamentais... Tudo aquilo tinha cheiro de amor e fazia-me
muito bem. Toda aquela beleza misturava-se ao perfume da
hortelã, da alfazema e do alecrim.
A condessa tentou fazer com que meu pai acabasse com
o jardim por várias vezes. Mas ele sempre ficou em cima do
muro e nunca deu uma resposta positiva a ela. Aliás, seria
novidade se ele fosse negativo a alguma coisa relacionada a ela.
Para essa questão, ele apenas disse que iria pensar. Minha
madrasta continuou insistindo com esse assunto por muito
tempo. Mas, depois de nunca ouvir um sim conclusivo, acabou
desistindo por certo tempo.
Quando se casou, trouxe consigo toda uma decoração
pavorosa, inclusive as estatuetas monstruosas e sem nexo que
passaram a decorar o belo jardim da minha família. O pior é que
ela as fixou no centro, próximo à janela do meu quarto. Lembro-
me de quando eu era pequena: ao escurecer, sempre que olhava
pela janela, tapava os olhos com as mãozinhas, pois me davam
muito medo. Elas eram como pessoas decepadas e, na minha
mente frutífera e infantil, mexiam-se e pareciam estar
caminhado em minha direção. Eu corria para debaixo das
cobertas, deixando de fora somente o pequenino nariz para
respirar. Eu suava e tremia tanto que, quando Maria vinha dar-
me boa noite, tinha que trocar minhas roupinhas molhadas. Ela
sempre me acalentava com suas cantigas de ninar, na tentativa
de me acalentar até que eu dormisse.
O cavalariço Sr. Lorenzo aproximou-se de mim
por trás, assustando-me.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 44 -
– Calma, senhorita Anna! Só vim saber se está tudo bem,
pois ouvi quando a Senhora Del Prat estava a gritar com a
senhorita exasperadamente. Ela fez algum mal à senhorita?
– Não, Sr. Lorenzo, ela apenas ladrou um pouco além da
conta. Foi só, juro!
Ele pareceu não crer; então reforcei, olhando em
seus olhos.
– Sim. Está tudo bem. Deve ser a astenia causada pela
ausência de meu pai, ou o excesso de licor de jenipapo.
– Ah, por certo a Senhora deve estar precisando de uns
calmantes em dosagem maior.
– Oh, não diga isso! Não se pode misturar calmantes a
licores.
Começamos a dar gargalhadas. Lorenzo conseguiu
descontrair-me, afinal. Maria veio em seguida e disse:
– Imagine só, esses criados jovens não fazem nada
direito!
– Maria, Maria! Não estaria sendo a senhora exigente
demais com os pobres coitados? Não está tentando tirar o lugar
da senhora Del Prat, está?
Maria fez-me um ar de desaprovação pelo meu
comentário esdrúxulo. Lorenzo já havia colocado nossas
bagagens na carruagem. Abriu-nos a porta para entrarmos.
Seguimos, então, nosso caminho em direção ao enorme portão
verde musgo, com pontas em formato de lança e pintadas em
dourado. O enorme brasão da família Del Prat estava logo à
frente. A passarela toda, de pedras grandes e polidas pelo passar
dos anos, dava à entrada um ar de realeza. Pude ver a estufa
onde Joseph cultivava as mudas; era logo na lateral do jardim.
Quatro bancos foram colocados no decorrer do caminho, dois de
cada lado.
Adriana Matheus
- 45 -
Um escravo veio abrir o portão. E, pela primeira vez,
senti-me em liberdade, longe daqueles muros de medo e tristeza.
Suspirei aliviada. Mas era estranho, pois a sensação de que
nunca mais veria tudo aquilo novamente não me largava.
Minha sombra olhava-nos às escondidas, por trás das
cortinas da grande janela de vidro da sala de estar. Parecia uma
ave de rapina. O que será que se passava naquela cabeça louca e
cheia de luxúria? Sacudi minha cabeça, rindo comigo mesma.
Maria pareceu ler os meus pensamentos - aliás, ela era a minha
sombra mental e era constrangedor, às vezes, ter os pensamentos
invadidos. Como que em um impulso, Maria disse:
– Pare de criar caraminholas nessa cabecinha, menina!
Dei de ombros, virando o rosto para o outro lado, mas
percebi que ela também sorria. Maria era uma mulher muito
perspicaz e, por isso, achei melhor centralizar meus
pensamentos na paisagem ao meu redor.
As ruazinhas eram estreitas e encantadoras, com suas
belas e elegantes casas, todas decoradas com jardins repletos de
flores, pois era a moda trazida da Europa. As árvores frondosas,
que cercavam de um lado a outro as calçadas, pareciam ter sido
colocadas ali naquele momento, só para passarmos numa
passarela harmoniosa.
Muitas pessoas afoitas já transitavam para lá e para cá.
Senhoritas pareciam ocupadíssimas em desfilar seus modelitos
muito comportados e elegantes, num flerte compulsivo para
atrair a atenção dos cavaleiros, que desfilavam na outra calçada.
Afinal, ficar solteira poderia se tornar uma coisa escandalosa e
dispendiosa para os pais. Estes juntavam dinheiro durante toda a
vida para que suas filhas não se casassem sem um dote
adequado.
Moçoilas em época de se casar só frequentam bailes em
companhia de suas aias ou de seus pais. Jamais sozinhas, por
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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medo dos mexericos. Sendo que a irmã mais velha é quem
deveria se casar primeiro, e a irmã mais nova, caso houvesse
uma, tinha que ficar cuidando da mãe. Se o namoro firmasse,
deveria durar um ano na sala da moça, que tinha que estar
acompanhada de seus pais e outras pessoas. Então, o próximo
passo seria o noivado, que deveria durar apenas o tempo de o
enxoval ficar pronto - isso queria dizer na semana seguinte, pois
a maioria das mães fazia o enxoval das filhas assim que as
meninas nasciam. Claro que as jovens enamoradas também
tinham que bordar grande parte do enxoval, logo que estivessem
em fase casadoura. As meninas já estavam prontas para o
casamento a partir dos doze anos, caso fossem nobres, e a partir
dos quatorze a dezoito anos, caso não tivessem título de
nobreza. Isso significava que eu estava passando do tempo de
arrumar um marido.
Todos procuravam um bom partido para suas filhas. Não
se importavam com os sentimentos delas. Na esperança de um
futuro seguro, o amor era o de menor valor. Isso não era o que
eu queria para mim. Sempre me esquivei de senhores mais
velhos.
Certa vez, em um jantar de que fui obrigada a participar
em minha casa, meu pai apresentou-me a um fidalgo com o
triplo de minha idade, sendo que eu tinha dezesseis anos nessa
época. O velhote rodeou-me a noite toda e não consegui
desvencilhar-me dele. O cheiro da bebida misturou-se ao cheiro
da roupa velha, que devia ter estado guardada desde o século
XV. Isso era nauseante! Suas mãos eram oferecidas demais. O
único jeito foi dizer que estava me sentindo muito mal. Com
certeza, era mais uma que a condessa havia aprontado para se
livrar de mim, pois pude vê-la com seu olhar de deboche às
escondidas. Mas, graças a Deus, a falsa dor de cabeça que forjei
salvou-me mais uma vez. E, nesse dia, apertei os olhos ao passar
Adriana Matheus
- 47 -
na direção da condessa, constatando a minha vitória - o que
causou uma torcida em seu leque de estimação.
Voltei a observar a paisagem de Salamanca,
enquanto Lorenzo contornava a praça central. Então, pude ver a
linda fonte de águas no meio da praça. Depois de algumas horas,
chegamos ao nosso primeiro destino. Paramos à frente de uma
enorme mansão cor-de-rosa. Era a mansão e o ateliê de madame
Hortência Vigald.
Ela era uma senhora rechonchuda, de olhos grandes e
amendoados. Seus seios eram fartos e salientavam-se por cima
de suas vestes, repletas de rendas e outras mesuras. Para
completar o visual exótico, ela ainda usava uma peruca loura
cheia de cachinhos. Isso a fazia parecer uma boneca de trapo
mal feita e assustadora de se ver à noite, sentada em uma cadeira
no escuro.
Ao ver-me, sempre me abraçava fortemente e melava-me
com seus beijos babentos. Como era difícil ser uma jovem
educada e de boa índole, meu Deus! Tinha vontade de sair
correndo. Às vezes, tinha a impressão de que ela poderia me
morder com aqueles dentes enormes e escurecidos pelo tempo.
Mas também poderia correr o risco de ser engolida por aqueles
lábios extremamente grandes e lambuzados de açúcar, pela
quantidade diária de doces degustados. Ao chegarmos, ela
estava de pé à soleira da porta, comendo uma brevidade. Ao ver-
nos, correu em nossa direção, dizendo:
– Oh, querida, como está linda! E cada vez mais parecida
com Elizabeth! Veio ver alguns modelitos para si, meu bem?
– Não - salvou-me Maria. Viemos buscar a encomenda
da Senhora Del Prat. Estávamos partindo de viagem e, como não
teremos tempo de buscá-la na volta, levaremos desde já a
encomenda conosco.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 48 -
– Oh, entrem! Pedirei a Gülia que lhes busque a
encomenda. Sentemos, por favor! Aceitam uma xícara de chá
com biscoitos? Façam-me companhia, queridas, nunca recebo
visitas para o chá!
Até parece, pensei comigo. Todas as clientes que
por ali aparecessem por certo seriam motivo para madame
Hortência tomar chá com biscoito - o que explicava sua forma
rechonchuda.
– Não, senhora! Estamos com muita pressa e, além do
mais, já fizemos nosso desjejum matinal.
– Oh, ficarei um tanto ofendida! Sabe como gosto da
menina, embora quase não a tenha visto ultimamente.
Por fim, aceitamos uma xícara chá para que ela
não tivesse uma síncope.
– Então, querida, como está seu pai? Já retornou de
viagem?
– Não, ainda não. E já fez um mês hoje. Confesso que
estou bastante preocupada com a ausência de notícias por parte
dele. Isso anda me tirando o sono.
– Não diga! Mas com certeza não aconteceu nada de
grave com Sir Juan. Nisso eu aposto! Sabes como são os
homens... Fique despreocupada, querida! Noticia ruim corre
rápido. Ele é mesmo um homem lindo! - suspirou ela. Um
verdadeiro colírio para os meus olhinhos cansados! Se não fosse
casado... e se eu tivesse um pouquinho menos de idade,
candidatar-me-ia como sua madrasta! Uma madrasta boazinha, é
claro! - fez esse comentário sorvendo, em seguida, um gole de
chá.
Por certo, ela teria que ter muito menos idade mesmo.
Ela usava termos antigos, como se ainda estivesse no século
XV, e forçava um falso francês. Na verdade, seus vestidos eram
cópias exatas de luxo da moda francesa. Suas costureiras, sim,
Adriana Matheus
- 49 -
eram as verdadeiras artistas, pois madame Hortência nunca
sequer colocou suas mãos em uma agulha para coser.
Eu e Maria nos entreolhamos, contendo uma sonora
gargalhada.
– Ah, mas aposto que existe algum jovem mancebo para
consolar essa ausência!
Olhei novamente para Maria, em busca de socorro. E
suspirei quando pude ver que Gülia entrava, trazendo um
enorme pacote nas mãos, que foi direto para as mãos do lacaio.
Este o entregou para Lorenzo, que nos aguardava pacientemente
do lado de fora. Todo aquele movimento foi um alívio, pois me
salvou de ter que responder às tolas interrogações de madame
Hortência. Embora eu não tivesse uma vida social ativa,
Madame Hortência fazia-me parecer que eu levava uma vida
agitada e pública, pois eu sempre tinha a obrigação de ter algo
para contar a ela.
Maria, percebendo meu constrangimento, apressou-a,
dizendo que realmente precisávamos ir. Ufa, graças a Deus!,
pensei comigo.
– Porque não escolhe um dos modelitos? – insistiu,
ainda, na saída.
– Tenho tantos que acabaria tendo que dividir meu pouco
espaço com eles!
– Entendo... Mas realmente sei que não precisa do brilho
das lantejoulas e paetês para ser feliz. Tem o seu próprio brilho,
e isso é nato.
Disse isso num tom engraçado e baixo. Rimos todas ao
mesmo tempo, pois nos lembramos de que, certa vez, a senhora
Del Prat encomendou um vestido tão espalhafatoso e reluzente
que mal dava para ver suas caríssimas joias penduradas ao
pescoço. Foi uma noite difícil aquela, pois minha madrasta
chamou mais atenção do que a noiva ou a própria rainha.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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A noiva era uma pupila de muita estima de Sua
Majestade. Por isso, esta fez questão de estar presente entre os
convivas. A condessa só foi convidada por causa de seu titulo de
nobreza, mas tinha que aparecer a todo custo. A rainha, ao vê-la,
disfarçava e educadamente esquivava-se a cada proximidade da
Deusa do sol. Naquele dia, minha madrasta superou-se em seus
exageros. Doía a vista de todos ao olhar para aquela figura
brilhante. Meu pai e eu ficamos em um canto distante dela, é
claro. Percebi seu constrangimento mediante tantos sussurros
zombeteiros.
Já dentro da carruagem, não sabíamos se ríamos das
lembranças reluzentes da condessa ou se nos deliciávamos dos
fuxicos de Madame Hortência.
O dia estava lindo e o sol resolveu dar o ar de sua graça
naquela fria manhã de outono. Ao pegarmos a estrada,
contemplávamos a paisagem magnífica. Eu estava encantada
com tantas novidades que vinham surgindo à beira do caminho.
Conversamos muito sobre coisas banais do dia-a-dia. Não
tocamos em assuntos que não nos eram convenientes ao espírito.
Durante todo o trajeto, cantarolamos canções ciganas e
ríamos por qualquer coisa. Maria fez de tudo para que eu me
desligasse dos problemas corriqueiros e domésticos. Depois de
uma rápida parada para nos refrescar à beira de uma velha mina
d’água, comemos o delicioso lanche que Maria havia trazido em
uma cesta. E seguimos a nossa longa jornada pela empoeirada
estrada do norte da Espanha. Afinal, pela altura do sol, já devia
ser meio dia. Dentro da carruagem, adormeci profundamente,
encostada aos ombros de Maria. Só despertei quando a
carruagem passou por uma pedra saliente. Maria bateu no teto e
gritou para que o cocheiro tomasse mais cuidado. Depois
daquele susto, perguntei se já havíamos chegado.
Adriana Matheus
- 51 -
– Quase! - respondeu-me Maria - Continue a dormir! –
prosseguiu, com um tom na voz que mais parecia um bocejo.
Não conseguia dormir mais e comecei a olhar as folhas
das árvores caídas ao chão, formando uma espécie de tapete
celestial. Casinhas de colonos ao longe, muitos gados a pastar.
O cheiro do mato e o silêncio ensurdecedor fizeram-me
adormecer novamente. Uma voz ao longe parecia chamar-me
Anna, Anna! Sinto sua falta... Encontre-me, por favor!
Meus olhos foram ficando cada vez mais pesados e, por
fim, caí no abismo dos sonhos. Sonhei que estava em um
mosteiro, todo feito em pedras calcárias de cor escura. O lugar
mais parecia uma ruína. Havia um enorme jardim, totalmente
abandonado, onde só os girassóis sobreviviam. Muitos monges
trabalhavam nas plantações, tentando salvar o pouco que lhes
restava da seca, que era eminente. Outros cuidavam dos animais
magros e doentes. Alguns, ainda, varriam incessantemente o
patíbulo, cuja terra havia invadido todo o mosteiro. Aquilo me
pareceu mais um ato de loucura coletiva. Ao longe, ouvi um
coro com música gregoriana - misturada às orações, pareciam
lamentos e suplícios.
No patíbulo do mosteiro, logo na entrada, havia um
monge, que me olhava de um jeito hostil, quase humilhante.
Parecia ser uma espécie de abade. Ele era sério, atarracado,
baixo e corcunda. Sua pele era avermelhada, manchada e
descamada por causa do mau tempo. O que o diferenciava dos
demais monges era apenas uma enorme cruz na frente de suas
vestes, encardidas e rasgadas. Algumas freiras circulavam de um
lado para o outro, como que hipnotizadas. Vi-me descer de uma
carruagem, e seguraram meus finos braços, empurrando-me aos
safanões para dentro do mosteiro. Tentei fugir, mas as mãos que
me seguravam eram fortes e severas. Eu olhava para trás,
tentando pedir socorro à Maria. Ela nada parecia poder fazer. As
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 52 -
lágrimas desciam incessantes dos olhos de minha amada amiga,
que ficava cada vez mais para trás.
Tentei fugir inutilmente. Gritei por socorro e deixei o
pranto rolar. Chamei por Maria, até que a vi cair por terra, como
que sem forças. Meu corpo tremia. O desespero tomou conta de
mim, por saber que estava ficando longe de meus familiares.
Tentei agarrar-me onde dava. Todos ao redor olhavam-me e
viravam seus rostos, numa repulsa sem explicação.
Uma jovem freira ainda tentou desgrudar-me daqueles
braços e mãos, mas outras a puxaram e só ouvi dizerem-me para
ter fé. Outra freira, bem mais velha, veio receber-nos à porta do
convento. Era uma senhora carrancuda e com ares de
perversidade. Provavelmente, a madre superiora.
Sua expressão de algoz conseguiu gelar minha alma.
Mandou-me calar a boca aos berros, advertindo-me que ali não
era lugar para toda aquela histeria. Por fim, levaram-me para
dentro, forçosamente. Virei para trás, dando uma última olhada
para meu pai, que ficou na entrada, conversando com a suposta
madre.
Deixaram-me só, em um corredor onde havia um enorme
banco, uma mesa, uma cadeira e um armário antigo, onde
pareciam guardar arquivos e documentos. A sala era escura e
não tinha sequer um vaso de plantas.
De repente, ouvi um barulho e a porta se abriu.
Estremeci como vara de bambu ao vento. Mas, ao contrário de
quem pensei que fosse, entrou um monge de hábito marrom e
cabeça baixa e encapuzada. Aproximou-se de mim lentamente,
ajoelhou-se e fitou-me os olhos. Seus olhos eram cor de mel, sua
pele, muito branca, e seu rosto angelical escondia-se por trás de
uma fina e rala barba ruiva.
Aqueles olhos meigos passaram-me segurança e calor.
Abaixou o capuz, esticando para mim suas brancas mãos. Seus
Adriana Matheus
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dedos eram logos e finos; sua pele tinha uma maciez que
arrepiou todo o meu corpo. Sua proximidade era tamanha que
pude ver as pequenas sardas por baixo dos pelos ruivos de seus
braços. Embora a barba estivesse por fazer, ela lhe dava um ar
de intelecto. Seus traços eram finos e ele mais parecia um
Lorde.
E, por certo, era de origem inglesa ou holandesa. Fiquei
gelada e catatônica, e cheguei a pensar ser um dos loucos que
havia visto ao chegar. Mas ele me passou tanta paz e
tranquilidade ao pegar novamente em minhas mãos, trêmulas e
geladas, que novamente acalmei. Então, disse simplesmente:
– Estou à sua espera há tanto tempo, Anna. Perdoe-me
por tê-la deixado! Nunca mais nos separaremos, prometo!
De repente, num piscar de olhos, estávamos sem mais
nem menos em um despenhadeiro, onde se via todo o mar da
Espanha, lindo e de um azul inigualável! A areia, muito branca,
completava aquela paisagem. O vento soprava forte, como se
estivesse me dizendo algo que eu não consegui decifrar naquele
momento. Podia sentir o cheiro da maresia nas minhas narinas.
Fiquei muito agoniada com aquela sensação. Meus cabelos
estavam soltos e voavam com as minhas vestes, toda em
algodão fino e transparente. Ele segurou minhas mãos, e
comecei a me sentir segura e feliz novamente, como nunca
havia sentido antes em toda a minha vida.
O vento era forte demais e frio. A estranha sensação
voltou. Comecei a tentar desesperadamente soltar minhas mãos
das dele. O cheiro da maresia foi se transformando em cheiro de
medo. Por fim, o monge soltou minhas mãos e senti seus dedos
desprendendo-se dos meus. Caminhou em direção ao
despenhadeiro.
Meu coração disparava ao ver a agonia em seus olhos. O
brilho daquele olhar feliz transformou-se em súplicas. O musgo
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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viçoso daquele olhar agora era nada mais do que escuridão. De
repente, a escuridão tomou conta de tudo ao meu redor e vozes
tenebrosas cercaram-me. Ele me deu um sorriso triste, com os
lábios fechados. Virou-se de costas, caindo no despenhadeiro,
gritando o meu nome num apelo desesperado.
Seu corpo caiu nos rochedos e o mar revolto ficou
batendo nele, já sem vida. Gritei como louca e percebi que eu
não estava mais ali, que era só mais um sonho.
Vozes chamavam-me, misturando-se ao barulho das
ondas. Tudo começou a virar fumaça e acordei suada e chorando
muito, com Maria ao meu lado, chamando-me:
– O que houve, filha? - perguntou Maria, passando as
mãos no meu rosto, tentando enxugar as lágrimas que ainda
desciam como fonte de tristeza. Entre soluços, disse-lhe:
– Sonhei com o monge novamente, Maria, aquele dos
meus sonhos de criança! Já fazia tanto tempo que não sonhava
mais com ele! O engraçado é que sempre sei que estou
sonhando, sei que a qualquer momento irei acordar. Às vezes
chego a ouvir meus suspiros dormindo, e até vejo meu corpo em
seu estado de repouso. Por que isso está acontecendo comigo de
novo, Maria? Ele se matou? Pois o vi caindo no mar! Não
consigo entender o que realmente houve com ele. Tentei salvá-
lo, mas já era tarde demais, juro! Ele se foi muito rápido. Quem
é ele, Maria? Por que esses sonhos incessantes?
Maria aproximou minha cabeça do peito, na tentativa de
me acalentar, pois eu já não conseguia falar. Apenas soluçava.
– Calma, querida, vamos resolver tudo isso hoje. Minha
irmã Helena saberá ajudá-la. Não existe pessoa melhor neste
mundo que entenda mais sobre este assunto do que ela.
Olhei-a, espantada.
– Pensei que fosse a senhora a entender desses assuntos?
Adriana Matheus
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– Não. Abandonei o meu povo e agora não faço nada
mais além de por cartas e fazer meus chás. Agora enxugue essas
lágrimas. Chegamos ao nosso destino. Devemos nos preparar
para descer com discrição. Afinal, não queremos que ninguém
veja seus olhos inchados. Ou vai querer que pensem coisas de
uma mocinha tão fina?
Embora soubesse que Maria só estava ironizando,
não me incomodava nem um pouco com o que os outros
pensariam de mim. Só queria uma explicação plausível para
tudo o que estava acontecendo comigo. Queria que aqueles
sonhos parassem logo e que eu pudesse dormir tranquilamente
alguma vez na vida.
Eram seis horas da tarde quando paramos em frente a
uma casa grande, toda feita de pedras escuras, com portinholas
duplas e largas de madeira, pintadas com tinta azul envelhecida
e desgastadas pelo tempo. Abriam-se de cima para baixo. Suas
janelas eram estreitas e muito altas, dando a impressão de ser
uma igreja. Alguns cipós teimavam em subir por toda a parede
do lado de fora, dando a ela um ar de casa medieval. Observei
várias mulheres colocando suas roupas - muito alvas - nos
grandes varais que estavam na lateral. Outras trabalhavam em
fiares e, ainda, teciam tapeçarias. Crianças corriam e gritavam
como loucas, brincando umas com as outras, sujando-se de terra
e de barro, sem ninguém para lhes privar a liberdade.
Todos estavam tão ocupados em seus afazeres que não
deram a menor importância para a nossa chegada. Avistei um
celeiro a uns cem metros, onde deveriam guardar seus cavalos e
outros animais de grande porte.
Um pouco mais ao longe, via-se um moinho d’água -
com sua enorme pá girando sem parar – e, do outro lado, havia
uma mata fechada, que parecia guardar todos os segredos
daquele povo misterioso.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 56 -
Animais domésticos circulavam por toda parte. Árvores
frondosas e gigantescas cercavam toda a casa. A mata,
constituída por cedros, pinheiros, oliveiras e árvores frutíferas,
formava uma cerca viva. Por isso, não dava para vê-la ao longe
ou mesmo da parte mais próxima da estrada. A própria floresta
era o muro que guardava toda aquela beleza e simplicidade.
Senti no ar uma grande manifestação de bondade e
respeito em todos à minha volta, embora não tivessem
manifestado seu interesse por nós. A energia era tão viva que
quase podíamos tocá-la.
As flores do campo cercavam toda a casa. Um beiral de
pedras, feito pelos moradores da floresta, cercava um canteiro
com ervas para chá, muito bem cuidado. O lugar era mesmo
mágico, pois uma enorme paz tomou conta de mim assim que
pisei lá. A terra era fértil e viam-se seus frutos. E muitos gatos
circulavam por todo o lugar. Fomos recebidas por uma senhora
grisalha e uma jovem muito bonita, aparentando ter a mesma
idade que eu. A senhora era a irmã de Maria, e a moçoila era sua
sobrinha. Vieram correndo, pois fazia muito tempo que não se
viam. Abraçaram-se com um calor fraternal.
– Seja muito bem vinda à nossa humilde floresta!- disse
Dona Helena, olhando em minha direção.
A mocinha apresentou-se, esticando a mão e dizendo:
– Meu nome é Bernadete e aquela, como já sabe, é
Helena, minha tia. Sou filha de Dolores e Guiñllo, mas tia
Helena me criou, pois ambos faleceram em um trágico acidente.
Não falemos sobre coisas ruins! Venha, entre! Não fique aí em
pé, parada. Entre, conheça a casa e minhas outras irmãs. - disse
Bernadete, percebendo que eu havia ficado para trás.
Ao entrar, apresentou-me à outra senhora com olhar
gentil, que estava sovando a massa para os pães na cozinha. Em
Adriana Matheus
- 57 -
seguida, apresentou-me às suas outras duas irmãs: Loylla, a
mais jovem, e Emanuelle, a mais velha.
– Fique calma! Estou achando-a um tanto tensa. Deixe
que meu noivo Magald cuide de suas malas. Aqui ninguém
mexe em nada.
– Imagine, não pensei nisso! É que estou tendo
problemas para dormir. E estou com um pouco de dor de
cabeça.
– Então venha se refrescar e tomar um chá de camomila
com hortelã.
Bernadete levou-me para seu quarto, onde me refresquei
e também troquei de roupas. Coloquei um vestido simples, de
algodão azul, que ela me emprestou, pois meus vestidos não
eram adequados para o campo. Trocamos presentes. Dei-lhe
uma caixinha de música de cristal e bronze, onde um casal de
bailarinos dançava ao som de uma valsa vienense.
– Era de minha mãe - disse a ela, estendendo as mãos.
– É lindíssima! Mas não sei se posso aceitá-la.
– Ficarei muito ofendida se não aceitar. Tenho certeza de
que ficará perfeita na mesinha de cabeceira do seu novo quarto!
E ela tem um segredo, veja. - mostrei-lhe uma abertura falsa no
fundo. Poderá guardar suas economias aqui dentro sem que seu
marido perceba.
Ela corou e disse:
– Se é assim... Abraçou-me e depois seguiu em direção
ao criado mudo, de onde tirou um livro, cujas páginas eram de
papiro e a capa era de couro, todo trabalhado à mão, com
desenhos em relevo. Disse que tinha sido seu avô que lhe havia
dado. Foi uma troca que ele fizera com um cigano amigo dele.
Ela ainda disse que suas páginas eram mágicas, e como não
levava o menor jeito para escrever, gostaria que eu ficasse com
ele.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 58 -
– Na verdade, meu avô contava essas histórias para eu
adormecer. O que eu quero é me casar com Magald o quanto
antes, ter muitos filhos, e ser feliz enquanto vivermos.
Sabia que Bernadete e seu noivo estavam
passando por muitas dificuldades, pois Maria comentou comigo
enquanto vínhamos pela estrada. Então, tentei ajudá-los, dando-
lhes minhas economias. O obséquio não era muito, mas sei que
daria para ajudar na festa de casamento. Bernadete agradeceu-
me tanto que me deixou encabulada. Sua vida não era nada fácil,
mas, mesmo assim, não poupara esforços para me agradar.
Emanuelle, a irmã mais velha de Bernadete, veio nos chamar
para o jantar. Apressamo-nos em ir ao encontro de Maria e
Helena. A mesa era toda de madeira bruta, e dois enormes
bancos a cercavam. Muitas guloseimas nos esperavam. Durante
o jantar, Dona Helena olhava demais para mim. Por fim, falou:
– Fiquei sabendo do problema que a senhorita tem
passado.
Olhei para Maria com desaprovação, mas ela continuou.
– Não culpe Maria, ela fez o que era certo. Tem um dom
lindo, menina!
– Tenho o quê? - olhei para Maria, tentando receber uma
resposta plausível.
– Maria me contou de seus sonhos sequenciais e sobre
tudo o que tem passado com sua madrasta. Mas também me
falou de sua benevolência e humanidade para com seu próximo.
Iremos ajudá-la, sei bem o que deve estar passando.
Bernadete deu-me um cutucão com o pé por
debaixo da mesa e sorriu, abaixando a cabeça em sinal à nossa
cumplicidade no seu quarto.
– E o que devo fazer? Quem é esse homem com quem
tenho sonhado tão frequentemente?
Adriana Matheus
- 59 -
– Calma, menina! Uma pergunta por vez. Primeiro, tem
que aflorar e doutrinar seu dom, Depois, precisa fazer a viagem.
– Fazer o quê? Teremos que viajar novamente, Maria?
As duas entreolharam-se e riram de mim. Senti-me uma
tola e resolvi apenas esperar os resultados e as respostas. Por
fim, Helena falou:
– Não, criança. A viagem não é como pensa! Nem
mesmo sabemos se irá conseguir. Primeiro, farei uma pergunta
muito simples. Tem certeza de que quer conhecer esse homem?
É isso o que realmente quer? Pois não terá volta. E pode não
voltar bem da viagem... O que é ainda pior: pode não querer
retornar ao seu corpo físico; ficará desacordada e correrá risco
de vida.
– Sim. É o que mais quero na vida. Não tenho dúvida se
isso for me dar as respostas de que preciso.
As duas entreolharam-se por instantes, concordando
entre si.
– Ótimo, então não temos muito tempo a perder, por
causa da curta estadia da senhorita aqui. Amanhã bem cedo
começaremos com os preparativos - disse Dona Helena.
– Como assim? A senhora o conhece? Ele mora
por aqui? Quem é ele? Por favor, eu suplico, digam-me quem
ele é! - foi inevitável, embora eu tivesse prometido a mim
mesma calar a boca!
– Acalme-se, senhorita Anna! Uma pergunta por vez.
Precisa saber que, embora não tenha a mínima ideia do que está
acontecendo, essas repostas só poderão ser dadas pelo seu
coração. Com certeza estão todas aí dentro. Todas as dúvidas,
todas as ansiedades, só a senhorita tem a resposta. E, com
paciência, na hora certa saberá responder, podendo até nos
esclarecer também. Por certo, ele deve ter sido alguém muito
importante para a senhorita. Tem alguma coisa que ainda está
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 60 -
pendente; esse espírito ainda continua interligado à senhorita.
Pode ser que ele esteja encarnado ou não.
– Então isso significa que ele está morto?
– Não, de forma alguma. Estou tentando lhe dizer que
essa pessoa fez parte do seu passado, de outra vida. Mas
também pode estar encarnado nesta vida. Resta saber se a
senhorita terá estrutura para encontrá-lo. Ele pode ter vindo de
diversas formas, pode muito bem ser um parente muito próximo.
Quando falamos em espíritos, necessariamente ele não precisa
estar desencarnado. A senhorita também é um espírito. Porém,
está encarnada. Sei que é muito difícil, no início, tentar aprender
sobre as coisas que lhe foram ocultadas a vida toda.
Principalmente tendo a senhorita vindo de uma família tão
tradicional e rígida quanto a esses assuntos. Mas acredite:
mesmo para nós, que nascemos e seguimos a tradição a fio,
ficamos confusas no início. É muita informação e, no seu caso,
muito pouco tempo também. Tenha calma, é só o que
pediremos. Confie em nós e nas forças da natureza. Tentaremos
fazer o que for melhor para ajudá-la. Largue a ansiedade de
lado, pois ela é sua inimiga. Apague essas interrogações da sua
cabeça. Aprenda a rezar - não as rezas tradicionais, mas as que o
seu coração lhe ensina. Confie em si e em Deus que tudo lhe
será respondido ao seu devido tempo.
Fiquei calada o restante do jantar, observando-as
conversar por entre lábios. Não estava com medo, mas muito
curiosa.
Eu e Bernadete sentamos perto da lareira, na sala, pois a
noite estava fria. Maria e Helena passaram o resto da noite
cochichando. Não consegui ouvir uma só palavra do que
Bernadete estava me falando, pois fiquei o tempo todo de
orelhas em pé, tentando ouvir o que as duas irmãs estavam
falando, e se era sobre mim.
Adriana Matheus
- 61 -
Às oito e meia, eu e Bernadete fomos nos deitar, pois,
por algum motivo, tínhamos que acordar cedo. No quarto,
conversamos muito. Contou-me como conheceu Magald. Era
adorável ouvi-la, pois fazia o amor parecer uma coisa muito
simples.
– Quando eu encontrar alguém, desejo que esse amor
seja para sempre, por toda a eternidade.
Ela disse, exasperada:
– Não diga isso nunca! - foi como se eu tivesse dito algo
muito abominável.
– Por quê? – perguntei, curiosa.
– Porque o amor é livre. Não podemos prender um
espírito encarnado ou desencarnado. Esse tipo de jura ou
atitude inconsequente e egoísta pode perseguir o espírito por
toda a sua vida, e até por várias outras encarnações. Anna, o
espírito jurado pode passar a vida procurando um amor e
nunca encontrá-lo. E o que fez a jura pode nunca mais
conseguir ter sossego. Até que, por si, comece a aceitar a ajuda
dos irmãos desencarnados espíritos de luz. Mas isso pode levar
muito tempo, Anna, até séculos! Quando meu espírito
desencarnar, quero que Magald seja muito feliz, que encontre
uma boa mulher que o ajude em sua jornada terrena. O amor é
liberdade, Anna... o amor é liberdade! Se conseguir fazer a
viagem, voltará com novos pensamentos. Agora durma, pois
teremos um dia bem agitado amanhã.
– Então, pretende esquecer Magald?
Virou-se brava para mim.
– Nunca nos esqueceremos, pois nos encontraremos em
outras encarnações, e nossas lembranças sempre nos
acompanharão, pois temos a obrigação de nos lembrar de
nosso passado. Só que, na maioria das vezes, somos tão
egoístas e estamos tão preocupados com nossas vidas terrenas
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 62 -
que não ouvimos os irmãos desencarnados nos falarem e nos
darem bons conselhos. Caímos, então, nas garras dos afins e,
antes que me pergunte quem são os afins, eles são espíritos sem
luz. Podemos ser orientados por espírito bons ou maus -
depende muito da nossa sintonia espiritual. É a lei do universo.
Viemos a esta vida para aprender e praticar o bem comum. Não
é fácil, mas cada um deve aprender ou, pelo menos, tentar fazê-
lo.
– Como podemos ajudar?
– Dando bons conselhos, livrando uma pessoa de se
prejudicar. Não é importante a quantidade de vezes que
praticamos o bem, mas a qualidade com que praticamos. Ou
seja, devemos sempre saber a forma como nos dirigir à pessoa
em questão, para não ofendermos ou invadirmos o espaço físico
e mental dessa pessoa. É muito importante deixar as pessoas à
vontade e, principalmente, não devemos convencê-las de tomar
o caminho que muitas vezes só é melhor para nós – mas, sim,
elas devem seguir o caminho que lhes for indicado por Deus.
Essa é a diferença entra uma bruxa e uma feiticeira. Nós
estudamos o universo e aprendemos a usar sua força em prol da
humanidade, enquanto as feiticeiras usam essas mesmas forças
de maneira mercenária e leviana para prejudicar inocentes.
Vivemos em um mundo muito atrasado e cruel, mas estamos
aqui como aprendizes temporários. Devemos aproveitar nossa
estadia para crescermos espiritualmente. Lógico que tudo isso
deve ser feito com ponderação e muito cuidado para não
interferir no destino de outra pessoa. Pois, caso contrário,
podemos virar de cabeça para baixo a vida de um consulente
inocente. Tudo isso é muito bonito, mas muito perigoso. Pense
nisso! O poder está em nossas mãos, e cabe a nós sabermos
como usá-lo. E existe outra coisa muito importante que a
senhorita precisa saber antes de fazer a viagem.
Adriana Matheus
- 63 -
– Então me diga, estou muito interessada sobre os
assuntos relacionados à magia. Sempre ouvi histórias sobre as
bruxas. Ficava tão fascinada!
Ela deu um sorriso por perceber que eu era leiga e
inocente no assunto da magia.
– Anna... A magia não tem nada a ver com as historinhas
que você ouviu quando era criança, e muito menos encontrará
coisas sérias sobre as bruxas em livros como esses. Existem
livros que não valem sua capa. Cada bruxa tem sua história
pessoal; a magia é uma história pessoal. Preste bem atenção: a
bruxaria não é um culto, porque culto é um grupo de pessoas
que segue um líder. Uma bruxa não tem um líder. E deve saber
que as bruxas estão sempre sozinhas e solitárias, principalmente
por causa do preconceito. Uma bruxa só se relaciona com
pessoas pertencentes à ordem, pelo mesmo motivo que citei
antes. Deve saber que muitos homens se fazem de
compreensivos e, quando conseguem o que realmente querem,
entregam-nos à inquisição. Então, cuidado com as paixões
levianas. Bruxas não cultuam o diabo. Buscamos reviver as
crenças de um período que remonta aos primórdios da
humanidade, um período muito anterior ao Cristianismo. O
diabo é, na verdade, uma criação do Cristianismo e não tem
absolutamente nada a ver com nossas crenças. Obviamente,
atribuíram as práticas das bruxas ao diabo porque é conveniente,
visto que as religiões cristãs recriminam qualquer ato não-
cristão como um ato do diabo. Há cultos ao diabo por todas as
partes do mundo, mas eles nada têm a ver com a bruxaria,
tratando-se apenas de pessoas que praticam uma inversão do
cristianismo. Cada um tem as suas crenças, mas, felizmente, esta
não é a nossa. Celebramos os deuses antigos na natureza. E
lutamos para que isso seja um direito nosso.
– Os deuses antigos não são demônios?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 64 -
Respirando fundo, ela prosseguiu:
– Deixe-me continuar, por favor? Alguns cristãos
fundamentalistas afirmam que qualquer pessoa que não pratique
a forma de cristianismo deles é um satanista por definição, e
incluem sob essa denominação os judeus e os sodomitas. As
bruxas e os bruxos apenas celebram a natureza, só isso. Nós,
bruxas, não assassinamos pessoas ou animais, embora haja
diversos atos maléficos de pessoas que pratiquem esses rituais.
Na verdade, são doentes mentais e deveriam ser punidos pelos
mesmos rigores das leis que nos acusam. Acredito que algumas
feiticeiras, por dinheiro, realmente pratiquem esse tipo de
abominação para provarem o quanto são poderosas. Anna,
ninguém tem o direito de tirar uma vida. O tão chamado diabo
não tem esse poder. Por certo, quando um ato de feitiçaria como
esse é praticado, alguém usou as próprias mãos para fazê-lo. Ou
por envenenamento ou por prática corporal. Logicamente, quem
pratica essa arte, por assim dizer, são pessoas muito inteligentes
e maldosas, pois sempre deixam vestígios no local de seus
crimes para nos acusarem. Nunca faça de sua religião uma arma
contra alguém. Somos responsáveis pelos poderes que nos são
incumbidos. E devemos saber que eles também se voltam contra
nós quando não praticamos corretamente.
Afofando o travesseiro, Bernadete continuou:
– Ame nossos Deuses e celebre os ciclos da Lua e a
Roda do Ano como você puder. Ninguém é dono de seus
pensamentos, nem de sua alma. Você é livre! Somos livres! Mas
tome cuidado em quem confiar: o ser humano é inconstante e
infinitamente cruel.
A viagem que fará é, na verdade, um culto aos antepassados - no
caso, aos seus. Reuniremos muitos irmãos, entre homens e
mulheres, em uma grande celebração. Seu espírito será levado
ao seu local de origem. Invocaremos as forças da natureza e
Adriana Matheus
- 65 -
enviaremos seu espírito ao seu passado, com a ajuda do
elemento fogo, que caminhará nas asas do vento.
Puxou as cobertas e, num bocejo, prosseguiu a
explicação:
– Antepassado, em genealogia, é o nome que
normalmente se atribui a um ascendente já morto, ou que se
localiza a várias gerações anteriores na representação gráfica da
árvore genealógica. Na Bruxaria, os antepassados representam
gente do nosso sangue, que resultaram no que somos hoje. Por
isso, as bruxas e bruxos realizam muitos rituais em honra aos
seus antepassados, pois eles trabalharam para o mundo chegar
onde está. Todo o conhecimento que é passado para nós está
conosco graças a eles. Sempre respeitamos o que não podemos
tocar. O mundo invisível está sempre presente no nosso dia-a-
dia. Além desse espaço físico, que estamos vendo, tem muitas
coisas vivas à nossa volta. Por isso, não excomungamos quando
ouvimos ou vemos alguma coisa que não está sob o nosso
conhecimento. Pelo contrário, oramos e pedimos sabedoria e
auxílio aos nossos irmãos desencarnados, que já estão na luz.
Apagou as velas do castiçal, deixando apenas
uma para iluminar o ambiente, e terminarmos a nossa conversa.
O mais importante de tudo isso é que as bruxas não são
anticristãs, nem querem acabar com o cristianismo. Bruxas,
acima de tudo, respeitam as demais religiões, assim como
exigem o mesmo respeito pela religiosidade deles. É claro que
há muitas mágoas, guardadas por tudo o que foi feito e ainda é
feito na história da humanidade. Mas não nos prendemos a isso,
e sim a atos do presente. Queremos simplesmente viver e
praticar a nossa religião em paz. As bruxas têm crenças que
remontam aos primórdios da humanidade, muito anteriores ao
cristianismo. O cristianismo tentou suprimir crenças, mas nós
não queremos fazer o mesmo. Anna, na verdade, nada sei ainda,
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 66 -
mas espero ter esclarecido suas dúvidas com o pouco que me
ensinaram.
– Sim, querida Bernadete! Nem mesmo Maria teria tido
tanta sabedoria para me falar dessa tradição, que é tão linda!
Prometo honrar meus compromissos como bruxa. Estou muito
grata pela sua paciência comigo.
– Agora podemos dormir?
– Sim, é claro!
Aquelas palavras, de alguma maneira, faziam todo
sentido para mim. Era como se eu já as tivesse ouvido em algum
lugar. Elas pareciam estar no meu inconsciente. Muitas vezes,
senti uma presença misericordiosa perto de mim quando era
criança. Outra me fazia sentir mal, quando a condessa estava se
aproximando. Ouvia, de vez em quando, passos em minha
escada, à noite, seguindo em direção ao quarto de mamãe. E
quantas vezes eu tive a certeza de ter dormido sem me cobrir e,
ao acordar, estava coberta! Isso sempre acontecia quando meu
pai estava viajando e, por certo, não era Maria, pois ela negava
sempre que a interrogava.
Nunca consegui explicar a sombra por trás de mim no
espelho, aos dez anos. Gritei tanto! Mas Maria disse que, por
certo, era um anjo que esteve por ali para me proteger. Talvez
fosse minha mãe, pois parei de sonhar com ela de vez.
Conformei-me com as respostas, virei para o canto e adormeci
profundamente.
Naquela noite, voltei a sonhar que estava com o monge,
só que dessa vez estávamos em outra época. Ele me beijou e
suas mãos eram muitos impacientes e percorriam meu corpo.
Seus olhos estavam fixos em meu rosto. Depois, apareceram
várias mulheres, desconhecidas ainda para mim. Pegaram-me
apressadamente pelas mãos e me levaram a outro lugar. Era uma
vila - não consegui definir, pois tudo era como o relâmpago. De
Adriana Matheus
- 67 -
repente, encontrei-me numa floresta, onde muitas mulheres
corriam e gritavam como loucas, de um lado para o outro. Em
uma fração de segundos, meu corpo já estava queimando e, no
meio da fumaça, vi o monge tentando tirar-me
desesperadamente, sem êxito. Os demais presentes seguravam-
no pelos braços. Senti meu o corpo sendo desfalecido pelas
chamas. Meus sonhos, minhas esperanças, meu amor...
Aquelas chamas estavam devorando tudo o que eu ainda
não tinha vivido. Eu nada podia fazer, e ninguém movia um
músculo para evitar aquela dor insuportável. Senti meu espírito
deixar a matéria. Acordei agitada e chorando muito. Cheguei a
urinar na cama, de tão real que havia sido o pesadelo. Dona
Helena estava sentada ao meu lado e me acalentou. Então,
contei-lhe tudo o que havia sonhado, nos mínimos detalhes. Ela
ouviu cada palavra, sem pestanejar.
– Por que o amor dói, Dona Helena? Como posso amar
alguém que nem conheço, e que me pareceu ser tão covarde a
ponto de me deixar morrer cruelmente?
Abaixei a cabeça e me senti envergonhada pelo meu
estado lastimável. Dona Helena pareceu perceber e me disse:
– Não se sinta mal. Às vezes, vivemos nos sonhos uma
realidade que não podemos explicar - e foi isso o que aconteceu
com a senhorita.
– Mas estou suja!
– Dizem que isso acontece quando a dor ou o medo são
muito intensos. Seu sonho foi tão real que a senhorita viveu uma
experiência intrassensorial, o que acabou em uma reação
espontânea. É a lei das causas e efeitos. Na verdade, teremos
que correr com a sua viagem. A senhorita está viajando sem
sequer entrar no círculo - é por isso que está tão confusa.
E depois de muito analisar-me, perguntou-me:
– A senhorita o ama mesmo, não é?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 68 -
– Se o que estou sentindo é considerado amor, sim, eu o
amo. Antes eu tinha receio de dizer isso a alguém, por receio de
que me achassem louca. Mas aqui, com vocês neste lugar
mágico, posso ser eu mesma. Nessa floresta, nesta casa! Vocês
fazem as coisas ficarem tão simples e fáceis que não sinto mais
vergonha! A cada sonho, tenho a certeza de que irei encontrá-lo.
Mas, ao mesmo tempo, tenho medo.
Ela continuou fitando-me os olhos, como se estivesse
lendo minha alma.
Passei a mão pelo rosto para enxugar uma lágrima, que
estava prestes a cair. Dei um pequeno sorriso, ainda meio sem
graça, para tentar disfarçar a tristeza no meu peito, pois Dona
Helena parecia estar esperando outra resposta de minha parte, ou
qualquer coisa que descrevesse detalhadamente meus
sentimentos. Sempre tive certeza, mas expressar sobre o que
sentia, abertamente, ainda me era sufocante e constrangedor.
Depois de muito me fitar, ela disse:
– Levante-se, está na hora das preparações. Tem tanto a
fazer e tão pouco tempo.
–Jura? Que horas são?
– Duas da manhã, e o galo já fez sua primeira chamada.
Teremos que entrar no bosque, e está bastante frio. Prepare-se
para se lavar e continuar molhada, pois o orvalho por aqui é
muito intenso. Enquanto a senhorita dormia, eu e as outras
trabalhávamos para deixar tudo prontinho para vossa majestade.
Riu largamente.
– Sinto estar causando tanto transtorno...
– Não é transtorno algum! Tudo isso é em prol de uma
alma atordoada. Tentaremos fazer o que estiver ao nosso
alcance. Anna, só quero que seja feliz, encontrando seu caminho
onde for e com quem quer que seja. Está com medo?
Adriana Matheus
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– Não, só assustada e curiosa. É tudo novo para mim.
Imagine, nunca fui a lugar nenhum e agora estou aqui,
preparando-me para fazer uma viagem mágica. Acho que sou
uma mulher de sorte por ter Maria como amiga. Senão, como
poderiam saber de minha existência?
– É, Maria sempre foi assim mesmo. Praticar o bem
comum é também a sua missão, senhorita Anna. Assim como
Maria ajuda-a agora, um dia deverá retribuir-lhe o favor. Sabia
que quando Maria ainda era muito pequena, um dia, do nada, ela
se virou para todos e disse que sua missão seria cuidar de uma
irmã, cujo destino era só de penitências e sofrimentos? Aquelas
premunições deixaram todos atordoados, por causa da pouca
idade de Maria que, na época, só estava com seis anos.
– É mesmo?
– Sim. Ela sempre teve dom de prever o futuro através
das cartas. Nossa mãe, se estivesse viva, teria muito orgulho
dela. Já eu nasci com o dom de conhecer as ervas. Faço chás,
cataplasmas e curo as enfermidades. Mas não consigo ler as
cartas ou ver o futuro em qualquer outro lugar. O seu dom, por
certo, é muito especial. Deve ter sido uma bruxa muito poderosa
no passado. Quando voltar de sua viagem, não deve contar a
ninguém seu nome ancestral. É um segredo solene, praticamente
uma regra. Se cair em mãos erradas, a senhorita poderá
prejudicar-se.
– Como assim?
– Fica mais fácil fazer um sortilégio para prejudicá-la. É
como se entregasse sua alma às mãos dos inimigos. O segredo
do seu universo passará para suas mãos. Então, não revele para
ninguém seu nome de batismo espiritual. Lembre-se de uma
regrinha básica: dê a todos os seus ouvidos, e a poucos suas
palavras. Se Deus quisesse que falássemos mais do que
ouvíssemos, não nos teria dado uma só boca e dois ouvidos!
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Tudo o que falamos vira energia, desde a hora em que
levantamos até a hora em que dormimos. Conseguir calar a
mente para que ela não vire pensamento desnecessário não é um
dom ou uma virtude: é um privilégio, levando em consideração
que a mente nunca se cala.
Olhou para o meu estado lastimável e continuou:
– Não se preocupe, não contarei para ninguém sobre o
seu incidente. Prometo! Levante-se, já é hora. E você faz muitas
perguntas!
Levantei, meio preguiçosa e encabulada. Nunca havia
acontecido nada assim comigo, nem mesmo quando eu era
criança. Dona Helena saiu e voltou com um caldeirão com água
para eu me banhar. Depois de tudo pronto, disse-me:
– Faça uma oração, para que seu espírito entre em
sintonia com todo o universo. Lembre-se de sempre agradecer
por tudo o que o Pai Maior fez por você, desde o nascimento até
agora. Estar viva é a maior dádiva que Deus nos deu. Lembre-se
também que não vivemos sozinhos, mesmo quando achamos
que sim. Compartilhamos este mundo não só com os irmãos
encarnados, mas também com os desencarnados. Por isso,
devemos estar sempre com bons pensamentos, para que os
espíritos de luz venham nos orientar. Nem sempre isso é fácil.
Por isso, aconselho que feche seus olhos e imagine um pequeno
triângulo mental. Faça desse triângulo um ponto de fixação, e
não deixe nenhum pensamento infrutífero penetrar-lhe a mente.
Você terá que aprender a esvaziar o pensamento depois das
palavras mal ditas, ele é o nosso pior inimigo. Logo verás que os
pensamentos mudam, pois inconstante é o pensamento. Eles
mudam de direção tão rápido quanto o vento. Por isso,
chamamos o vento de alma do mundo ou anima mund - pois ele
compartilha nossas ideias e nossos segredos mais íntimos,
entrando e saindo de dentro do nosso corpo. Ele é um dos
Adriana Matheus
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elementos mais respeitados da natureza. Deus sabe os nossos
segredos por causa do vento, que leva e traz de volta nossas
vidas em detalhes. Ele é como um mensageiro. Respiramos o
mesmo ar que nossas antepassadas respiravam. O mesmo ar que
entra em nossas narinas já entrou em várias outras. E a cada
sequência ele se renova, levando e trazendo sabedoria e
experiência. Mas, assim como Deus ouve nossos pensamentos, o
diabo também o faz. Pois ele escuta o pensamento que sai de
nossas bocas. Ele faz parte dos detalhes que sempre ignoramos.
Ele é o detalhe. Por isso, devemos calar o pensamento, para que
não se transforme em palavras que poderão nos prejudicar.
Basta um pensamento nosso para estragar três coisas boas em
nossas vidas, porque nem tudo o que dizemos é ouvido por
pessoas de boa índole. A inveja é uma má energia, criada pela
súbita alegria do próximo. Por isso a necessidade de nos
calarmos. Nem tudo o que é bom para nós pode ser divulgado,
por causa desse sentimento tão baixo que existe nas pessoas, que
não conseguem ser felizes. O ser humano, de tanto pensar e
fazer o mal, criou o diabo. Deus lhe deu o nome de Lúcifer. Não
devemos temê-lo, mais evitá-lo. Então, esvazie seu pensamento,
para revigorar todas as suas forças ainda mais. Ficamos assim
por horas, meditando com os olhos físicos fechados, mas com os
olhos do espírito bem abertos.
Naquela espécie de transe consciente, vi formas,
símbolos e coisas extremamente pessoais. Depois de alguns
minutos, duas outras moças entraram, despertando-nos, e Dona
Helena me disse:
– Agora que já fez suas orações e limpou seu corpo
físico e mental, precisará de banho de purificação espiritual.
Preparei-lhe algo muito especial: deverá permanecer inerte por
algumas horas, até que a água esfrie por completo. Não quero
perguntas, por favor, sei exatamente o que pensa. Embora já
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 72 -
tenha tomado banho, hoje será o dia dos banhos, acredite! Agora
retire suas roupas novamente, levante-se dessa cadeira.
Fiquei meio zonza com tanta coisa acontecendo. Era
muita informação de uma só vez. Dona Helena, vendo a minha
inércia, disse:
– Levante-se, menina, e pare de fazer corpo mole.
Estamos preparando-lhe para um ritual sagrado, não deve
demonstrar tanto desinteresse.
Ela estendeu as mãos e ajudou-me a levantar. Retirei
minhas roupas e entrei na banheira, cuja água estava deliciosa.
Dona Helena e as duas moças jogavam em cima de mim pétalas
de girassóis e óleos perfumados. Algumas ervas especiais
também foram salpicadas por cima de mim. Depois de todo esse
ritual, ela falou:
– Hoje não será um dia comum: terá uma dieta adequada
e outros banhos de purificação como esse. Purificará seu espírito
com orações, e deverá esvaziar a mente consciente. Não poderá
pensar muito em coisas mundanas ou futilidades. E, como sei
que isso é impossível em sua idade, preparei-lhe um chá
especial, que também terá que tomar - e sem caretas! Após cada
refeição, tome um copo deste chá. Irá dormir a maior parte do
tempo. Não se preocupe com isso - no seu caso, isso não é mal,
pois sei o quanto tem andado esgotada, devido aos sonhos
atordoados. Não deverá falar com mais ninguém além de mim.
Não tente puxar conversa com as moças que entrarão no quarto,
elas estão em estado de purificação e não falarão com você.
Converse com seu coração, isso lhe fará bem. Faça-lhe
perguntas. Aposto que ele estará cheio de repostas.
Que bom!, pensei comigo. Voltei à minha vidinha
cotidiana e tediosa de antes. E ainda tinha que falar com o meu
coração - logo com ele, que vivia tão atormentado, coitado...!
Adriana Matheus
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Precisava mais de repostas do que eu, mas, mesmo a
contragosto, fiz tudo o que me foi determinado.
Depois de ter ficado de molho por quase uma hora, saí
da banheira. Dona Helena saiu em seguida, e eu fui para a
janela. Pude ver todas aquelas mulheres, correndo de um lugar
para outro. Pareciam muito determinadas em terminar seus
afazeres. Confesso que estava muito curiosa para fazer aquela
viagem.
Horas depois, Dona Helena retornou ao meu quarto e
trouxe-me o desjejum. Então, rompendo o silêncio - que já
estava me deixando louca -, disse:
– Não iremos levá-la à floresta agora pela manhã, como
havíamos planejado. A pessoa responsável por abrir o ritual está
um pouco distante daqui, fazendo um parto. Então, sairemos
daqui ao entardecer. Para mim, foi um presente dos deuses, pois
assim nos dará mais tempo de preparar o ritual do fogo. Por
favor, senhorita Anna, não se esqueça de tomar seu chá.
Falou essas palavras e saiu, deixando-me novamente.
Depois que fiz meu desjejum e tomei meu chá, cujo gosto era de
água suja, fui para cama, na tentativa de ler um pequeno livro
que achei perdido em cima de um caixote de madeira. Mas foi
em vão, pois, ao sentar-me à beira da cama, comecei a cochilar e
acabei por cair em sono profundo, como já era de se esperar.
Dormi tanto que nem sonhei! Aquela mistura amarga de ervas,
cultivadas secretamente pelas colonas, deixava-me tonta cada
vez que eu tentava colocar os pés no chão. Dona Helena deve ter
me falado, em algum momento que não conseguia lembrar,
sobre os efeitos do chá. Estes eram entorpecentes e nauseantes.
Diziam que seu poder era curativo, depurativo e que abria todos
os chácras espirituais do nosso corpo, de maneira que tirava
tudo de ruim que existia dentro de nós. Novamente, fui deitar-
me, pois minhas pernas bambeavam.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 74 -
Acordei às onze e refresquei-me para o almoço. O sol
estava quente e o quarto ficava monótono, não tinha nada o que
fazer. Uma moça, com o rosto coberto por um fino véu, trouxe-
me o almoço. Mais tarde fiquei sabendo que seu rosto estava
coberto para evitar que eu a interrogasse.
Voltei à janela e vi uma multidão indo na direção da
clareira, que dava para o outro lado do pequeno ribeirão. Acabei
por contar pétalas de flores e adormeci, sentada em uma cadeira
e debruçada no beiral da janela. Quando acordei, às duas da
tarde, outro banho de purificação esperava-me; repeti o ritual
como pela manhã. Após o banho, retornei à janela. E,
novamente, perdi-me em pensamentos, que teimavam em me
passar perguntas e dúvidas. Lutei contra mim mesma, como me
foi determinado, e voltei meus olhos para as colonas, mudando,
assim, o rumo que estavam tomando. Notei que a pequena
clareira reunia uma grande multidão. As mulheres não estavam
sozinhas: havia homens também, e muitos idosos, e todos
estavam entrando mata adentro, deixando-me sozinha. Por
instantes, essa foi a impressão que tive.
Comecei a ficar com medo, pois a solidão sempre me
apavorava. Foi quando escutei uma voz a sussurrar ao meu
ouvido. Cheguei a pensar que poderia ser o vento e arrepiei-me.
Poderia estar ficando louca. De repente, senti atrás de mim uma
presença muito forte. Era como se fosse um anjo, pois me
transmitiu muita paz e calma, e sua voz, macia e nítida, voltou a
sussurrar em meu ouvido, dizendo baixinho:
– Acalme-se, Anna...
Era a voz de uma mulher. Olhei rapidamente para trás
para ver quem era, mas não tinha ninguém, somente eu e o resto
da mobília. Não tive medo, mas fiquei sem conseguir dar
explicações ao fato acontecido. Mudei meus pensamentos
rapidamente, para não ficar paranoica. Os pensamentos são
Adriana Matheus
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realmente como o vento, voam rapidamente. E, como em um
passe de mágica, distraí-me. Parei, então, para olhar o horizonte,
observando a natureza. E, novamente, a calmaria instalou-se
dentro de mim.
Vi aves que nunca sonhara ver na cidade. Senti o cheiro
da terra fresca, do mato molhado e das flores. Poderia identificá-
las só pelo cheiro. O vento soprava em meus cabelos, parecendo
beijá-los. Senti a força da natureza, de maneira mágica. Era
como se o Criador tentasse me mostrar como era perfeita sua
obra. O amor estava em toda parte, o lugar era mesmo incrível!
As coisas falavam de maneira silenciosa. Uma paz indescritível
e sublime tomou conta de todo o meu ser. E quis voar como um
pássaro, pois minha alma estava totalmente livre!
Três toques à porta despertaram-me de meu sonho
acordada. Era Dona Helena novamente; entrou com mais duas
moças, trazendo outro banho e roupas, muito brancas e
transparentes, para que eu vestisse. Colocaram velas por todo o
quarto. Despiram-me e, dessa vez, Dona Helena fez questão de
me banhar. Embora não dirigissem a palavra a mim,
cantarolavam baixinho em uma língua estranha. Defumaram
todo o ambiente e todo o meu corpo, num ritual estranhíssimo.
Dona Helena dizia palavras na mesma língua em que cantavam
as moças. Depois de apenas banharem-me de pé, puseram em
mim as vestes brancas e transparentes, sem enxugar meu o
corpo, que se arrepiou com o vento frio que entrou pelo quarto.
Em minha cabeça, colocaram uma pequena tiara de flores do
campo, e Dona Helena agradeceu aos deuses e fez-me ajoelhar
em sinal de humildade, para consagrar minha cabeça com um
óleo sagrado. Pôs-me de pé novamente e deu-me mais um pouco
daquele chá horrível, que já estava me deixando cada vez mais
tonta. Por fim, depois de terem terminado o ritual de
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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consagração e agradecimento, abriram a porta do quarto. De
onde...
“O saber só depende da quantidade de experiências
vivenciadas e adquiridas pelo espírito encarnado ou
desencarnado. E, vivendo um dia de cada vez, conseguiremos
alcançar todos os nossos objetivos. A calma e a paciência nos
fazem cada dia mais capazes de chegarmos a um estado de paz
interior. Devemos trabalhar muito para isso - muita paz e muita
luz.”
Adriana Matheus
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II - A INICIAÇÃO
ete mulheres vestidas de azul entraram
silenciosamente pelo recinto. Uma delas pegou
minhas mãos, levando-me para o centro do quarto.
Todas me respingaram óleos aromáticos. Fui despida novamente
de minhas vestes e colocaram-me um fino véu sobre o corpo.
Não entendi nada daquele estranho ritual e preferi não comentar.
Depois de rezarem muito, conduziram-me até a saída.
Quando, por fim, chegamos do lado de fora da casa, doze
donzelas vestidas de céu esperavam por nós. De início, fiquei
envergonhada por elas estarem despidas e tentei esconder
também minhas vergonhas, porque meu traje era muito
transparente e deixava à mostra todo o meu corpo. Quase
cambaleei, ainda entorpecida pelo chá mágico que Dona Helena
havia me dado durante as sessões de purificação espiritual e
mental. Vagarosamente, meu raciocínio foi começando a fluir, e
tudo aquilo começou a parecer tão normal! Mudei
imediatamente meus pensamentos e concentrei-me no pequeno
triângulo imaginário que Dona Helena havia me ensinado para
o caso de pensamentos tolos invadirem minha mente.
Saímos numa espécie de procissão silenciosa, só de
mulheres. Tirando as doze donzelas que estavam vestidas de
céu, todas as outras vestiam camisolas de algodão branco.
S
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 78 -
Somente eu usava o fino véu sobre o corpo nu. Mas, por uma
estranha lógica insana, eu não me importava com aquela
situação que, tempos atrás, poderia parecer despudorada.
Fui levada ao extremo da floresta, onde havia uma
aglomeração de pessoas no meio do enorme campanado. Logo
se juntaram a nós. Caminhamos por mais meia hora a pé e
descalças. Depois de muito caminhar, conseguiu-se avistar uma
graciosa casinha de pedras polidas. Ela estava parcialmente
tomada por trepadeiras, tornando sua existência quase invisível
a olhos nus. Seu telhado era avermelhado. A porta principal era
estreita, em tom marrom. Suas janelinhas pareciam com as de
uma capelinha. Vasinhos com ervas cercavam suas laterais.
Parecia ter sido criada pelos contos de fadas que liam para mim
quando eu era criança.
Quase não se podia ver o sol, pois as gigantescas árvores
que cresciam ao seu redor tampavam a incrível visão. As
árvores que cercavam o bosque e a casinha pareciam falar
conosco, como se nos saudassem. Meu corpo e meus sentidos
respondiam àquilo tudo de maneira inexplicável. O misticismo
tomou conta de todo aquele lugar. Os pássaros cantavam alto,
dando ecos que confundiam meus ouvidos. Ora imitavam gritos
humanos, ora pareciam clamores. Talvez estivesse entorpecida e
sonolenta, devido ao efeito causado pelo chá - ou ainda estava
meio confusa, absorta com tanta magia. Juntamo-nos aos que ali
também esperavam por nós. Em instantes, aquele pequeno grupo
tornou-se uma centena de pessoas, mas já não eram pessoas
comuns: seus rostos, à luz da clareira que se formava em torno
do campanado, davam a impressão de eles serem anjos ou seres
místicos. Eu não sabia identificá-los, porque minha cabeça
começou a rodar novamente.
As mulheres do campanado que se juntaram ao nosso
grupo trajavam-se com cores muito exuberantes, como as
Adriana Matheus
- 79 -
ciganas. Fitas trançadas e coloridas, enlaçadas em volta da
cintura. Dançavam e rodopiavam, deixando-me cada vez mais
tonta. Flores diversas enfeitavam seus cabelos soltos. Usavam
enormes argolas douradas nas orelhas e muitas pulseiras.
Tocavam pandeiros e castanholas, rodopiando como borboletas.
Aquele frenesi deu-me a sensação de haver luzes saindo de seus
corpos. As crianças estavam presentes - porém, só participavam
as mais velhas. Ao nos aproximarmos mais da pequena casinha,
veio-nos receber uma senhora de idade muito avançada,
aparentando uns oitenta anos ou mais. Ao aproximar-se de mim,
senti-me fraca e cairia, se não fosse por Loylla e as outras
jovens a me ampararem. A anciã mais parecia uma bruxa, de tão
enrugada. Seus olhinhos já estavam sem brilho, devido à idade
muito avançada, mas eram piedosos e cheios de carinho. Seu
nome era Andélia. Todos diziam que ela tinha poderes
extraordinários e era, realmente, a bruxa mais poderosa e antiga
do condado. Ao passar, todos baixaram a cabeça, em respeito e
reverência à anciã.
Ao se aproximar de mim, observou-me minuciosamente
de cima abaixo, como se eu fosse uma escrava que está prestes a
ser adquirida em leilão. Senti-me muito constrangida por ser
observada daquela forma, pois a anciã até em minhas pupilas
olhou. Por fim, falou:
– Pelo que vejo, trouxeram a menina! Levem-na para
dentro e coloquem-na em meus aposentos, pois parece não estar
bem.
Disse isso com um sorrisinho matreiro nos lábios. Duas
moças carregaram-me, cada uma apoiando meus braços em seus
ombros. Já nos aposentos da anciã, colocaram-me sobre uma
caminha feita de carvalho e colchão de palha. Os lençóis eram
extremamente brancos! A mobília não era muito farta: havia
apenas uma mesinha com uma bacia e uma ânfora para o asseio,
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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uma cadeira e um armário com oratório, onde tinha muitas
imagens de santos da Igreja Católica. Surpreendi-me, pois fiquei
imaginando o que uma bruxa fazia com tantas imagens de
santos. Cheguei à conclusão de que meu conceito sobre as
bruxas não passava de ilusão. Eu as tinha como personagens de
contos de fadas. Imaginava-as de uma maneira totalmente
contrária do que elas eram na realidade. Seus deuses pagãos não
eram tão diferentes dos que conheci no meu dia-a-dia. Alguns
até pareciam com os santos da Santa Madre Igreja.
Ao me deixarem sozinha naquele aposento, tremia tanto
que meus órgãos internos pareciam balançar. Estava
completamente gelada, embora não estivesse fazendo o menor
frio. Tentei voltar os meus pensamentos para o ritual do qual eu
faria parte. Mas isso, naquele momento de aflição, foi quase
impossível, pois minha cabeça começou a doer
insuportavelmente. Foi aí que, como em um passe de mágicas,
deparei-me com a anciã bem à minha frente. Foi como se ela
tivesse sentido meu momento de agonia. Dona Andélia
aproximou-se mais de mim e tocou-me suavemente na face, com
seus dedos longos e unhas muito pontiagudas, que mais
pareciam garras. Por fim, exclamou:
– Acalme-se, minha criança! Não há motivos para tanto
nervosismo. Diga-me: o que está sentindo?
Era inexplicável saber como ela poderia ter adivinhado
meus pensamentos.
– Sinto minha visão turva e, às vezes, dá vontade de
vomitar. Sem contar que minha cabeça dói demais.
Ela riu, e prosseguiu a falar:
– É normal, sua mediunidade está muito aflorada. Sem
contar que suas perguntas e os seus pensamentos são muitos -
típico de jovenzinhas de sua idade. Ah, querida... Em sua idade
eu era tão ansiosa que minha mãe, às vezes, tinha que me dar
Adriana Matheus
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um chá para dormir! Caso contrário, eu especulava mais do que
o normal. A ansiedade é a inimiga do tempo. Tenha calma: para
tudo nesta Terra tem o tempo exato. Correr só atrapalha os
sentidos, sem contar que faz muito mal ao corpo físico.
Dizendo isso, Dona Andélia tocou em minha testa e,
pedindo para eu fechar os olhos, fez em seguida uma oração
naquela estranha língua em que Dona Helena também já havia
feito. Imediatamente, não senti mais ansiedade e nem mais
nenhum tipo de dor física ou tremores pelo corpo.
Dona Andélia, ao terminar com as orações, pediu-me
para abrir os olhos e prosseguiu, dizendo:
– Pude perceber sua energia brilhando de longe,
enquanto vinha caminhado pela clareira. A senhorita tem um
brilho tão forte que quase cegou minha visão. Tenho certeza de
que essa viagem lhe fará muito bem. Trará em seu retorno uma
grande experiência de vidas passadas.
– Dona Andélia, tenho tantas perguntas! Por exemplo, o
que é realmente essa viagem? Como poderei fazer uma viagem
se não vou a lugar algum além deste campanado? E por que
minha cabeça doía tanto e, quando a senhora a tocou, a dor
desapareceu?
Novamente ela sorriu, mas me respondeu seriamente,
como que não queria mais saber de especulações daquele tipo de
novo.
– É o efeito do chá. Ele desperta a natureza humana,
colocando para fora tudo o que existe dentro de nós, de bom ou
de mau. Se tivermos boas energias, ele as faz fluírem com mais
força. Se tivermos energias negativas, ele faz uma limpeza nos
chácras. Não se preocupe, que tudo isso passará. E, no seu
caso, como a senhorita está com a mediunidade muito aflorada,
o chá causou-lhe essas visões e tonteiras.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Depois daquelas explicações, Dona Andélia pediu-me
que repousasse em sua cama. Quando eu já estava deitada, ela
ajeitou minha cabeça em um travesseiro feito com paina e deu-
me um beijo no rosto, fazendo-me sentir segura. Pensei que
Dona Andélia ficaria ali comigo um pouco. Porém, assim que
ela passou o dedo polegar sobre a minha testa, tecendo uma
espécie de sinal mágico, não consegui ver mais nada.
Já era noite quando despertei. Fui à janela e perdi-me em
pensamentos novamente. Fiquei por horas olhando os homens
da vila trabalhando; pareciam estar montando uma fogueira.
Não entendia muito bem, talvez fosse parte do ritual. Eles
usavam, além de vestes brancas, um capuz que cobria todo o
rosto, deixando à mostra somente os olhos. Todos estavam
rezando, e aquela oração foi ficando mais forte. Havia umas cem
pessoas ou mais em volta da fogueira, já armada. Não vi Maria
ou Bernadete, devido à pouca luz e à escuridão da noite.
Sentei-me, então, na beirada da cama para olhar a Lua,
que estava alta no céu e clareava todo o quarto escuro. Acabei
adormecendo novamente. Era alta noite quando me acordaram
de supetão. Levaram-me para fora, ainda meio adormecida.
Observei que, no meio do enorme pátio de terra, estava a
imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, pois haviam
construído uma capela para a santa. Todas aquelas mulheres
dançavam, rodopiavam em volta de mim sem parar, girando no
ar uma espécie de varinha, fazendo movimentos circulares e
irregulares. Loylla, a irmã mais velha de Bernadete, dançou
sozinha. Depois, todas as outras, muito perfumadas, a seguiram,
balançando suas saias muito rodadas. Algumas me molhavam
com galhos cheios de um líquido com alfazema, jasmim e
canela. Outras me traziam flores. Outras, ainda, me davam o chá
mágico. Por fim, tiraram minhas vestes. Fiquei, então, no meio
de toda aquela gente vestida de céu.
Adriana Matheus
- 83 -
No princípio, senti-me envergonhada por causa dos
homens à minha volta. Tentei cobrir meu corpo nu com as mãos.
Mas eles não pareciam estar olhando para mim, porque também
estavam em completo transe.
Ao me aproximar, percebi que a fogueira era, na
verdade, um enorme pentagrama feito por toras de madeiras - o
que explicava o motivo pelo qual os homens passaram a tarde
toda cerrando árvores.
Fui guiada ao centro do pentagrama, onde fiquei imóvel,
sem saber o que fazer. Havia muitos símbolos antigos
desenhados em suas pontas. No meio, tinha também um círculo
feito no chão, como se alguém o tivesse milimetricamente
desenhado. Foi nesse círculo que algumas daquelas pessoas se
posicionaram, enquanto as outras ficavam de fora, de olhos
fechados e em estado de transe. De repente, uma estranha luz
brilhante circulou em volta daquele círculo mágico, que se
formou pelas pessoas que estavam de mãos dadas. Um homem
encapuzado com uma grande tocha nas mãos ateou fogo nas
toras, que formavam as pontas do pentagrama. As chamas, num
instante, assumiram o seu lugar. Assustei-me por um segundo,
dando um pulo, mas percebi que as chamas não conseguiriam
me tocar. A fumaça era intensa e, por pouco, não sufoquei.
Uma jovem vestida de céu veio até mim e passou um bálsamo
em minhas narinas, para evitar que eu me sufocasse.
Vi, ainda, quando algumas jovens atearam ervas dentro
da fogueira - o que aumentou mais ainda aquela intensa fumaça.
Todos gritavam palavras em línguas estranhas, ao mesmo
tempo. Uma mão apareceu no meio da fumaça e deu-me algo
para beber: parecia uma espécie de vinho misturado ao chá
mágico. A voz que acompanhava a mão dizia que era para não
deixar a minha garganta ressecar. Mas, logo que tomei aquele
líquido, fiquei completamente entorpecida e senti meu corpo
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 84 -
caindo em uma imensa escuridão. Não conseguia mais abrir
meus olhos, mas meus ouvidos estavam atentos a tudo. A voz da
anciã tornou-se nítida e perceptível. Ouvia sua oração, que dizia:
– Estamos aqui, presentes neste local sagrado, para
prestarmos auxílio espiritual a esta irmã atormentada pelo
espírito da sua antepassada. Devemos todas dar as mãos e, como
em uma ciranda, girar em torno da fogueira. Depois soltem
calmamente as suas mãos e acompanhem-me, dizendo as
seguintes palavras:
– Que a mãe terra, que nos dá permissão para fincarmos
nossas tendas sobre seu ventre, nos dê sua força em espírito
hoje. Que a mesma mãe, que nos fornece seu alimento para
matar nossa fome, nos dê alimento para nosso o espírito. Que o
fogo, que por anos foi nosso inimigo temeroso, hoje possa ser
nossa espada, para combatermos os inimigos de nossa alma.
Que o vento, que nos traz o cheiro e a mensagem de nossos
companheiros quando os perdemos na dor da batalha, venha
hoje ser o portador de boas novas, levando nossa irmã a seu
lugar de origem. Que a água, que mata nossa sede, seja hoje a
purificadora de nossos pecados. Que a Virgem Maria
Imaculada, que nos deu a maior benção do mundo - que foi seu
filho humanizado -, venha hoje nos ajudar em nossas
dificuldades, amparando-nos e protegendo-nos de todo o mal
que fizeram contra nossas antepassadas. Que a Virgem hoje
nos auxilie em nossas buscas ao interior de nossas almas. Que
nosso Pai celestial venha em nosso socorro. Muito obrigada,
meu Deus, por esse dia maravilhoso e produtivo. Muito
obrigada pelas nossas dificuldades, pois aprendemos com elas.
Muito obrigada por todos os obstáculos que aparecem em
nossos caminhos, pois aprendemos a crescer com eles. Muito
obrigada por nossos inimigos, visíveis e invisíveis, pois
aprendemos com eles a termos mansidão e paciência. Mas os
Adriana Matheus
- 85 -
ajude, Senhor, a enxergarem Sua luz, para que possamos viver
todos em paz. Muito obrigada pelos anjos e arcanjos que nos
fazem companhia, dando-nos orientação para o caminho que
devemos seguir com segurança. Muito obrigada aos espíritos de
luz, encarnados e desencarnados, que nos orientam, nos
amparam e nos guiam em nossa jornada terrena.
Em seguida, foi rezado o Pai Nosso:
– Pai Nosso, que estais no Céu, santificado seja o vosso
Nome. Venha a nós o vosso Reino. Seja feita a vossa vontade,
assim na terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai
hoje. Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a
quem nos tem ofendido. E não nos deixeis cair em tentação, mas
livrai-nos do mal.
Dona Andélia prosseguiu com o ritual, só que, dessa vez,
usou outro tipo de oração:
– Pelo poder da terra (palmas viradas para baixo). Pela
força do fogo (palmas viradas para frente). Pela alma dos ventos
(palmas em movimentos circulatórios em direção a si). Pela
pureza das águas (palmas juntas e para cima, como se estivesse
tomando banho de cachoeiras). Que o portal se abra e nossa
irmã possa seguir seu caminho em paz. Que nossas ancestrais a
guiem com segurança e tragam-na, calma e serena, de volta
para nós.
Naquele momento, eu já não sentia mais o calor da
fogueira, nem a fumaça que me sufocava. Não ouvia mais as
vozes cantando ao meu redor, nem sentia vergonha por meu
corpo estar nu. Fiquei completamente catatônica e não mais
consegui me mexer. Senti o meu corpo levitar.
De repente, eu estava em outro lugar, no meio de uma
floresta fechada, onde ouvi nitidamente um enorme alvoroço de
mulheres gritando. Meus olhos foram abrindo lentamente e as
pude ver correndo de um lado a outro. Coloquei-me de pé, ainda
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 86 -
meio tonta, tentando entender onde eu estava. A floresta
pareceu-me a mesma, mas onde estavam todos que estavam em
volta de mim no ritual? Onde estava Maria e Bernadete? Eu
queria fugir, mas não tinha como e nem para onde. As pessoas
que estavam ali eram completamente diferentes das que estavam
comigo no campanado. Seus trajes eram bem medievais. Fiquei
inerte mediante tamanha calamidade que observei.
O pânico era tamanho que pude sentir o choro invisível
da mãe terra. Mulheres eram chutadas, criancinhas eram
pisoteadas. Crianças inocentes eram decapitadas brutalmente
pelos soldados. Pelos cabelos e pelos pés, as mulheres eram
lançadas em carroças com cela, espremidas e trancadas como
animais. Algumas foram amarradas pelas pernas e arrastadas por
toda a floresta. Jovens eram defloradas na frente de seus pais.
Bebês que nem andavam eram lançados pelas perninhas aos
cães ferozes e famintos, já treinados e acostumados com a
carnificina humana.
Um verdadeiro holocausto foi criado em meio à paz e à
harmonia.
Indaguei uma jovem que passou por mim, desesperada,
querendo saber dela o que estava havendo. Ela simplesmente
respondeu-me entre soluços, parecendo não querer parar:
– Tudo por causa da ignorância e do preconceito das
pessoas que não nos entendem, senhorita. Somos tratadas como
animais por não termos o direito de escolher o que fazer do
nosso destino.
Uma senhora, que parecia ser a mãe da jovem, veio aflita
em nossa direção, e puxou-a pelo braço, dizendo-me:
– Fuja para se salvar, ou esses cães imundos vão trucidá-
la.
Não as vi mais daquele momento adiante. Elas sumiram
em meio à multidão, aterrorizada. Eu não podia acreditar no que
Adriana Matheus
- 87 -
estava acontecendo mediante meus olhos. Aquelas pessoas
estavam sendo massacradas somente por pertencerem a outra
religião, por pensarem diferente e quererem ser livres. Meus
olhos encheram-se de lágrimas. Caí por terra de joelhos, sem
forças para rezar ou pronunciar qualquer palavra. Chorei
desesperadamente. Se Deus existia, naquele momento tinha
certamente se esquecido de que nós, mulheres, também éramos
Sua criação.
Olhei para frente e vi, saindo de uma casa branca
medieval, uma mulher alta, com cabelos longos e cacheados e
vestes de camponesa. Ela era uma mulher com um porte de
nobreza, e seu olhar era firme. Levantou o rosto e encheu o
peito de ar. Parecia estar tentando criar coragem para enfrentar
aquela situação. Pude perceber que ela era uma líder, e que
todos os soldados estavam procurando por ela. Outras mulheres
tentaram protegê-la, mas ela não queria proteção: simplesmente
saiu andando em direção ao chefe da guarda. Seu ar de
imponência fazia com que alguns dos soldados se afastassem
enquanto ela passava. Foi quando ouvi um soldado dizer, em
tom de desprezo:
– Eis que se rende a bruxa-mor, capitão!
Quando a mulher líder aproximou-se do capitão da
guarda, pude notar sua semelhança comigo. Então entendi que
estava fazendo a viagem. Aquela mulher era a minha ancestral, e
aquele não era o meu mundo: era o mundo astral, onde eu iria
descobrir quem eu havia sido e o que me fazia sofrer tanto.
Resolvi ficar quieta e observar tudo o que estava
acontecendo à minha volta. Eu sabia que, por mais duro que
fosse, não poderia interferir no meu passado.
A mulher olhou tudo e todos a seu redor. Fixou os olhos
no capitão e, mesmo mediante todo aquele sofrimento, em
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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momento algum ela parecia se intimidar. Por fim, ela disse, em
tom supremo:
– Sim, sou eu. Agora não maltrate mais o meu povo com
os seus soldados ignorantes e carniceiros. Leve-me e deixe essa
pobre gente em paz, pois eles nada lhes fizeram de mal. O seu
problema é comigo, capitão.
Um jovem guarda, querendo mostrar serviço, retrucou:
– A bruxa-chefe está pedindo um castigo, capitão
Edward. Devemos acorrentá-la junto às outras? Com
um olhar de ironia, o chefe da guarda respondeu:
– Não, quero interrogá-la primeiro.
Os olhos do capitão pareciam estar grudados naquela
mulher. Por fim, ele falou, em tom de impaciência:
– Então nos encontramos de novo, senhorita Shaara, ou
devo dizer feiticeira Shaara!?
– Sim, senhor. - respondeu-lhe, sem tirar os olhos dos
dele.
– Ora, ora... Estou vendo que nem o medo fez-lhe perder
a arrogância.
– E quem disse ao senhor capitão que estou com medo?
Pode fazer medo em seus subalternos, mas nunca em mim. Nem
eu e nenhuma de minhas irmãs fizemos nada demais para que o
senhor nos ponha medo. O senhor não é Deus! Portanto, não
vejo porque temê-lo, capitão! Além do mais, sua aparência
cansada é digna de pena, pois vejo no senhor um homem
confuso, em um estado débil de cólera. E quem é o senhor para
falar de arrogância ou de qualquer outro defeito que exista nas
pessoas? Tem um coração tão arrogante que não admite que
esteja apaixonado e errado. Arrogante, vingativo, sanguinário e
infeliz. É assim que vejo o senhor: uma pessoa sem chão,
perdida, entre uma falsa razão e o próprio coração. Olhe pra
dentro de si, senhor Edward! Veja-se! Vai chorar, em breve.
Adriana Matheus
- 89 -
Estou a pagar pelos ciúmes de sua mãe, pela ignorância e pela
mentira de tantos que se escondem por trás das máscaras de uma
sociedade hipócrita e com ideias distorcidas sobre o caráter e a
moralidade das pessoas. Os senhores falam o nome sagrado de
Deus, mas são pessoas que nada sabem sobre Ele. Os senhores
fazem justiça à maneira que lhes convém, e pregam verdades
ditadas por uma ordem já em decadência. Traduzem a palavra
do Cristo para educarem seus adeptos, seus filhos e seus
parentes. São como ovelhas no pasto, sendo tocadas de um lado
para outro, por um pastor tão sem rumo quanto. E, assim,
envoltos na própria ignorância, seguem todos de mãos dadas.
Que triste, capitão... Encobrem seus próprios pecados e crimes,
tentando achar defeito nos menos favorecidos, como eu e
minhas irmãs. Ou acham mesmo que as mulheres de sua
sociedade são todas santas?
Shaara baixou a cabeça e sorriu, parecendo
decepcionada, continuando aquele diálogo, que mais parecia
uma afronta.
– Se suas senhoras fossem santas, não estariam vivas, e
sim em um plano muito superior a este. Bando de hipócritas,
desumanos, falsos profetas, monstros! Todos estes homens aqui,
incluindo o senhor, são piores do que animais. Acusam-nos de
possessão, mas o demônio está dentro da sua alma. Tenho pena
do senhor, capitão Edward, com toda a força do meu ser. Pois
sei que as irmãs que o senhor e seus homens mataram estão em
paz agora. Mas e o senhor? Não terá um dia de sua vida em que
não se lembrará desse massacre. Sabe por que, capitão?
Lembranças ruins perseguem-nos durante os nossos sonhos à
noite. Elas são chamadas de consciência inconsciente, e mesmo
o mais ignorante dos seres viventes tem consciência. E é isso
que me deixa feliz: sei que o senhor nunca terá paz enquanto
viver.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 90 -
O capitão, com um olhar furioso, ergueu a mão para
esbofetear Shaara no rosto. Mas Shaara não se fez de rogada e
disse:
– Vá em frente, senhor Edward. Não pode me ferir mais
do que já me feriu. Não seria a primeira vez a usar violência
contra mim. Ah, capitão... O senhor tem razão. Eu quase ia me
esquecendo: quem bate esquece, mas quem apanha tem que
conviver com as cicatrizes. E as minhas estão tão profundas que
o senhor não as consegue ver, não é, capitão?
O capitão segurou o rosto de Shaara e, olhando-a
fixamente nos olhos, disse:
– Se eu fosse a senhorita, ficaria bem boazinha. Afinal,
sou o homem que tem nas mãos o seu destino. Posso queimar
todas essas bruxas aqui mesmo, nesta floresta, sem a menor
piedade, e alegar que estavam praticando rituais de magia negra
e que, ao nos verem chegar, os demônios ferozes que as
possuíam tentaram nos atacar, sem nenhuma explicação. Isso,
logicamente, foi o que me fez tomar tamanha atitude contra as
pobres mulheres, que estavam, embora inconscientes, possuídas
por espíritos malignos. Portanto, se não quer que eu mate o
restante dessas desgraçadas queimadas vivas, cale-se e fique
com essa maldita boca fechada o restante do tempo que lhe
resta. E sabe o que mais? Faço isso deixando-lhe como única
testemunha. Mas, logicamente, não terá língua para contar tais
fatos a ninguém quando for interrogada em tribunal - o que me
será bastante útil em minha própria defesa, quando eu for
interrogado sobre os fatos acontecidos nesta floresta, sem
nenhuma testemunha que lhe possa ser útil, é claro. Pense bem,
então, antes de tomar alguma atitude insensata. Não que sua
língua possa lhe valer muito, mas as pessoas, durante seu
julgamento, ao perceber que a senhorita não pode falar, dirão
Adriana Matheus
- 91 -
que o demônio lhe impede a fala. Isso, para os leigos - como a
senhorita mesmo diz - é incontestável.
O capitão deu uma gargalhada sarcástica e seu olhar
gelou até a minha espinha, mas Shaara manteve-se em posição
de defesa. Ela sabia que o capitão cumpriria o que estava
prometendo, mas prosseguiu mesmo assim:
– Faça o que o senhor tem que fazer, capitão. Que se
cumpra o meu destino. Seja a mão de Deus, mas seja breve, não
me deixe sentir dor!
Shaara não estava falando apenas da dor física, mas
também da dor da alma. O mundo dela estava todo nas mãos
daquele carrasco, do algoz, do homem que um dia foi o mais
importante da sua vida. O capitão Edward era a única pessoa
que jamais poderia tê-la traído. Shaara estava só, sem
perspectivas, e sabia o quanto aquele homem poder-lhe-ia fazer
mal. Um homem com um sentimento de mágoa, fúria ou ciúmes
pode se tornar perigoso, principalmente se estiver se sentindo
rejeitado ou traído.
Minha ancestral somente abaixou a cabeça e deixou que
seu destino se cumprisse. Embora ela não demonstrasse medo,
pude ver nos seus olhos que, até certo momento, tinha esperança
de que o capitão, seu amor, voltasse atrás. Mas, na verdade,
Shaara já sabia qual seria seu destino e sabia que isso seria
impossível de acontecer. É impressionante o quanto a Inquisição
era cruel e mentirosa, principalmente quando se tratava de nós,
mulheres. Os inquisidores praticavam as mais cruéis formas de
torturas. E se uma mulher fosse alvo da Inquisição, logo era
enclausurada. Pior seria se caísse nas mãos de algum padre ou
sacerdote, pois esses santos homens certamente a violariam e
dariam um jeito para que a pobre mulher não contasse nada a
ninguém, cortando-lhe a língua e praticando os mais cruéis tipos
de torturas.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 92 -
Muitas das vítimas eram deixadas nuas, em praças
públicas ou em algum lugar deserto, a mercê do destino. Isso
ocorria depois de terem sido torturadas publicamente, ou
violadas privadamente. Todas nós, mulheres, sentíamos um
medo especial da Inquisição. Se alguma de nós fosse acusada de
bruxaria, ficaria logo eminente que sofreríamos uma tortura
muito especial por parte do clero, sedento por sexo e sangue.
Qualquer mulher era culpada de algum crime, mesmo que nunca
tivesse cometido crime algum. Nós, mulheres, éramos a porta
aberta para espíritos impuros. Qualquer mulher com um
comportamento que desagradasse a sociedade masculina sofria
perseguição como prováveis bruxas.
Havia vários tipos de torturas antes de a vítima morrer. A
morte por afogamento era uma das formas mais cruéis.
Amarravam-se as mãos e colocavam uma pedra presa aos pés
das vítimas. Em seguida, lançavam-na dentro d’ água. Se a
vítima não afundasse, era inocente. Se afundasse, era uma bruxa
- o que significava que ninguém era inocentado...
Se uma mulher fosse meramente lançada de um
precipício, podia chamar a si mesma de afortunada por ter uma
morte relativamente rápida e com pouca dor. Na maioria das
vezes, éramos obrigadas a dizer que estávamos possuídas por
espíritos demoníacos, com a falsa promessa de termos uma pena
mais branda ou uma absolvição. O espírito demoníaco de
obsessão era, nada mais nada menos, que um desvio sexual da
luxúria encoberta pelos sacerdotes. Houve certo tempo que
ecoou por toda a Europa a epidemia chamada O Malleus
Maleficarium. Isso ocorreu em cinco de dezembro de 1484,
quando o papa Inocêncio III emitiu a bula papal. Estabeleceu-se
esse documento como padrão segundo o qual a Inquisição
deveria ser conduzida, como ditadora das leis da Igreja Católica.
O celibato clerical já estava em vigor havia 361 anos. Foi tempo
Adriana Matheus
- 93 -
suficiente para tornar os sacerdotes verdadeiros desviados
sexuais. Essa obsessão sexual tomou tamanha proporção que as
mulheres viviam com medo de que um dia, a partir do nada,
alguém as acusasse de serem bruxas, visto que qualquer
acusação seria equivalente à culpa.
As mulheres podiam esperar qualquer coisa vinda de um
homem que as desejasse. Por isso, a maioria vestia-se de forma
austera e sem nenhuma vaidade aparente, pois qualquer indício
de vaidade poderia levá-la a ser acusada de sedução demoníaca
ou algo assim. Geralmente, não conhecíamos nossos acusadores,
que poderiam ser homens, mulheres e até mesmo crianças. Isso
dependeria de quem as acusasse de algum crime, pois os
manipuladores usavam pessoas inocentes e desprovidas de
recursos financeiros.
Do processo de acusação ao julgamento, seguindo até a
execução, podia ser rápido ou não. Isso dependeria muito da
pessoa que estivesse sendo acusada. Mas uma coisa era certa:
não existiam formalidades ou direito a defesa. A única
alternativa do réu era confessar e retratar-se, renunciando a sua
fé, seus bens, seus familiares, e aceitando o domínio e a
autoridade da Igreja em ascensão. Os direitos de liberdade e de
livre escolha nunca foram associados a tais leis. Os acusados
eram feitos prisioneiros e mantidos constantemente sob torturas.
Muitos eram inibidos de dormir, e isso acontecia segundo
revezava-se o horário de seus carrascos. Todos eram obrigados a
confessar uma condição herética. As mulheres, que eram a
maioria, comumente eram vítimas de violação. A execução era
realizada geralmente em praças públicas, sob os olhos de todos
os moradores, que faziam de tal barbárie uma festividade
bizarra. Punir publicamente era uma forma de coagir e intimidar
a população. A vítima podia ser enforcada, decapitada ou, na
maioria das vezes, queimada viva. Entre as torturas, as mais
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 94 -
usadas eram: o tronco, a roda de despedaçamento, o berço de
Judas, a dama de ferro, o garfo, as garras de gato, a pêra, a
máscara da vergonha, a cadeira das bruxas, o pêndulo e o
esmaga joelho - entre tantos outros instrumentos que, além de
monstruosos, eram criativos, dependendo do carrasco a executar
a sentença. Os métodos de execução também eram bastantes
variáveis, sendo os mais usados a guilhotina, o serrote, a
espada, a forquilha do herege, o garrote, a gaiola suspensa, a
submersão, a empalação, a cremação e o fura-bruxas, que nada
mais era que uma faca falsa para enganar a população leiga.
O fura-bruxas era a forma mais repulsiva e fraudulenta,
pois tal faca de exame nunca perfurava coisa alguma. O que
acontecia, na realidade, era que os carrascos cortavam a língua
das vítimas e usavam o fura-bruxas ou athame falso para espetá-
las perante a população leiga. Como a vítima não podia falar,
pois estava sem a língua, eles diziam a todos, em alto tom:
Viram-na? Está possuída pelo demônio! E, mediante tal espanto
por parte da população, os acusadores aproveitavam-se para
condenar a pobre vítima, mutilada.
O nascimento de uma criança também era motivo para
que a Igreja interviesse, enviando um de seus sacerdotes para
examinar o rebento. Se na pobre e inocente criança houvesse
algum tipo de sinal ou anomalia, imediatamente ela seria
retirada de dentro da casa de seus pais e levada para dentro de
um convento ou mosteiro, onde passaria o resto de sua infeliz
vida sendo observada e até torturada por seus superiores.
Procuravam, também, marcas do Diabo no corpo das
mulheres consideradas hereges, pois, segundo a Igreja, o diabo
deixava sua marca em algum lugar no corpo de uma bruxa. A
mais óbvia era o mamilo supranumerário. Certamente, os
sacerdotes celibatários e castos estariam muito interessados em
examinar tais mulheres e, com isso, uma depravada compulsão
Adriana Matheus
- 95 -
por torturas e sexo violento surgiu com a chegada das normas
morais da Santa Madre Igreja. Por parte dos sacerdotes
celibatários e castos, essa praga emocional atingiu sexualmente
indivíduos não funcionais, incapazes de sentir prazer na prática
natural do sexo e, com isso, começaram a aliviar sua
sexualidade reprimida, cortando, dilacerando e queimando as
causadoras de toda aquela volúpia reprimida - ou seja, nós, as
mulheres.
Uma esposa não podia sentir prazer com o seu esposo,
nem beijá-lo. Ela somente lhe serviria para a reprodução. Caso
ela descumprisse tais preceitos - como, por exemplo, beijar o
esposo -, ele poderia arrancar seus lábios, para que não se
tornasse uma depravada do demônio. Essa regra só se aplicava
às mulheres, pois seus maridos podiam procurar outras em
prostíbulos, para satisfazer seus desejos carnais incompletos. O
homem era o senhor - a mulher, um enfeite de estimação que
nada mais servia para ele, além de ser a sua procriadora e zelosa
dona de casa.
Com a Santa Inquisição, foi fácil para satanás invadir a
Igreja Católica, pois ela já tinha se movido para a prática da
feitiçaria desde o ano trezentos e vinte e um, quando o
imperador Constantino afirmou seu comando sobre a Santa
Madre Igreja. Foi quando, finalmente, esse período da
Inquisição começou a se separar da verdadeira videira de Jesus
Cristo. Isso aconteceu há mais de oitocentos anos. Portanto, a
madeira estava muito seca e suscetível ao fogo do Inferno. Foi
assim que Satanás se aproveitou e soprou, usando a Inquisição
como seu maior instrumento.
Enquanto milhares de pensamentos invadiam minha
mente, dei-me conta que Shaara estava sendo levada para um
vilarejo, onde seria posta sob cárcere privado até seu
julgamento. Olhei para aquelas mulheres em desespero e meu
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 96 -
coração apertou-se dentro do peito. Eu sabia que nada podia
fazer por elas, mas me senti uma covarde e impotente por
apenas ser uma sombra.
Procurei por Shaara, que estava de mãos atadas,
cabisbaixa e encostada em um canto, perto de um carvalho. Ela
não dizia mais nada, estava imóvel. Parecia estar querendo
apagar da mente todo aquele holocausto. Seu semblante era de
dor e agonia. As pálpebras de Shaara estavam baixas, inertes.
Ela praticamente já estava morta, somente seu corpo ainda
estava de pé - talvez por uma questão de ela mesma não poder
se desligar da vida material.
Os soldados levaram-na para perto do capitão,
amarrando-lhe as mãos à sela do cavalo do chefe da guarda. O
senhor Edward ocupava três postos de muita responsabilidade e
conveniência: o de chefe da guarda, o de capitão, e o posto mais
alto, o de inquisidor. Logicamente, tais funções não lhe foram
impostas por ele ser simplesmente tão merecedor ou
competente. Ele era também outra vítima da Inquisição, que se
aproveitou do seu ódio por Shaara para fazer dele um caçador de
bruxas. Dessa forma, sabiam que poderiam confiar nele
cegamente, pois varreria também, da face da Terra, os inimigos
de Sua Majestade e da Santa Madre Igreja.
Acompanhei aquele cortejo fúnebre de longe, para que
Shaara não percebesse minha presença espiritual - ou poderia
ser ainda mais catastrófico para ela. No mundo transitório onde
me encontrava, nada poderia me acontecer, ou seja, nenhum mal
físico. Mas de nem uma forma eu poderia interferir no mundo de
Shaara. Era como se eu estivesse em um espelho às avessas: eu
podia falar com eles e interrogá-los, mas não podia tocá-los ou
ser tocada. Apenas o meu perispírito estava lá - o meu corpo,
não, pois ele estava no século XVIII, em que se encontrava
minha querida Maria e as outras irmãs, que pacientemente
Adriana Matheus
- 97 -
aguardavam meu retorno daquele transe astral. Era como se
fosse uma janela imaginária, mas, ao mesmo tempo, real.
Não soube descrever com palavras exatamente o que era
aquilo tudo que estava acontecendo. Mas o certo é que eu estava
lá. Presenciei aquelas coisas todas sem sair do lugar onde me
encontrava. Fiz a viagem e sabia, naquele momento, que era
algo muito especial e individual, pois cada pessoa que fizesse a
viagem teria a sua forma pessoal de descrevê-la.
Vi quando o capitão Edward olhou com ódio para
Shaara, que estava presa à sua sela. Mas também vi o olhar de
tristeza de Shaara, por parecer não reconhecer aquele homem. A
engolida seca de minha ancestral demonstrou que estava sem
força e fôlego para prosseguir todo aquele trajeto a pé e
descalça.
Depois de mais de três horas caminhando em trilhas
áridas e pedregosas, Shaara, por fim, falou em um tom de voz,
quase um sussurro:
– Dê-me água, pelo amor de Deus! Eu suplico: tenha
misericórdia, apenas me dê água!
O capitão olhou-a com desprezo e respondeu:
– Agora está se lembrando de Deus, bruxa maldita? Por
que eu deveria ter misericórdia de uma discípula de satã? A
senhorita e suas comparsas deveriam ter pensado na
misericórdia Dele antes de terem se juntado a satã. Agora é tarde
demais. Seus destinos estão em minhas mãos, e logo verei o fim
de toda a sua raça amaldiçoada. Eu mesmo selarei seus destinos
em nome de Deus e de todos os Santos dos céus. Faço isso sem
nenhuma piedade, pois sei que todas são um caso perdido para a
Santa Madre Igreja, levando em conta que o diabo já tomou
conta de seus corpos e almas.
Ao dizer tais palavras amargas, o capitão Edward olhou
para Shaara de tal forma que a desnudou apenas com o olhar. Eu
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 98 -
poderia estar enganada, mas, a meu ver, ainda existia paixão por
parte do capitão Edward em relação à Shaara. Talvez fosse uma
paixão doentia e corrompida pelo ódio e pela vingança - mas,
mesmo assim, ainda existia um sentimento dentro daquele
homem. E isso poderia ser muito mais prejudicial à minha
ancestral.
Shaara, percebendo o olhar de lobo selvagem do capitão,
tentou modificar o rumo que poderia tomar aquela conversa.
Tirando forças de dentro de si, respondeu, ainda num sussurro:
– Ninguém é dono do destino de ninguém, capitão, nem
mesmo do próprio - embora essa fosse a sua vontade, não é
mesmo, senhor Edward? Sempre quis controlar-me a qualquer
preço, nunca pensou que eu poderia fazer o que o senhor
quisesse?
Shaara deu um sorriso triste, abaixando e sacudindo a
cabeça negativamente. Depois olhou para ele, como que
suplicando por socorro, e prosseguiu:
– Bastava que me pedisse! O senhor nunca soube o que é
o amor de verdade e, pelo que vejo, nunca vai saber. Julgou-me
pelos pecados dos nossos pais. Eu era inocente, senhor Edward.
Mas, infelizmente, não quis perceber isso: o seu ódio era tanto
que o senhor não me deu sequer o direito a defesa. Eu não sabia
de nada. Para mim, foi uma surpresa descobrir o envolvimento
de nossos pais no passado. Mas de que adianta? O senhor está
senil pela sede de vingança que ainda lhe persegue. Por Deus,
Edward! Como eu poderia saber de tais coisas? Meus pais
esconderam de mim toda aquela história, eu juro por...
Shaara parecia querer dizer mais alguma coisa, mas deu
outro rumo àquelas palavras, que preferiram não sair de sua
boca. Isso, para mim, foi uma incógnita. Mas fiquei quieta,
observando minha ancestral desviar o assunto:
Adriana Matheus
- 99 -
– O mais importante para o senhor sempre foi ver a sua
vingança concretizada. Já se vingou de meu pai, tirando-lhe a
vida. Já me fez pagar pelo pecado que ele cometeu no passado,
conseguindo banir-me para o exílio, a viver longe da civilização.
O que mais quer agora, senhor Edward? O que mais ainda falta?
Por favor, senhor Edward, suplico em nome de Deus, a quem
diz tanto amar! Pare agora, enquanto ainda lhe resta um pouco
de civilidade. O senhor não sabe o que está fazendo, e vai se
arrepender amargamente. Acredite: sempre lhe fui fiel, mesmo
no exílio.
O capitão olhava para Shaara com ódio mortal e não
parecia ouvir o que dizia. Mas Shaara parecia decidida a fazê-lo
voltar atrás por algum motivo, ainda oculto para mim. Então, ela
continuou, enfraquecida e quase sem fôlego:
– Vejo dentro de sua alma. Vejo uma grande
infelicidade bem lá no fundo. Mas sei que ainda há alguma coisa
de bom aí dentro do senhor, capitão. Basta deixá-la vir à tona.
O capitão, em um inesperado ímpeto de insanidade e
ódio, esbofeteou Shaara, finalmente. Em suas faces alvas
escorreu a dor. O capitão rangia todo o seu ódio por entre
dentes, em um êxtase de vitória. Com a força da mão do capitão,
Shaara escorregou e ficou pendurada à sela do cavalo daquele
homem cruel, que ainda a arrastou por alguns metros. Até que
parou, finalmente, e disse:
– Isso é para que não fale mais o nome do meu Deus em
vão, sua bruxa! E que também lhe sirva de lição, para que
aprenda a nunca mais mentir para mim com suas infâmias. Acha
mesmo que eu acreditaria em uma só palavra do que estava
dizendo? Fui treinado para lidar com bruxas e demônios; sei
muito bem quando uma bruxa está tentando me seduzir, usando
de encantamentos para me desvencilhar do meu objetivo. Sou
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 100 -
um servo do Divino Deus Criador de todas as coisas. Não tem
poder sobre mim, Satanás!
Entre lágrimas, Shaara levantou-se do chão, secando
com as mãos atadas o sangue que escorria das têmporas. Disse,
entre soluços:
– Em seus olhos, vi um sentimento perfeito e puro. Mas
era a máscara do seu ódio. Vocês, cristãos, acham que as
bruxas sabem de tudo, não é? Mas também nos enganamos,
como pode ver. O amor confunde-nos, assim como me
confundiu. Sou mesmo uma tola: ainda teimo em acreditar na
essência humana. Tento olhar no fundo da alma do ser humano,
mas me esqueço que não adianta tentar. Pois quando alguém se
perde na ignorância, na incompreensão e no ódio, está morto de
alma. Para falar a verdade, nem mesmo sei se é humano. O ódio
cegou-o, Edward. Ainda não percebeu isso?
O semblante do capitão Edward transfigurou-se. Era
como se outra pessoa estivesse ali, junto a ele. Senti medo
daquele rosto. Percebi que Shaara também viu o mesmo que eu
estava vendo. Meu coração parecia dizer que ele queria
estrangulá-la. Ele estava completamente tomado por um espírito
de revolta e vingança e, ainda aos gritos, ordenou:
– Cala essa sua boca imunda, bruxa maldita! Guardas,
levem essa mulher infeliz da minha frente, antes que eu perca a
minha cabeça!
O jovem soldado correu ao encontro do capitão Edward,
indagando-lhe:
– Devo trancá-la com as outras, senhor capitão?
– Não, quero que a algeme do lado de fora da carroça.
Ela vai a pé até o vilarejo. Isso lhe servirá de penitência,
fazendo-a se lembrar de quem é que está no poder aqui.
O guarda empurrou Shaara abruptamente, como um
animal. Amarrou-a pelos pulsos na parte traseira da carroça,
Adriana Matheus
- 101 -
onde estavam as outras mulheres. Shaara estava com as vestes
rasgadas, e os pés e joelhos esfolados. O sangue descia na sua
face, misturando-se com as lágrimas e os soluços. Isso pareceu
incomodar o capitão Edward, pois ordenou que o soldado a
amordaçasse. O soldado não só obedeceu à ordem do seu
superior, como também bateu na cabeça de Shaara com um
pedaço de madeira.
A situação da minha ancestral não era nada agradável. A
cada metro percorrido, seus pés sagravam mais, pois se
cortavam com as pedras e os galhos espinhentos que existiam à
beira do caminho. Shaara sufocava seus gemidos através da
mordaça, que cortava seus lábios.
O capitão Edward olhava para trás, uma vez ou outra,
para se certificar de que Shaara estava sofrendo o suficiente com
o tratamento imposto por ele. Naquele momento, as irmãs de
Shaara não olhavam sequer para sua mestra. Pareciam repudiá-
la e acusavam-na por tudo o que lhes ocorreu na floresta. Shaara
estava só, à mercê daquele destino infeliz.
Vi naquela mulher uma grande guerreira e, com o passar
dos meus anos, aquela foi uma lição que segui a fio. Pois,
mesmo naquele momento de flagelo, percebi que Shaara se
preocupava com suas irmãs. A dor daquelas mulheres parecia
ser mais importante do que a sua própria dor. Aquelas famílias
estavam sofrendo com a morte de seus entes queridos. As cordas
e os gravetos que cortavam o corpo de Shaara não eram nem a
metade do que a dor na alma daquelas mulheres.
Causava-me angústia não poder fazer absolutamente
nada. Por várias vezes, contive as lágrimas que estavam prestes
a cair. Não podia fraquejar; senão, minhas visões seriam
interrompidas. Tentei manter meu coração em oração, buscando
auxílio Divino e emanando energia positiva a todas elas.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 102 -
Depois da morte do pai de Shaara, ela se integrou ao
grupo de auxílio de Mercedes, sua tia por parte de mãe.
Mercedes era uma mulher de muitos princípios, e decidiu nunca
se casar ou ter filhos para se dedicar somente aos pobres e
necessitados. Mercedes foi considerada a maior bruxa daquele
condado e, com o seu falecimento, Shaara passou a ser sua
sucessora. Mas, naquele momento de dor e revolta, aquelas
mulheres na carroça não conseguiam discernir o certo do errado
e passaram, então, a vê-la como uma inimiga. O que elas não
sabiam é que Shaara jamais as abandonaria ou as trairia por
qualquer motivo que fosse. Shaara nunca recusou ou abandonou
alguém que a procurasse pedindo abrigo ou caridade - mesmo
sabendo que, a qualquer momento, poderia um daqueles
necessitados ser um espião e vir a traí-la. E foi exatamente isso
o que ocorreu: um senhor a quem Shaara havia dado abrigo e
comida, curando-lhe também uma enfermidade, era um espião
da Inquisição. O homem era um velho soldado, enviado
disfarçadamente para descobrir o esconderijo de Shaara.
Shaara nunca praticou bruxarias. Apenas curava os
doentes com a ajuda das ervas, como lhe havia ensinando sua tia
Mercedes. Durante anos, as duas exerceram esse trabalho árduo,
mas gratificante. Em três anos, aquele pequeno grupo havia se
tornado quase uma pequena vila. E a fama de Mercedes e
Shaara espalhou-se à revelia por todo o condado. Isso
incomodou os aldeões, o rei e, principalmente, a Igreja, que
julgava estar perdendo muitos fiéis.
Elas nunca precisavam ir à cidade e quase nada as
faltava, pois de tudo a mãe terra produzia. Também contaram
com a ajuda de alguns comerciantes, que lhes vendiam sal e
açúcar às escondidas. Os feitos das duas bruxas cresciam a cada
dia. Com isso, os boatos e mexericos maldosos foram surgindo
Adriana Matheus
- 103 -
em torno de ambas, que passaram a ser perseguidas pela
Inquisição, confundidas com as feiticeiras de Salém.
Elas criam no mesmo Deus que eles, sangravam com
feridas e morreriam como qualquer um. Mas não eram vistas
como parte da sociedade: eram vistas como a escória. A única
coisa diferente entre aquelas mulheres e os demais era a forma
simples e bela como levavam a vida. Não tinham culpa por
terem nascido com um dom especial de ver e sentir coisas que
não eram perceptíveis a olhos nus. Mas a ignorância, o
autoritarismo e o preconceito faziam com que se parecessem
monstros, diante de uma população que, além de cega, era
também fácil de ser corrompida.
A política dominava, mas a corte foi totalmente
dominada e induzida pela Igreja em ascensão, que fazia os
monarcas assinarem por todos os crimes e barbáries ditados por
essa emissora de satã.
Todos estavam completamente cegos ou em completo
transe hipnótico, criado pelas falsas histórias dos inquisidores,
das velhas beatas e adeptos das grandes leis ditadas pela Santa
Madre Igreja. Na verdade, ninguém sabia quem emitia tais leis,
mas elas chegavam à população em uma fração de segundos.
Parecia que a maldade tinha asas, pernas, olhos e ouvidos.
Qualquer mexerico era motivo para sermos perseguidas pelo
povo fanático. Bastaria algum aldeão dizer ter visto fumaça na
floresta para que a população, em massa, acreditasse ser alguém
sendo vítima de algum sacrifício de magia negra. Se um lobo
matasse uma criança, com certeza foi devorada por nós, as
megeras.
Quando alguém quiser identificar uma bruxa, basta
associá-la à natureza e tudo o que dela vier.
Se for necessário, fazemos os nossos rituais, mas
optamos, na maioria das vezes, por nunca fazê-los - a não ser em
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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caso de extrema necessidade. Nunca tomamos bebidas
alcoólicas. De forma alguma usamos sacrifícios animal ou
humano, como contam as lendas. Nunca fomos adoradoras do
diabo: criaram esse mito em torno de nós como pretexto para
poder acusar-nos de crimes que nunca sequer pensamos em
cometer. Deus nos deu um dom e cada uma de nós o exercíamos
em prol da humanidade. O dom da visão, o dom de falarmos
com os espíritos, o dom da cura pelo toque das mãos ou pelas
ervas, o dom de ver as coisas através das cartas e das xícaras de
chás, entre tantos outros dons. Sempre usamos esses objetos
como instrumentos da magia - mas isso não é uma regra, pois
cada um de nós tinha o seu método pessoal de prever o futuro de
um consulente.
Deus era o nosso único mentor espiritual, mas também
críamos em deuses e deusas, considerados deuses pagãos. Eram
deuses cornudos e deusas aladas. Talvez por terem formas meio
pitorescas - e até mesmo bizarras -, causavam repulsa e
abominação aos leigos, que nada entendiam de nossa escolha
religiosa. Nossos deuses tinham chifres porque eram metade
homem e metade animal. Eram protetores das matas e da
natureza. Mas isso nada tinha a ver com a magia negra,
praticada às escondidas nos calabouços dos grandes palácios.
Quem praticava tais abominações eram as feiticeiras, que, para
se manterem vivas, aliavam-se aos monarcas, secretamente. Era
como uma troca de favores bizarros: alguns monarcas
conseguiam seus benefícios e, em troca, mantinham-nas vivas -
enquanto lhes fosse conveniente, é claro.
Interrompi meus pensamentos, pois os soldados pararam
depois de quase seis horas de trajeto. Uma carroça havia
quebrado o eixo e demorou quase uma hora para que fosse
consertada. Depois, seguiram viagem. A noite já havia chegado
e a Lua era a única forma de luz. Os soldados e o capitão não
Adriana Matheus
- 105 -
pareciam querer parar para descansar ou dormir, pois queriam
chegar o mais rápido possível à cidade. Shaara caiu por várias
vezes no meio do caminho, mas o soldado que escoltava a
traseira da carroça dava-lhe chicotadas, para que ela se
levantasse imediatamente. Ela estava parecendo um farrapo
humano.
O dia estava amanhecendo quando, por fim, chegaram ao
vilarejo. O capitão Edward, ao descer do cavalo, fitou Shaara
demoradamente. Eu poderia jurar que havia piedade naquele
olhar, mas seria desejar demais de um soldado com cargo de
inquisidor.
De repente, senti que Shaara iria desmaiar. Deu-me certo
pânico e desespero por nada poder fazer. Vi um homem gordo
com uma peruca amarelada. Parecia ser um Lorde. Ele veio ao
encontro do capitão Edward e perguntou:
–Senhor, esses são os prisioneiros?
–Sim, senhor, estas são as bruxas capturadas. E elas
estão sob minha escolta, até segunda ordem.
– E por que esta mulher está caída ao chão, capitão? -
quis saber o homem, percebendo que Shaara não estava
consciente.
– Deve ter desmaiado, senhor. Ao passarmos pela Igreja,
ela começou a passar mal. Bem sabe Vossa Excelência que o
demônio não aguenta o poder do Senhor Nosso Deus.
– Sim, senhor capitão. Sei bem como essas bruxas
valem-se dos poderes de satã. Mas quero saber em detalhes o
que houve com esta mulher, pois amanhã o bispo virá aqui
pessoalmente para interrogá-la. Creio que o senhor já deva ter o
relatório pronto em mãos, capitão - ou melhor dizer senhor
inquisidor?
Capitão Edward deu um sorrisinho matreiro, como quem
entendeu o que quis dizer o Lorde Del Soares. Em seguida, fez-
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 106 -
lhe um cumprimento com a cabeça e seguiu em direção à prisão,
onde ficariam Shaara e as outras trinta e cinco prisioneiras.
Muitas horas depois, Shaara acordou, jogada ao chão de
uma masmorra, assustada e meio sem noção ainda de onde se
encontrava. Suspirou aliviada por perceber que ainda estava
viva. O lugar era muito escuro e sujo, e cheirava a morte.
Ela apertou os olhos, contou até dez e, lentamente, abriu-
os de novo. Com aquele estranho ritual, Shaara pôde enxergar
melhor no escuro. Então, percebeu que estava em uma
masmorra cheia de ratos e com uma espécie de mina d’água, que
escorria e molhava todo o ambiente. Shaara entendeu que estava
abandonada à mercê do destino que lhe impuseram. Sabia que,
se não a julgassem logo, morreria de qualquer forma e ainda
seria devorada pelos ratos.
Não conseguindo conter o choro, caiu em pratos
desconsolados. Shaara urrou de ódio naquele momento,
tentando demonstrar toda a sua decepção e o seu desespero por
se sentir impotente. Um guarda, ao ouvir seus gritos, foi até a
cela dela e jogou um pedaço de pão duro e água por debaixo da
porta, dizendo:
– Coma e beba, sua cadela imunda, pois, se está urrando,
deve ser de fome!
Ao se retirar, empurrou uma vela acesa, também por
debaixo da porta da cela. Shaara arrastou-se, tentando alcançar a
vela. Então, viu-se acorrentada à parede. Com a vela, iluminou o
recinto e pôde pegar o pedaço de pão e a água, pois precisava
manter-se forte. Depois de comer, deitou-se encolhida a um
canto menos molhado e tentou adormecer. Mas foi em vão, pois
os ratos passeavam de um lado a outro, tentando se aproximar
dela.
Então Shaara começou a orar, pedindo forças e paciência
aos seus mentores espirituais. Em suas orações, disse:
Adriana Matheus
- 107 -
–Senhor, eu nunca fiz mal a ninguém. Nunca matei, mas
perdi minha liberdade. Deus! - pôs-se de joelhos e prosseguiu:
– Peço: não me abandone, oh mestre, nesta hora de
sofrimento. Não me deixe pecar, rogando pragas em meus
algozes. Dê-me mansidão e sabedoria, para que eu possa
aprender a aceitar o meu destino com dignidade.
Shaara fechou os olhos e colocou-se em transe. Começou
a fazer a viagem naquele momento. Aproveitei o seu momento
de silêncio e fui naquela viagem, junto à minha ancestral.
Sentei-me ao lado dela e fechei meus olhos. Pedi aos mentores
espirituais presentes que me permitissem ver o que Shaara veria.
Então, mais uma vez, como em um passe de mágica, eu estava
em outro lugar.
Estava dentro das lembranças da minha ancestral. Isso
era fantástico e quase impossível de acontecer. Ninguém nunca
havia indo tão longe. Poderia considerar-me uma pessoa de
muita sorte.
Shaara estava em um tempo de dez anos antes de aquela
tragédia acontecer. Seu coração estava, com suas lembranças, no
capitão Edward. Ela estava feliz e parecia ser uma jovem muito
bem humorada. Era tão cheia de planos, o coração tão puro! E o
olhar dos dois parecia ter cristais quando estavam juntos.
Eu não conseguia, até aquele momento, entender por
que duas pessoas, que pareciam ter se amando tanto, de uma
hora para outra, passaram a se desprezar daquela forma. Eu
estava translúcida naquela viagem: nem mesmo como um
fantasma Shaara poderia ver-me. Então, pude estar bem junto a
ela. Eu me sentia meio morta, mas estava adorando entender
mais sobre minha ancestral. Sabia que aquilo seria muito útil
para mim no futuro. Shaara seguiu mais à frente em sua viagem.
Ela era muito poderosa e de muita experiência, pois, em fração
de segundos, levou-nos mais à frente, ainda em seu passado.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 108 -
Fiquei admirada por perceber que poderíamos estar em tantos
lugares ao mesmo tempo, dentro do mundo astral. É incrível o
que a mente consciente pode fazer quando temos domínio sobre
ela. E Shaara tinha esse domínio totalmente.
Quando ela abriu os olhos, estava deitada em uma cama
rodeada de mulheres que não eram suas irmãs da floresta.
Pareceu um pouco assustada, tentando entender o que estava
acontecendo. Eu estava ao seu lado o tempo todo, de pé à
cabeceira de sua cama, mas ela sequer desconfiava da minha
presença. E o motivo pelo qual Shaara ficou atordoada foi a
maneira muito rápida com que havia se transportado de uma
época a outra. Isso poderia ter resultados catastróficos, e era
uma coisa que eu não arriscaria, mesmo porque eu era só uma
aprendiz.
Acompanhei os olhos de Shaara, que parecia estar
matando a saudade de seu lar. Ela olhou minuciosamente cada
cantinho daquele quarto, que parecia ter sido decorado para uma
princesa. Era um quarto grande, com uma decoração
contemporânea lindíssima, muitas cortinas, uma cama muito
grande e mobílias muito polidas. Isso sem contar o cheiro bom
de comida, que estava vindo de algum lugar daquela casa. Foi
quando uma jovem magra e simpática entrou no quarto de
Shaara, com uma bandeja contendo chá, biscoitos de nata,
torradas, suco, bolinhos e frutas. Tanta fartura que me senti
satisfeita somente de olhar para tantas guloseimas! Shaara já
estava reconhecendo o ambiente. Deu uma larga espreguiçada
sobre a cama e, em seguida, perguntou:
– Onde estou? - parecendo apenas querer se certificar
que estava a alguns passos atrás, em seu passado feliz.
– A senhorita está bem? - perguntou uma das senhoras,
que parecia ser de confiança da família. Está em seus aposentos,
em sua casa. – respondeu, parecendo preocupada, mas mantendo
Adriana Matheus
- 109 -
um tom de simpatia. Onde mais poderia estar a menina?
Trouxemo-la para seu quarto, depois daquele súbito desmaio
que a senhorita teve logo após o jantar de ontem. Agora, por
favor, arrume-se! Seu pai está à sua espera.
Shaara levantou-se às pressas. Parecia querer recuperar o
tempo perdido ao lado do pai. Arrumou-se tão rapidamente que
mal se preocupou com a vaidade. O que ela mais queria, naquele
momento, era estar com o seu velho pai e poder dizer-lhe o
quanto o amava. Pois, quando Shaara se exilou na floresta com
sua tia Mercedes, para se esconder da Inquisição e do capitão
Edward, não pôde se despedir de seu pai, que havia sido
condenado à forca por traição contra a corte.
Shaara sentiu-se uma traidora por nada ter podido fazer a
respeito. Tentou fugir várias vezes para poder ajudar o pai, mas,
devido à frágil condição em que ela se encontrava, Mercedes e
as outras irmãs não a deixaram sair. Shaara, desde então,
mantinha em sua cabeça que seu pai não a perdoou por isso.
Portanto, aquela viagem para Shaara era de extrema
importância. Para ela, era como fosse um resgate: mesmo que
ela não pudesse mudar em nada o seu destino, era uma forma de
rever e ficar um tempo a mais com o pai.
Shaara atravessou vários corredores daquele enorme
casarão. Não consegui ver muita coisa e nem detalhar nada, pois
ela estava com pressa e tudo parecia espelhos às avessas. Era
como se fossem flashes em minha mente. Quando Shaara estava
parada ou calma, eu via claramente as coisas ao meu redor. Mas
se Shaara corresse, era como se o tempo acelerasse. Então,
embaçava tudo ao redor, deixando-me impotente em relação aos
detalhes. Ao chegar a um grande saguão, de mobília refinada e
muito rica, pude ver um senhor de costas olhando pela janela,
enquanto fumava cachimbo. Ele estava de costas e usava um
roupão. Parecia ter acordado havia poucas horas.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 110 -
Shaara estava com tantas saudades que nem se
preocupou com a etiqueta: correu e abraçou o pai pelas costas.
– Que saudades, pai! – disse-lhe entre lágrimas.
O homem virou-se lentamente, segurou Shaara pelos
braços e perguntou:
–Querida, está se sentido bem?
O homem, meio confuso por toda aquela estranha
situação, passou as mãos no rosto de Shaara, tentando acalmá-la
e, enxugando suas lágrimas, prosseguiu:
– Sou seu velho pai e sempre estive aqui!
Ela pareceu perceber aquele erro e tentou acalmar-se,
dando-lhe um sorriso confuso.
Senti minhas pernas tremerem quando fitei o rosto
daquele homem. O pai de Shaara era também o meu pai. Eu não
conseguia entender como isso seria possível. Uma parte de mim
quis sair correndo e encontrar Dona Helena, para esclarecer tudo
aquilo. Outra parte queria ficar, para ver onde meu pai se
encaixava naquela louca história. Eu queria abraçá-lo também,
pois estava morrendo de saudades. Mas sabia que, embora a
semelhança fosse gritante, seria impossível, pois meu pai não
fumava tabaco de espécie alguma. Senti-me completamente
confusa: queria respostas, queria tocá-lo a qualquer custo.
Confesso que foi uma das partes mais difíceis da viagem.
Respirei fundo, tentando acalmar a minha ansiedade. Foi
quando percebi que algo estava errado com a minha ancestral:
ela estava ficando pálida e, de repente, desmaiou. Só não caiu ao
chão porque seu pai a amparou pelos braços. Que confusão... Eu
não sabia, afinal, pai de quem ele era naquele momento.
Imediatamente, as empregadas foram chamadas e uma ordem
foi dada para que o médico da família fosse localizado.
Algumas horas depois, Shaara voltou a si. Parecia meio
atordoada, e logo perguntou, por se ver deitada em um divã:
Adriana Matheus
- 111 -
– O que houve comigo?
– A senhorita teve outro desmaio. Tem se alimentado
bem, querida? - perguntou o médico.
– Foi só um desmaio, doutor! Por certo deve ser o calor.
- disse o pai de Shaara, interrompendo aquela conversa.
– Deixe que ela me responda, senhor Gonzáles. Preciso
certificar-me dos sintomas para poder dar o diagnóstico. Há
quanto tempo a senhorita tem tido esses sintomas?
– Há algumas semanas - respondeu Shaara, ainda
confusa e preocupada.
–E isso ocorre antes ou depois das refeições?
– Varia, doutor. Sinto muitas tonteiras e enjoos.
– Entendo!
– O que há com a minha filha, doutor Sanches? Ela está
muito doente? - indagou o pai de Shaara, pondo uma das mãos
no ombro do médico.
Dr. Sanches levantou-se calmamente. Tirou os óculos e
levou o pai de Shaara a um canto onde, em particular, deu-lhe o
diagnóstico.
– Sua filha esta grávida, senhor Gonzáles. E os lapsos de
memória que ela vem tendo são provavelmente porque está
muito preocupada em como contar-lhe o fato. Isso acontece
muito quando as pessoas estão cansadas ou passando por
problemas. O senhor deve ter uma conversa mais franca com a
senhorita Shaara. Mas tenha cuidado, pois a situação é delicada.
O pai de Shaara ficou pálido. Transfigurou-se, parecia
ter perdido o rumo de onde estava. Era uma situação muito
constrangedora e delicada para ele. O médico não deu nem mais
uma palavra com o pai de Shaara. Apenas pediu às criadas e à
senhora que deixassem os dois a sós. O pai passou as duas mãos
sobre as faces pálidas, tentando recompor o ânimo. Por fim,
perguntou:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 112 -
– Quanto tempo mais achava que poderia me esconder
tal fato? Esperava tudo de qualquer um, menos uma traição
vinda da minha própria filha.
Shaara arregalou os olhos, parecendo realmente não
entender o que estava acontecendo.
– Como assim? Não estou entendendo o que o senhor
está tentando dizer, pai!
– Não me faça perder a cortesia e esbofeteá-la, menina!
Há quanto tempo perdeu-se com aquele crápula? Deus do céu, o
que vão dizer? Devem casar-se de imediato. Não quero que
fique mal perante a sociedade. A Igreja pode excomungá-la e
bani-la para longe de mim. O que faço? - o homem parecia
desnorteado; mal podia manter-se de pé.
Shaara levantou-se e foi na direção do pai. Tentou
abraçá-lo, mas ele se afastou. Então, ela abaixou a cabeça e
disse:
– Perdoe-me, pai, eu amava muito Edward. Sei que traí o
senhor, não lhe contando a verdade. Mas senti medo da sua
reação. Não quis magoá-lo, juro! Eu o amo muito, pai, não sabe
o quanto... Não pode imaginar tudo o que passei para estar aqui
com o senhor. - Shaara referia-se à viagem.
– Deveria ter confiado em mim, Shaara. Quero que me
conte exatamente como e onde aconteceu o fato, para que eu
saiba qual providência tomar. - tomou Shaara pela mão e a fez
sentar em uma cadeira. Puxou um banquinho para perto dela e
disse:
– Estou esperando. Comece.
Shaara respirou profundamente, ergueu a cabeça e
começou a contar:
– No dia em que o senhor foi chamado para visitar
mamãe em seu leito de morte, Edward tinha vindo aqui para me
fazer o pedido de casamento. Eu não sabia se ficava feliz por ter
Adriana Matheus
- 113 -
sido pedida em casamento por ele, ou se me desesperava com a
situação de mamãe.
Shaara começou a contar em detalhes aquela história de
amor e ódio.
– Foi exatamente da forma como vou narrar. Não vou
mentir em uma só vírgula.
– Espero que não!
Shaara finalmente prosseguiu:
– Fomos ao jardim caminhar e Edward, naquele dia,
estava perfeito!
– Poupe-me de certos detalhes, por favor! - retrucou o
senhor Gonzáles, enfurecido.
– Estávamos no jardim e ele disse simplesmente quero
me casar. Sei que seu pai não dará permissão até que complete
dezoito anos, mas não estou aguentando mais. Fui promovido
por ordens do próprio bispo. O que ganharei será suficiente
para sustentá-la. Fuja comigo esta noite, eu imploro. Então,
quando voltarmos, seu pai não poderá nos impedir de ficarmos
juntos, pois estaremos casados. Foi quando Madalena
interrompeu-nos, dizendo que o senhor solicitava minha
presença de imediato.
– Esse canalha, juro... - Gonzáles interrompeu Shaara,
apertando o pulso. Ela pediu ao pai que a deixasse prosseguir
com a conversa:
– Deixei Edward sozinho no jardim, sem lhe responder
ao pedido ou me despedir, pois fiquei preocupada com o senhor.
– Filha... - ele caiu aos prantos, pois se lembrou do fato
ocorrido.
– Sim, pai. E depois que o senhor me deu a notícia de
que mamãe estava morrendo, Edward entrou e ainda lhe trouxe
água para beber. Enquanto o senhor se arrumava para ir ao
encontro de mamãe, Edward afirmou o desejo de se casar
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 114 -
comigo. Então, disse: Sei que posso parecer um pouco frio e
precipitado, mas não abro mão de você, meu amor. Vá com seu
pai, mas volte para mim. Assim que as notícias forem melhores,
escreva-me. Despedimo-nos e nada havia acontecido entre nós
antes daquele dia.
Shaara e o pai ficaram horas recordando a mãe de
Shaara. Os dois estavam nostálgicos e chorosos. A mãe havia
sido uma bruxa. Foi uma mulher muito amada por todos da
sociedade por sua bondade. Por amor a Gonzáles, nunca
praticou a bruxaria - com a condição de, às escondidas, poder
sempre estar perto de seus instrumentos de magia. Por anos,
durante a súbita doença, Efigênia Gonzáles foi mantida em um
bangalô, afastada da população por causa da lepra, que já estava
em estado avançado. Shaara, então, deu prosseguimento àquela
conversa, perguntando ao pai:
– O senhor lembra-se de quando mamãe pediu para falar
comigo a sós?
– Sim, lembro-me. - disse Gonzáles, passando a mão
sobre os olhos, envoltos pelas lágrimas.
– Sim, pai, foi naquele momento que ela me contou que
era uma bruxa. Mamãe pediu-me para pegar alguns objetos que
estavam em cima de uma mesinha. Então, depois de
desembrulhar, mostrou-me algo que guardara por anos.
Entregou-me uma varinha, um athame, um livro de receitas, um
cálice de prata e um caldeirão. Depois, explicou-me como eu
usaria cada um daqueles objetos, pai. Confesso que fiquei muito
assustada e incrédula também. Mas ela, parecendo perceber
essas coisas em mim, contou-me a seguinte história:
– Quando conheci seu pai, eu tinha dezesseis anos. Era
uma camponesa e morava em uma humilde casinha no meio da
floresta. A carruagem em que seu pai estava perdeu o eixo, e ele
e seus criados quase sofreram um sério acidente. Seu pai
Adriana Matheus
- 115 -
precisou consertar uma roda da carruagem antes que a noite
caísse e os lobos viessem, famintos e furiosos. Os lacaios de seu
pai mal sabiam guiar os cavalos. Eram totalmente
despreparados para uma situação de emergência. E foi aí que,
naquele momento, por uma artimanha do destino, seu avô, que
passava por ali, vendo a dificuldade de seu pai, resolveu
oferecer-lhe ajuda. Devido à alta hora, seu avô também
ofereceu-lhes pousada. Seu pai foi levado para a nossa humilde
cabana, mas foi muito bem recebido por minha mãe, que logo
tratou de matar um ganso para o jantar. A casa era pequena,
mas todos se acomodaram bem. Quando os meus olhos e os de
seu pai cruzaram-se, percebemos que não conseguiríamos ficar
um sem o outro. Minha mãe observou-nos atentamente. Seu pai
permaneceu em minha casa mais tempo do que o previsto.
Quando ele partiu, deixou a certeza de que iria voltar, pois me
deu o anel com seu brasão. Meu pai não acreditou muito, mas
minha mãe viu em seu tarô que ele voltaria para se casar
comigo.
– Seu tarô, como assim? – perguntei à mamãe. Sim, sou
uma bruxa, uma cigana ou como queira chamar-me. O mais
intrigante foi ver a pequena marca que ela me mostrou: era um
sinal, uma flor, pai. A flor de lótus, a marca das condenadas.
Mas mamãe era surpreendente. Antes mesmo que eu a
perguntasse, explicou-se:
– Consegui fugir de um inquisidor pouco antes de
conhecer seu pai. Esse homem cruel perseguiu-me muito tempo.
Quis me possuir como mulher antes mesmo que eu tivesse
dezesseis anos. Estive escondida no meio da floresta, na casa de
minha irmã Mercedes, que é uma feiticeira muito temida.
Depois de muito me esconder, recebemos a notícia que esse
homem perverso veio a falecer, devido a uma doença
desconhecida. Quando seu pai voltou para mim, contei-lhe tudo
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 116 -
a meu respeito. Ele simplesmente aceitou-me como sou, pois seu
amor foi muito maior do que o preconceito da sociedade que
nos cerca. Prometi que nunca praticaria meus feitiços, mas
nunca prometi que não os usaria às escondidas. Seu pai fez
olhos de mercador quanto a isso. Prometemos nunca mentir um
para o outro, e achamos melhor não contarmos tal assunto à
família dele.
Casamos e fomos felizes. Logo de princípio, confesso
que não foi fácil, pois sua bisavó era uma condessa de muitos
modos e etiquetas. Tive que aprender boas maneiras e foi-me
incumbida uma educadora familiar, que me ensinou etiqueta em
casa. Logo a sociedade aceitou-me, pois eu era muito aplicada
e dediquei-me ao máximo. Seu pai, durante toda a sua vida até
agora, nunca me traiu, mas deixou alguns amores para trás.
Certa jovem de nome Escarlate Mennellet, uma francesa muito
ambiciosa, que não se conformou por seu pai ter-me escolhido.
Fez de nossas vidas um inferno enquanto ela viveu. Ela e a mãe
procuraram uma velha feiticeira, que também se tornou inimiga
de nossas famílias. Essa jovem, minha filha, perseguiu-me
durante toda a sua existência. Ela seguia a mim e a seu pai
quando saíamos, fazendo escândalos. Várias vezes jurou matar-
me.
Essas três mulheres fizeram um sortilégio com o intuito
de trazer seu pai de volta. Só que elas se esqueceram de que um
sortilégio só funciona se a outra parte tiver algum sentimento
pela primeira. Seu pai não amava a senhorita Mennellet. Com o
passar do tempo, essa jovem teve vários outros amantes.
Deitava-se com homens, na esperança de conseguir status e
poder, para se aproximar de nós através da sociedade. Só que,
minha querida filha, senhorita Mennellet engravidou. Foi aí que
ela planejou uma artimanha, na tentativa de comprometer o seu
pai. Eu ainda não tinha engravidado. Não fazia a menor ideia
Adriana Matheus
- 117 -
do que estava acontecendo comigo. E um herdeiro era muito
importante para seu pai. Tentamos várias vezes, e a única vez
em que engravidei de um menino, ele nasceu morto - o que
deixou seu pai muito frustrado. Mas ele nunca deixou de me
amar por isso. Sempre foi muito compreensivo: para ele, não
importava se viesse um menino ou uma menina.
Como eu estava dizendo, a senhorita Mennellet planejou
contra seu pai: aproveitou tal gravidez e, como ainda estava no
início, convidou seu pai para ir até a casa dela, dizendo que
seria a última vez que o procuraria. Seu pai contou-me e eu
disse que ele deveria ir para ver o que ela queria. Ele, muito
relutante, aceitou o convite da senhorita Mennellet. Ao chegar
ao bangalô dela, toda uma teia já estava tecida, esperando por
ele. Ela o convidou para um drinque e o embebedou com uma
poção, preparada por uma feiticeira. Seu pai adormeceu. Ela,
então, o levou para a sua cama. Quando seu pai acordou,
estava nu e ela estava sorrindo ao lado dele. Seu pai vestiu-se
correndo e saiu daquele quarto.
Em casa, Gonzáles contou-me tudo. Chorei muito por
achar que meu esposo havia me traído - o que era pior, eu era a
única culpada por isso. O tempo passou. Mennellet procurou
seu pai, dizendo que estava grávida dele. Ele entrou em
desespero, mas, como homem honrado, ajudou aquela
senhorita, dando-lhe tudo o que ela precisou para ter seu filho.
Eu, a cada dia, me sentia frustrada por não poder dar a seu pai
um filho legítimo. Com o tempo, seu pai resolveu ouvir a minha
mãe, que dizia que sua irmã Mercedes poderia nos ajudar.
Fomos até ela e, assim como minha mãe havia dito, ela nos
ajudou. Ela também previu que a senhorita Mennellet não
estava grávida de seu pai, e que o verdadeiro pai da criança
frequentava sua casa e ainda a explorava, tirando toda a ajuda
de custo que seu pai lhe enviava. Seu pai colocou um
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 118 -
investigador e pegou-a em flagrante. O menino, nunca soube o
nome, mas já tinha feito quatro anos quando engravidei. Mas
não pense que Mennellet aprendeu a lição: aquela jovem
enlouqueceu e procurou novamente a feiticeira. Fez um
sortilégio contra mim, lançando-me essa maldição. Ela jurou
que, assim que a minha criança nascesse, eu cairia de cama sob
uma peste que nada no mundo desfaria.
Com o passar do tempo, seu pai e eu ficamos cada vez
mais unidos. Então, você nasceu. Ficamos tão felizes que
pensamos que nada ou ninguém poderia nos separar ou nos
prejudicar. De repente, caí de cama, com febre alta. Manchas
horríveis apareceram em todo o meu corpo. O médico da
família foi chamado e, em alguns dias, o diagnóstico foi dado:
era lepra. Tentaram de tudo, mas não descobriram a cura.
Minha mãe procurou a velha feiticeira para tentar dar-
lhe mais dinheiro. Assim, talvez pudesse inverter o feitiço. Só
que a feiticeira havia morrido subitamente e, com ela, a
esperança de uma cura. Por sete anos, seus avós cuidaram de
mim aqui, neste lugar escondido e isolado, até falecerem.
Alguns empregados corajosos e fiéis têm cuidado de mim nos
últimos anos.
– Segurei sua mão pálida e magra, pai. Perguntei se eu
era uma bruxa também.
– Sim, e da mais alta linhagem, querida. Tudo o que
precisa saber está dentro desse livro que lhe dei. Todos os meus
segredos estou-lhe entregando. Guarde-o... E, se algo
acontecer-lhe um dia, enterre-o. O diário tem tudo o que
precisa saber sobre mim e tudo que nunca pude compartilhar
com você durante toda a minha vida. É a minha história, ou o
que restou dela. A colher de pau é uma herança de família. Há
muitos anos tem passado de geração em geração. Agora ela é
sua. Essa é a sua varinha. Nunca a perca, pois tudo e todo o
Adriana Matheus
- 119 -
feitiço que vier a fazer deve ser mexido somente com essa colher
de pau. Nunca faça o mal a ninguém, filha. Nunca revide um
feitiço, nunca deixe que as pessoas matem sua essência. Não
faça sortilégios para segurar um homem, nem use seus poderes
para o mal dos outros. Lembre-se da lei do retorno e de que o
destino de ninguém é brinquedo. Lembre-se também de que, se
rezamos a Deus pedindo o mal de alguém, estamos fazendo um
feitiço. Deus nunca nos nega nada que pedimos em oração.
Porém, se um dia lhe fizerem um sortilégio, e o mal que lhe
laçarem não achar maldade em você, Deus lhe protegerá,
dando permissão para que o mal se volte contra quem lhe
enviou. Quando fazemos mal para uma pessoa inocente, Ele
permite que o mal se volte contra nós da mesma maneira. Todo
o mal que desejamos ao próximo, desejamos contra nós
mesmos. Não devemos estar em débito com Deus. Ele rege o
universo, e é a força do universo que rege os nossos destinos.
O mesmo se sucederá a alguém com o anjo da guarda
forte: quando o mal que fazemos a essa pessoa chegar até ela,
encontrará uma espécie de barreira protetora. Então, virá atrás
de quem o mandou, com a sua cobrança cega. O mal é
mercenário e carrasco. Inclusive contra quem o pratica. Por
isso, pense muito antes de ajudar alguém com sortilégios.
Investigue para saber se a pessoa está falando a verdade e,
principalmente, se é merecedora. Caso contrário, o mal vem
como uma fera cega em cima de você. No livro que lhe dei,
encontrará o segredo das ervas que curam. Como usar sua
clarividência, como usar as cartas, como usar a bola de cristal,
ou mesmo como fazer a viagem. A viagem é essencial para
conseguir entender a si mesma.
– Perguntei-lhe o que era a viagem.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 120 -
– É uma espécie de sono profundo, onde se consegue
viajar no tempo, encontrar respostas no passado para coisas
que podem lhe parecer absurdas e sem sentido no presente.
– Pai, como eu gostaria de ter estado ao lado de minha
mãe e aprendido tudo sobre aquela cultura misteriosa... Queria
ter participado de todas as coisas que foram importantes para
ela. Meu coração doeu tanto, pai, por ter que vê-la partir... Senti
muito mais do que piedade: o sentimento era uma mistura de
nostalgia, perda e amor. Naquele momento, tudo isso estava ali
na minha frente, indo embora. Ela estava morrendo. E não pude
fazer nada, porque isso também estava nas mãos de Deus, e Ele
regia o destino de nós duas naquele momento. Era como se
fôssemos um brinquedo e estivéssemos sendo manipuladas. O
livre arbítrio não funciona realmente, pois, caso funcionasse,
tenho certeza de que minha mãe teria escolhido ficar conosco
para sempre.
Shaara parecia sincera em relação àquela observação.
Suas lágrimas escorreram de suas faces como um mar
procurando abrigo por entre as rochas. O pai de Shaara
entendeu que a filha estava havia muito guardando aquela dor e
disse:
– Não lamente, não fomos culpados pela morte de sua
mãe. Fomos vítimas também.
Os dois abraçaram-se fraternalmente e Shaara contou-lhe
sobre Edward:
– Depois que voltamos do velório de mamãe, Edward
procurou-me no cemitério. Ele estava lindo, em um casaco de
veludo preto, calça bege e botas. Todos os nossos criados
estavam presentes, por isso nos afastamos. Edward puxou-me
para um canto, debaixo de uma árvore, e beijou-me
ardentemente. Tentei empurrá-lo, mas ficou difícil, pois ele
estava frenético e muito sensual. Edward estava muito mudado,
Adriana Matheus
- 121 -
não consegui controlar seus impulsos. Queria tentar entendê-lo.
Foi então que, num sussurro, ele disse: quero vê-la. Tentei adiar
aquela suposta fuga, respondendo claro, assim que tudo isso
passar, iremos nos encontrar para conversarmos. Mas Edward
não queria aceitar e respondeu-me: Não, de jeito nenhum! Acho
que não me entendeu, quero encontrá-la hoje à noite. Disse-lhe
que minha mãe havia acabado de falecer, que ele estava
perdendo a noção do certo e do errado. O senhor jamais
permitiria que nos encontrássemos aquela noite. Estávamos de
luto. Seu pai não precisa saber – respondeu-me Edward. Quero
que me encontre na taberna, perto do vilarejo. Direi ao
taberneiro que estarei esperando minha noiva, e ele não fará
interrogações quando lá chegar. Por favor, preciso tê-la, a sós.
Não acontecerá nada demais, prometo-lhe. Para que se sinta
mais segura, casaremos no dia seguinte. Assim, seu pai não
poderá nos impedir de ficar juntos. Quero contá-la como fui
promovido. Não me negue isso! Seus olhos eram suplicantes, e
sua voz deixou-me totalmente tonta e sem razão. Embora eu
soubesse o risco de estarmos sozinhos, confesso que também o
queria. Mesmo sabendo da imprudência do momento, eu disse
sim... Foi quando o senhor chegou e flagrou Edward beijando-
me. Pai, o senhor ofendeu-me e esbofeteou-me. Fiquei magoada
por não ter sequer me deixado explicar. Eu quis me vingar.
Perdoe-me! Fui uma tola.
Shaara baixou a cabeça, envergonhada e triste. Mas seu
pai compreendeu que ela havia agido por impulso e que ele
também poderia ter agido diferente em relação àquela situação
tão delicada. Depois de muito pensar, ele disse:
– Parece que o senhor Edward sabe bem como
funcionam as coisas na Inglaterra. Mas aqui, na Espanha, com
certeza ele terá que aprender a duras penas. Creio que precisarei
conversar em breve com ele.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 122 -
– Pai, por favor, ainda não terminei. Preciso que o senhor
saiba o que houve comigo, antes que faça uma tolice e ponha em
risco a sua vida.
Shaara estava tentando mudar o triste destino de seu pai.
Meu Deus, fiquei muito assustada porque meus sentidos de
bruxa avisavam-me o quanto ela poderia estar enganada. Ela
nunca poderia ter tomado aquela atitude, mesmo que estivesse
tentando salvar uma vida. Nunca podemos interferir no destino
de alguém, e muito menos usar a viagem para tal propósito.
Shaara, em seu momento de dor, tentou mudar o passado, mas
se esqueceu de uma coisa: isso era impossível. Senti muita pena
de Shaara, pois entendia sua dor. Fiquei quieta, ouvindo-a
prosseguir com aquela conversa insana de uma pessoa
desesperada. Shaara contou o seguinte a seu pai:
– Naquela noite, uma escrava ajudou-me. Ela não teve
culpa, pai, praticamente a obriguei a me ajudar. Chamei-a e pedi
que me trouxesse um vestido de camponesa e um capuz
vermelho, para que não fosse reconhecida por ninguém na
cidade. Disse que eu e Edward iríamos fugir aquela noite, que
ela não poderia contar a ninguém, muito menos ao senhor. Caso
contrário, eu mandaria puni-la por isso. Ela ainda disse, com
olhos arregalados:
– Credo em cruz, Sinhá! Não sou de fazer mexericos,
não. Só acho que a senhorita está muito enganada em relação a
esse capitão. Afinal, sua mãe nem esfriou ainda. Luto é coisa
sagrada!
– Ela não estava errada, pai. Mas, mesmo assim, passei
por cima de tudo e disse-lhe: Acredite, Joaquina, minha mãe
iria aprovar isso. Eu o amo muito e essa decisão já está para
ser tomada há muito tempo. Meu pai só fez antecipar os fatos.
Ela benzeu-se, num ar de desaprovação. Eu estava cega de ódio
Adriana Matheus
- 123 -
do senhor naquele momento, pai. Não ouviria nem mesmo
mamãe. Joaquina ainda tentou argumentar:
– O pai da Sinhá é um homem bom. Se fez o que fez é
porque está com a cabeça quente e o coração amargurado. Ele
amava muito sua mãe, e a dor da perda fundiu os miolos dele.
Acho que a menina deveria pensar mais um pouco antes de
tomar qualquer decisão.
– Meu pai nunca poderia ter me batido, Joaquina – eu
lhe disse. Se ele sofre, tem que saber que sofro também. Ela era
minha mãe. Fui privada de vê-la a minha vida toda. Nunca pude
ter os seus carinhos. Quando eu chorava por ter caído, não
tinha ninguém para me pôr no colo ou afagar meus cabelos. Ele
nunca teve tempo nem para me contar histórias de dormir. E
agora está se sentindo no direito de espancar-me? Vou mostrar-
lhe em quem ele bate.
– Está bem, sinhá. Tomara que o patrão não me castigue
por causa de sua cabeça dura. É mió a Sinhá andar depressa,
que o cocheiro já está aguardando onde foi combinado. É...
água morro abaixo, fogo morro acima: muié moça, quando
quer desembestar, ninguém segura.
– Joaquina disse isso entre dentes, quando me viu saindo
porta afora. Na saída, dei uma olhada em tudo e ainda respondi
a velha escrava, desaforadamente: Ouvi isso, sua insolente! Não
sei onde eu estava com a cabeça, pois nunca tratei nenhum de
nossos escravos daquela maneira. Muito menos Joaquina, que
praticamente me criou. Ninguém me viu saindo. Fui muito
cautelosa. Dei ao cocheiro o endereço e seguimos para o
vilarejo. Ao chegarmos à taberna, o cocheiro perguntou-me se
eu tinha certeza de que era ali. Respondi-lhe meio assustada e
curiosa pela pergunta: Sim. Algum problema?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 124 -
– Senhorita, desculpe-me pela intromissão, mas aqui
não é lugar para alguém de finos modos... Quer que eu entre
com a senhorita? – ofereceu-se o cocheiro.
– Não será preciso, meu noivo está me esperando.
Obrigada! Escutei quando ele falou noivo, hein? Sei... Perguntei
enfurecida se ele havia dito alguma coisa, no que me disse Não,
senhorita. Só pensei alto. O cocheiro virou o rosto e parecia
antipatizado comigo, mas me disse para aguardá-lo ali, que não
se demorava. Entrou na taberna sozinho. Parecia querer se
certificar se havia alguém esperando por mim lá dentro.
Quando de lá ele voltou, disse-me para entrar pela porta dos
fundos, para não chamar muita atenção dos homens que estavam
lá dentro. Desci da carruagem e entrei na taberna pelos fundos,
como sugeriu o cocheiro. Procurei pelo taberneiro. Ele me olhou
atônito, como se me reconhecesse, mas nenhuma palavra disse.
Colocou o copo, que estava enxugando com um paninho
encardido, em cima do balcão, pegou uma lanterna e guiou-me
em direção à porta dos fundos, novamente. Da portinhola,
mostrou-me um celeiro. Olhou-me de cima abaixo, parecendo
não acreditar que eu iria ter coragem de ir até lá. Mas o olhei
desafiadoramente e não lhe dirigi mais a palavra. Segui,
tentando mostrar-me corajosa. A noite estava fria e senti minhas
pernas tremerem. Vacilei e quase caí. Somente a luz da Lua me
guiou. Abri a enorme porta do celeiro e vi não vi ninguém.
Vários lampiões estavam acesos e, no meio, tinha uma mesa
com vinho, taças, queijo, frutas, e pães. Logo à frente, encontrei
um colchão feito com feno. Alguns cobertores estavam
dobrados ao lado. Sorri sozinha, pois sabia que Edward havia
preparado tudo nos mínimos detalhes. Edward, você está aí?,
chamei mais alto e ninguém respondeu. Comecei a ficar
assustada e, de repente, ele chegou por trás de mim, abraçando-
me e beijando-me. Virei para olhar para ele e fui beijada na
Adriana Matheus
- 125 -
boca, com paixão. Depois, empurrou-me pelos os ombros e
fitou-me toda.
– Não quero mais ouvir tais detalhes. - disse o pai de
Shaara, com o semblante que era pura decepção.
Mas Shaara pediu para que terminasse aquela conversa:
– Por favor, pai, preciso de resposta e, para isso, o senhor
terá que ouvir toda a minha versão dessa história.
Então, Shaara prosseguiu:
– Edward olhou-me de um jeito que nunca havia me
olhado antes e disse-me que eu estava linda, que me amava
loucamente, que não conseguia pensar em sua vida sem mim.
Seus olhos eram ternos, mas também cheios de luxúria. Fitei-o
de cima abaixo, enquanto foi buscar-me uma taça de vinho.
Estava com uma camisa branca muito fina, aberta, que deixava o
peito másculo e peludo à mostra. As mangas, longas, estavam
dobradas até o antebraço. Calça de couro, com um cinto largo, e
botas, lembrando os famosos corsários. Seus cabelos estavam
soltos, e sua barba muito bem feita. Ele usou sândalo naquela
noite. Aquele cheiro despertou em mim um lado adormecido até
então. Como eu disse, pai, também tive minha porção de culpa.
E Shaara prosseguiu com aquela história, que me
surpreendia a cada segundo:
– Edward trouxe-me uma taça e brindamos a nossa
felicidade antes de bebermos. Sentamos no colchão
improvisado, comemos queijo com fruta e pães, e contamos
histórias antigas. Ríamos como loucos por qualquer coisa.
Edward fitou-me, de repente, e beijou-me novamente com
ternura. Seus beijos foram ficando mais frenéticos e ardentes.
Suas mãos começaram a abrir caminhos desconhecidos no meu
corpo. Já entorpecida pelo vinho e pela luxúria, deixei-me
render. As mãos de Edward foram ágeis demais e, em instantes,
conseguiu abrir meu corpete. Percebi que estava completamente
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 126 -
indefesa e em suas mãos. Pude perceber sua experiência com as
mulheres, e senti um ciúme infindável. Como num passe de
mágicas, ele tirou o restante de minhas roupas. Queria falar-lhe
algo, mas seus beijos e suas mãos ficaram cada vez mais
insistentes e impacientes. Meu corpo tremeu ao sentir sua boca
escorregando em meus seios, jovens e inexperientes. Sua mão
desceu e alcançou meu local mais secreto. Senti tontura e um
devaneio sem fim. Sua boca percorreu todo o meu corpo, até
levar-me a um frenesi angustiante. Quando percebeu que eu
estava totalmente indefesa, fez-me implorar para ser possuída.
Como um louco, beijou-me na boca novamente e levou-me a
lugares jamais sonhados por qualquer ser humano. Naquela
noite, vi que o meu frágil corpo de mulher foi levado a um
paraíso nunca sonhado pelos anjos. Quando acordei, fiquei
olhando-o dormir. Como era lindo ver seu corpo masculino e nu
completamente vulnerável ao meu lado! Nada se comparava à
felicidade que estava sentindo ao lado de Edward. Eu estava
plena da certeza do nosso amor. Mas, de repente, senti uma
pontada no peito, como se algo estivesse errado. Sabia que
deveria contar a Edward sobre o meu atual segredo. Comecei a
chorar, abafadamente. E se ele não me aceitasse como eu era? -
pensei comigo. Talvez fosse bobagem e eu estivesse sofrendo
por antecipação. Comecei a beijá-lo nos lábios, tentando afastar
aquele temor da minha mente. Ele acordou e perguntou-me,
tentando ser natural e fazer-me sentir à vontade: Bom dia, meu
amor! Como passou a sua primeira noite como uma refugiada?
Tentei não deixar transparecer que eu havia chorado, pois não
queria que Edward se aborrecesse comigo. Então, continuei
aquela brincadeira, tentando também ser irônica: Bom dia,
minha vida, tirando a hora em que senhor me deixou dormir,
pode-se dizer que eu tive uma excelente noite. Ele respondeu
Eu?! A senhorita é que não me deu sossego. Parecia possuída
Adriana Matheus
- 127 -
por uma fera selvagem. Rimos os dois ao mesmo tempo. E o
senhor quer sossegar? - rocei minhas pernas entre as dele. Ele
olhou para debaixo das cobertas e falou, com voz rouca: Hum!
Não, de jeito nenhum. Fizemos amor novamente. Desculpe por
lhe contar tão vulgarmente, pai, todos os detalhes de meu
envolvimento com Edward. Mas eu precisava que o senhor
soubesse que eu não sou santa e que também permiti que as
coisas fossem longe demais. Mais tarde levantamos e tomamos
o nosso desjejum. Ele tirou, para mim, leite de uma vaca que
estava naquele celeiro. Tudo estava perfeito, até mesmo o pão
dormido. Edward contou-me sobre seus planos de se casar
comigo. Falamos da quantidade de filhos que teríamos. Ríamos
com coisas banais e, se o mundo acabasse, não teria naquele
momento a menor importância para nós, pois éramos a própria
felicidade encarnada. Eu havia esquecido completamente dos
meus temores, até que fiz a pergunta que não conseguia se calar
dentro de mim: Edward, posso perguntar-lhe uma coisa? Ele,
ainda deitado ao meu lado, enrolando na boca um pedaço de
feno, disse Sim meu amor, pode me fazer quantas perguntas
você queira, enquanto fitava o teto, parecendo não se interessar
muito por aquele assunto. Por fim, virou-se para mim e
perguntou, percebendo que eu me mantinha calada: Então, meu
amor, o que quer saber de mim que ainda não saiba? Disse-lhe
que precisava saber se ele me amava verdadeiramente. Na
verdade, queria testar o amor de Edward, queria saber se ele me
amava tanto quanto o senhor amava minha mãe. Edward,
naquele momento, pareceu-me tão seguro do nosso amor... Fui
uma tola e estraguei tudo. Achei que nada importaria ou
estragaria aquele sentimento. Edward virou-se e segurou meus
ombros. Fitando-me, disse: Nunca duvide disso, vou me casar
contigo. Nada nesse mundo poderá intervir nos meus
sentimentos por você. Mas por que tem essa dúvida a meu
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 128 -
respeito? Então, aproveitando aquele momento de felicidade,
abusei da minha sorte e perguntei: Se eu for diferente de todas
as outras mulheres que conheceu, vai me amar mesmo assim? E
se eu fosse uma bruxa, amar-me-ia do mesmo jeito? Edward
soltou uma gargalhada sonora. Mas, depois, fitou-me
seriamente, pois pareceu perceber em mim tristeza e
sinceridade. A fisionomia de Edward mudou. Afastou-se de
mim, parecendo querer que eu dissesse que era uma brincadeira.
Mas me mantive séria e firme. Meus olhos não desgrudavam
dos dele. Então, levantou-se, passou as mãos nos cabelos e
perguntou: Está falando sério, não é? Pai, Edward mudou por
completo. Correu a vestir suas roupas e mal olhava para o meu
rosto. Ficou enfurecido. Nunca imaginei vê-lo daquela forma.
Agitava-se de um lado para o outro, como se estivesse
procurando uma solução ou algo para fazer, que lhe livrasse
daquele peso. Por fim, jogou em cima de mim as minhas roupas
e pediu que eu me vestisse. Quando eu já havia me vestido,
Edward - que não parava de me observar um só segundo –
perguntou, por fim: Não brincaria com uma coisa séria dessa,
não é? Sua voz estava trêmula e confusa. Claro que não, por
que eu faria isso? Acabou de dizer-me que nada poderá intervir
entre nós, Edward! Juntos seremos invencíveis, fortes. Mas,
separados, não seremos ninguém – eu lhe disse. Fui muito
ingênua, pai. Achei que o amor pudesse vencer qualquer
barreira. Também tinha um conceito diferente e fantasioso do
que é ser uma bruxa de verdade. Eu achava que eu tinha poderes
mágicos, que podia usá-los para fazer qualquer coisa.
Pela primeira vez durante aquela viagem, vi minha
ancestral chorar como uma criança precisada de colo. Comecei a
entender por que ela queria tanto mudar o destino de seu pai:
não por ela, mas para tentar ajeitar as coisas e não ver seu pai
ser torturado até a morte por causa de um deslize dela. Na vida,
Adriana Matheus
- 129 -
temos que ter muita certeza do que estamos por fazer, pois, no
futuro, as consequências podem ser drásticas devido a erros que
nunca poderão ser consertados.
Observei Shaara chorando com as mãos no rosto e
percebi que seu pai, embora a amasse, estava indignado e
decepcionado com tudo que ouvira da boca da própria filha.
Confesso que não teria coragem de ousar tanto em relação às
minhas intimidades com meu pai.
Minha ancestral cometeu três pecados graves: a ira, pois
se vingou de seu pai sem ao menos tentá-lo compreender; a
luxúria, pois, embora amasse Edward, deitou-se com ele
somente por vingança; e o mais grave: invadiu o passado e
tentou ser mais que Deus, tentando mudar o destino de outra
pessoa. Com isso, o universo irou-se contra ela da maneira mais
cruel possível. Continuei em silêncio e a deixei terminar aquela
história, que já estava me assustando, pois temi por mim naquele
momento. Temi por perceber que eu é quem iria ter que resgatar
aqueles erros de Shaara. Ela continuou a história:
– Edward olhou-me nos olhos como se fosse um mostro
e disse: Shaara, lembra-se de que lhe disse que fui promovido a
um cargo de extrema confiança? Respondi-lhe Sim, amor, eu
me lembro, mas não vejo em que isso poderia intervir entre nós
e o nosso amor. Ele anunciou: Recebi ordens vindas do vaticano
de ficar no lugar do novo chefe da guarda, sou o novo capitão
da guarda real. Fui à sua direção para abraçá-lo, pois queria que
ele soubesse o quanto eu estava feliz por ele. Mas ele me
empurrou para longe de si e prosseguiu: Não é só isso. Também
recebi outro cargo de muita confiança por ter sido sempre
devotado à Santa Madre Igreja. Que bom, eu agora era a noiva
de um homem de poder - tentei ironizar. Fui até ele, tentando
abraçá-lo. Edward afastou-se de mim abruptamente e, naquele
momento, não me pareceu mais tão seguro do nosso amor. Em
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 130 -
um tom de voz áspero, falou: Shaara, nem de brincadeira fale
uma coisa dessas. Pois eu teria que mandar prender você e seu
pai, e todos os seus bens teriam que ser confiscados. Seus
criados teriam que ser torturados e mortos por ordem da
Inquisição. Eu disse que não o estava entendendo. O que teria
minha família, meus bens e meus criados a ver com o seu novo
cargo? Sou o novo inquisidor. Até que o vaticano envie um
inquisidor substituto para este condado, serei o responsável por
manter a lei e a ordem nesta região, ele me respondeu. Senti
como se tivesse perdido o chão, pai. Nunca imaginei passar por
uma situação como aquela: eu havia me entregado ao meu
algoz. É realmente incrível o quanto as coisas mudam da noite
para o dia. Meu sonho de amor tornou-se um pesadelo. Eu
estava sem saber o que fazer. Fiquei ali em pé, na frente de
Edward. Hoje percebo o quanto errei. Vejo que nada somos
quando tentamos ser arrogantes e passar por cima de Deus,
tentando antecipar o nosso destino. Depois de algum tempo
calados, apenas perguntei: O que um inquisidor iria querer aqui
em San Marino? O que há de tão especial em um pequeno
condado como o nosso? Creio que a Inquisição tem coisas
muito mais importantes para investigar. Ele me explicou que
havia boatos de que bruxas fugitivas de Salém estavam
escondidas no grande bosque e que, em nome do demônio,
estavam praticando feitiços e abominações. O último inquisidor
havia morrido e diziam ter sido obra de um feitiço poderoso,
praticado pela bruxa Mercedes. Essa lhes estava dando muito
trabalho para ser capturada, pois se escondia no meio da mata
virgem. O último feitor que tentara ajudá-los desapareceu
misteriosamente. Então, eu lhe disse: Porque as pessoas são
diferentes não quer dizer que estão possuídas pelo demônio. Já
ouvi falar dessa tal Mercedes, dizem que veio de Salém, no
Norte da Inglaterra. Para mim, tudo nunca passou de mexericos
Adriana Matheus
- 131 -
e sandices de pessoas ignorantes. Eu mesma sempre gostei de
ler livros místicos. Confesso já ter consultado uma cigana.
Edward parou e fitou-me como se não mais me reconhecesse:
Está realmente falando sério? Sabe que eu posso levar isso
como uma confissão. Não quero mais ouvi-la. Cale-se, é melhor
irmos embora. Pensei que o seu amor por mim fosse muito mais
importante do que essas lendas criadas por pessoas
supersticiosas e fanáticas! Confessei-lhe que minha mãe
contara-me, em seu leito de morte, que era uma bruxa, e que
também vi em suas costas a flor de lótus, o sinal das renegadas.
Esse sinal tinha sido marcado pelo inquisidor do qual ele
acabara de me falar. Esse homem, Edward, não era um homem
íntegro. Ele colocou esse sinal em minha mãe depois de torturá-
la por horas, tentando obrigá-la a fazer tudo o que ele quisesse.
Como ela não se entregou a ele, foi marcada como um animal.
Minha mãe só tinha doze anos, era apenas uma menina e nada
sabia de feitiçaria. A família de minha mãe segue uma tradição
muito antiga, mas nunca fizeram mal a ninguém nesta vida. Ele
quis saber como eu sabia disso, se não convivia com minha mãe,
se só estive com ela por algumas horas durante toda a sua vida.
Ele quis saber como eu poderia ter tanta certeza de que ela
nunca praticara feitiçaria. Minha mãe era uma mulher honesta,
Edward, de muito boa índole. Nunca fez mal a ninguém. Quem
a conheceu contou-me como ela era. Sabe, Edward, posso não
ser experiente, mas sei muito bem ver nos olhos de uma pessoa
quando ela está sendo honesta comigo. E acredite: vi isso nos
olhos da minha mãe. Espero que tudo o que acabei de lhe
contar não mude nada entre nós, Edward; eu o amo demais. Ele
insinuou que fiz amor com ele, mas com quantos mais? Disse
que eu não passava de uma mulher mimada, que só quis se
vingar do próprio pai por mera pirraça. Acha mesmo que eu
confiaria em uma pessoa que, além de trair a confiança
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 132 -
paterna, deita-se assim, facilmente, com qualquer homem que
lhe convide? Acha mesmo que vou acreditar em uma filha de
bruxa? Foi o que ele disse. Acusei-lhe de louco. Disse-lhe que
ele havia sido o único homem que tive em toda a minha vida. E
que sempre seria único. Aquilo não faz o menor sentido, eu
nunca havia sido praticante de feitiçaria. Só soube do segredo de
minha mãe no seu leito de morte. Disse-lhe que não levaria em
consideração tais palavras rudes, pois sabia que ele estava sendo
guiado por uma revolta insana. Sei como as malditas bruxas
agem: enfeitiçam os homens para que não as vejam como são,
demônios de saias – ele concluiu. Perguntei-lhe por que odiava
tanto o meu povo. Seu povo? Então agora confessa também que
é uma bruxa? Pois que seja. Sabia que essa raça maldita
destruiu minha mãe? – disse-me, segurando o meu rosto com
uma das mãos. Prosseguiu, enfurecido:
– Quando minha mãe era jovem, uma maldita bruxa
enfeitiçou o noivo dela. Minha avó fez de tudo para mostrar a
verdade ao meu pai, mas o pobre homem estava tão cego e
enfeitiçado que se mudou da França, largando minha mãe
grávida ao vento. Mas é claro que a senhorita bonequinha de
luxo não sabe o que são essas coisas, não é verdade? Não
consegue imaginar o que é estar grávida aos dezoito anos e ser
abandonada à própria sorte, não é? Minha mãe não perdeu o
bebê, como praguejou a maldita bruxa, porque minha avó fez
uma promessa de que eu serviria ao Senhor de alguma maneira.
Minha mãe foi uma mulher sofrida e viveu às escondidas,
porque ficou mal afamada perante o povo. Depois de certo
tempo, minha mãe conheceu o coronel Sebastian. Embora o
coronel fosse bem mais velho que minha mãe, ele cuidou de nós
enquanto viveu. Ele deixou para minha mãe um pequeno
obséquio, que ela guardou para me ajudar nos estudos, mais
tarde. O coronel era um homem de muitos conhecimentos,
Adriana Matheus
- 133 -
embora não tivesse muitas posses. Foi graças a ele que estudei
no melhor colégio militar da Europa. E foi com muito esforço
que me tornei, mais tarde, o capitão da guarda real na
Inglaterra, até ser transferido para cá. E, por fim, caí aqui em
San Marino. Nesse pequeno vilarejo, cheio de contos e lendas
sobre as bruxas fugitivas de Salém. No início, não dei ouvidos,
pois pensei serem apenas histórias contadas pelos aldeões.
Mas, com o passar dos meses, pude observar que coisas
estranhas estavam acontecendo com frequência. Como, por
exemplo, mulheres que se esfriavam no leito conjugal; pessoas
que desapareciam no meio da floresta, sem deixar rastro. O
leite do gado de alguns fazendeiros começou a talhar, e isso
acontecia a cada Lua cheia. As crianças de Salamanca estavam
nascendo com deformidades, ou morriam na hora do parto.
Algumas mulheres não conseguiam gerar um filho homem,
como é o desejo de todo patriarca. Foi então que a Igreja
resolveu investigar minuciosamente, em sigilo, todos esses fatos
ocorridos. Depois de uma detalhada investigação, foi
descoberto que tais fatos eram verídicos. Vários suspeitos estão
sendo mantidos sob investigação, e alguns são interrogados
constantemente para que confessem seus crimes. No corpo de
algumas mulheres, já foi achada a marca do demônio. Um
especialista em desvendar fatos como esse está aqui, em sigilo,
investigando os hereges. Houve, também, alguns suicídios
misteriosos e sem causa aparente. Até mulheres com três
mamilos foram encontradas e estão sendo interrogadas
diariamente em masmorras. Ainda não conseguimos encontrar
a feiticeira Mercedes, mas é só uma questão de tempo. Escravos
fugiram e jamais foram encontrados. Soubemos que uma velha
senhora presenciou um ritual no meio da mata enquanto
juntava lenha. Ela teve sorte de não ter sido capturada pelas
feiticeiras. Tudo isso que acabei de lhe contar é prova de que o
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 134 -
demônio tem usado as mulheres de San Marino. A Inquisição
não perdoa, Shaara.
– E o que isso tudo tem a ver com nós dois? – perguntei-
lhe, pai. As pessoas têm problemas todos os dias. Algumas não
conseguem superar as suas dificuldades e acham que o suicídio
é a solução. Essas pessoas são doentes, carentes e solitárias,
Edward. Escravos fogem e vão para os quilombos, porque já
estão fartos de serem torturados por seus senhores. Eles fazem
isso na ânsia de acharem a liberdade. Todos já ouvimos boatos
que há quilombos por toda a Europa. Quanto ao leite que
azeda, é devido ao calor e a falta de cuidados. Pessoas com
deformidades nascem todos os dias, Edward. Isso não quer
dizer que sejam marcadas pelo diabo só porque são defeituosas.
E se as mulheres estão esfriando com seus maridos, creio que
eles deveriam começar a tratá-las melhor. Somos mulheres,
Edward, não somos seus animais de estimação. E se os bebês
estão morrendo na hora do parto, talvez algumas mulheres
devessem parar de usar espartilho durante a gravidez. Não
estou dizendo que são todas, mas sabemos que algumas
senhoras não tiram nunca os espartilhos. Isso pode ser o preço
da vaidade. E de que marcas estranhas está falando, afinal? De
pintas ou manchas? Ora, Edward, francamente... Pensei que
fosse um homem mais inteligente. Não entendo como isso tudo
está relacionado com a nossa vida. A vida que nós planejamos
durante esses dois longos anos juntos. E quanto às bruxas,
Edward, elas são pessoas normais como nós. Nada têm a ver
com os contos e fábulas que circulam em torno delas. Acho que
deveria mudar esses conceitos antigos e preconceituosos sobre
as pessoas. Só porque algumas são diferentes de nós, não quer
dizer que sejam seguidoras do diabo. Se cada um - não apenas
nesta cidade, mas neste mundo em geral - deixasse de querer
obrigar as pessoas a serem iguais a elas, o mundo seria muito
Adriana Matheus
- 135 -
melhor. Viver, Edward, é aprender a conviver com as diferenças
- sejam quais forem.
– Shaara, quando a minha mãe faleceu, ela me fez
prometer que acharia a bruxa que enfeitiçou o meu pai. Aquela
mulher destruiu a vida da minha mãe, e a minha também. Ela
destruiu os sonhos da minha mãe de ser mãe de novo. Minha
mãe faleceu durante o parto, junto ao meu irmão, de uma
doença misteriosa e sem explicação. Eu tinha apenas seis anos,
Shaara, e vi minha mãe gemendo de dor, suplicando pela morte.
Ela me fez jurar, em seu leito de morte, que a vingaria,
procurando e matando a bruxa que fez aquilo com ela. Não sou
homem de quebrar uma promessa.
– Isso é uma tolice, Edward! Creio que nem deva saber
o nome dessa suposta bruxa!
– Pai, no fundo eu não queria ouvi-lo mencionar o nome
de minha mãe. Pois, depois que me contou que estava
perseguindo a tia Mercedes, eu me recusava a acreditar que
alguém pudesse mentir sobre minha mãe daquele jeito. Mas
deixei que ele continuasse.
E Shaara prosseguiu, contando ao seu pai o diálogo que
teve com Edward, como se o estivesse revivendo. Seu pai
apenas a ouviu, sem interferir:
– Sim, eu sei, Shaara. - disse Edward, com os olhos fixos
nos meus. Seu nome é Elizabeth Méquiz. Essa foi a mulher que
enfeitiçou meu pai e amaldiçoou minha mãe, para que ela
morresse como morreu.
– Fiquei ouvindo-o sem mais conseguir falar. Pasmei-me
ao ouvi-lo pronunciar o nome de mamãe, daquele jeito tão cruel
e fraudulento. Por fim, depois de engolir a seco aquelas
palavras, perguntei:
– Sua mãe é Escarlate Mennellet?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 136 -
– Sim, esse é o nome da minha mãe. Como sabe o nome
dela? Não me lembro de ter mencionado seu nome para
ninguém, pois tenho evitado lembrar-me de minha mãe. Ainda
dói na minha frente a forma com a qual ela morreu. Onde ouviu
mencionar o nome dela?
– Edward ficou curioso e trêmulo. Então, falei:
– Estive por horas no quarto de minha mãe antes que ela
partisse, como já mencionei. Foi ela quem me contou sobre a
sua mãe.
– Edward empalideceu e encostou-se em um monte de
feno. Tapou a boca com as mãos. Ele parecia não querer
acreditar, mas prossegui:
– Sim, Edward, sou a filha de Elizabeth Méquiz, a bruxa
que mencionou em sua suposta versão, ainda há pouco. Esse
era o nome de solteira de minha falecida mãe. Agora que me
contou a sua parte da história, espero que ouça também a
minha.
– Antes que Edward tivesse uma reação inversa a que
estava tendo, prossegui com a conversa, pois percebi que ele
estava sem voz. Aquele era o momento de saber alguns fatos e
tentá-los encaixar. Então, perguntei-lhe:
– Como exatamente sua mãe faleceu, Edward? Diga-me
sem mentir para mim.
– Nunca minto. O que te contei é o que aconteceu.
– Edward estava meio tonto, mas prosseguiu:
– Os doutores não conseguiram identificar a doença
dela. Eu só sei que seu corpo encheu-se de tumores horríveis.
Seu sofrimento foi inigualável, ela não merecia aquilo. Como
lhe contei, minha mãe morreu com o meu irmão, durante o
parto. Por causa de uma bruxa maldita, perdi minha família.
Fui criado por minha avó e pelo coronel Sebastian. Não tem
ideia do que é ser criado por um homem que não é o seu pai, e
Adriana Matheus
- 137 -
que vive o tempo inteiro ditando regras militares. Eu vivia mais
interno em um colégio do que dentro da casa materna. Tenho
gratidão ao coronel Sebastian, mas confesso que ele era cruel
comigo. Fui um rapaz solitário e não tive amigos. Meu único
objetivo era vingar minha mãe.
– Ouvindo aquelas palavras amarguradas de Edward, eu
disse, muito entristecida: Meu Deus, é a lei do retorno. Minha
mãe estava certa. Ele desconhecia a lei e tive de contar a minha
história:
– Minha mãe me contou que, antes de se casar com o
meu pai, ele tinha se envolvido com várias outras mulheres.
Entre elas, uma jovem ambiciosa dançarina, cujo nome era
Escarlate Mennellet. Sinto muito por tudo que tenha vindo
passar.
– Percebi o desgosto de Edward, e o desespero dele por
pensar que éramos irmãos. Mas, antes que ele abrisse a boca,
prossegui:
– Meu pai terminou com a sua mãe assim que conheceu
a minha mãe. Sinto muito, Edward, mas a sua mãe mentiu
muitos fatos. Sua mãe perturbou a vida de meu pai e de minha
mãe enquanto ela viveu. E foi a sua mãe quem jogou um feitiço
na minha. Logo depois que eu nasci, minha mãe caiu de cama
com lepra, Edward. Minha mãe passou vinte anos em cima de
uma cama, isolada do mundo por causa da maldita doença. Ela
nunca pôde pegar-me no colo, nunca pôde ver-me dando os
primeiros passos. Sinto muito, mas sua mãe mentiu, pois foi ela
e sua avó quem recorreram a um terrível sortilégio para matar
minha mãe. A lepra de minha mãe, Edward, era um feitiço feito
por uma bruxa que morreu misteriosamente, logo após fazer o
sortilégio. Foi sua família a causadora do sofrimento da minha.
Eu podia odiá-lo por isso e muito mais, mas o meu amor por
você faz-me ver que não somos culpados pelos erros de nossos
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 138 -
pais. Estamos tendo uma chance de mudar todo esse mal com o
amor que sentimos um pelo outro; a chance de viver feliz e
corrigir tudo o que nossos pais fizeram de errado.
– Mas Edward estava cego e não ouviu uma só palavra
do que eu disse. E prosseguiu:
– Do que está falando? Você quer tentar confundir-me
com sua bruxaria maldita. Jurei que destruiria toda a sua raça
desgraçada. Não vou voltar atrás. Meu Deus, você sabia quem
eu era e nem se importou de sermos irmãos?
– Edward, não somos irmãos. Sua falecida mãe havia se
envolvido com outro homem antes de tramar contra o meu pai.
– Contei-lhe exatamente o que mamãe me havia dito. De
repente, vi cair de joelhos aquele homem que parecia ser de
ferro. Ele chorou incessantemente, pai, e gritava como se
sentisse ódio e dor ao mesmo tempo. O desespero de Edward era
tamanho que eu não soube como ajudá-lo. Percebi que ele
estava guardando aquela mágoa dentro dele há muito tempo, e
que precisava pôr para fora de alguma maneira. Tentei tocá-lo,
mas ele me empurrou abruptamente. Fiquei sem saber como
agir. Por fim, ele disse, entre dentes:
– Por que, Shaara? Por que você me enganou? Como
pôde fazer isso comigo?
– Seus olhos eram tristeza e dor. Tentei dizer-lhe,
novamente, que não tinha culpa e que só soube dos segredos de
minha mãe em seu leito de morte. Mas todas as minhas
tentativas foram inúteis. Ele parecia estar com nojo de mim. Era
como se eu tivesse contraído uma doença. Então, ele me
expulsou da frente dele. Foi o momento mais difícil da minha
vida:
– Vá embora da minha frente! Preciso pensar no que
farei com você. Quero ficar sozinho.
Adriana Matheus
- 139 -
– Amor, sou a mesma pessoa... Podemos lutar juntos e
não contar nada. Ninguém saberá. Foi assim com o meu pai:
ele aceitou minha mãe, e o amor dos dois superou tudo - até
mesmo a doença dela. Se quiser, nem mesmo leio o livro que
minha mãe me deixou. Posso renegar tudo por você, Edward.
Nada me importa, só o nosso amor. Eu o amo! Faça o que
quiser, mas não me tire de sua vida, pelo amor de Deus. Não me
deixe. Eu não saberia viver sem você, não mais.
– Eu a desprezo, sua bruxa mentirosa. Sei que nunca
deixará de ser uma bruxa.
– Nisso ele estava certo. Eu nunca deixaria de ser eu
mesma. Mudamos com o passar dos anos, adquirindo
experiência, sabedoria e rugas com a idade. Mas nossa essência
nunca muda. Ele estava exaltado e cada vez mais rude com as
palavras, e continuou a me ofender:
– Como você quer que eu ame a filha da mulher que
matou a minha mãe? E seu pai, um maldito canalha sem
coração. Nada que me contou vai mudar o desprezo que sinto
por sua família. Verdade ou mentira, agora os odeio mais
ainda. Desprezo você e toda a sua raça. Sei muito bem que está
tentando me iludir, para salvar seu pai e a você mesma. Saiba,
Shaara, que estou preparado para enfrentar seus feitiços.
Arrede-se de mim, satanás! Esconjuro-a em nome de Deus!
– Edward, acabamos de fazer amor! Não quero ouvir
isso. Sei que está fora de si, que ficou enfurecido e louco pelo
ódio que o consome. Não são sinceras essas palavras. Sei que
irá pensar com calma e cair em si.
– Tem razão: deitei-me com uma mulher, mas fui
iludido. Pois, na verdade, eu estava me deitando com o próprio
diabo disfarçado. Você usou o seu próprio corpo para tentar me
enfeitiça. - olhou-me de cima abaixo, com desprezo. Edward
estava transtornado, parecia outra pessoa. Nunca o havia visto
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 140 -
daquela forma antes. Ele continuava falando como um louco. Eu
só queria fugir para bem longe:
– Usou-me! Fui um tolo e ainda acreditei em sua
castidade.
– Ele começou a revirar os lençóis e disse:
– Não era mais virgem! Não há sangue nos lençóis. Sua
bruxa maldita! Queria que eu me casasse com você para
amaldiçoar a minha vida. Você já era usada, sua imunda! Acha
mesmo que me casaria com uma mulher já usada?
– Esbofeteei-o; ele me revidou. Coloquei a mão no rosto
e o olhei-o nos olhos: eram puro ódio. Nada mais pude fazer em
relação a Edward. Senti o sangue jorrar em minhas narinas e
disse:
– Juro por tudo que há de mais sagrado nesta vida,
Edward: um dia hei de vê-lo chorar lágrimas de sangue, como
as que escorrem de minha face agora. Está cometendo uma
injustiça e, o que é pior, não quer ver que sua mãe é que é a
culpada por isso tudo. Aquela maldita, mesmo depois de morta
ainda consegue perturbar a vida da minha família! Mas hei de
vê-lo ajoelhado e arrependido. Há alguns minutos, dizia que me
amava, que eu era a mulher da sua vida. Agora me trata como
qualquer mundana. Não o conheço mais, Edward, não sei quem
é. Imaginei uma pessoa completamente diferente, mas eu
deveria saber que de um maldito inglês não poderia vir boa
coisa. Principalmente quando esse inglês traz consigo o nome
Mennellet.
– Limpe a sua maldita boca quando mencionar o nome
da minha família. Se a senhorita tivesse tido uma mãe, ela lhe
teria ensinado que não deveria acreditar em tudo que ouve,
principalmente de um homem quando quer conseguir o que eu
consegui. Por Deus, mulher, achou mesmo que eu iria me casar
com você? Deito-me todos os dias com mulheres do seu tipo.
Adriana Matheus
- 141 -
Ora, Shaara, sabe que nunca foi a santinha que se dizia ser.
Você foi ágil demais para uma primeira noite com um homem.
Tê-la em meus braços foi como ter uma simples meretriz.
– As lágrimas começaram a escorrer e saí correndo como
louca, para não deixá-lo perceber minha fraqueza. Eram oito da
manhã e o cocheiro estava me esperando, no mesmo lugar de
antes. Estava sem ar e tonta. Subi na carruagem, sem olhar para
trás. Queria esquecer que Edward existia. O cocheiro veio à
janela da carruagem e perguntou-me se estava tudo bem. Pedi-
lhe que me levasse a uma pensão. Não podia voltar para casa do
meu pai, não poderia lhe causar tamanho desgosto. Mas, com o
passar do tempo, comecei a me sentir mal e a dona da pensão,
contra a minha vontade, chamou o senhor. Voltei para casa a
contragosto, o senhor sabe. Deixei-o pensar que estava doente
até ontem, quando desmaiei novamente e o doutor contou-lhe a
verdade. Agora o senhor sabe toda a verdade, pai. Não quero
que tome nenhuma atitude drástica. Não quero que se vingue de
Edward. Ele também é uma vítima dos erros do seu passado.
– Sim. Eu deveria ter eliminado essa maldita família
quando tive a oportunidade. Nada do que você me disse muda o
ódio que sinto por esse homem e a mãe dele. Penso que ele se
fez de vítima para você. No fundo, ele já sabia que era a filha de
Elizabeth. O tempo inteiro ele fez tudo pensando em vingança.
Esse mau caráter seduziu-a de caso pensado. Não posso deixar
isso da forma como está. Tenho que tomar uma atitude em
relação a isso tudo.
– Pai, por favor, contei-lhe tudo exatamente como
aconteceu para que o senhor tivesse uma noção de que a nossa
família também teve culpa de tudo o que houve com Edward.
– Shaara, em que tivemos culpa? Só porque cometi o
erro de me envolver com aquela mulher em minha juventude,
agora tenho que pagar o preço pelo resto da minha vida? Olhe só
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 142 -
para você agora: está grávida daquele bastardo! Acha mesmo
que posso deixar tal situação no esquecimento? E onde fica a
minha postura de homem? Sinto muito, Shaara, não posso
atender ao seu pedido dessa vez. Prometo lavar sua honra com
sangue - e isso é indiscutível.
– Pai, pelo amor de Deus, não faça isso! Edward é um
homem poderoso. Vai trucidá-lo.
Shaara tentou modificar o seu destino e salvar a vida de
seu pai, contando-lhe tudo na tentativa de que, se ele soubesse a
verdade, perceberia que ela foi a culpada por tudo o que Edward
lhe fizera. Só que Shaara se esqueceu de uma coisa: não se pode
mudar o destino.
Fiquei ali, em pé, percebendo o desespero de Shaara.
Seu pai saiu daquele aposento, deixando-a sozinha e chorando
desesperada. Parecia que todo o peso do mundo havia caído
sobre ela. A dor tinha-a transformado em um verdadeiro flagelo
humano. Os erros de Shaara foram muitos e, naquele momento,
todo o universo estava de costas para ela. Compreendi que
Shaara foi a única responsável por toda a sua desgraça.
Os valores que nos são impostos por nossos pais
deveriam ser encarados como uma aula básica, e não como um
martírio constante. Mas só percebemos isso quando os
problemas surgem para nos pesar o pensamento.
Shaara desceu e tentou uma última conversa com o pai,
que estava apeando o cavalo.
– Pai, por favor, eu lhe imploro: não faça essa loucura! O
senhor não tem ideia do que vai lhe acontecer.
O pai de Shaara fitou-a nos olhos e disse:
– Soube desde o instante em que ouvi no vilarejo, pela
primeira vez, que ele era o procurador do rei, e que ficaria no
lugar de inquisidor até que Mercedes fosse capturada. Desse dia
então, soube que os dois jamais poderiam ficar juntos, porque
Adriana Matheus
- 143 -
nem todo mundo a entenderia, Shaara. Desde que você nasceu,
sabíamos que seria diferente, por causa da origem de sua mãe.
Sonhava uma vida de felicidades para você ao lado de um bom
homem, mas o capitão Edward apareceu nem sei de onde, e foi
impossível evitar que ficassem juntos. Sua mãe e eu
conversávamos sobre seu futuro. Ela sempre dizia que não cabia
a mim mudá-lo, pois já estava traçado no dia em que foi
concebida em seu ventre. Então, está feito. Parece que sua mãe
estava certa mais uma vez.
– Pai, por que não me contou antes?
– Você nunca me deu tempo. Depois, fugiu na calada da
noite, sem explicações. Só Deus sabe o quanto eu sofri,
procurando-a por todos os lugares.
– Pai, perdoe-me!? Fiquei furiosa por ter me batido.
Queria me vingar. Estava confusa, e Edward parecia me amar
tanto... Naquela hora, pareceu que era o certo a se fazer. Pensei
que nos casaríamos e que, quando voltássemos, o senhor nada
poderia fazer para nos separar. Fui uma tola e insensata!
– Não, filha, eu não deveria ter perdido a cabeça com
você. Eu estava furioso comigo mesmo, pois não pude salvar
sua mãe e estava perdendo-a para um homem estranho. Eu
deveria ter me controlado e conversando com você. Por isso,
tenho que consertar esse erro à minha maneira agora.
– Pai, pela última vez, escute o que estou lhe dizendo:
Edward está louco. Prometeu se vingar de mim e do Senhor.
– Não se preocupe, Shaara, esse canalha não lhe tocará
enquanto eu estiver vivo. Ele vai pagar por tudo que lhe fez. Eu
já deveria ter extinguido essa raça maldita há tempos.
Shaara percebeu que não importava o quanto ela
argumentasse: não adiantaria, seu pai estava decidido a vingar a
sua honra a duras penas. Ele montou em seu cavalo e saiu em
disparada, deixando Shaara desesperada e aos gritos.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 144 -
Ela voltou para dentro da casa e subiu para seu quarto.
Parecia não querer ver ninguém naquele momento de aflição.
Ela agora sabia que era a culpada pela morte de seu pai, e não
tinha mais como voltar atrás. Abriu o quarto e trancou-se. Em
seguida, aproximou-se da cama, deixou o corpo cair pesado.
Esticada na cama, com os braços abertos, sentiu algo e levantou-
se para ver o que era: o livro das bruxas. Shaara, então, começou
a folhear aquele livro e caiu em si. Percebeu o enorme erro que
havia cometido. Ela havia ido contra todos os princípios da
magia, quando tentou interferir no destino de outra pessoa e no
seu próprio. Com isso, ela gerou um grande conflito com o
universo. Isso lhe causaria uma catástrofe maior do que a que
ela já haveria de passar.
Naquela hora, o vento entrou pelo quarto de Shaara e ela
soube que algo de errado havia acontecido. Os olhos de Shaara
percorreram o quarto, em busca de alguma resposta invisível.
Foi à janela e respirou, de olhos fechados. O cheiro que o vento
trazia era de morte. Ela pôs as mãos nos olhos e chorou
profundamente. Era como se ela quisesse que sua alma pedisse
perdão ao universo.
A criada de Shaara que se chamava Gina estava na
varanda e olhava o horizonte, como se estivesse muito
preocupada. Mesmo quem não tivesse uma mediunidade
formada sabia que algo estava errado, pois o tempo estava
demonstrando suas alterações.
As horas tornaram-se um suplício, e os minutos pareciam
não passar. Shaara já estava na varanda havia horas, esperando
pelo retorno de seu pai, até que ao longe conseguimos avistar
um homem. Ele estava arriado sobre o cavalo e parecia muito
ferido. Gina, a governanta, deu um grito de pavor. Ambas
correram para socorrer o pobre homem. As indagações
começaram:
Adriana Matheus
- 145 -
– Quem é o senhor, onde está meu pai?
– Corra, Gina, vá chamar Tobias, o nosso capataz. Peça
para chamar o doutor Tostes.
– Sim, senhorita.
Quando o médico chegou, horas depois, examinou o
homem minuciosamente e disse:
– Sinto muito, minha filha. Este homem não tem muito
tempo mais de vida. Parece que algum instrumento agudo
perfurou-lhe o pulmão. É um verdadeiro milagre que ele tenha
conseguido chegar até aqui.
Shaara olhou fundo nos olhos do homem, segurou o
rosto dele com as mãos e falou:
– Preste muita atenção, caríssimo senhor: tem que me
dizer onde está o meu pai. O que o senhor veio fazer aqui?
O homem mal conseguia abrir os olhos, mas parecia ter a
necessidade de contar o paradeiro do pai de Shaara. Ele
levantou a cabeça lentamente e apenas pronunciou as seguintes
palavras:
– O senhor Gonzáles está preso para prestar
depoimentos. O capitão Edward enviou-lhe o seguinte recado:
que a senhora se entregue, ou o senhor Gonzáles irá sofrer as
consequências em seu lugar.
Shaara perdeu a cor e só não caiu porque foi amparada
pelo capataz. Era difícil de acreditar que Edward havia chegado
a tanto. Em seguida, o homem entregou nas mãos de Shaara
uma carta, onde estava escrito:
San Marino, 20 de agosto de 1814 - Espanha.
Shaara, minha filha, ao ler este bilhete estarei em
perigo, mas confio em você e sei que irá tomar as providências
para me tirar desta prisão em que me encontro. Vá até o meu
quarto e veja debaixo de minha cama. Lá irá encontrar uma
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 146 -
tábua solta, onde guardo uma pequena quantia em dinheiro.
Pegue este dinheiro e arrume homens de confiança. O resto
deixarei em suas mãos. Envie uma carta à sua tia Mercedes.
Para isso, deve ir até a casa do sapateiro e apenas dizer-lhe que
preciso de ajuda. Não se preocupe, filha. Ele saberá como
proceder.
Arrume os suprimentos e pague os criados. Se alguns
quiserem ir com você, será melhor. Mas os avise do que se
trata, para que por si possam tomar suas próprias decisões.
Não tenho a menor intenção de deixar nada para esses porcos
covardes. Que fiquem com minhas terras e todo o resto. Não me
importo, quero apenas que você fique bem.
Confio em você. Sei que não irá me decepcionar.
Juan Gonzáles.
Shaara olhou para o homem que estava em seus braços e
ele havia falecido. Sem saber o que fazer, minha ancestral
entregou o corpo para que o capataz tomasse as providências
cabíveis. Em seguida, Shaara levantou-se e foi ao quarto de seu
pai, onde achou o dinheiro guardado no exato lugar
mencionado. Procurou pelas joias da família e pelas suas.
Guardou esse pequeno tesouro em um pequeno baú. Shaara foi
até o armário de seu pai e vestiu umas roupas dele. Em seguida,
desceu as escadas e pediu que chamassem todos os criados,
onde lhes passou todo o fato ocorrido, como lhe havia pedido
seu pai.
Pediu ao capataz que juntasse alguns escravos e fosse
com ela até a cidade. Enviou um bilhete através de um dos
escravos para sua tia Mercedes. Feitas todas essas coisas,
seguiu com o capataz para a cidade.
Adriana Matheus
- 147 -
Shaara tentou invadir, durante a noite, a prisão onde se
encontrava seu pai, mas, não conseguindo, prometeu que
voltaria no dia seguinte com mais reforços.
Ao chegar à sua casa, a Lua já estava alta no céu. Shaara
estava exausta, mas se surpreendeu com a visita inesperada que
havia recebido. Com um sorriso que mais parecia de alívio,
disse:
– Tia Mercedes!
Shaara abraçou aquela mulher como se quisesse
proteção. Ambas conversaram muito durante toda a noite. Não
poderiam dormir, tinham muitas providências a serem tomadas.
O dia estava raiando quando o capataz veio avisar que tudo já
estava pronto para a viagem. Ele prosseguiu, dizendo:
– Senhorita, quero falar em nome de todos os criados e
escravos de sua fazenda.
– Bom, homem, diga! - disse Shaara, parecendo surpresa
e curiosa.
– Por tudo que sua família foi para nós, não queremos
ficar, queremos partir com a senhorita.
– Não sei se posso deixar que venha, meu querido Jorge.
O risco é muito grande e ainda temos que salvar meu pai da
prisão. Isso pode ser muito perigoso. O inquisidor poderá acusá-
los também de traição por complô junto a mim.
– Se ficarmos, senhorita, seremos todos trucidados. A
Inquisição não vai nos ouvir. Seremos culpados e correremos
risco de morte. Preferimos correr o risco de fugir e poder lutar
por nossas vidas.
– Sendo assim, agradeço-lhes. Sejam bem vindos! Agora
temos que nos preparar para irmos resgatar meu pai.
– De jeito nenhum! Não permitirei que parta em uma
missão perigosa dessas, no estado em que se encontra. - disse
Mercedes, preocupada com a gravidez de Shaara.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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– Senhorita, não gosto de me intrometer em assuntos de
família, mas sua tia está certa. Se algo der errado e uma bala
atingir a senhorita, pode colocar não só as nossas vidas em risco,
mas também a vida da pequena criança que está por vir. Creio
que seu pai não concordaria com isso. Acho que devemos todos
nos colocar em segurança e, depois sim, voltaremos para fazer o
resgate de seu pai. Pense um pouco, senhorita Shaara. Creio que
o inquisidor não fará nada com o seu pai. Afinal, ele deu um
prazo e espera que a senhorita se entregue de livre e espontânea
vontade. Isso nos dará tempo de agir.
Muito a contragosto, Shaara concordou em fugir com a
tia, os criados e escravos. Foi assim que Shaara nunca mais viu
ou teve notícias do pai. Mercedes e os demais não deixaram
Shaara sair da floresta. Com isso, Dom Gonzáles morreu sob
tortura, acreditando que a filha o havia traído. Shaara, naquela
viagem, tentou mudar este fato, mas sua atitude conseguiu piorar
a situação do pai.
Shaara, então, resolveu voltar daquela viagem. Ao
despertar, chorou como louca ao se ver em um calabouço sujo e
molhado.
A porta da sela abriu-se, mas Shaara estava tão triste
que parecia não ouvir nada à sua volta. Ela sequer levantou a
cabeça quando um homem, encapuzado e acompanhado por dois
soldados, aproximou-se dela. Por fim, ele, percebendo que
Shaara não o havia notado, disse:
– Gostando das acomodações? Responda-me, bruxa
maldita!
Depois de ter recebido um chute nas costelas, Shaara
levantou a cabeça para olhar o seu algoz e falou:
– O que foi que eu lhe fiz para me tratar deste jeito? Já
não me humilhou o bastante, capitão? Quer que eu confesse?
Adriana Matheus
- 149 -
Creio que isso não seja necessário, pois já sabe que sou uma
bruxa e não tenho a menor intenção de negar minhas origens.
O capitão puxou Shaara, fazendo com que ela ficasse de
pé abruptamente. Ela deu um gemido de dor, pois seu corpo
estava todo machucado. O capitão Edward puxou Shaara para
junto de si e tocou-a intimamente. Ela tentou recusar, mas o
capitão era muito mais forte. Ele parecia um animal enfurecido
e, depois de dispensar seus soldados, disse:
– Eu sei do que e como gosta de ser tocada, sua imunda.
O capitão estava com a mão no pescoço de Shaara,
impossibilitando-a de reagir. Depois de rasgar-lhe as vestes,
violentou-a da maneira mais repulsiva já imaginada. Depois,
jogou-a como um monte de trapos velhos para o lado, e chorou
como uma criança desorientada. Shaara ficou em um canto,
tremendo e apavorada, sem saber o que fazer. Por fim, o capitão
falou:
– Quando foi decretado o pedido da sua prisão, fiquei
desesperado em saber que poderia perdê-la para sempre. Então,
corri como um louco para tentar resgatá-la antes que os meus
soldados a levassem. Mas chegando à sua casa, percebi que já
havia fugido. Fiquei louco e enfurecido. Pensei que havia fugido
com outro homem. Procurei-a por todos os cantos desta terra,
mas foi em vão. Eu mesmo disse a seu pai que a filha o tinha
abandonado e o traído, na esperança que ele a entregasse. Então,
depois de muito torturá-lo, seu pai suicidou-se dentro da prisão.
Sim, Shaara, seu pai morreu acreditando que era uma traidora.
Eu queria que ele odiasse a filha por traição e que sentisse na
pele o que é ser abandonado por alguém que se ama. Seu pai
confirmou-me a sua história em relação à minha mãe. Eu estava
louco pelo ódio e pela vingança, Shaara.
Eu não conseguia sentir pena do capitão. Ele era um
covarde, mas percebi que Shaara estava comovida, porque sentia
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 150 -
arrependimento naquele homem. Ela estava muito fraca, mas
prosseguiu com aquela conversa, dizendo:
– Edward, nunca o traí, nunca. Você foi um covarde em
punir meu pai daquela forma. Não sabe o que fez! As pessoas
cometem erros na vida, e o meu maior erro foi ter fugido e não
ter lhe contado toda a verdade.
O capitão Edward parou e ficou olhando Shaara,
parecendo não entender o que ela estava tentando dizer. Era
como se uma espécie de transe tivesse tomado conta daquele
rosto enfurecido.
– De qual verdade está falando?
– Do nosso filho, Güillian. Ele está na cela junto a uma
das mulheres.
De carrasco e inquisidor, tornou-se vítima de si mesmo.
Depois, caiu em desespero, chorando sem cessar. Num tom de
desabafo, ele disse:
– O que foi que eu fiz com a gente? Perdoe-me, Shaara...
Agi como um insano e agora nada posso fazer para reverter essa
história.
– Eu já o perdoei, Edward, nada mais me deve. Só lhe
peço que salve nosso filho! Como lhe disse certa vez, a nossa
consciência é nosso próprio algoz. Somos os únicos
responsáveis por nossos atos. Ninguém nos obriga a fazer nada.
– Machuquei-a, Shaara, e isso não tem perdão.
– Machucou-se a si mesmo, Edward. Quando me
violentou agora há pouco, era com você que estava fazendo
aquilo. Todo o mal que fazemos contra nosso próximo fazemos
contra nós mesmos. Prova disso é só olhar para você e ver como
está se sentido péssimo.
– Perdoe-me, suplico!
O capitão pôs-se de joelhos na frente de Shaara. Mas ela
lhe respondeu, friamente:
Adriana Matheus
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– O perdão pertence somente a Deus. Minha palavra só
serviria de consolo, nada mais. Terá que dormir todos os dias
com isso em sua consciência. Mas sabe o que foi pior nisso
tudo, Edward? É que você fez tudo sabendo que estava errado.
Quem sabe se algum dia, quando meu aparelho reencarnar em
algum lugar próximo a você, terá a oportunidade de me rever
para que, juntos, possamos resgatar esse sentimento de maneira
mais verdadeira e humana. Até lá, espero de você apenas uma
coisa: salve o nosso filho.
– Acredita mesmo que haja outras vidas, não é?
– Sim, é claro que sim. Vivi esse tempo todo por causa
da minha esperança de que um dia iremos ter a chance de
resgatar essa história. Não podemos, Edward, acreditar que
exista apenas uma vida e nenhuma chance de corrigirmos nossos
erros. Se eu não acreditasse em reencarnação, eu o odiaria por
tudo que já me fez sofrer nesta vida.
– Se isso for verdade, então prometo que lhe encontrarei
onde quer que seja. Nunca mais amarei outra mulher. Será
sempre minha e serei seu. Mesmo que demore séculos, nunca a
deixarei até que, um dia, seja permitido que estejamos juntos.
– Meu Deus, Edward, não faça isso. Não nos castigue de
tal maneira. Temos que seguir em frente. Não nos amaldiçoe, ou
nenhum de nós poderá ser feliz. Liberte nosso espírito agora
mesmo dessa promessa; imploro-lhe, Edward. O universo e os
deuses são muito rígidos quanto a tais promessas. Não pode
prender nossos espíritos nessa jura inconsequente. Como
sempre, está precipitando as coisas, seguindo o seu emocional.
– Não quer que nos encontremos para sermos felizes?
Achei que ainda me amasse!
– Sim, quero, mas não com uma jura. Está impedindo a
si mesmo de ser feliz. Não poderemos sempre nos encontrar,
não é assim que funciona. Você pode ficar ate séculos
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 152 -
procurando-me e tornar-se um espírito obcecado por tal ideia.
Não quero que fique a vagar sem luz.
– Não me importo. Se assim for, farei isso até que eu
possa reparar o meu erro com você e poder viver o nosso amor
em paz.
– Desfaça agora essa promessa e essa jura, Edward, ou
nunca poderemos realmente ser felizes. Não vê o absurdo que
está fazendo, prendendo meu espírito ao seu por toda a
eternidade? Nunca seremos realmente livres. Pode acontecer de
ficar no vale dos esquecidos, sem que ninguém se lembre de
você. Ou poderá vagar sobre a Terra, perturbando por centenas
de anos, atrás do meu espírito e impedindo-me de ser livre em
escolhas. Isso me trará frustrações. Serei uma infeliz por não
saber o motivo de não ser amada. Temos que seguir o nosso
destino, Edward. O nosso tempo nesta vida já passou.
– Nunca farei isso. Só de pensar que poderei não vê-la de
novo enlouqueço. Não dividirei você com mais ninguém. Fui
um louco em fazer tudo que fiz. Pensei que, se a acusasse,
poderia achá-la e tê-la de novo só para mim, mas as coisas
saíram do meu controle. Não vou arriscar perdê-la para sempre.
Se essa for a única maneira, juro por toda a eternidade procurá-
la e nunca a deixarei até que estejamos juntos novamente.
– Não sabe as consequências de suas palavras. Elas são
piores do que qualquer um dos erros cometidos pela sua
ignorância ou pela falta de esclarecimento no assunto em
questão.
Nada do que Shaara fizesse ou falasse faria o capitão
Edward voltar atrás. Qualquer argumento foi em vão. Por meses,
capitão Edward visitou Shaara no cativeiro. Ele também tentou
revogar a sentença, mas seus apelos não foram ouvidos e nem
suficientes para apaziguar o que ele próprio fez. Ele havia ido
longe demais e os mexericos cresceram como bola de neve.
Adriana Matheus
- 153 -
Nem mesmo uma contraordem do Papa mudaria o destino de
Shaara naquele momento.
Engraçado como a maioria das pessoas só conseguem
enxergar seus erros quando eles não têm mais solução... Nos
últimos meses, o capitão Edward cuidou de Shaara, tentando
aliviar a sua culpa por sua amada estar passando por todos
aqueles sofrimentos. Durante os interrogatórios, ele também não
a deixava sozinha, pois sabia que Shaara seria massacrada pelo
carrasco e pelo interrogador. Houve horas em que o capitão já
não falava coisa com coisa, ele parecia estar certo de que Shaara
não seria condenada, mas isso era só mais uma fantasia em sua
mente. O capitão estava realmente ficando louco.
Foram feitas inúmeras perguntas a Shaara e às outras
prisioneiras. Algumas negaram tudo, para morrerem e serem
perdoadas de seus pecados. Pude observar nos rostos daquelas
mulheres uma tristeza maior do que a dor de serem torturadas.
Elas estavam perdendo a essência - isso, para uma bruxa, é a
própria morte. Havia horas em que as pobres mulheres
colocavam-se em uma espécie de transe e pareciam estar em
outra dimensão. Era como se a vida já tivesse esvaído de seus
corpos e só aguardavam serem enterradas, pois já estavam
praticamente mortas. Perder a identidade é perder a verdadeira
essência da alma para uma bruxa, e ter que mentir sobre a sua
origem é como entregar ao fogo toda a história de suas
ancestrais.
Para algumas, o perdão foi concedido depois de jurarem
nunca mais serem praticantes da magia. Mas elas não tinham a
liberdade de saírem à rua sem uma escolta. Houve muitos
suicídios por causa desse tipo de sentença, pois uma bruxa
jamais pode viver sem a sua liberdade.
Uma das mulheres do grupo, mesmo depois de ter
perdido seu marido e filhos para a Inquisição, negou o próprio
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 154 -
nome de batismo. Casou-se com um homem de posses com o
triplo de sua idade, apenas para não morrer sob tortura. Mas o
preço que ela pagou foi muito mais alto do que própria morte,
pois o homem a ofendia e a esbofeteava diariamente, obrigando-
a a comer as próprias fezes para provar que ela não era mais
uma de nós.
As torturas e as humilhações para quem não morria pela
Inquisição eram as mais abomináveis e cruéis possíveis. A
morte era só um consolo. Era como se o castigo pudesse
purificar a alma daquelas mulheres. Algumas se tornaram
concubinas e eram mantidas sob cárcere privado. Outras foram
obrigadas a trabalhar em tabernas, prostituindo-se com os piores
elementos já vistos. As mais jovens foram vendidas para as
beatas e faziam os mesmos serviços que os escravos. Ainda
eram obrigadas a manter relações sexuais com seus senhores às
escondidas de suas esposas. Quando descobertas, eram
torturadas até a morte e acusadas de sedução e luxúria através da
magia. Algumas perderam parte dos membros, como dedos dos
pés e das mãos, como a prova de que a parte endemoniada fora
arrancada para sempre.
Shaara estava com os dias contados. Por isso, entregou a
sua alma a Deus. Passava horas a orar e todo dia pedia auxílio
aos espíritos de luz, para que a guiassem para perto do
esclarecimento quando o seu espírito tivesse que deixar o
aparelho transitório.
Shaara nunca negou suas origens e, vendo aquela tão
devotada fé, o capitão Edward passou a crer no espiritismo, mas
não abriu mão da jura de me encontrar e não me deixaria ficar
com mais ninguém em outra encarnação.
A preocupação de Shaara com o capitão Edward era
porque ela sabia que ele não a deixaria em paz e sofreria com a
sua morte mais do que o esperado. O capitão não conseguia
Adriana Matheus
- 155 -
perceber que só Deus era o dono do destino e que ele, fazendo
tal jura, poderia ficar preso entre dois mundos, caso não a
desfizesse antes que Shaara fosse morta.
Lembrei-me das palavras de Cristo quando disse Pai,
perdoa-lhes porque não sabem o fazem...
O inquisidor, a pedido do bispo, foi deposto de seu cargo
de origem, pois foi considerado incapaz de julgar e dar a
sentença de Shaara. O novo inquisidor, nomeado para ocupar o
lugar do capitão Edward, chamava-se Cerenzo de La Pena. Um
homem gordo e muito alto, cuja presença lembrava a própria
morte e seu olhar fulminava-nos vivos. O senhor Randolf de La
Concita, nomeado como carrasco, tinha mais crimes do que o
próprio diabo tinha almas.
Um vigário também foi mandado para a prisão por
suspeita de manter contato com bruxas. O pobre homem era um
senhor de quase oitenta anos. No mínimo, já não tinha mais
nenhum serviço a prestar à ordem do vaticano. Durante seu
interrogatório, ele disse que não precisava do perdão da Santa
Madre Igreja, pois não havia cometido crime algum.
Naquele mesmo ano, pouco antes de Shaara morrer,
cento e cinquenta pessoas, entre homens, mulheres e crianças,
foram condenadas à morte por tortura. Durante o julgamento de
Shaara, ela também disse que não tinha nada por que pedir
perdão, e que não havia cometido nenhum crime para que fosse
condenada à fogueira - o que causou alvoroço dentro do tribunal
do júri. Indignado, o juiz disse:
– Como pode uma bruxa achar que não tem que se
redimir dos seus crimes?
– Padre, curei os doentes com lepra e outras doenças que
os seus doutores não se atreviam a examinar, porque achavam
que as suas mãos eram limpas demais para tocá-los. Existiam
pessoas entre nós que sua sociedade excluiu, simplesmente por
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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serem pobres mal cheirosos e maltrapilhos. Pessoas como os
judeus, que vieram de outro país, procurando fugir de gente
como o senhor, que se diz homem de Deus, mas cuja piedade
afastou do próprio coração.
– Cale-se, sua insolente! Com que mérito curou os tais
doentes? Usou, por certo, os poderes que o demônio lhe
ofereceu para cegar esses pobres coitados. Ande, bruxa infeliz!
Confesse logo para que eu vá atender a quem realmente merece.
– Não precisa mais perder o seu tão valoroso tempo
comigo, excelência. Tem razão de chamá-los de pobres
coitados, pois são mesmo. Afinal, foram banidos do meio da sua
sociedade. E quanto a confessar, só confesso a Deus. Mas se
quer que eu diga quem sou, digo sem o menor problema: sou
uma bruxa e morrerei afirmando isso, mas nunca serei hipócrita
de me fantasiar com uma batina para me posar de santa diante
dos meus fiéis.
– Blasfêmia! Seu Deus é Satã. Levem essa maldita filha
do diabo daqui! Que queime em uma fogueira em praça pública,
para que todos saibam que ela mesma aceitou o demônio como
o seu único Deus.
No dia vinte e nove de abril do ano de 1725, às seis
horas da tarde, Shaara foi declarada bruxa pela Inquisição e a
sua sentença foi a fogueira. Sem poder questionar o menor
argumento para a defesa, Shaara baixou a cabeça e manteve-se
em silêncio.
No meio da grande praça, as pessoas gritavam como
loucas. Algumas atiravam objetos pontiagudos, como pedras.
Outras pronunciavam palavras de baixo calão.
Shaara olhou tudo ao redor e percebeu que era muito
grande o número de pessoas que assistiria à sua morte. A
maioria delas era praticamente a mesma que a conhecia desde
criança.
Adriana Matheus
- 157 -
Um homem que estava entre o júri sussurrou ao ouvido
de Shaara, pedindo que ela gritasse por clemência, para que pelo
menos a sua alma se salvasse. Ela, porém, nada disse ou
murmurou.
Shaara, em seu momento de dor, sentiu piedade dos que
estavam à sua volta e, em pensamento, pediu perdão por eles.
O inquisidor leu toda a sentença e acusou Shaara de
traição, conspiração, bruxaria e de práticas demoníacas. Um
homem encapuzado levou-a pelos cabelos para um tronco, no
meio da fogueira.
Os direitos de Shaara foram citados em voz alta, como se
ela tivesse direito a alguma coisa de verdade... Os direitos
citados foram:
–Tem o direito de dizer uma última palavra antes de ser
executada. Diga rápido, antes que eu resolva antecipar seu
destino em alguns minutos.
– Quero falar com o capitão Edward. Chamem-no para
mim, por favor!
O inquisidor e o carrasco entreolharam-se, mas
concordaram em chamar o ex-capitão e ex-inquisidor. Enquanto
isso, Shaara pronunciou:
– Se sou culpada por tantos crimes, por que não
conseguiram achar em mim culpa suficiente para me
condenarem? Precisaram da ajuda de um inquisidor para dar
minha sentença? Por que precisaram tirar proveito dos
mexericos de senhoras mal amadas para me acusarem de algo
leviano e fictício? Por que Sir Edward foi afastado do cargo de
inquisidor? Será que foi por que ele próprio percebeu que estava
cometendo um grave erro?
– Ele estava enfeitiçado, sua bruxa suja - gritou uma voz
no meio da multidão.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 158 -
– É, sou mesmo uma bruxa, e estou muito suja porque
me negaram todos os direitos de um ser humano. Até o direito
de tomar um banho para morrer com dignidade, sabe, Sir
Williams? - disse Shaara para aquela voz.
Shaara prosseguiu seu discurso:
– Quando o senhor contraiu certa doença, por viver
andando em bordéis, foram as minhas ervas que o salvaram da
morte. Não lhe cobrei uma única prata sequer. Assim como o
senhor Williams, muitos de vocês foram à floresta em busca de
sortilégios e curas. Muitas vezes me neguei a fazer seus
sortilégios, porque jamais uso minha sabedoria para separar
pessoas ou matar alguém. Só quis viver em paz. Todos aqui
presentes, principalmente as mulheres, não são vistas com bons
olhos, pois não podem expor livremente suas emoções. Todas as
mulheres aqui vivem de cabeça baixa e são humilhadas pelos
homens desta maldita sociedade. Acolhi, sim, malfeitores,
mulheres espancadas e até prostitutas. Por que eu não faria isso?
Curei as feridas de todos os doentes que me procuraram, até
mesmo dos leprosos. Fiz um trabalho de humanidade e caridade
e amei o próximo, como Jesus. Lembram-se? Amai-vos uns aos
outros, como eu vos amei. E vocês, o que estão fazendo consigo
mesmos? Assassinam pessoas inocentes todos os dias só por
elas não serem como vocês querem. Seus amigos, vizinhos e
parentes estão sendo exterminados de maneira brutal e
desumana. Haverá um dia em que não terá mais ninguém para
que apresentem em praça pública esse espetáculo de horror.
– Blasfêmia! - gritaram do meio da multidão, de novo.
– É, pode ser uma blasfêmia mesmo. Afinal, é mais fácil
achar que seja uma blasfêmia do que aceitarem que estão
errados. Mas e a senhora, Dona Esmeralda, que deixou seu
único neto ser amarrado a quatro cavalos e ser partido ao meio
Adriana Matheus
- 159 -
só porque ele gostava de poesias? Ser uma pessoa gentil o torna
afeminado?
– Ele era afeminado e estava sob o efeito do poder
maligno do demônio. Fiz isso para libertar a alma dele. –
respondeu Dona Esmeralda.
– Meu Deus, ele só tinha quatorze anos! Era uma criança
que gostava de ler romances e contos de fadas. Quem vai fazer
agora o serviço da sua casa, já que está em idade avançada? Sei
que não é uma mulher de posses e não pode ter o luxo de
comprar um escravo para ajudá-la. Será que também os demais
aqui não lhe queimarão viva? Afinal, em que uma senhora com
idade avançada pode ajudar a sociedade?
A velha senhora baixou a cabeça com tristeza e retirou-
se do meio da praça. Shaara prosseguiu:
– Se um filho nasce defeituoso, é mais fácil afogá-lo do
que amá-lo? Quem são os demônios aqui? Onde está o mal? Eu
digo: está nos corações amargos e revoltados de pessoas
covardes, que preferem se esconder por trás de histórias e
mexericos para encobrir o próprio erro. Não seria hora de sanar
toda essa loucura e começar a amar a seu próximo, sem tentar
achar seus defeitos ou qualidades em demasia? Quando amamos
alguém, devemos amá-lo como é. Se tentarmos mudar as
pessoas, quando discutirmos com elas, estaremos discutindo
com o reflexo que criamos de nós mesmos. Somos responsáveis
por tudo aquilo que praticamos ou criamos. Brigamos ou
condenamos o próximo porque é mais fácil do que olhar para
dentro de nós mesmos e achar nossas próprias falhas.
Deveríamos olhar o mundo de uma maneira mais inocente,
como as crianças. Mas estamos transformando, cedo demais,
meninas em mulheres, querendo que elas se casem com homens
mais velhos e cheios de posses, para garantirem o nosso próprio
futuro e nossa velhice. Queremos que nossos filhos se tornem
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 160 -
doutores ou soldados, e estamos esquecendo que estamos
separando nossa família de maneira discreta e sutil. Entre vocês,
morrerão sozinhos por causa desse egoísmo e ganância. Lógico,
todos nós temos que seguir o nosso caminho um dia. Mas
devemos também ter o direito à escolha. Seus Natais solitários
poderiam ser repletos de alegria, se houver mais concordância e
união. Suas vidas poderiam ser muito melhores se
cumprimentassem seus vizinhos sem os desdenhar. Se ao invés
de tomarmos conta da vida alheia, fizéssemos um bolo,
estaríamos muito bem de vida. Todos nós viemos nesta vida
para aprender e temos por obrigação deixar algumas coisas para
que alguém também aprenda conosco. As pessoas não são lixo,
ou coisas velhas que jogamos fora quando não nos servem mais.
Quando me queimarem, vai doer e sangrarei como sangraria
qualquer um de vocês. Talvez eu só tenha jogado pérolas aos
porcos, e nem tenha feito por todos o que eu deveria ter feito. Só
sei de uma coisa: com certeza, nunca mudei minha essência.
Nunca deixei de acreditar nos meus sonhos, e sempre lutei pela
igualdade de liberdade de todos. Até dos que me condenam.
– Está tentando nos ludibriar! - gritaram novamente.
– Não estou. Muito pelo contrário, prefiro ser queimada
a ter que viver no meio de uma sociedade hipócrita e ignorante
como essa. Só não esqueçam que, assim como aconteceu
comigo, pode acontecer com qualquer um que se julgue perfeito.
Se o marido de uma de vocês, mulheres, resolver trocá-la, é
mais fácil que ele invente fuxicos e digam que são bruxas.
Assim, enquanto forem queimadas, eles se deleitarão com as
amantes.
Muitas pessoas saíram, principalmente mulheres.
– Calasse, queimem-na! - gritou o restante da multidão.
O inquisidor leu rapidamente a sentença, já lida antes. O
carrasco jogou-lhe um líquido, parecia querosene, e ateou fogo.
Adriana Matheus
- 161 -
– Queime rápido, bruxa! Meus cães estão esperando por
seus ossos para o desjejum - gritou o dono da taberna.
– A fumaça sufocava Shaara. Seus pés começaram a ser
atingidos pelas chamas. A dor era inigualável. E, do meio das
chamas, Shaara viu quando o capitão Edward levantou o
pequeno Güllian no meio da multidão. Dos olhos de Shaara
escorreram o mar da sua alma. E ela simplesmente sorriu, por
saber que seu filho estaria salvo. Com o filho nos braços, o
capitão Edward gritava, desesperado:
– Vou me encontrar com você, Shaara.
Os gritos do capitão foram levados com Shaara, junto
aos últimos pensamentos. Pude sentir cada pedaço do corpo da
minha ancestral sendo queimado. Aliás, foi muito difícil manter-
me inerte durante toda aquela viagem. A dor que Shaara sentiu
era tanta que vi quando o seu espírito implorou para ser
desligado do aparelho dela. Então, parei de sentir frio e o calor
que queimava Shaara ao mesmo, e pude perceber que ela havia
deixado o plano terrestre. Os gritos de Shaara ecoaram com o
vento. Toda a multidão foi, aos poucos, desfazendo-se. A vida
voltaria ao normal, mas aqueles habitantes teriam muito o que
comentar durante muito tempo.
O capitão Edward voltou para a Inglaterra e lá viveu,
levando uma vida modesta com o filho Güllian. Como prometeu
a Shaara, nunca parou de tentar encontrá-la.
Chorei como uma criança e fui acalentada por Dona
Helena, que estava ao meu lado, segurando a minha mão. Todos
os que estavam na floresta vieram me saldar. Alguns estavam
apagando a fogueira, mas acenavam para mim, com satisfação.
Então disse, orgulhosa e em lágrimas:
– Shaara Méquiz era o nome de minha ancestral. Ela foi
uma bruxa, considerada assim por ter recebido um dom divino.
Foi diferente de todas as outras mulheres e não deixou nenhum
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 162 -
homem ou ninguém roubar sua essência. Foi a mulher mais
corajosa e capaz de qualquer coisa que eu já havia conhecido.
Como ser humano, abriu mão de todo o poder e fortuna para
cuidar dos pobres e doentes de seu tempo. Filha da condessa
Elizabete Dornellas Méquiz e do conde Juan Gonzáles, mortos
por causa da ganância, da inveja e do ódio. Ela teve um grande
amor, que foi o capitão e inquisidor senhor Edward III, morto
em batalha contra a Inquisição, onde defendeu o direito das
bruxas de serem livres. O capitão Edward III arrependeu-se dos
erros que cometeu contra o seu único amor, e passou a lutar ao
lado dos rebeldes, em prol da liberdade dos escravos e de outros
que considerasse injustiçados. Shaara era uma pessoa
incrivelmente forte e dedicada a causas consideradas
impossíveis. Ela foi o que eu quero ser agora. Edward III foi o
ancestral do monge dos meus sonhos, pois durante a viagem o
reconheci. Agora sei porque ele me persegue nos meus sonhos.
Foi por causa da jura que ele fez no passado de me encontrar
onde quer que eu esteja. De alguma maneira, sei que iremos nos
encontrar nesta vida. De alguma maneira, tenho certeza de que
iremos nos encontrar muito em breve.
Dona Ana estava atenta a tudo que eu contava e, por fim,
perguntou:
– Por que acha que esse homem a persegue até em seus
sonhos?
– Porque ele fez a única coisa que não nos é permitido
pela lei da natureza. Jurou-me amor eterno, prometendo-me
procurar por toda a eternidade. Disse que jamais me deixaria em
paz, enquanto não pudéssemos viver verdadeiramente nosso
amor.
Falei aquelas palavras olhando para Bernadete, pois
passei a entender perfeitamente o que ela havia me dito antes. E
dei continuidade àquele assunto, dizendo:
Adriana Matheus
- 163 -
– Estou selada por toda a minha vida. Tenho que o
encontrar e fazê-lo entender que isso nunca poderia ter
acontecido. Só espero que ele seja uma pessoa com mais
esclarecimentos, pois o capitão Edward sofreu muito com suas
lembranças tortuosas. Ele foi o único culpado por seu amor ter
sido queimada na fogueira. Após sua morte, jamais aceitou a
orientação dos espíritos de sabedoria. Por fim, desejou
reencarnar-se de novo. Mas isso foi só um protesto, pois
manteve a sua jura no coração. Sei que ele anda por aí,
procurando-me de alguma maneira. Por isso, nunca consegui
gostar de ninguém. Por isso eu achava que o amor verdadeiro
não existia. Minha vida nunca iria ter sentido. Sou grata a todas
por compartilharem comigo todos os seus segredos, por me
encaminharem ao mundo onde descobri minha verdadeira
identidade. Realmente voltei muito mais madura e confiante em
mim mesma. Sei agora que ninguém pode mais me humilhar, a
não ser que eu permita. Não vou deixar mais ninguém ser mais
do que eu, pois sou parte do universo.
Todos os que estavam à minha volta, inclusive minha
amada Maria, deram um sorriso de alegria. Dona Ana, depois
de ouvir atenta e satisfeita tudo o que eu contava, prosseguiu:
– Meus parabéns, minha filha! Aprendeu muito em sua
viagem. Agora tem que se preocupar com seus compromissos
espirituais e deve preparar para conhecer o seu amor. Saiba que
não será fácil, pois ele é um monge, e o amor de uma mulher,
ainda mais com dons como o seu, nunca lhe será permitido.
– Sim, eu sei. Também não será nesta vida que
viveremos o nosso amor com liberdade. Mas o mais importante
é fazê-lo ver que precisa retirar a jura, para que possamos seguir
nossos caminhos em paz.
Fizemos uma oração para nos preparamos para a minha
volta à casa do moinho. Sentia-me renovada espiritualmente. Eu
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 164 -
havia recebido um compromisso do universo. Eu tinha que
vigiar os meus pensamentos para que não se tornassem palavras,
pois palavras mal direcionadas machucam as pessoas.
Muitas vezes, devemos conter nossos impulsos antes de
sermos sinceros, porque as pessoas nem sempre estão
preparadas para a verdade. A sinceridade está dentro de nossos
corações. Na verdade, a sinceridade de alguns é pura maldade e
só serve para machucar o próximo. O silêncio é sempre um sinal
de sabedoria e respeito. Isso foi o que aprendi com a minha
viagem.
Saímos em direção à casa do moinho. A noite estava
silenciosa e, no caminho, fui aprendendo a respeitar o silêncio
da floresta: era um sinal de individualidade e oração. Engraçado
saber que tudo ao meu redor tinha o seu momento de falar... A
floresta ensinou-me a lei do respeito e do silêncio; os animais, a
obediência e a liberdade. As flores ensinaram-me que o amor
pode estar em todos os lugares, na forma mais simples e bela
possível. As pessoas ensinar-me-iam todos os dias, com sua
inconstância e individualidade, que vale a pena lutar por uma
maneira de viver melhor. Aprendi comigo mesma que, todos os
dias, tínhamos coisas para aprender. Ao chegarmos à casa do
moinho, tomei um bom banho para tirar o cheiro de fumaça e a
fuligem que estavam impregnados em mim. Maria entrou e
ajudou-me a vestir. Como estávamos sozinhas, ela perguntou:
– E então, como está a mais nova discípula da
confraternização da Lua?
– Estou muito bem, não poderia estar melhor. Estou
apenas um pouco ansiosa para começar o meu trabalho como
aprendiz de bruxa.
Maria acompanhou-me até a cama e, depois de me
cobrir, falou:
Adriana Matheus
- 165 -
–Tenha calma, minha amiga. Sua viagem foi perfeita e
bastante reveladora. Daqui para frente, tudo será apenas
consequência de suas novas experiências e de seus atos. Por
isso, lembre-se sempre de refletir antes de tomar qualquer
decisão. Pense bem antes de falar alguma coisa sem ponderação.
Pois palavras também se transformam em atos, e alguns atos
catastróficos são o resultado de atitudes impensadas, levianas,
incoerentes e revoltosas.
Maria baixou a cabeça, em sinal de agradecimento. Com
um sinal ainda misterioso para mim, abençoou-me. No mesmo
instante, senti que o sono havia chegado de imediato. Foi quase
como uma hipnose. Simplesmente não pude ver mais nada.
Naquela noite, dormi como nunca havia dormido em toda a
minha vida.
“Felizes aqueles que tiveram compreensão de
reconhecer os seus próprios erros. Essa é uma virtude que faz o
ser humano grandioso. A caridade é também uma forma de bem
comum, mas tudo isso deve ser feito sem interrogações ou
especulações. Pois o maior dom divino está em ouvir e servir
com humildade, sem querer saber a quem fazemos o bem.”
.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 166 -
III - O LIVRO DAS SOMBRAS
spreguicei na cama, esticando bem os braços. O Sol
entrava pela janela harmoniosamente. Percebi
movimentos no quarto e levantei a cabeça para ver quem
era. Maria estava arrumando as malas para o nosso retorno para
casa. Decidi ficar mais um pouco na cama, pois precisava pôr as
minhas ideias em andamento.
Durante aquela noite, tive sonhos que mudariam minha
vida. Sonhei com todas aquelas bruxas que estiveram presentes
na minha viagem, inclusive a minha ancestral. Elas vieram em
meus sonhos para me mostrar os símbolos e a história da magia.
Eu precisava contar para Maria, mas teria que ser prudente, pois
as bruxas do meu sonho não me deram permissão para que eu
contasse alguns segredos que elas me revelaram.
O sonho que tive deu-me a sensação de ser real.
Participei de uma espécie de cerimônia religiosa, e as bruxas
fizeram-me jurar que guardaria segredo de algumas coisas que
me foram reveladas. Sonho ou realidade, eu não poderia trair
minhas irmãs de alma, pois me tornei parte de um grande clã.
Nunca me arrependi de ter escolhido o caminho da Lua como
uma opção de vida. Ter-me tornado uma bruxa foi uma grande
E
Adriana Matheus
- 167 -
honra. Eu estava pronta para assumir qualquer responsabilidade
que surgisse.
Mas, por outro lado, tinha a certeza de que, se eu traísse
as leis da ordem, pagaria um preço muito alto. A minha maior
preocupação naquele momento foi de, sem querer, trair a mim
mesma. Porque conseguimos esconder segredos das outras
pessoas, por uma questão de ética, moral e fidelidade – mas,
sem querer, por causa da nossa vaidade, traímos a nós mesmos.
Isso acontece porque, atrás da nossa felicidade, sempre vem o
exibicionismo de querer parecer melhor do que os outros. O
meu sangue jovem corria em minhas veias como as larvas de um
vulcão pronto para explodir. Minhas emoções estavam à solta -
isso poderia ser perigoso, caso a vaidade tomasse conta de mim.
Sabia que, se contasse a Maria, poderia com certeza
contar com a sua discrição. Mas eu havia feito um juramento de
silêncio e não poderia nunca quebrá-lo. Isso sem contar que
Maria poderia falar sobre o meu segredo com o meu pai, caso
ela fosse interrogada. Pois, assim como eu, ela fez o juramento
de nunca mentir. Portanto, de jeito algum eu poderia colocar a
vida da minha melhor amiga em risco. O meu maior objetivo,
então, passou a ser como proteger Maria sem que ela soubesse e
ficasse magoada comigo, por estar lhe escondendo um segredo.
Meu tempo estava curto, pois meu destino estava pronto
a se consumar. Senti-me como o mestre Jesus, que soube
exatamente quando iria ser entregue nas mãos de seus algozes.
A traição é uma ferida que chega antes que o coração pare de
funcionar, e faz doer na alma por toda a eternidade. Não sabia
quem iria me trair, mas sabia que seria alguém muito próximo a
mim. Porque sempre quem nos trai são as pessoas mais
próximas de nós, as que mais amamos e em quem confiamos.
Pessoas como Judas Escariotes, que traiu Jesus com um beijo.
Geralmente, os traidores são pessoas que só conseguem ver um
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 168 -
lado da moeda, e cuja ambição é o único valor que conseguem
enxergar. O traidor é individualista: maquina sozinho e não pede
ajuda para enfiar o athame do ódio no coração do seu alvo. E é
egoísta porque não vê que o seu próximo também é um
indivíduo e que merece respeito por ter suas próprias ideias.
De repente, senti-me frágil e indefesa por ter me
descoberto tão perto da morte. Esse seria o meu preço a pagar:
teria que viver no silêncio e na solidão para o resto da minha
vida. Embora sempre tivesse sido uma pessoa solitária, agora
era diferente. Pois eu guardava segredos que, se pronunciados
em voz alta, colocariam em risco a vida de todos que eu amava e
também de todos que me cercavam.
Tinha muitas ideias a serem colocadas em prática, mas
tinha que ser cautelosa, porque, além de o tempo estar curto,
poderia acabar sendo mal interpretada pelas pessoas próximas a
mim. Quando nossas ideias e opiniões tornam-se diferentes das
ideias e opiniões dos demais, podemos ser considerados loucos.
O que não quer dizer que temos que seguir a regra da mesmice -
afinal, a única opinião importante é a da nossa consciência.
Sabia que teria que trabalhar também o meu ego. Não
poderia deixar a vaidade tomar conta de mim. Mas,
principalmente, teria que dominar o medo do que as pessoas
poderiam dizer a meu respeito, pois sabia que elas diriam que eu
estava possuída por um espírito imundo e maligno. Na verdade,
as pessoas fazem esse tipo de coisa para tentar encobrir os seus
próprios delitos, e sempre encontram alguém para lhes servir de
Cristo. Pois é muito mais fácil seguir um padrão ético e moral
para não contradizer os ditadores de regras, do que aprender a
pensar por si próprio.
Pensando em todas aquelas consequências, estava decida
definitivamente a proteger Maria. Sabia que minha melhor
amiga também não seria poupada pela Inquisição e por todos
Adriana Matheus
- 169 -
aqueles que se julgavam sem mácula. Se os adeptos da Santa
Madre Igreja colocassem as mãos em Maria, por certo a fariam
confessar coisas que ela nunca havia feito, deixando para ela
apenas a morte como opção de salvação.
Fiquei olhando-a, em silêncio, enquanto ela arrumava as
malas para o nosso retorno. Ela era mesmo muito especial, pois
sempre se dedicou à minha família e cuidou de mim, sem nunca
sequer pensar em nos abandonar. Maria abdicou de toda a sua
juventude e de seus sonhos. Sabia que ela era merecedora de
toda a felicidade do mundo e, por isso, senti-me na obrigação de
ajudá-la de alguma maneira. Nunca poderia pensar em deixar
Maria ser prejudicada pela decisão que eu teria de tomar em um
futuro próximo.
Ela terminou de arrumar as malas e saiu do quarto.
Parecia não ter percebido que eu estava acordada - o que me deu
tempo para escrever, no meu diário, todas as coisas que eu havia
aprendido com as bruxas durante o sonho. Assim que Maria
fechou a porta do quarto de Bernadete, peguei o diário e fui
folheando aquelas páginas aparentemente vazias, para que a
inspiração me fluísse à mente. Ao abri-lo, fiquei maravilhada
com a luz que saiu de dentro dele e que quase me deixou cega.
Por certo Bernadete não sabia, mas seu avô estava com
razão ao dizer que o diário era mágico. A cada página que eu ia
folheando, ele me dava, por si só, as figuras e os desenhos que
ajudaram com que eu me lembrasse do meu sonho quase
acordada da noite anterior. Era como se ele lesse as imagens que
estavam na minha mente. O diário era pequeno, mas suas
páginas pareciam nunca acabar. Por trás daquela aparência
singela e humilde, ele respondia todas as minhas perguntas de
uma maneira sábia e simples.
Na verdade, todos aqueles segredos que me foram
revelados em sonho já estavam guardados dentro do meu
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 170 -
inconsciente. Apenas se afloraram quando regressei da viagem.
Aprendi, com isso, que todos temos dentro do nosso
inconsciente as memórias das nossas vidas passadas. Todos
temos, por obrigação, que tentar lembrar ao menos alguns
desses fatos que nos ocorreram, pois eles nos ajudam muito no
nosso presente.
No meu sonho, as bruxas também me mostraram o maior
de todos os livros já escritos pelas mãos de um místico: o livro
das bruxas, também conhecido como o livro das sombras ou
livro dos feitiços. O meu diário era mágico e, na medida em que
ia me tornando mais íntima dele e merecedora de sua confiança,
ele ia me mostrando alguns dos segredos que existiam dentro do
grande livro das sombras. Tais segredos nunca haviam sido
revelados a nenhuma outra bruxa antes.
O livro das sombras havia sido escrito por um dos
magos mais poderosos de todos os tempos, cujo nome nem
mesmo em meus sonhos tive autorização para pronunciar, pois
era um nome tão poderoso que poderia abrir as portas do tempo.
A capa do grande livro era feita de madeira de lei, e ossos
polidos foram usados para fazer a sua fechadura. O livro era
forrado por uma couraça misteriosa, parecia couro de um
dragão. Suas folhas eram feitas de papiro e já estavam muito
amareladas e sensíveis devido ao tempo. Foi de grande valia ter
descoberto que esse livro - também um documento histórico -
desapareceu misteriosamente. Com o passar dos anos, muitos de
meus ancestrais desistiram de procurá-lo, porque, em torno do
seu desaparecimento, sugiram lendas de que o grande livro era
protegido por forças ocultas malignas, e seu conteúdo só poderia
ser lido por alguém muito especial e de coração muito puro.
O livro das sombras era a coisa mais incrível que os
meus olhos já poderiam ter visto. A chave do grande livro foi
feita toda de ouro maciço, cuja forma era de uma estrela de seis
Adriana Matheus
- 171 -
pontas. Esse livro tinha oitocentas páginas de pura sabedoria e
cultura milenar. Seus muitos símbolos e a sua tradução eram
quase impossíveis de serem lidos, pois era escrito em uma
língua muito antiga e estranha, chamada aramaico. Uma língua
somente usada nos tempos de Jesus Cristo. Os símbolos e
fórmulas que a mim foram revelados, embora muito antigos, não
me eram totalmente estranhos. Aliás, o livro, de alguma
maneira, pareceu-me muito familiar. Talvez em alguma outra de
minhas encarnações ele já tivesse sido manuseado por mim.
Naquela manhã, especificamente, considerei-me uma
pessoa especial por ter recebido das minhas ancestrais tanta
informação e tanta sabedoria, e por também ter ganhado aquele
diário maravilhoso. Só tinha a agradecer aos céus e aos deuses
por terem me cedido a honra de ter conseguido tantos amigos
especiais e generosos.
Precisava contar aquele fato novo sobre o diário a
Bernadete. Não queria esconder da minha mais nova amiga que
o presente que ela havia me dado com tanto carinho tinha
aqueles poderes extraordinários. Sentir-me-ia uma traidora se
escondesse esse fato dela.
Escrevi no meu diário tudo o que achei necessário contar
para as minhas gerações futuras. Mesmo que houvesse
mudanças no tempo, minhas irmãs também precisavam saber
que, no meio de tanta dor e preconceito, ajudamos de alguma
maneira a escrever a história de uma nação. Queria que elas
soubessem, também, o valor de uma amizade verdadeira e que,
embora não pudéssemos voltar no tempo, sempre temos a
obrigação de encontrar o nosso verdadeiro amor - mesmo que,
para isso, tenhamos que nos abdicar de uma vida feliz ao lado
dessa suposta pessoa. Pois, como já citei, ninguém pode ser
obrigado a nos amar. Ressalto, ainda, que o amor pode aparecer
em nossas vidas de várias maneiras, podendo ser ele um parente
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 172 -
próximo, um grande amigo ou até um desconhecido que por nós
tenha uma grande afinidade. Mas uma coisa é certa: temos que
aprender a reconhecê-lo e aceitá-lo da maneira com que nos for
encaminhada, sem tentar forçar nada através de um sortilégio.
O maior perigo de um sortilégio é não pensar nas
consequências que pode ocasionar: talvez uma verdadeira
catástrofe futura na vida de uma pessoa que, muitas vezes, é
inocente. Convenhamos: se uma pessoa nos fez algum mal, por
que temos que pagar tudo com a mesma moeda? Estamos nesta
vida para nos aperfeiçoar. Tudo na vida tem um preço. Por isso,
não é necessário usar magia para fazer uma vingança. Ao
consultar uma bruxa, tenha certeza do que realmente seu
coração quer. A magia não pode e não deve ser usada para
vingança, vaidade, ou um mero capricho. É por isso que uma
bruxa só deve fazer um feitiço para um consulente que
realmente saiba o que quer - o que raramente acontece, pois os
seres humanos são muito indecisos e inconstantes em suas
vontades e decisões.
O preço para quem usa a magia inadequadamente é a
solidão. É aconselhável nunca fazer um sortilégio de amor,
porque, muitas das vezes, os consulentes podem simplesmente
estar envolvidos pela emoção passageira. Ou o que é pior: pelo
capricho e pela arrogância de terem sido desprezados por seus
supostos companheiros. Toda pessoa que pede um sortilégio é
uma pessoa incapaz de conquistar por si só qualquer coisa ou
alguém. Ou o que é ainda pior: pode estar com o seu orgulho
ferido. Pode, também, ser uma pessoa muito ansiosa - o que
atrapalha o sortilégio, em todos os sentidos. Portanto, a bruxa
deve ser conhecedora de todos os poderes da magia, e também
deve tentar sondar para saber se o consulente é uma pessoa
apenas movida pela vingança ou se é uma pessoa sincera e
realmente necessita ajuda.
Adriana Matheus
- 173 -
Qualquer sortilégio é muito perigoso, pois devemos nos
lembrar de que estamos interferindo no destino de alguém.
Ressalto, ainda, que, se não houver um pouquinho de sentimento
da outra parte, o sortilégio não funciona. Sem contar que a
pessoa pode estar muito bem amparada espiritualmente - ou
seja, pode ter uma fé inabalável. Esse tipo de situação pode
atrasar o sortilégio, ou o relacionamento que o consulente já
tenha com o seu suposto parceiro pode ser desmoronado.
Na hora em que um feitiço é feito, a paciência do
consulente é testada. Um sortilégio pode demorar até anos a se
realizar, mas nunca falha. Basta que o consulente saiba que o
tempo dos espíritos não é o mesmo que o nosso. Com isso, o
consulente pode acabar achando que, pelo fato de o feitiço estar
demorando, ele não irá funcionar. Não devemos nunca nos
esquecer que um fiel consulente pode se virar contra a própria
bruxa de quem pediu ajuda - por simplesmente achar que ela
nada fez por ele, ou simplesmente por medo de ser considerado
um adorador do diabo pela Inquisição. Portanto, todo cuidado é
pouco. Tudo é um risco.
Na verdade, toda e qualquer pessoa tem que ser
esclarecida de que mexer com o destino de alguém, além de ser
perigoso, é arriscado. Pois, com isso, estamos aprisionando o
anjo da guarda dela. Não creio que aprisionar anjos seja uma
boa ideia, pois os anjos são generosos e bons, mas podem ser
vingativos quando irados. Como já disse antes, toda moeda tem
seus dois lados. Isso se aplica fielmente à magia.
Um consulente nunca deve, por si, tentar fazer um feitiço
- seja ele para o bem ou para o mal. Deve sempre pedir ajuda de
uma bruxa ou de um mago, pois são pessoas preparadas para
lidar com as forças ocultas.
As pessoas dizem algo muito peculiar da fé: que ela,
aliada à coragem, pode mover montanhas. Já eu, digo que o
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 174 -
medo muitas vezes nos impede de cometer um terrível engano.
Ser corajoso nem sempre é o caminho. Pois, no ímpeto e na
ansiedade de vencer, o consulente não percebe que a faca afiada
do inimigo o espera na retaguarda. Acredito que até mesmo os
grandes heróis tiveram medo, e isso com certeza os fez pensar
em uma estratégia de vitória. Nesta vida, temos que ter a ciência
de que há tempo para tudo, inclusive o tempo de refletir sobre as
nossas prováveis ações. Prejudicar espiritualmente uma pessoa é
garantir que ela, após sua morte, se torne nosso algoz. A mesma
pessoa pode nos perseguir até a nossa próxima encarnação.
Embora não tivesse me permitido contar sobre todas as
coisas que me foram ensinadas pelas bruxas do meu sonho,
espero ter conseguido passar para as minhas irmãs uma rápida
ideia do que realmente é ser uma bruxa. E que elas passem para
as suas futuras gerações a grandeza e a honra de terem nascido
com um dom especial. Espero que minhas irmãs façam uso dos
poderes que lhes foram dados com muita sabedoria, e que elas
sempre lutem pelo direito de liberdade de expressão e de
religião.
Algumas das coisas que aprendi com a minha ancestral e
com as bruxas, através do meu sonho, estão nessas linhas. São
coisas como os símbolos tradicionais da boa magia e os seus
significados, entre outras coisas que achei serem muito úteis
para as futuras bruxas. Achei interessante começar pelo livro das
sombras, pois muitas bruxas não sabiam como usá-lo e para que
realmente ele servia.
O Livro das Sombras é um diário usado por praticantes
da magia em rituais místicos. É como o diário de bordo de um
navio: indispensável, irrevogável, individual e intransferível. É o
manual da bruxa, o seu tricô, a sua essência. Só deve ser escrito
pela própria mão do praticante e deve ser escolhido com carinho
Adriana Matheus
- 175 -
e seriedade. Eu havia ganhado o meu, e estava extremamente
satisfeita, pois, na verdade, ele me escolheu.
A flor de lótus foi muito usada na época da Inquisição
como a marca das condenadas, principalmente na França do
século XV. Mas algumas bruxas dos séculos XVI ao XVIII
continuaram a usar esse símbolo desenhado em seus corpos,
como uma forma de respeito pelas irmãs que morreram
queimadas na fogueira. Da flor de lótus era extraído um chá
poderosíssimo que, diziam, enlouquecia os homens. A flor de
lótus também era conhecida como nelumbo nucifera, lótus-
egípcio, lótus-sagrado e lótus da Índia. É nativa do sudeste da
Ásia. Muitas pessoas morreram por causa dela, inclusive
grandes homens ligados à ciência.
A taça é o símbolo da deusa. Representa o ventre da
mulher, o princípio da vida feminina. Sua energia está
relacionada ao elemento água e à pureza. É muito usada nos
rituais e sabás, como recipiente para água ou para o vinho
consagrado. É um instrumento que nunca perde o seu lugar no
circulo mágico, e é posicionada ao leste. A taça pode ser feita de
vários materiais, como prata, bronze, ouro, barro, alabastro,
cristal, entre tantos outros. Porém, é recomendado que seja de
prata. Seus desenhos ou símbolos variam de bruxa para bruxa.
A espada desempenha o corte simbólico ou psíquico,
especialmente quando é usada para desenhar o círculo mágico,
isolando o espaço imaginário dentro dele. Além de traçar
círculos, exorciza o mal e as forças negativas. Também é
tradicional que seu cabo tenha símbolos mágicos de força e de
luta. A espada é um sinal de reverência à Santa Joana D’Arc: é
o respeito dos homens aos mortos em batalhas travadas pela
Igreja em ascensão.
O athame é uma adaga, obrigatoriamente de cabo preto,
usada em algumas linhas de bruxaria. Ele também é utilizado
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 176 -
para lançar o círculo mágico, para traçar emblemas mágicos no
ar, para direcionar a energia e para controlar e banir espíritos
que não devem invadir nosso mundo físico. As origens da
palavra athame foram perdidas na história: alguns diziam ter
vindo de a chave de Salomão, que se refere à faca como
arthana, enquanto outros afirmam que athame vem da palavra
árabe al-adhamme, ou seja, é uma faca sagrada usada na
tradição mourisca. Em qualquer um dos casos, há manuscritos
datados do século XI que abordam o uso de facas em rituais da
magia. O uso de uma faca sagrada em ritos pagãos é bastante
antigo. Certa vez, quando ainda era criança, lembro-me de ter
visto um desenho em um vaso grego, datado de
aproximadamente 200 a.C., que mostrava duas bruxas nuas
tentando invocar os poderes da Lua para sua magia. Uma delas
estava segurando uma varinha, e a outra segurava uma pequena
espada. Aquela obra magnífica ficava guardada no sótão de
minha casa, junto aos pertences de minha mãe.
A cruz é o símbolo do cristianismo e, em toda a parte do
mundo, ela representava para nós, bruxas, os quatro elementos:
a terra, o fogo, o ar e a água. Mas quando alguém usava a cruz
torta, pendurada à Soleira da porta, significava que havia uma
bruxa por perto. Pura superstição, pois nós, do grande clã,
consideramos isso um sinal de igualdade entre as irmãs de
consagração. Para os leigos, é um sinal de paganismo e foi
motivo para a excomunhão de muitos inocentes.
A faca de cabo branco, por vezes chamada de bolline, é
simplesmente uma faca prática de trabalho. Ao contrário da pura
e ritualística faca mágica, só a utilizamos para cortar galhos ou
ervas sagradas, escrever símbolos em velas ou na madeira.
Normalmente possui cabo branco para distinguir-se da faca
mágica.
Adriana Matheus
- 177 -
O homem vitruviano, também chamado de cânone das
proporções, é usado por algumas de nós como um mapa. Essa
ideia tão grandiosa foi criada por volta de 1490 e estava em um
dos diários de Leonardo Da Vinci. Toda a cura que praticamos é
dimensionada através dos chakras e das linhas imaginárias.
Essas linhas imaginárias somente podem ser vistas pelas bruxas
curandeiras. Todo o segredo da existência humana está dentro
do mapa do corpo humano, e Leonardo Da Vinci descreveu isso
em suas ilustrações. Sua referência estética e simétrica
proporcionou-nos saber, com exatidão, os pontos alfas ou
chakras de um consulente doente. O homem vitruviano também
foi muito usado pelas feiticeiras para fazerem seus vodus em
rituais de magia negra.
Leonardo Da Vinci engloba o homem vitruviano em um
todo, mas o que poucos sabem é que essa forma é uma resposta
para um desafio matemático. Algo como uma parábola ou uma
senoide para aquele incrível inventor, que foi, com certeza, um
alquimista das ideias.
Para nós, as bruxas, o homem vitruviano é um
pentagrama humano e, na magia, o símbolo do pentagrama é
geralmente desenhado com a ponta para cima, a fim de
simbolizar as aspirações espirituais humanas. Um pentagrama
voltado com duas pontas para cima é um símbolo do deus
cornífero, mas representa também a matéria sobre o espírito. Por
isso, é muito usado. Muitos supersticiosos acreditavam que
representávamos com o pentagrama o lado negro da magia - o
que nem sempre é verdade. Esse tipo de pentagrama representa
o próprio corpo, os quatros membros e a cabeça, bem como as
representações primordiais dos cinco sentidos, tanto interiores
como exteriores. Além disso, representa os cinco estágios da
vida do homem. O pentagrama - ou a estrela de cinco pontas -,
ao contrário do que dizem, não é um símbolo satânico. É um
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 178 -
símbolo muito antigo e muito usado até pelo filósofo Pitágoras,
e também por seus seguidores, que o usavam para simbolizar o
respeito pela beleza da matemática do universo.
Em muitos lugares e épocas, foi utilizado como um
símbolo geométrico sagrado. O fato de satanistas usarem o
pentagrama não significa que eles são bruxos - da mesma forma
como usam o crucifixo e não são cristãos. O pentagrama é
conhecido, também, como tentáculo ou cruz dos gnomos.
Uma estrela de cinco pontas circunscrita em um círculo
representa os quatros elementos místicos da natureza: o fogo, a
água, o ar e a terra, superados pelo espírito da quintessência.
Na antiga arte da magia, meus ancestrais geralmente
usavam o pentagrama como um instrumento de proteção ou uma
ferramenta para evocar os espíritos. O pentagrama fechado
existe desde os princípios dos tempos. Ele é usado para nos
proteger dos inimigos e também serve como portal para evocar
forças ocultas. Por isso, sua simbologia é múltipla e
fundamentada pelo número cinco, que exprime a união dos
desiguais.
Muitas feiticeiras usaram o pentagrama indevidamente.
Por isso, dizia-se que elas conseguiam abrir os portais do
inferno com ele. Os mesopotâmios tinham o pentagrama como
símbolo imperial. Entre os hebreus, foi designado como a
verdade para os cinco livros do velho testamento. Por isso, o
pentagrama foi muitas vezes chamado incorretamente de selo de
Salomão. A magia tem dois lados. Portanto, qualquer símbolo
pode ser usado tanto para o bem quanto para o mal. Isso
dependerá apenas de seus praticantes, pois os símbolos por si só
não podem fazer nenhum mal. Logicamente, isso é uma escolha
bastante singular, pois nós é que devemos ter a real consciência
de qual lado estamos.
Adriana Matheus
- 179 -
Por inúmeras vezes, quando eu era criança e frequentava
a igreja cristã, li sobre uma citação no evangelho que nos ensina
a não acender velas para dois senhores. O propósito dessa
citação é que isso causa desequilíbrio entre os dois mundos
astrais. Esse desequilíbrio pode abrir um portal, dando passagem
a espíritos desordeiros.
O Pentáculo é um prato de metal ou de madeira, com um
pentagrama cravado dentro de um círculo. Esse objeto é muito
utilizado na consagração de diversos instrumentos ritualísticos,
como as ervas e os amuletos, sendo utilizado, também, como um
ponto de concentração nos rituais.
O hexagrama, ou selo de Salomão, é um antigo e
poderoso símbolo mágico. Consiste em dois triângulos
entrelaçados, um voltado para cima e o outro para baixo. O selo
de Salomão simboliza a alma humana. É utilizado por bruxas e
magos em cerimoniais de encantamentos ou conjuração de
espíritos. É um símbolo de sabedoria, de purificação e reforça os
poderes psíquicos. Os judeus também foram perseguidos por
causa dele, usado na santa cabala. A estrela de cinco pontas ou
estrela de David forma outro pentagrama, dividido por duas
estrelas que chamamos de invocante e evanescente. Quando
queremos invocar as energias da deusa do deus cornífero, ou das
entidades dos quadrantes para selar algum tipo de encantamento,
traçamos o pentagrama chamado de invocante. Os instrumentos
usados são: o bastão, a varinha, o athame ou dedo médio, para
fazer movimentos circulares no espaço físico.
Quando queremos banir, dispersar e exterminar
qualquer tipo de energia ruim, usamos o pentagrama
evanescente. O Pentagrama evanescente é traçado de maneira
contrária a do invocante - lembrando que um pentagrama pode
ser aberto ou fechado, dependendo para o quê fosse usado.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 180 -
O triângulo é um símbolo de manifestação finita na
magia ocidental, sendo usado em rituais para invocar os
espíritos quando o selo ou sinal da entidade a ser invocada está
no centro do triângulo. O triângulo é equivalente ao número três,
ou número mágico poderoso, que é o símbolo sagrado da Deusa
tripla virgem, mãe e anciã. O triângulo invertido simboliza o
princípio masculino. Se, mentalmente, meditarmos um triângulo
e dentro dele entrarmos, conseguiremos livrar-nos dos maus
pensamentos e de outras coisas que insistem em invadir nossa
mente. O triângulo é uma forma que temos de calar os
pensamentos ruins. É a maneira mais simples que podemos usar
em qualquer lugar, sem que ninguém perceba. Também serve
para fugirmos de energias negativas, que algumas pessoas
lançam através de suas palavras.
Os espirais são dois: o espiral de evocação e o espiral de
banimento. Os espirais são outra forma de invocar ou banir
energias espirituais. Podem ser usados com os mesmos
propósitos dos pentagramas invocante e evanescente. O espiral
de invocação é muito utilizado para carregar instrumentos,
amuletos, talismãs, entre outros. Já o espiral de banimento é
usado para o banimento da negatividade, sugando e
transmutando as más energias. Esses símbolos são da forma dos
seios de uma mulher. Na verdade, na magia, quase todas as
representações geométricas são inspiradas em nós, mulheres.
O fogo é o elemento da mudança, da vontade e da
paixão. Em certo sentido, contém todas as formas de magia, pois
é o processo de mudança. A magia do fogo pode ser
assustadora: os resultados manifestam-se de forma rápida e
espetacular. O fogo não é um elemento para os fracos.
Entretanto, é o principal e, por isso, o mais usado. Este é o reino
da sexualidade e da paixão. O fogo não representa apenas o fogo
sagrado do sexo, mas também a faísca da divindade, que brilha
Adriana Matheus
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dentro de nós e de todas as coisas vivas. Ele é, ao mesmo tempo,
o mais físico e o mais espiritual dos elementos.
A vela, ou lume, também simboliza o elemento fogo.
Porém, é o símbolo do seu pedido de oração, pois enquanto vai
se queimando, a fumaça leva o seu pedido para que ele se
misture ao elemento ar – fazendo, assim, com que os seus
desejos se realizem.
A terra representa a mãe, de onde tiramos nosso poder e
nossa força. É o elemento do qual somos mais próximos, é a
nossa casa. A terra não representa necessariamente a terra física,
mas aquela parte que é estável e sólida, da qual dependemos.
A terra é o reino da abundância, prosperidade e riqueza. Ela é o
mais físico dos elementos, pois todos os três se apoiam sobre
ela. A terra, para nós, é a força maior: a mãe, aquela que gera e
nos permite a sobrevivência e a procriação. Muitos diziam que a
terra calou-se para que pudéssemos fazer do seu corpo a nossa
morada. Mas ela nos fala todos os dias, da forma mais
maravilhosa já criada por Deus para se expressar. Fala-nos
através das suas plantas e da sua beleza. Só que nunca temos
tempo para observar seus sons... O som do mundo está sempre
presente. É só fechar os olhos e desligar-se de todos os outros
sons à nossa volta para podermos escutá-lo. É um som quase
mudo, mas muito presente.
O vento ou o ar é a alma do mundo, o mensageiro, a
vida, o sopro de Deus. Muito usado em evocações para
apaziguar tempestades e tufões. Podemos enviar uma mensagem
para alguém através do vento, caso a pessoa esteja em sintonia
total conosco. O vento é o elemento do intelecto, é a realidade
do pensamento, é o primeiro passo para a criação. Também é o
movimento, o ímpeto que manda a visualização na direção da
concretização, governando os feitiços e rituais que envolvem a
viagem, instrução, liberdade, obtenção do conhecimento,
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 182 -
encontrar itens perdidos, descobrir mentiras... e assim por
diante. O vento também pode ser usado para ajudar no
desenvolvimento das faculdades psíquicas. O ar é masculino,
seco, expansivo e ativo. É o elemento que se sobressai nos
locais de aprendizagem. O ar governa o leste, pois é a direção da
maior luz: a da sabedoria e da conscientização. Sua cor é o
amarelo do Sol e do céu na aurora. O ar governa a magia dos
quatro ventos de concentração e visualização, bem como a
maioria das magias adivinhatórias.
A água é o espírito purificador, a fonte de limpeza
espiritual através do corpo para a alma, pois sempre a usamos
em banhos de purificação. É o elemento da absorção e
germinação. O subconsciente é simbolizado por ela, pois está
sempre em movimento, como o mar que nunca descansa - quer
seja noite ou dia.
O caldeirão é um dos objetos mais essenciais: com ele,
fazemos nossos rituais, entre tantas outras coisas. Ele está
sempre acompanhado de uma colher de pau e um livro de
receitas especiais. Esse objeto é intransferível e de uso exclusivo
da pessoa que irá praticar o suposto ritual. Ninguém mais deverá
manuseá-lo além da própria bruxa em questão. O caldeirão é o
instrumento da bruxa por excelência. Um antigo recipiente
culinário, imbuído em mistério e tradições mágicas. O caldeirão
é o recipiente no qual ocorrem as transformações mágicas. Tem
um significado muito especial: é o símbolo máximo da Deusa: é
seu útero, sua essência e feminilidade manifestada, a sua
fertilidade. Está relacionado com os elementos água e fogo.
Situa-se ao centro do círculo mágico e do altar. É, também, um
símbolo da reencarnação, da imortalidade e da inspiração. O
caldeirão é geralmente o ponto central dos rituais. Toda bruxa
que se prezasse teria que ter um caldeirão consigo. A lenda
antiga também castigou esse elemento, pois diziam que
Adriana Matheus
- 183 -
cozinhávamos crianças nele - blasfêmia e heresia contra o ser
humano. Nunca praticávamos canibalismo ou qualquer outro
tipo de feitiço em adoração ao demônio. Muitas vezes, íamos ao
bosque pegar raízes para o tingimento de nossas roupas, mas
algumas dessas raízes eram de um odor muito forte depois de
cozidas. Por isso, colocávamos nossos caldeirões no meio da
mata - o que gerou muitas lendas em torno de nós.
O gato preto é um símbolo da capacidade de meditação e
recolhimento espiritual, autoconfiança, independência, liberdade
e plena harmonia com o universo. Esse animal sempre foi visto
ao lado de uma feiticeira, e os supersticiosos acreditavam que o
mascote era uma bruxa disfarçada. Com isso, as feiticeiras
transitavam livremente, enquanto levávamos a fama de
malvadas.
O símbolo do gato preto era utilizado pelos médicos
egípcios para anunciar a sua capacidade de cura, onde Bastet,
sua deusa, é representada como uma gata preta, e foi uma das
divindades mais veneradas no antigo Egito. Bastet é a Deusa
protetora dos lares e da família. Protetora dos gatos, das
mulheres, da maternidade, da cura. Era guardiã das casas e feroz
defensora dos seus filhos, representando o amor maternal. O
gato tem uma grande ligação com a Lua. Os Olhos de Bastet
podem ver através da escuridão, assim como os do gato. Alguns
espíritos, entidades ou passantes - como os chamam os espíritos
mais superiores - costumam referir-se aos animais de estimação
como sacrifícios, mas não são todos. O gato, em si,
independente da cor, vive em dois mudos paralelos. Ou seja: o
gato está interligado entre o mundo espiritual e o mundo real.
A Bola de Cristal é também um instrumento das artes
adivinhatórias. É muito popular entre os videntes ciganos. A
cristalomancia é também muito praticada pelas bruxas em
magias, mas com um propósito ainda maior. É por onde nos
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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comunicamos com a grande deusa mãe. Por onde recebemos as
mensagens da deusa, que fortalece e orienta as bruxas. A Bola
de Cristal reflete mensagens, ajudando-nos a descobrir mais
sobre o nosso mundo interior.
O baralho do tarô tem o mesmo efeito da bola de cristal:
também o usamos para prever o futuro. Mas devo ressaltar que
todo objeto de clarividência deve ser mantido como particular e
intransferível. O primeiro baralho conhecido foi pintado pelo
artista Jacquemin Grigonnur, em 1392, para a coroa francesa.
Deste maravilhoso trabalho sobraram apenas dezessete cartas,
que foram guardadas na biblioteca nacional de Paris, com data
de entrada do século XV. Com as mudanças na Europa, surgiu
uma série de baralhos, especialmente na Itália. Graças a Deus,
ganhamos esse fabuloso auxiliar da magia. Nunca devemos nos
esquecer de que as cartas não mentem jamais. Mas nem tudo
pode ou deve ser revelado ao consulente, pois a pessoa, em si,
muitas vezes, não está preparada para ouvir a verdade.
Uma bruxa sábia deve ter consciência de que tudo gera
uma consequência na vida do consulente. Muitas vezes, ao
dizermos que o marido de uma consulente a está traindo,
podemos estar destruindo um lar supostamente feliz. E a
felicidade varia de pessoa para pessoa: cada um tem o seu lado
de ver e aceitar as coisas. O que para nós pode parecer errado,
para alguns é a coisa mais correta desta vida. Não temos o
direito de separar um casal, ou de desgraçar a vida de um
consulente. Afinal, que mulher não tem suas próprias intuições?
Vendo por esse ângulo, sabemos, em nosso interior, que uma
mulher só fica na ignorância caso ela queira. Isso sempre
acontece, porque a maioria das mulheres permanece nesse tipo
de situação por, muitas vezes, lhes ser conveniente, ou porque
não têm mesmo outro lugar para onde irem.
Adriana Matheus
- 185 -
Quando uma bruxa revela a verdade, pode até ser mal
interpretada e vista como mentirosa, pois existem muitas coisas
que um consulente não quer enxergar. Deixar as coisas como
elas são não é ser conivente: é permitir que o destino do
consulente cumpra-se por si só. Não temos o direito de interferir
no destino de um consulente, a não ser para ajudar e salvar a
vida de alguém - mas isso é apenas uma exceção. Deixar que as
coisas aconteçam naturalmente é a melhor maneira de deixar o
consulente aprender a como lidar com seus próprios erros. É
assim que a vida funciona. É a lei da sobrevivência.
Os cristais e as pedras servem para banhos, para
meditar, orar, curar, energizar ambientes, plantas, animais e
pessoas. Devemos sempre ter um cristal só nosso. Podemos
andar diariamente com o cristal junto ao corpo, usando-o como
um talismã ou, caso não quisermos que alguém o veja, pode-se
guardá-lo dentro da roupa íntima. Mas, uma vez ou outra,
devemos tocá-lo para que ele se sinta amado e lembrado. O
cristal tem vida própria e sente-se carente quando se sente
sozinho. Os cristais transmitem-nos muito mais energia do que
recebem de nós. Na verdade, é uma espécie de troca, porque eles
nos emitem em dobro, em triplo e, às vezes, até em décuplo as
energias que lhes damos. Por isso, precisa ser muito amado. Não
escolhemos um cristal. Ele nos escolhe.
Os cristais e as pedras são parte da natureza, sendo que
eles, pela pureza, são mais poderosos e mais iluminados que
nós. Essa fonte de energia natural recebe a perfeição e a
harmonia do cosmos. Se nos conscientizarmos disso,
procuraremos trabalhar mais com eles, pois seus benefícios
serão incontáveis. Para tanto, basta desenvolvermos nossa
intuição, nossa sensibilidade, nossos sentimentos e nossas
virtudes. Assim, canalizaremos todo o bem e, com eles, faremos
um universo melhor.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 186 -
Uma bruxa, através dos cristais, pode tentar entrar em
um estado temporal - isto é, ver o presente, o passado e o futuro.
Mas, para fazer brilhar a luz temporal, é necessário ficar em
estado de meditação com os cristais, pelo menos dez minutos ao
dia. Como recurso auxiliar, podemos usar músicas e velas. Mas,
antes de usar seu cristal, não se esqueça de que ele deve ser
energizado, colocando-o em uma ânfora de prata ou louça.
Leve-o para a janela em noite de Lua cheia e deixe-o dentro
d’água, com sal e ervas aromáticas, para que ele receba da mãe
Lua toda a sua energia. Repita o mesmo pela manhã, expondo o
cristal à luz solar. Depois de fazer esse pequeno - mas muito
significante - ritual, seu cristal estará pronto para ser usado.
O ankh é um antigo símbolo egípcio que nos lembra
uma cruz, encimado por um laço. Simboliza a vida, o
conhecimento cósmico, o intercurso sexual e o renascimento.
Também é conhecido por vários bruxos como cruz ansata. O
ankh é muito usado por várias bruxas para encantamentos e
rituais que envolvem saúde, fertilidade e divinação.
A triluna simboliza sagrada donzela, mãe e anciã. Tem
as três faces femininas e é muito utilizada em rituais de
invocação à grande deusa mãe e deidades lunares.
O círculo - ou portal - representa o poder sagrado
feminino, a mãe, a terra e o espaço. É o símbolo universal de
totalidade e união. O círculo sempre representa a deusa e é
identificado pelo elemento terra.
A vassoura, embora muitos ignorantes a associassem a
um ser vivo, cheio de poderes, isso nunca foi verdade. Ela é,
para nós, como o cajado de Moisés. Usamo-la para varrer o
espaço físico antes, durante e depois dos rituais. Nos rituais de
casamento, a vassoura representa um pacto, pois ela é o símbolo
da união da deusa com o deus. Conta-nos a lenda que, se uma
vassoura cair ao chão, é um sinal de que receberemos uma visita
Adriana Matheus
- 187 -
masculina em casa. Nas noites de Lua cheia, algumas bruxas
colocavam suas vassouras do lado de fora para espantar os maus
espíritos. Minhas ancestrais sofreram muito no passado por
causa desse utensílio doméstico, pois os cristãos contavam
horríveis histórias e lendas. Como, por exemplo, a de que, em
noite de Lua cheia, especificamente no dia 31 de outubro de
cada ano, nós, bruxas, saíamos voando em nossas vassouras, à
procura do primogênito de cada família para, assim, o
devorarmos. Com esse estranho e bizarro ritual, diziam que
ficaríamos mais fortes e poderosas.
A mente humana é incrível, pois é capaz de criar
qualquer coisa. Mas nunca cria algo construtivo e apaziguador.
Por causa dessas histórias, muitas mulheres morreram em Salém
e em outros países da Europa. É muito triste pensar em quantas
pessoas inocentes foram condenadas somente por causa de
lendas criadas por pessoas com a mente fértil e maldosa. Essas
histórias também eram criadas, muitas vezes, para desviar a
atenção dessas mesmas pessoas.
A viagem é uma forma de transe espiritual, onde
limpamos a mente de tudo ao nosso redor e imaginamo-nos
dentro de uma grande luz. Geralmente, fazemos a viagem
através do tempo para descobrirmos, em nosso passado, quem
fomos. Também é usada para que possamos adquirir sabedoria e
respeito pelas coisas às quais muitas vezes não damos valor. A
viagem também é uma forma de conhecermos o nosso eu
interior.
A princípio, por causa da falta de fé e sintonia astral, só
enxergamos um grande escuro mental. Mas, mesmo dentro
desse escuro, encontramos a luz e, muitas vezes, nossas
ancestrais vêm ao nosso socorro. Se a pessoa for realmente uma
bruxa, vai saber o que digo. Todas vamos, quase sempre, ao
mesmo lugar. Nessa viagem, são mostrados fatos, objetos e o
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 188 -
grande livro das sombras, de onde retiramos uma enorme
sabedoria.
Na viagem, é a nós revelado nosso nome ancestral, ou
seja, o nome de bruxa, que nunca deveremos falar a ninguém.
Pois esse nome, em mãos erradas, faz-nos ficar vulnerável e à
mercê de qualquer pessoa - principalmente dos inimigos.
O triskelium - triskelio ou triskele - também representa a
deusa em todos os seus aspectos tríplices: donzela, mãe e anciã.
O nascer, o viver, o morrer; o corpo, a mente e a alma, os
mundos celtas, a terra, o céu e o mar. É uma espécie de estrela
de três pontas, geralmente curvadas, o que confere ao símbolo
uma grandiosa fluidez de movimentos. É um dos elementos
mais presentes na bruxaria. Também representa primavera,
verão, outono e inverno. Está ligado, principalmente, ao
elemento terra. Alguns magos usam o triskele desenhando-o no
corpo, como uma forma de caráter nada mais do que simbólico.
O bastão - ou varinha - é um dos instrumentos mais
importantes para as bruxas, pois funciona como um instrumento
de invocação. A deusa e o deus podem ser chamados para
assistirem o ritual por meio de palavras e de um bastão erguido.
Também é, por vezes, utilizado para direcionar a energia, para
desenhar símbolos mágicos, círculos no solo, e para indicar a
direção de perigo, quando perfeitamente equilibrado na palma
da mão ou no braço de uma bruxa. Também serve para mexer
um preparado em um caldeirão. O bastão representa o elemento
do ar.
Há madeiras tradicionais para a confecção de um bastão.
Dentre elas, o salgueiro, o sabugueiro, o carvalho, a macieira, o
pessegueiro, a avelã e a cerejeira. As bruxas o cortam com o
comprimento da ponta de seu cotovelo até a extremidade de seu
indicador. Geralmente, o galho a ser cortado para o bastão
chama a bruxa para ele. É como se ambos fossem um só ser.
Adriana Matheus
- 189 -
Nenhuma outra pessoa pode ou deve colocar as mãos no bastão
de uma bruxa.
O Buril é um ferro usado para gravar nomes sagrados,
números, símbolos em punhais, espadas e também usado na
fabricação de medalhões sagrados. Toda bruxa tem um
medalhão que representa o seu elemento.
O Prato de Sal simboliza a terra e é usado para
purificação em banhos. Sempre devemos ter um copo com sal
atrás da porta de nossas casas, para puxar a energia negativa do
ambiente.
O girassol é uma flor de cor amarela, formada por muitas
pétalas, de tamanho geralmente grande. Tem esse nome porque
está sempre voltado para o Sol. O girassol simboliza a páscoa e
representa a busca da luz, que é Jesus Cristo. Assim como ele
segue o astro rei, os cristãos buscam em Cristo o caminho, a
verdade e a vida. Usamos o girassol para produzir uma espécie
de óleo para bálsamos, que curam várias mazelas.
Eu precisava citar, também, a grande mártir Joana
D’Arc: essa mulher que deu a vida pela França e por seu rei,
mas que, por causa da inveja e da ambição dos membros da
Santa Madre Igreja, foi traída e injustiçada. Para mim, Joana
D’Arc foi um símbolo de luta e de amor. Por isso, dedico aqui,
em meu diário, um cantinho a essa fabulosa mártir, que deve ser
citada e lembrada por toda bruxa, pois foi a mulher mais forte e
corajosa que a História pôde contar. Alguém consegue imaginar
a força de liderança que havia nessa jovem mulher durante o
período medieval da França? Nenhum homem venceu ou
vencerá essa mulher virtuosa. Essa é a minha opinião final.
Joana D'Arc foi uma mártir francesa, heroína da Guerra
dos Cem Anos contra a Inglaterra. Sua participação na História
foi movida pela sua fé inquebrantável. Joana D'Arc nasceu no
dia seis de janeiro no ano de 1412, na cidade de Domrémy, em
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 190 -
uma família modesta de camponeses. Faleceu no ano de 1431,
com apenas dezenove anos de idade. Aos doze anos, começou a
ouvir as vozes divinas de Santa Catarina e de Santa Terezinha.
As vozes diziam-lhe para salvar a França das mãos dos ingleses.
Durante cinco anos, manteve essas mensagens em segredo, por
medo de ser castigada pelos pais ou pelo padre local.
Vale lembrar, aqui, que ouvir vozes estava totalmente
relacionado às práticas de bruxaria da época. É claro que não
são bruxas todas as pessoas que ouvem vozes, mas Joana D’Arc
ouvia vozes que dizia ser de uma divindade. Se fosse de sua
mente, ela provavelmente pensaria que estava louca, mas não.
Em todos os relatos sobre a trajetória de Joana D’Arc, há essa
verdade. As vozes que ela escutava eram de uma divindade –
ou, como ela mesma dizia, dos santos.
Em seu julgamento, Joana D’Arc admitiu ter dançado ao
redor da árvore das fadas. Um de seus amigos que honrava as
fadas também foi queimado como bruxo, na mesma época.
Joana D’Arc dizia que eles eram santos. Na verdade, em minha
opinião, São Miguel e Santa Catarina eram ambos antigas
divindades disfarçadas de santos cristãos. São Miguel
representaria, então, o deus Sol, e Santa Catarina representaria
Cerridwen. Isso pode explicar a popularidade desses dois santos
como patronos das igrejas e capelas construídos sobre colinas,
os velhos santuários das alturas. Isso é uma opinião
exclusivamente minha, que fique bem claro.
Em 1429, ela deixou sua casa, na região de Champagne,
e viajou para a corte do rei francês Carlos VII. Lá, convenceu-o a
colocar suas tropas sob seu comando e, então, partiu para
libertar a cidade de Orléans, que estava sitiada há oito meses
pelos ingleses. Liderando um pequeno exército, Joana D’Arc
derrotou os invasores em apenas oito dias. Isso foi em maio de
1429. Um mês depois, conduziu Carlos VII à cidade de Reims,
Adriana Matheus
- 191 -
onde ele foi coroado. As vitórias trazidas pelas tropas de Joana
D’Arc para Orléans, para a coroação do rei, fizeram a esperança
do povo renascer. Embora todos quisessem a liberdade a
qualquer custo, o preconceito contra Joana D’Arc ainda era
muito grande - afinal, era uma mulher e, para eles, isso era o
bastante.
A corte, na verdade, era influenciada pela Santa Madre
Igreja, que não podia aceitar uma mulher liderando um exército
de homens e que, ainda, conseguisse ótimas vitórias
estrategistas. É importante que eu ressalte que, na época, as
mulheres já eram bastante recriminadas, sujas e pecadoras, de
acordo com os eclesiásticos. Portanto, sempre vistas como
inferiores aos homens.
Joana D’Arc escandalizou muitos padres pelo fato de se
vestir com roupas masculinas e usar o cabelo quase raspado.
Esses homens puros de coração julgaram a maneira de se vestir
de Joana D’Arc como uma heresia - apesar de ter sido apenas a
forma que ela encontrou para afastar o preconceito da Igreja.
Mas não posso deixar de lembrar que, em algumas tradições
pagãs, as sacerdotisas, por vezes, vestiam-se de homem para
representarem o deus. Então, visto por esse lado, os padres
julgavam-na.
Joana D’Arc usava um curioso emblema, adotado por ela
mesma para ser o seu estandarte pessoal. O emblema era uma
espada vertical com a ponta circundada por uma coroa, com
uma flor-de-lis de cada lado - figura idêntica ao da espada do
símbolo místico, utilizado por ocultistas do tarô.
Joana D'Arc, afinal, era ou não uma bruxa? Por mim,
consigo pensar na possibilidade de Joana D’Arc ter sido uma
bruxa de verdade. Mas é claro que o conceito de bruxa em 1420
não é o mesmo conceito de bruxa em 1822. Pois Joana D’Arc,
embora tenha liderado um exército de homens, na verdade, foi
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 192 -
apenas manipulada e usada pela Igreja o quanto sua ajuda lhes
foi conveniente, até o dia em que acharam que ela não lhes seria
mais útil.
Não posso me esquecer dos muitos mitos envolvendo a
grande deusa caçadora Diana, que demonstrou uma enorme
força de vontade e coragem. Em suas trajetórias de vida, Joana
D'Arc é bastante semelhante. Podemos ver na história da deusa
Diana os muitos traços da deusa caçadora.
Na primavera de 1430, Joana D’Arc retoma a milícia e
tenta libertar a cidade de Compiégne, que havia sido dominada
pelos borgonheses, aliados dos ingleses. Depois de mais uma
vitória, Joana D’Arc foi traída, capturada, e entregue aos
ingleses, pelas mesmas pessoas que ela sempre ajudou. Isso foi
no dia vinte e três de maio do mesmo ano. O interesse desses
fatos, no entanto, não era simplesmente matá-la ou torturá-la:
eles queriam ridicularizá-la na frente do seu próprio povo.
Agiram dessa forma porque a influência de Joana D’Arc entre
os camponeses era muito grande e, com isso, a Igreja estava
com medo de perder seus adeptos, assim como a coroa tinha
medo de perder a confiança real de seus súditos. Creio que
ambos julgavam que Joana D’Arc, por ter conseguido tanta
confiança do povo, poderia um dia vir a exigir a coroa para si.
Isso preocupou o rei e a Igreja, pois não poderiam jamais pensar
na hipótese de serem governados por uma mulher.
Alguns tinham o conceito de que as bruxas tinham
grande influência sobre o povo, pois, para eles, elas eram as
parteiras da região, ou as curandeiras conhecedoras de ervas - o
que não era verdade. Mas, mesmo assim, a Igreja achava que o
povo ficava dependente delas não pela caridade que elas
prestavam, mas pelo suposto feitiço que elas lançavam sobre
eles. Mais uma vez, era uma inverdade, pois o que acontecia é
que muitas pessoas, por serem muito pobres, achavam nessas
Adriana Matheus
- 193 -
tais supostas bruxas a única solução para curarem suas
moléstias. Mas Joana D’Arc foi mais que uma parteira ou
curandeira: ela foi uma simples camponesa que quase dominou
um reino, por falar com espíritos e derrotar os inimigos da
coroa. Para a Igreja, Joana D’Arc quase estava tirando sua
liderança. Foi por isso que a condenaram por bruxaria e heresia.
Joana D’Arc foi submetida a um tribunal católico em
Rouen, sendo condenada à morte após meses de julgamento, na
mesma cidade. No dia trinta de maio de 1431, foi queimada
viva. Suas cinzas foram jogadas no rio Sena. A revisão de seu
processo começou a partir de 1456, e a Igreja em ascensão - por
certo para reparar seus erros, e até por uma questão política –
canonizá-la-ia futuramente.
Joana D’Arc era mesmo uma bruxa? Pergunto-me
sempre isso. Não tenho dados detalhados sobre a vida dela a
ponto de dizer se ela era uma bruxa ou não. Mas, através dos
fatos que tenho, posso chegar bem perto do conceito de
bruxaria. Então, para mim Joana D’Arc foi a maior bruxa e
símbolo feminino guerreiro de todos os tempos.
Quem para a Igreja Mãe é verdadeiramente digno? Em
minha opinião, é muito injusto santificar uns por conveniência e
condenar outros só porque não concordam em ser como os
demais. Mas eu era apenas uma minoria, e era muito pouco
provável que alguém me ouvisse.
Bom, fico feliz por ter contado a história da mulher que,
para mim, foi mais que uma simples mártir. Para mim, Joana
D’Arc foi a minha heroína.
Antes de terminar a parte sobre o livro das sombras,
quero esclarecer algumas dúvidas que sei que fará muita
diferença para as minhas gerações futuras. Como, por exemplo,
a diferença entre as bruxas e os magos. Sei que é sempre uma
pergunta muito básica, mas que causa muita dúvida. Faz muita
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 194 -
diferença obter uma resposta clara, pois eu mesma a tive. E,
vendo por esse prisma, explico aqui: o mago é quem pratica
magia, a bruxa é quem pratica bruxaria. Pode parecer simples e
óbvia essa diferença, não é mesmo? Mas não é bem assim.
A magia tem diversos ramos de estudo, e a bruxaria é
apenas um deles. A bruxaria é uma forma específica de magia
que utiliza elementos da natureza. A bruxa pode ser uma maga e
não ser bruxa. Pode trabalhar com a magia sem estar ligada à
bruxaria. O foco do mago é a própria magia: ele lida com ela o
tempo todo. Estuda correspondências, astronomia, tabelas,
transfigurações, hermetismo, espíritos, cabala, cálculos diversos,
necromancia e tudo o que estiver relacionado à magia. Uma
bruxa não necessariamente lida somente com seus objetos de
prática no dia-a-dia, como o modo de cultivo e preparo de ervas,
rituais para a Lua e o Sol... coisas desse tipo.
Não que um seja melhor ou pior que o outro, mas a
evolução de um não foca a maneira de trabalho do outro. E isso
os torna diferentes. Não que as bruxas não sejam racionais,
obviamente. Mas é que os magos calculam milimetricamente
cada ação, cada ritual, e cada trabalho que vão fazer. Eles usam
os símbolos dentro de cálculo, como uma coisa cerimonial.
A bruxa é infinitamente mais simples: colhe as ervas e,
no momento seguinte, já está sujando as mãos para preparar o
unguento. Toda bruxa pratica magia, mas é a magia natural,
simples. A tradição, por exemplo, tem muito tanto da bruxaria
quanto da magia cerimonial. E usamos os objetos como o
athame, a espada, o cálice, o caldeirão e a vassoura, que são
indispensáveis. Não dispomos desses objetos – que, para nós,
são indispensáveis -, mas também não fazemos da magia uma
coisa tão complicada. Muito pelo contrário: trabalhamos com a
magia usando dela a força da natureza. É como se fosse uma
Adriana Matheus
- 195 -
união, fazendo, assim, com que as forças ocultas se tornem
nossas aliadas.
Uma bruxa, em caso de necessidade, pega qualquer tipo
de faca que estiver ao seu alcance - essa é uma das grandes
diferenças da magia. Um mago é como um astrônomo: ele é
aquela imagem tradicional do homem sentado, rodeado por
milhares de livros. O mago é um eterno pesquisador e
alquimista.
É bastante comum existir uma tradição familiar de
bruxas e de magos? Nem tanto. Magos formam ordens e toda
bruxa é pagã. Os magos não necessariamente - aliás, muito
raramente - são de origem cristã. Claro que existem
controvérsias. E também existem bruxas que, como eu, tiveram
formação cristã.
Isso ocorreu em diversas partes da Europa. A História e a
tradição convencional religiosa fizeram com que isso
acontecesse. E foi por causa da liberdade de expressão religiosa
que nós, bruxas, sempre lutamos contra aqueles que se diziam os
donos da verdade e do destino das pessoas. Não é justo que
todos tenhamos que seguir uma mesma religião, somente porque
isso se tornou uma imposição e não uma vontade. Não estou, de
forma alguma, querendo que o cristão se converta ao
paganismo. Muito pelo contrário, respeito-os e somente quero
que me aceitem como sou e pelo que sou - assim como os aceito
da mesma forma.
Outra diferença - ainda citando a cultura - entre os
magos e as bruxas é a origem de suas práticas. Os magos
possuem práticas centradas nas antigas tradições persas, egípcias
e babilônicas. As bruxas, porém, têm suas crenças enraizadas
nas culturas europeia, celta e italiana.
O fato é que estamos na Terra há muitos séculos. Somos
o espinho atravessado na garganta dos inquisidores, dos
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 196 -
preconceituosos e dos ignorantes. Querendo ou não, muitos vão
ter que nos engolir, pois somos filhas do mesmo e único Deus.
Logicamente, isso tem sido uma luta desigual e silenciosa, na
qual muitas de nós foram sacrificadas como ovelhas. Mas essas
pessoas, por viverem na ignorância, não sabem que a morte,
para nós, é apenas um começo - embora o caminho que nos
levasse até a ela fosse bem árduo e doloroso, pois passávamos
por várias sessões de torturas antes de morrermos. O que, para
esses ignorantes, era como uma forma de penitência e salvação
para nossas almas pecadoras.
Todos os seres humanos têm dentro de si uma bruxa ou
um mago. O difícil é alguém querer admitir isso. Em todo lugar
deste planeta sempre haverá uma bruxa ou um mago. Isso pode
parecer uma loucura, mas quem entre vós não sois loucos?
Quem entre vocês, ao ver que o filho está doente, não recorrerá
a uma velha receita caseira para tentar salvá-lo? Quem entre
vocês que, ao cozinhar, já não quis dar certo sabor diferente à
comida? A culinária é a forma mais simples e a mais fantástica
de praticarmos alquimia, através da mistura das ervas e dos
temperos. Misturar temperos e ervas é o que de melhor fazem
as bruxas e os magos.
Quem nunca amou e depois adoeceu? Quem nunca
sentiu uma enorme vontade de voar nas asas do vento? Quem
nunca sonhou? São perguntas simples e aparentemente tolas,
mas que não conseguimos responder por medo de ouvir a
resposta que está dentro de nossos corações. Tudo que quis, em
toda a minha vida, foi ser livre e poder exercer o meu dom em
paz. Tudo o que quis foi amar livremente, sonhar livremente,
beijar livremente. Tudo o que quis foi ter podido ser uma mulher
com o direito de ir e vir. Mas essa liberdade foi-me tirada,
porque nunca quis aceitar ser o que eu não era. Será que todas
Adriana Matheus
- 197 -
essas pessoas que me condenaram a uma vida de cárcere nunca
participaram de algum tipo de sabhat ou outro ritual da magia?
Esse é outro ponto crucial da magia: não importa qual o
momento em que uma pessoa tenha participado de um sabhat ou
qualquer ritual, ela deve saber que ficará presa à magia para
todo o sempre. Pois a magia é como se fosse um cordão
umbilical: só se separa um ser do outro após cortado.
Toda bruxa ama a natureza, as árvores e os animais.
Cuidamos deles como se fossem nossos irmãos e auxiliares.
Isso é uma coisa que nos difere dos seres humanos comuns.
Enquanto cuidamos das coisas que Deus nos deu, o restante da
humanidade as destrói impensadamente. Somos extremamente
livres - por isso, não gostamos de prisões. O contato com a mãe
terra e seus elementos é a fonte da nossa vida. Aprisionar uma
bruxa é morte certa para ela. É como o amor verdadeiro: se o
deixarmos livre, o prendemos; mas se o prendermos, ele se
sente sufocado e se vai.
Consegui descobrir e saciar minha fome de saber
através das literaturas proibidas. Confesso que esse tipo de
literatura era-me muito excitante. Foi através dela que me
diferenciei das demais pessoas. Através desses escritores,
considerados obscenos e de caráter duvidoso, descobri meu
universo. Por isso, quando fui apresentada à magia, eu já estava
bastante familiarizada a ela. Na verdade, sempre fui uma
solitária, devido à forma com que me criaram. Mas, mesmo
assim, eu ainda era diferente, pois, naquela época, ainda podia
contar à Maria tudo o que se passava comigo. No entanto,
depois de fazer parte do círculo mágico, não podia mais, nem
em meus sonhos, colocar Maria nos meus planos, pois isso
seria muito arriscado e a colocaria em risco de vida.
Eu realmente gostaria de ter sido igual às moças da
minha idade. Assim, teria sido amada pelo meu pai. Mas a vida
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 198 -
é cheia de caminhos e, como cada caminho tem uma escolha,
preferi ter feito a minha. Na verdade, isso não poderia ter sido
diferente, pois as moças da minha idade eram vazias e sem
objetivos concretos. Já os rapazes não tinham assuntos para
mim, inclusive porque achavam que nós, mulheres, só
servíamos para procriar. Algumas mulheres talvez aceitassem
esse tipo de situação vergonhosa, mas nunca poderia me
sujeitar a viver ao lado de alguém sem amá-lo.
Não me engrandeço por ser diferente, jamais fiz isso.
Mas confesso que olhava aquela gente de uma maneira
perplexa e diferente. Não fazia isso por arrogância ou por
preconceito. Na verdade, queria tentar entendê-los melhor, pois
não conseguia imaginar como conseguiam viver de uma
maneira tão igual e sem sentido pra mim.
Antes de conhecer os caminhos da magia, eu era uma
jovem muito tímida e oprimida pelas vontades da minha
madrasta. Pensava que minha vida nunca teria outra opção
além de ter que seguir, um dia, o que ela sempre me impunha:
ou seja, casar-me com um homem mais velho e ser
completamente infeliz e autômota. Mas, no meu íntimo, tinha
comigo que não era correto uma mulher ser escrava de seu
marido. Achava que ambos tinham que ser cúmplices, em todos
os sentidos. Era assim que eu via uma união de amor: como um
todo. Não me arrependo de ter escolhido meu caminho, embora
pense que minha tentativa de ter encontrado o meu único amor
foi em vão.
Houve tempos em que passei quase um mês trancada
em meus aposentos. Não saía nem para beber água, somente
para poder terminar de ler certo livro, cujo autor me fascinava
com a maneira com que descrevia a forma de ver as pessoas.
Esse autor foi muito temido pela Igreja e a corte francesa, pois
descrevia a imoralidade e o sadismo dos monarcas e dos
Adriana Matheus
- 199 -
padres. Ele traduzia perfeitamente a maneira cruel e sádica com
que os castos virtuosos padres viam as mulheres em geral.
Resumindo: para mim, ele foi mais um herói da literatura e da
liberdade de expressão. Como eu disse, a literatura considerada
devassa, obscena e perigosa excitava-me, porque nela descobri
verdadeiramente a maneira livre de as pessoas escreverem o
que realmente viam e sentiam.
O caminhar de uma bruxa exige muito estudo, muita
leitura e disciplina. Quanto mais uma bruxa lê, mais se
aprimora em seus conhecimentos ocultos. Isso requer tempo,
paciência e obstinação da aprendiz. Embora eu tivesse sido
uma rebelde, encaixava-me nas outras duas regrinhas básicas
da bruxaria: leitura e estudo.
As pessoas da minha época - ou de qualquer outra, creio
- não suportavam que alguém fosse mais inteligente e literário
do que elas. O conhecimento e a cultura sempre será a principal
forma de discórdia entre os homens e mulheres -
principalmente quando a leitura tornar a mulher mais
competitiva e capaz, e menos escrava dos caprichos
masculinos.
Gostaria, sinceramente, que minha ancestral tivesse lido
esses pensamentos. Ela com certeza iria se orgulhar de mim,
assim como me orgulhei dela.
Não deixei herdeiros como Shaara. Não que não
quisesse, mas porque os que se diziam ter autoridade sobre
mim privaram-me do dom de ser mãe e de também viver um
grande amor ao lado da pessoa que escolhi.
Meus algozes, em todas minhas duas encarnações,
foram as pessoas que mais amei. Pessoas que determinaram
que meu tempo terreno se extinguisse por conta delas. Deus
presenteou-me a vida, mas não pude honrar esse compromisso
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 200 -
segundo a Sua vontade, pois me tomaram esse presente, que
somente Deus poderia ter tomado de volta.
Essa também seria a segunda vez em que perderia a
minha juventude cedo, por imposição da Inquisição e da Igreja
em ascensão. Mas, dessa vez, deixei registrada a forma como
meu destino foi modificado por imposição de pessoas do meu
convívio, que se julgavam com o direito de modificar a minha
maneira de ver o mundo.
Creio que, em um futuro próximo, o homem continuará
a ser sua própria derrota, o seu próprio carrasco e o seu próprio
algoz, mas nunca vai perder essa arrogância e essa presunção
de ser o senhor de todos os destinos. O homem nunca deixará
de querer ser como Deus. Creio que, por isso, o Mestre tenha se
arrependido de nos ter criado. Assusta-me esse pensamento e
faz-me sentir terrivelmente impotente em saber que nunca nada
disso mudará, simplesmente porque o ser humano nunca
deixará de ser competitivo, ambicioso, covarde e infinitamente
cruel.
Qual é a diferença entre bruxas, santos e inquisidores,
sendo que todos somos filhos de um mesmo Pai? Quando nos
debruçamos sobre a relação entre as acusadas de feitiçaria com
os inquisidores que as conduziram em seus processos, muitas
vezes deparamos com essa pergunta. Especificamente,
respondo da seguinte forma: bruxas são pessoas que lutam por
uma ideia de liberdade que não condiz com as normas da Santa
Madre Igreja. Os santos foram pessoas que lutaram por um
ideal de paz. Mas, ao contrário das bruxas, baixaram a cabeça e
entregaram-se como ovelhas prontas para o abate. Devo dizer
que o fato de terem seguido as normas morais da Santa Madre
Igreja de nada lhes adiantou, pois muitos dos santos também
foram torturados e morreram da mesma forma que nós, bruxas.
Os inquisidores são pessoas que receberam da Santa Madre
Adriana Matheus
- 201 -
Igreja o poder de julgar o seu semelhante. Abusaram desse
poder para usufruir de benefícios próprios. Esses homens, além
de verem as coisas como eles querem, induzem seus supostos
acusados a falarem o que eles querem que seja dito em tribunal.
Essa foi a minha opinião formada a respeito da grande
diferença entre os santos, as bruxas e os inquisidores. Não me
importava o que a Inquisição pudesse me fazer, nunca poderia
deixar que se calasse a verdadeira voz da verdade. Como essas
pessoas poderiam se julgar superioras ou donas da verdade,
sendo que elas praticavam atrocidades e mentiam até mesmo
sobre a verdadeira palavra de Deus?
Grande parte das confissões foi obtida através de
requinte de crueldade. Sim, requinte de crueldade, pois, depois
de torturarem e matarem os inocentes, esses homens virtuosos e
sem pecados voltavam para suas casas e comportavam-se como
Lorde. Era como se a monstruosidade que eles praticavam nos
calabouços e nas prisões não surtisse nenhum efeito sobre a sua
consciência. Eles chamavam essa atrocidade de trabalho.
Tudo o que uma mulher fizesse era motivo para que
fosse acusada de feitiçaria. A suposta bruxa deixava de falar a
sua língua, passando a falar a língua do inquisidor, através da
manipulação ou da tortura.
A acusação por bruxaria surgia sempre a partir de um
suposto malefício. Podia ser a doença repentina de uma pessoa
ou de animais domésticos ou, em casos menos comuns,
problemas causados à plantação ou, ainda, ao próprio clima.
Em Salém, as denúncias surgiram a partir da súbita doença
inexplicável de meninas, que nada mais tinham do que uma
histeria coletiva.
Em Boston, em 1688, as filhas do senhor John
Goodwin, ao adoecerem, levaram a julgamento a senhora
Mary Glover. Ela era uma pessoa do convívio de todas aquelas
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 202 -
que a acusaram levianamente. Não importava qual fosse o
argumento, o importante era sempre achar um culpado e acusá-
lo de algum tipo de crime – pois, assim, parecia que aliviava a
culpa e a conciência daqueles hipócritas.
No vilarejo de Salém, ao norte de Boston, na colônia de
Massachusetts Bay, Nova Inglaterra, Sarah Good - uma
mendiga louca -, Sarah Osborne - uma parteira - e Tituba - uma
escrava indígena de Barbados - foram acusadas, em primeiro de
março do ano de 1692, de prática ilegal de feitiçaria e de
manterem contato com o demônio. Naquele mesmo dia, Tituba,
possivelmente sob coerção, confessou o crime, encorajando as
autoridades a iniciar uma caça às bruxas de Salém. Uma
verdadeira histeria coletiva espalhou-se, dando margem à
intolerância e ao fanatismo religioso que se seguiu. Tais
fatos vitimaram, no início, quase vinte pessoas inocentes. Os
problemas na pequena comunidade puritana começaram no
mês anterior, quando Elizabeth Parris - uma criança de apenas
nove anos - e Abigail Williams - de onze anos -, filha e
sobrinha, respectivamente, do reverendo Samuel Parris,
passaram a sofrer ataques compulsivos e outras misteriosas
doenças. O médico local, como não achou nada nas meninas,
concluiu que só poderiam estar sofrendo os efeitos de uma
bruxaria muito poderosa. Logicamente, elas colaboraram para
que o médico chegasse a essa conclusão. Na verdade, essas
santas e inocentes crianças estavam sendo usadas por seus pais
para acusarem pessoas que provavelmente eram odiadas por
eles. O reverendo Samuel Parris, por exemplo, cobiçava as
terras do senhor Giles Corey. E como o senhor Giles Corey
negou-se a dispor de suas terras, então, com a ajuda das
inocentes meninas, o reverendo Samuel conseguiu acusá-lo de
prática ilegal de bruxaria. Esse pobre homem, então, foi
sentenciado e executado por esmagamento. O devaneio dessas
Adriana Matheus
- 203 -
supostas inocentes crianças prosseguiu por muito tempo ainda.
Com isso, diversas pessoas inocentes - entre homens, mulheres
e até mesmo uma criança de quatro anos - morreram por terem
sido acusadas de praticar a bruxaria. Ao todo, dezenove pessoas
morreram por causa da pirraça e devaneio de treze meninas e
de seus pais gananciosos. Devo ressaltar que nenhuma dessas
pessoas praticou algum tipo de bruxaria contra nenhum de seus
acusadores. Todos os fatos ocorridos foram causados por
pessoas maliciosas, capazes de se valerem da imaginação de
meninas mimadas, mentirosas e dissimuladas. Esses tipos de
pessoas contribuíram para que o bom nome das bruxas e da
magia fosse denegrido de maneira corriqueira e leviana.
O fato é que a magia estava em todos os lugares,
embora ninguém quisesse admitir - por medo ou puro
preconceito. Os santos e os demônios também sempre, de
alguma maneira, estiveram interligados através da leitura e da
escrita. O próprio Santo Ofício mostra-nos diversos exemplos
de orações e conjuros, em que os nomes de Cristo, da Virgem
Maria e de santos misturam-se, numa mesma frase, aos de
satanás, Lúcifer e outras potestades infernais.
Afinal, há ou não diferença entre uma santa e uma
bruxa? Não sei ao certo. Diziam que santos nunca cometiam
pecados e que curavam os enfermos em nome de Deus. O fato
é que isso não é toda a verdade, pois existiram apóstolos que
foram corruptos e ladrões - assim como também existiu bruxa
incorruptível, que foi capaz de morrer apenas por acreditar em
uma causa de liberdade e de igualdade. Assim como os santos
curam em seus supostos milagres, curandeiros e bruxos
também o fazem. Eu mesma já ouvi e vi pessoas de bem dentro
da Igreja pedindo a Deus para matar a amante do marido em
oração. Algum tempo depois, soube da morte da amante.
Também já vi pessoas pedirem a outras divindades para serem
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 204 -
curadas de suas enfermidades, e também foram curadas. Na
verdade, não é a quem pedimos, mas com que força e fé
pedimos. Saber pedir é essencial, mas saber o que pedir é
primordial. Pois tanto Deus quanto o diabo irão atender ao
pedido do consulente devotado e aflito. A diferença é que Deus
sonda-nos para saber se somos merecedores de termos o pedido
realizado. Já o diabo concede quase imediatamente, pois -
devemos nos lembrar disso - está em constante disputa com o
Pai Maior.
Deixo registrado que nunca foi a minha intenção
glorificar o demônio. De modo algum – que isso fique bem
claro! Só estou tentando mostrar a igualdade das forças e a
grandeza da fé.
Somos Deus e também o demônio, porque nos foi dado
o livre arbítrio de poder direcionar a nossa vida e escolher qual
caminho tomar. Logicamente, se podemos escolher o caminho
do bem, por que, então, escolheremos o caminho mal? O
problema é que o ser humano está sempre querendo mais. Na
maioria das vezes, é derrotado pela falta de fé e pelo excesso de
vaidade que domina o seu ser.
Costumo dizer que o ser humano é infinitamente cruel
com a boca fechada e, com ela aberta, destrói e guerreia.
Somos fruto do pecado de nosso ancestral Adão, mas não
fazemos nada para nos livrar dessa praga.
Não somos francos, mas sim curiosos, teimosos e
inconsequentes quando desafiamos as leis de Cristo. Nossa
arrogância nos destrói, só nos leva ao inferno da consequência
dos nossos atos impensados. O pior é que não sabemos aonde
toda essa loucura temperamental chegará. Mas o certo é que
temos a obrigação de parar em algum momento de nossas vidas
e refletir que estamos nela para aprender e aprimorar. Foi para
isso que nos foi dada a chance de reencarnar. Ou será que
Adriana Matheus
- 205 -
vamos ficar como o vento, que sopra em qualquer lugar sem
direção, sem nunca poder ter um porto seguro para pousar?
Lembre-se: o vento é o nosso mensageiro, a alma do mudo, e o
seu destino é correr os quatro cantos da Terra, sem ter o direito
de parar - pois ao vento foi dada essa missão. Quanto a nós,
foi-nos incumbida a missão de cuidar da Terra e das coisas que
nela existem. Por isso, refletir e pensar sobre nossas ações e
atitudes é muito importante.
Utilizo aqui as expressões bruxas, feiticeiras e acusadas
de feitiçaria, no feminino, levando em consideração que uma
parte significativa da população condenada nos processos
inquisitoriais foi formada por nós, pobres mulheres, além do
fato de que o estereótipo da bruxa está muito mais consolidado
do que o do bruxo. As observações constantes, no entanto,
aplicam-se igualmente aos muitos homens acusados, julgados e
condenados pela Inquisição que, na maioria das vezes, eram
camponeses pobres e escravos, sem direito sequer a uma defesa
justa.
Terminei minhas anotações e fui para a janela,
agradecer ao Pai Maior pelas inspirações que Ele me deu.
Agradeci por tudo, pelos amigos maravilhosos que eu já tinha e
pelos que ganhei através do meu mais novo caminho. Em
minhas orações, pedi sabedoria e discernimento aos bons
espíritos, para que guiassem meus passos através da minha
mais nova jornada – que, embora transitória, seria de grande
valia para o meu aparelho. Pois ele ainda era só um aprendiz e
não estava pronto para a sua despedida, que seria em breve.
Pedi luz e compreensão para que, quando encontrasse o espírito
encarnado de Edward, pudesse fazê-lo entender seu erro
cometido no passado, quando fez a jura de me encontrar,
seguir-me e amar-me por toda a eternidade. Depois disso, fiz
alguns rituais de adoração ao deus Sol. Terminando minhas
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 206 -
obrigações matinais, observei a enorme floresta que cercava a
casa de Dona Helena e pude notar que as pessoas já estavam
todas acordadas, cumprindo suas obrigações e afazeres diários.
Como eu estava de pé, mas virada para a janela, não
pude perceber que Bernadete já estava acordada e observava-
me em todos os meus movimentos e ações. Quando me voltei
para o lado de dentro, ela falou:
– Agora sei, senhorita Anna. Está preparada para
enfrentar o que lhe for incumbido pelo universo através da
magia. Só se lembre de nunca esquecer o que aprendeu em sua
viagem astral, e de não usar os seus poderes para o mal. Deve
saber que, quando usar seus poderes para fazer algum feitiço ou
para entrar em sintonia com os espíritos, ficará fraca. Mas não
se assuste com isso: procure um lugar silencioso para repousar
e, se possível, durma, para que as suas forças voltem. Quando
isso ocorrer, é muito importante que, caso esteja perto de
alguém, essas pessoas não descubram de sua fragilidade,
principalmente os seus inimigos. Pois, nessa hora, ficará
vulnerável e indefesa - o que pode ser perigoso, pois qualquer
pessoa poderá prejudicar-lhe, seja física ou espiritualmente.
Dei um largo sorriso. Confesso que fiquei um pouco
encabulada por saber que Bernadete poderia estar ali havia
horas, observando-me. Depois de ouvir atentamente o que
Bernadete estava me explicando - embora já estivesse ciente de
tudo o que ela estava me dizendo -, achei melhor calar-me, pois
demonstrar humildade nunca é demais.
Quando percebi que minha jovem amiga havia feito
uma pausa em suas explicações, respondi:
– Aprendi muito com a minha viagem. Fiquei muito
satisfeita por saber que vou reconhecer o meu amor assim que o
vir.
Adriana Matheus
- 207 -
Bernadete baixou a cabeça e, com um ar pesaroso,
respondeu-me:
– Sinto muito ter que ser eu a lhe dizer isso, senhorita
Anna, mas não é bem assim: ele pode demorar a reconhecê-la, e
talvez nem a reconheça. Portanto, ao encontrá-lo, vá com calma,
para não confundi-lo ou assustá-lo. Sendo ele um monge, poderá
achar que está possuída por um espírito maligno - isso é muito
perigoso. Além disso, ele poderá excomungá-la. Lembre-se de
que o seu amor foi, no passado, um inquisidor. Mesmo que ele
não saiba disso, traz consigo, inconscientemente, as lembranças
de quem foi. Se a senhorita não tiver discernimento, poderá cair
no abismo da revolta e do desentendimento com ele. Os dois
precisarão estar em uma perfeita sintonia astral, para que se
reconheçam de imediato, assim como a senhorita deseja que
aconteça. Todos temos a obrigação de nos lembrarmos de nossas
vidas passadas. Mas, muitas vezes, o sofrimento ou a culpa nos
fazem querer apagar nossa memória passada. Lembre-se disso,
senhorita Anna, para que não se machuque com uma grande
decepção.
Embora soubesse que Bernadete estava correta, tive que
respondê-la com um pouco de intolerância, usando a plena
certeza do meu coração:
– Respeito tudo o que está me dizendo, minha querida
amiga. Mas tenho certeza absoluta de que ele também sonha
comigo e que está me esperando tão ansiosamente como estou
por ele. Em minhas visões, sei que ele é um homem solitário e
sem ninguém, assim como eu. Sinto o sofrimento dele, a
vontade dele de estar comigo, mesmo sem saber quem sou.
Talvez sua aparência física tenha mudado, mas nossos olhos
espelharão nossas almas, pois trazemos uma bagagem muito
grande de outras encarnações.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 208 -
Na verdade, não queria ouvi-la. Queria pôr minha
certeza acima de tudo, porque a certeza de amar e de ser amada
era a única coisa que me importava. Mesmo que Bernadete
estivesse coberta de razão, eu sabia que, muitas vezes, as
palavras, mesmo que verdadeiras, podem se tornar um veneno
para a nossa mente, pois acabam gerando dúvidas em nossos
corações. Por isso, quis calar a voz dela antes que entrasse
qualquer dúvida dentro da minha mente e do meu coração. Mas
Bernadete parecia ter a necessidade de tentar me orientar e,
antes mesmo que eu tentasse argumentar novamente, ela
prosseguiu:
– Sua certeza deixa-me, sinceramente, preocupada,
senhorita Anna. Temo por uma grande decepção. Fala como se
já tivesse se comunicado com esse homem antes. É como se ele
já tivesse falado do amor dele por você.
– Quem garante que ele não falou? Não é fato que, em
nossos sonhos, podemos sair de nossos corpos físicos e viajar
através espaço? Não é verdade que, através dos nossos sonhos,
chamamos um espírito para junto de nós? Digo-lhe, minha
querida amiga, que isso já aconteceu comigo várias vezes.
Bernadete, estou presa a esse homem por causa da jura de amor
que, por mais inconsequente que pareça, ligou-nos através do
tempo e do espaço. Se esse homem é o meu suposto amor, e se
realmente está vivendo nesse convento ou mosteiro com o qual
vivo sonhando, com certeza é porque meu destino está ligado ao
dele. Confio no destino e, de alguma maneira, ele se incumbirá
de nos colocar juntos. Não se preocupe, minha querida amiga:
estarei preparada, mesmo que ele me rejeite a principio, pois
aprendi que a espera e a paciência nos fazem sábios e fortes.
Mas uma coisa é certa: tenho que encontrá-lo e não poderei
rejeitá-lo, mesmo que seja desprezada por ele.
Adriana Matheus
- 209 -
– Senhorita Anna, está tão mudada depois que voltou da
viagem! Não parece a mesma pessoa que aqui chegou, cheia de
dúvidas e perguntas tolas. É como se agora outra pessoa tivesse
tomado seu corpo físico. Parece que agora a senhorita sabe todas
as respostas e faz-me acreditar em tudo, pela forma firme com
que direciona suas certezas. Sabe, quando fiz minha viagem,
pensei ter voltado forte e preparada para enfrentar todas as
minhas dúvidas. Pois não estava certa se o meu noivo Magald
era meu verdadeiro amor, porque eu vivia em um mundo de
conflitos e angústias desnecessárias. Se quer saber, até hoje
ainda tenho algumas dúvidas sobre o nosso amor. Mas a
senhorita voltou muito forte, sábia, e tão segura! Minha tia
Helena tem razão quando disse que a senhorita é uma bruxa
muito poderosa. Fomos abençoadas por termos lhe despertado
esse dom. Sabe o que mais? Tenho muita sorte por tê-la
conhecido, por sermos amigas agora. Na verdade, agora sou eu
quem tem muito o que aprender com você, senhorita Anna. Se a
senhorita me permitir, quero ser sua aprendiz nos segredos da
magia.
Dei um sorriso prazeroso, mas lhe disse:
– Teria a maior honra em tê-la como minha aprendiz,
minha cara Bernadete. Porém, seu destino já está escolhido e
creio que não poderia tê-lo feito de maneira mais sábia.
Acredite: terá ao lado de seu noivo Magald dois lindos filhos, e
ambos serão muito felizes. Cada um nesta vida tem a sua
jornada já programada pelo destino. A sua não poderia ser
melhor: é tranquila, feliz e sem problemas.
Disse isso porque toda a vida daquela jovem passou
perante meus olhos, nitidamente. Naquele momento, eu acabara
de ser abençoada com o dom da visão.
Bernadete, depois de me ouvir em silêncio, sorriu-me
largamente, pois ficou feliz por ter-lhe revelado algo que ela já
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 210 -
sabia, mas em que não confiava – pois, como todo ser humano,
ela não cria em suas próprias intuições. Muitas vezes, temos a
certeza de que nossos projetos de vida irão dar certo, mas, por
vivermos ansiosos e cheios de perguntas, acabamos por não
acreditar nas respostas do nosso coração. Todos temos a visão
do nosso próprio futuro, só que não damos muita credibilidade
ao dom maravilhoso que Deus nos deu. Preferimos consultar,
então, cartomantes, quiromantes e outras pessoas que nem
sempre são honestas em suas previsões. Isso só nos serve para
nos confundir sobre o que realmente pertence a nós. Todas as
respostas estão dentro de nós mesmos. Somos o nosso próprio
guia - basta que acreditemos e confiemos em nossas intuições.
Isso quer dizer que podemos abrir ou fechar as portas da
prosperidade, cuja chave está dentro da nossa mente que, muitas
vezes, está insana ou debilitada pelos muitos fracassos já
ocorridos em nossas vidas.
Tudo o que nos acontece, de alguma maneira, é porque o
programamos mentalmente. No entanto, ao invés de termos
pensado em algo destrutivo, poderíamos ter simplesmente
pensado em algo muito grandioso e produtivo. Mas o ser
humano prefere pensar negativo e se passar por coitado, do que
tentar pensar positivo e ver as coisas maravilhosas que os
pensamentos felizes podem lhe trazer.
Cada vez que uma bruxa chora e usa seu poder, ela
enfraquece, pois a lágrima tira-lhe a visão real das coisas.
Quando uma bruxa faz um feitiço, isso também ocorre, porque
ela está gastando sua energia espiritual. Então, ao invés de
ficarmos danificando nossos pensamentos com coisas supérfluas
e desnecessárias que não nos levam a lugar nenhum, devemos
pegar um bom livro para ler, pois o saber é o ponto-base da
capacidade de uma bruxa. Somos eternas aprendizes, inclusive
de nós mesmas. Não devemos ter um autor específico: mesmo
Adriana Matheus
- 211 -
os mais chatos e banais têm algo a nos ensinar. Pois nossa mente
tanto nos é produtiva como também autodestrutiva.
Devemos aprender a trabalhar o silêncio mental. Esse é o
mais difícil de todos os dons, pois a mente nunca para de falar.
Muitas vezes suas palavras transformam-se em ofensas ou
injúrias. As palavras que saem da nossa boca podem se
transformar em uma coisa extremamente prejudicial para nós
mesmos. Principalmente quando não confiamos em nossas
intuições e saímos por aí, pedindo ajuda a qualquer pessoa que
não tem um bom caráter...
Certa vez, Maria contou-me a história de uma jovem
mulher que recebeu, em seus sonhos, a notícia de que ganharia
uma grande herança, vinda de um parente do interior. Essa
mulher nunca chegou a conhecer o suposto parente e, ainda por
várias noites seguidas, continuou a ter o mesmo sonho. Tudo o
que ela deveria fazer foi-lhe confirmado, inclusive o dia e a hora
em que ela receberia a suposta herança. Então, a jovem ansiosa
mulher foi invadida por um espírito de vaidade excessiva e
acabou se tornando desleal consigo mesma: contou aquela
história a todos que encontrou pela frente. Criou, então, uma
energia ao seu redor de inveja e zombarias, pois muitos, por não
acreditarem nela, também a chamaram de louca.
A mulher, por não ter confiado em sua própria intuição,
correu a uma bruxa, que diziam ser bastante eficaz em revelar
inclusive os sonhos. Lá, a jovem mulher contou-lhe tudo o que
estava passando. A suposta bruxa ouviu-a em total silêncio e,
mesmo depois de ter recebido uma resposta positiva através de
suas cartas, disse à sua consulente que era apenas um sonho,
tornado frequente na vida dela porque ela estava preocupada
com suas muitas dívidas. A suposta bruxa, então, mandou que a
consulente voltasse para casa e esquecesse toda aquela tolice,
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 212 -
pois só lhe faria mal. Em seguida, despachou-a rapidamente,
sem nenhuma explicação.
Assim que a mulher saiu, a suposta bruxa, muito esperta
e nada honesta, correu e arrumou suas malas, seguindo para o
interior, onde a consulente descrevera que estaria o suposto tio
moribundo. Chegando lá, a vigarista encontrou realmente o
homem velho moribundo e bastante carente, pois havia perdido
contato com seus verdadeiros parentes muito tempo atrás. A
espertalhona correu em se apresentar ao pobre homem como
sua sobrinha, usando os nomes dos parentes que a consulente
lhe havia narrado em sua história. Contou, também, a triste
história de vida da consulente: que sua mãe e irmã tinham
morrido de tifo, e que não tinha mais nenhum outro parente
próximo ou vivo no mundo a não ser ele. O pobre homem, que
já estava com a sua saúde bastante debilitada, ficou comovido
com a história da bruxa e recebeu-a em sua casa de braços
abertos, acolhendo-a sem nenhum problema ou sequer tentar
fazer uma investigação. Aí, a falsa sobrinha cuidou do velho
homem e, quando ele morreu, deixou para ela toda a sua fortuna,
entre empregados e muitas terras.
Devemos aprender uma lição com este pequeno conto:
nunca confiar nossos segredos a quem não conhecemos. E,
quando se tratar de uma premonição então, devemos guardá-la a
sete chaves. Não devemos nunca duvidar do dom que nos é
dado, porque, com certeza, é uma dádiva divina. Só procuramos
uma bruxa, cartomante, vidente ou quiromante se não tiver outro
recurso. Deve-se sondar muito bem se a pessoa com que a
consulente irá se consultar é verdadeiramente idônea. Mas,
acreditem, todos temos uma boa intuição a nosso próprio
respeito. Devemos aprender a ouvir nosso coração: ele só nos é
enganoso se deixarmos nossa mente interferir sem ser
Adriana Matheus
- 213 -
convidada. Todos temos um dos nove dons dados por Deus. Nas
horas mais difíceis, ele nos servirá de leme.
Conversei por muito tempo ainda com Bernadete e
contei-lhe sobre os feitos do diário que ela havia me dado.
Afinal, ela precisava saber que seu avô não era um contador de
histórias. Ela ficou tão maravilhada quanto eu. Em seguida,
disse:
– Fico muito feliz por ter me contado tudo isso. Mas sei
que esse diário era para ser somente seu, pois ele a escolheu. Sei
disso porque, por diversas vezes, tentei escrever nele e nada
aconteceu de tão grandioso como aconteceu com você. Esse
diário, na verdade, só me usou como intermediária para chegar
até as suas mãos.
Fiquei muito emocionada por Bernadete ter-me dito
aquelas palavras. Então, agradeci-lhe, dando um afetuoso
abraço. Iríamos combinar de fazer alguma coisa juntas durante a
tarde, mas bateram à porta do quarto e tive que ir atender, pois
Bernadete estava ainda deitada.
Era Maria, pedindo para que descêssemos para o
desjejum e para que me preparasse para o nosso retorno de volta
a casa. Nós duas sorrimos e nos entreolhamos, pois estávamos
com fome. Eu e Bernadete apressamos em nos arrumar para o
desjejum. Ela me ajudou com algumas coisas que eu precisava
terminar de arrumar. Eu já não tinha muito a levar de volta, pois
dei todos aqueles meus vestidos que havia levado para
Bernadete e suas irmãs. A alegria de seus rostos foi como um
elixir para minha alma. Estava começando a aprender que dar
era bem melhor do que receber e guardar. A vida é passageira e
curta. Devemos, então, dar o melhor de nós para termos uma
existência feliz - mesmo que, como eu, a pessoa já tenha a
consciência de que ela será breve.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 214 -
A despedida não foi muito feliz, pois sabia que nunca
mais as veria novamente. A velha senhora, de nome Andélia,
também estava presente e deu-me duas coisas que encheram
meus olhos de lágrimas. A primeira foi a cruz torta, para me
identificar com as demais do grupo, pois eu já estava fazendo
parte daquela grande família. A segunda foram muitas pétalas de
rosas brancas, para eu ir jogando pelo meio do caminho. Esse é
o ritual que serve de libertação: significa que estamos
recebendo, com flores, nosso novo caminho, deixando para trás
toda a tristeza e a dúvida que nos perseguia.
A velha Anna havia ficado para trás. A Anna mimada,
covarde e medrosa. A Anna melancólica e triste. A Anna
materialista e cheia de perguntas tolas havia morrido naquela
fogueira, dando lugar a uma mulher segura, forte e sem medo do
escuro. Na verdade, eu havia ressuscitado de algum lugar que
estava dentro de mim e que eu não me lembrava, até então.
O medo e as condições impostas pela sociedade que me
cercava fizeram com que, muitas vezes, me sentisse incapaz de
enfrentar as coisas mais simples e corriqueiras. Na verdade,
todos somos frutos daquilo em que acreditamos. Deixamos,
muitas vezes, que as pessoas que nos cercam direcionem e
conduzam, com palavras ou atitudes, nossa vida pessoal. Isso
não pode de maneira alguma acontecer, porque somos seres
individuais e temos que seguir sem nos deixarmos ser
manipulados.
Criticar é mais fácil do que elogiar. Duvidar é mais fácil
do que acreditar. Confiar em si própria quase nunca acontece.
Ignorar é mais fácil do que ajudar. São pequenas coisas que
passam pela nossa frente e que, às vezes, ficam despercebidas,
mas que poderiam ter feito muita diferença na vida de outras
pessoas se não fossemos tão egoístas. Se não estivéssemos tão
preocupados com o que os outros pensam de nós, talvez
Adriana Matheus
- 215 -
pudéssemos fazer do ambiente ao nosso redor um lugar mais
harmonioso e civilizado. Não podemos mudar o mundo todo,
mas poderíamos mudar o nosso meio de vida, fazendo de nós
mesmos pequenos exemplos em que pessoas aflitas e cheias de
problemas possam se espelhar. Poderíamos ser uma autoajuda
ambulante, mas fazemos o contrário: tornamo-nos fracos e
problemáticos. Na verdade, duvidamos da nossa capacidade
infinita de renovação. E é tão simples! Basta um sorriso e uma
palavra gentil. As pessoas esperam de nós o que esperamos
delas. Quando alguém carrancudo se aproximar, devemos lhe
sorrir. Na verdade, ele só deve estar triste ou com algum
problema pessoal ou até mesmo espiritual. Se o tratarmos com
desprezo, intolerância e mau humor, ele, com certeza, ficará
ainda mais exasperado do que já estava. Ouvi, certa vez, uma
história que Maria me contou. Entre tantas outras histórias, essa
me pareceu afinar-se como exemplo do que tenho dito.
Um cavaleiro passou por uma menininha,
acompanhada de sua mãe. Ele as olhou como se as
desprezassem, mesmo sem nunca tê-las visto antes. A mãe,
por sua vez, estava com tantos problemas em sua cabeça que o
tratou de igual modo. Virou-lhe o rosto e, ainda, disse-lhe
palavras ofensivas. Tudo teria terminado com o desprezo
dessas duas pessoas. Cada qual seguiria o seu caminho, e
ambas passariam um dia péssimo, pois aquelas pessoas
haviam trocado energias negativas. Mas o senhor olhou,
também, para a pequena criança, que lhe sorriu
espontaneamente.
Pensou, então, consigo mesmo: Uma mãe tão
antipática, e uma criança tão angelical: que controvérsia! E,
sem querer, esboçou um sorriso. Um amigo, que passava por
ele naquele momento, parou-o e perguntou o motivo da
alegria. Ele, por sua vez, contou ao amigo, que acabou por lhe
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 216 -
convidar para tomarem uma xícara de chá. Os dois
encontraram entre si motivos diversos para sorrirem. De
repente, aquele senhor carrancudo estava de bem com a vida e
se sentiu capaz de enfrentar seus problemas. Ao olhar para a
porta do estabelecimento onde ele e o amigo se encontravam,
percebeu que a menina e a senhora entraram, sentando-se bem
ao lado deles. Aquele senhor, então, não perdeu tempo:
levantou-se, e apresentando-se à mãe da menina, convidou-as
para tomarem uma xícara de chá com ele e o amigo.
Depois de se desculpar por ter parecido grosseiro, ele,
durante a conversa que tiveram, descobriu que ambos eram
viúvos e que suas tristezas estavam lhes tornando pessoas
amargas. Por não conseguir superar a falta de sua amada
esposa, e ela por estar tão preocupada com o que a sociedade
falaria dela, acabavam por se esquivar sempre de fazer novos
amigos. Assim, com aquele comportamento da menininha,
todos acabaram tendo uma tarde muito agradável. Com
certeza, ele encontrou uma nova companheira para lhe auxiliar
em sua jornada terrena... O poder está em nós mesmos, não
nos outros. Um gesto, que pode nos parecer simples e banal,
pode ter uma força inenarrável.
O caminho de volta para casa foi tranquilo e sem
nenhum problema. Eu e Maria conversamos sobre minha
viagem astral e sobre o quanto estávamos nos sentindo bem
espiritualmente. Fizemos planos sobre algumas coisas que eu
faria ao chegar em casa.
Cochilei bastante no decorrer do caminho, só para variar!
Mas, dessa vez, não tive sonhos turbulentos. Aliás, não sonhava
com o monge desde que retornei da viagem. Mas, para mim, o
importante é a certeza de que estava em meu coração. Estava
muito feliz por ter sido iniciada como bruxa, e não deixaria
ninguém invadir o meridiano imaginário que me separava do
Adriana Matheus
- 217 -
mundo real do meu novo mundo. Lógico, sempre ouviria a todos
com atenção e educação. Mas fazer o que me diziam, só se meu
coração dissesse que sim. Caso contrário, entraria por um
ouvido e sairia pelo outro. Devemos nos lembrar de que nunca
nos é demais aceitar conselhos – mas, se fossem tão bons,
colocaríamos uma tenda e os venderíamos bem caro...
A estrada estava ainda mais bela do que quando
ingressamos. Então, resolvi manter-me bem acordada, sem
cochilar: dessa vez, queria estar alerta a tudo. Maria
compartilhou alguns segredos comigo. Depois, o cansaço a fez
dormir, por fim. Era muito engraçado vê-la naquele estado
ébrio. De vez em quando, ela arregalava os olhos, por causa do
susto que levava quando a carruagem passava por cima de
algumas pedras. Na verdade, nós duas estávamos muito ansiosas
para chegar e poder tirar as roupas empoeiradas e os sapatos
apertados. Foi quando Lorenzo avisou-nos de que chegaríamos
em casa em quatros horas. Ou seja, quando a Lua já estivesse
alta no céu. Estava contente e pronta para iniciar minha missão
como a mais nova bruxa daquele condado.
“O amor é um sentimento abstrato. Não podemos tocá-
lo, não podemos vê-lo. Mas podemos dá-lo através de várias
maneiras. Quem ama não tem medo, orgulho ou dúvida. A
pessoa que está amando quer somente ter a certeza de que será
feliz. O lugar não importa; com quem, não interessa. Mas que,
quando esse amor chegar, seja bem vindo... Aceitar quem nos
ama. muitas vezes. pode não nos ser conveniente, pois,
infelizmente, só conseguimos ver as aparências físicas. Mas, se
realmente queremos um verdadeiro amor, basta olharmos para
nosso próximo com os olhos de Deus. Aí, sim, passaremos a
enxergar a verdadeira beleza escondida por trás da aparência
física. Difícil é compreender que as rosas, no meio de tanta
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 218 -
beleza, escondem espinhos que podem machucar o coração do
homem. E que, em alguns espinhos, encontramos a cura para
nossas doenças. Encontre o seu amor e viva com sabedoria. Só
não pise nas pessoas menos favorecidas, porque elas também
tiveram seus espinhos - talvez causados por rosas, como
você...”.
Adriana Matheus
- 219 -
IV – O segredo de Elizabeth
uando a carruagem finalmente parou frente à
minha casa, respirei profundamente, aliviada
por termos chegado. Estava mesmo ansiosa
para poder colocar todos meus planos em
prática. Tive que despertar Maria, que caíra em sono profundo.
Havia tantas coisas a fazer... Comecei a pensar nas mudanças
que faria em meu quarto, nos objetos que compraria para dar
início ao ritual da Lua, já que estava atrasada com o meu
primeiro equinócio de outono. Eram muitas as coisas que
precisava fazer antes que se cumprisse meu destino. Como sabia
que meu tempo era curto, precisaria correr contra ele.
De repente, dei-me conta do quanto a ansiedade estava
tomando conta de minha mente. Então, fechei brevemente
meus olhos e fiz uma oração silenciosa. Respirei
profundamente e contei o máximo que pude. Soltei lentamente
o ar pela boca. Então, quando abri os olhos novamente, já
estava mais calma e Lorenzo abria a porta da carruagem para
nós. Com a sua ajuda, pude descer da carruagem, apoiada em
Q
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 220 -
suas mãos. Olhei para o céu, lindamente estrelado, e pude
certificar-me que a Lua estava lá, como já havia previsto.
Fique de pé, ao lado da carruagem, observando Maria
acabar de descer. Foi muito engraçado vê-la, ainda meio
sonolenta, tropeçando em seus próprios pés.
Joseph e Tereza vieram receber-nos. Maria, por sua
vez, não parava de indagar à pobre mulher, querendo saber
como tudo ocorreu durante a sua ausência. Rubens, um
escravo de confiança da casa, carregou a bagagem para dentro.
Enquanto Maria seguia com Tereza, Lorenzo e Joseph
levavam a carruagem e os cavalos para o estábulo. Por minha
vez, fui caminhando tranquilamente em direção à casa. Afinal,
devido aos muitos afazeres de todos, parecia que eu havia sido
completamente abandonada e esquecida - o que era hilário.
Porém, isso me deu tempo para pôr minhas ideias e
pensamentos em ordem.
A grama ficou verde musgo por causa da luz do luar.
As pedras brancas, postas ao caminho para servir de passarela,
davam certo ar de conto de fadas. A escadaria ficou
completamente iluminada por causa da luz da Lua. Subi
lentamente cada um daqueles degraus, observando até mesmo
os pontinhos luminosos das pedras. Antes de colocar a mão na
maçaneta, dei uma boa espreguiçada, pois meu corpinho
cansado só queria um bom banho e cama naquele momento, é
claro!
Antes de entrar, ainda pensei Apesar de tudo, era bom
estar de volta à casa e poder desfrutar dos momentos em
família novamente, mesmo que raros. Engraçado, mas estava
com saudades até das rabugices e arrogâncias da condessa.
Ao entrar, nem mesmo olhei para os lados. Corri,
subindo as escadas, indo direto para o meu quarto. Desarrumei
rapidamente as malas, colocando minhas roupas em cima de
Adriana Matheus
- 221 -
uma poltrona, para que, no dia seguinte, a aia viesse pegá-las
para serem lavadas.
Depois de algumas horas, a copeira, parecendo
adivinhar o meu desejo, trouxe água para meu banho. Só que,
desta vez, fiz com que ficasse admirada, pois pedi que
preparasse uma poção para colocar na água do banho. Tirei da
bagagem um pequeno saquinho com ervas que havia trazido
comigo na viagem. Eram folhas secas de hortelã e cascas de
maracujá. Ela, embora tivesse achado aquela atitude muito
estranha, deu de ombros, sacudiu a cabeça negativamente e
saiu para fazer o que eu havia pedido.
Aquela mistura de erva e casca de fruta, ao ser
colocada na água, faria relaxar-me e ter uma boa noite de sono.
Esse tipo de preparado também pode ser tomado como um chá.
Mas, naquele dia, preferi usá-lo como um bálsamo
aromatizante para banho.
Maria, que sempre estava atenta a tudo, trouxe-me um
chá de camomila com biscoito logo que a copeira saiu.
Enquanto ela arrumava a bandeja na mesinha, pude perceber,
através de seus movimentos, que havia algo errado no ar.
Maria parecia querer dizer-me algo, mas estava sem saber
como falar.
Percebendo aquela situação, disse-lhe:
– Maria, está acontecendo alguma coisa. Se a senhora
tem algo a me dizer, então diga.
Ainda de cabeça baixa, arrumando os guardanapos,
mas sem olhar para mim, ela falou:
– Percebi que a senhorita pediu à copeira para que lhe
fizesse um banho de relaxamento!
– Sim, Maria. Pedi sim, admito. Estou precisando ter
uma boa noite de sono.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 222 -
– Fico satisfeita que já esteja colocando em prática os
seus dons, mas me preocupa que tenha pedido logo a uma
estranha e não a mim. Essa atitude sem pensar de sua parte
pode colocar nós duas em risco. Afinal, deveria saber que a
copeira é fiel à senhora Del Prat.
– Desculpe-me, Maria, jamais a colocaria em risco.
Infelizmente, agi sem pensar. Mas achei que a senhora estava
ocupada demais com os seus afazeres. Por isso pedi à nossa
copeira. Sinto muito, estou muito decepcionada comigo
mesma.
– Senhorita Anna, conhecendo-me como a senhorita me
conhece, sabe muito bem que jamais deixaria de atender a um
pedido seu. Não se preocupe, porque já dei a ela uma desculpa,
dizendo que esse banho é coisa da minha irmã que, por ser do
interior, sempre tem dessas manias antigas. Mas, da próxima
vez, tenha mais cuidado.
Baixei a cabeça numa atitude de constrangimento e
nada mais disse. Maria, por sua vez, arrumou a xícara de chá
com biscoitos em cima da mesinha e saiu, parecendo ter
percebido que eu havia ficado muito sem graça. Ela estava
completamente correta: eu poderia ter-nos colocado em uma
situação muito arriscada, principalmente se minha madrasta
tivesse visto e ouvido o que pedi à copeira. Sei que era apenas
um banho - mas, na mente doentia da condessa, aquilo seria
um feitiço. Precisava definitivamente controlar minhas atitudes
levianas e emoções, e pensar dali para frente. Precisava
definitivamente, também, tomar cuidado com a ansiedade e a
vaidade.
Quem me trouxe a água para o banho foi Inaynmin, a
jovem escrava, filha de Joana. Ela, depois de colocar na tina a
água junto com o preparado que eu havia pedido, fez uma
pequena observação:
Adriana Matheus
- 223 -
– Não sei o que a senhorita andou fazendo no interior
junto à Maria, mas tenha muito cuidado quando for pedir
certas coisas à copeira. Não a estou criticando, senhorita, de
modo algum. Afinal, sei que todas temos certos segredos e, se
são segredos, devem continuar ocultos, não acha?
Disse tais palavras e saiu, deixando-me meio
apreensiva e também muito pensativa. Afinal, que segredo
poderia ter a jovem escrava Inaynmin, sendo que Joana nunca
a deixava sozinha? Pensei, por fim, A vida é mesmo cheia de
mistérios. Imagine só! Obviamente, eu teria que descobrir que
segredos a jovem escrava Inaynmin haveria de ter. E como ela
sabia que eu tinha um segredo? É, pensei comigo, a vida está
repleta de surpresas...
Dormi como um anjo a noite toda, depois do banho e
do chá que Maria havia preparado para mim. Para falar a
verdade, aquela noite nem me lembro de ter vestido a camisola
após ter tomado banho, pois estava tão relaxada que, mesmo
depois de ter cometido tamanho deslize, não pude ver muita
coisa, pois o sono pegou-me no colo e levou-me para o mundo
dos sonhos.
No dia seguinte, ao acordar, depois de dar um enorme
bocejo, percebi um ventinho frio entrando pelo meu quarto.
Levantei para ver o que era. A janela estava completamente
aberta. Virei o rosto rapidamente e o cobri com o lençol, pois o
Sol entrava intrépido pelo quarto. Não me lembro de ter-me
esquecido de fechar as janelas e as cortinas na noite anterior!
Fiquei pensativa, imaginando quem poderia tê-las aberto.
Quando Maria viesse ao meu quarto, perguntar-lhe-ia sobre
isso.
De um salto só, consegui sair da cama. Como precisava
resolver muitas coisas que tinha em mente, quis correr contra o
tempo. Quanto mais cedo, melhor seria. Além do quê, não
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 224 -
poderia dar margens a que minha madrasta levantasse antes de
mim e tentasse impedir-me de fazer as coisas que eu precisava
pôr em prática. Muita coisa mudaria com o meu retorno da
casa de Dona Helena e, se minha madrasta desconfiasse,
poderia enlouquecer de vez – ou, o que era pior, poderia tentar
algo contra minha vida, pois a condessa era imprevisível e
cheia de artimanhas.
Mas, como eu era uma boa moça, comecei a me
preocupar com a frágil saúde da pobrezinha... Então, achei
melhor aos poucos ir demonstrando a minha mais nova
personalidade. Assim, evitaria que ela tivesse uma síncope.
Aqueles pensamentos maldosos e irônicos precisavam sair da
minha mente. Mas era inevitável querer dar uma pequena lição
na minha madrasta. Afinal, durante anos ela foi muito má com
todos naquela casa. Mas isso seria apenas uma lição e não uma
vingança, pois não era da minha índole querer vingar-me de
quem quer que fosse - até mesmo de uma mulher como a
condessa.
Enquanto eu colocava aqueles pensamentos irônicos
em dia, percebi que Maria estava à porta e disse-lhe:
– Entre, Maria. Sei que é a senhora que está aí fora!
Ao entrar, ela disse, arregalando os olhos e
prosseguindo com aquela conversa:
– Minha nossa! Isso foi para me impressionar? Saiba
que já conseguiu, viu? Estou mesmo impressionada com
tamanha perspicácia. Aliás, já está usando seus poderes de
adivinhação, é?
Dei um sorriso largo e sincero e, depois, falei:
– Não preciso ser adivinha para saber que só poderia
ser a senhora, pois sei que sempre fica atenta a todos os
movimentos desta casa. Sei que sempre presta atenção ao
barulho do fechar e do abrir de cada porta, e que sabe de qual
Adriana Matheus
- 225 -
cômodo ele veio. Concluindo pelo pulo que dei no chão ao me
levantar, sei que a senhora soube de imediato que eu já estava
de pé. Afinal, quem mais vem ao meu quarto além da senhora?
Nem mesmo meu pai quando está em casa, pois sempre me
pede para descer quando precisa falar algo comigo.
– Chega, já conseguiu impressionar-me! Confesso que
não sabia que eu era tão previsível assim.
Ela sorriu, tentando disfarçar que estava sem graça,
pois, no mínimo, desconfiou que eu também soubesse que ela
escutava atrás das portas. Para mudar um pouco o rumo
daquela conversa que não me levaria a lugar algum, perguntei:
– Então, como está tudo? Está do jeito que a senhora
gosta? A propósito, que horas são?
– Como está tudo? Nem pode imaginar a imensa
confusão que esses incompetentes aprontaram na minha
cozinha. Por causa desses transloucados, fiquei até altas horas
acordada, areando várias panelas de cobre. Com isso, hoje
estou morrendo de dores pelo corpo todo.
– Maria, Maria... Por que ficou até tarde fazendo um
serviço que não era da sua ossada? Sabe muito bem que
poderia esperar até o dia amanhecer e pedir a Joana que fizesse
isso.
– Nunca, de jeito algum! Esses incompetentes já
deveriam ter deixado tudo pronto e arrumado a meu gosto,
para evitar que eu tivesse mais um aborrecimento como esse.
Além do mais, não gosto de deixar nada para depois. Gosto de
ver o serviço pronto a tempo e à hora. Não quero mais discutir
sobre isso com a senhorita. Sou desse jeito, sempre fui assim.
Não será agora, com a minha idade, que vou mudar.
Fiquei olhando-a, sem nada mais conseguir dizer.
Maria era uma mulher que gostava da perfeição. Um jarro fora
do lugar era motivo para que ficasse nervosa. Então, tentei
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 226 -
novamente mudar o rumo daquela conversa, que já estava
partindo para a área da neurose. Respirei fundo, tentando não
ficar nervosa. Então, perguntei-lhe novamente:
– A senhora, por favor, poderia dizer-me, sem muitas
palavras, que horas são?
– São quase oito. Veja como o Sol está alto no céu. O
tempo não para, minha filha. A vida passa em um piscar de
olhos. E se tem a intenção de irmos a algum lugar, é melhor
que seja bem rápida, antes que a condessa Del Prat levante-se e
comece a me chamar como uma louca.
Embora eu tivesse pedido para que Maria me
respondesse em poucas palavras, vindo dela não poderia
esperar uma frase sem um longo discurso junto. Então, acabei
de vez com aquela conversa, pedindo-lhe para fazer uma
tarefa:
– Maria, por favor, esquente a água para eu tomar
banho, pois tenho muitas coisas para fazer hoje na cidade.
Tenho que ir a alguns lugares e comprar algumas coisas que
me estão faltando.
– O que poderia estar faltando para a menina?
– Coisas para eu começar meu trabalho. Coisas que
nunca pensei em usar, mas que agora sei que vou precisar.
– Não acha que está se precipitando novamente em
tomar certas decisões, minha filha? Pense um pouco: deveria
agir com um pouco mais de prudência e cautela.
– Em tudo o que me diz, vejo coerência e sensatez.
Mas, infelizmente, minha querida Maria, desta vez não poderei
atendê-la, pois tenho mesmo que comprar essas coisas que me
faltam. E isso tem que ser bem rápido, porque o meu tempo é
curto demais.
– Por que está me dizendo que seu tempo está curto?
Está pensado em me abandonar? Já sei, arrumou um pretende e
Adriana Matheus
- 227 -
nem me contou! Que egoísta! Logo eu, que sempre lhe fui tão
fiel... Agora estou aqui, merecedora desta desfeita.
– Lógico que não, Maria! Não vou deixá-la nunca.
Apenas sei que tenho coisas a fazer que, se eu não correr e
colocá-las em prática, não conseguirei terminar tudo a tempo.
– Mas precisa ser assim, desse jeito? Parece até que a
menina está com uma sangria desatada.
– Ora, Maria, parece que tirou o dia para me azucrinar
as ideias! Vamos, ande, vá preparar meu banho e arrume-se
rápido. Além de tomar banho, também tenho que me arrumar.
– Está bem, a menina não precisa me tratar assim. Vou
descer, tenho que pedir permissão à condessa Del Prat para lhe
acompanhar. Afinal, sou apenas uma serviçal nesta casa. Não
tenho o menor valor!
Olhei para Maria com certo ar zombeteiro e falei-lhe:
– Maria, sabe muito bem que nunca lhe vi como uma
serviçal! Pare de ser tão dramática, pelo amor de Deus! E
mais: de agora em diante, também dou ordens nesta casa. Se a
condessa desaprovar qualquer atitude minha, vai ter que
engolir um sapo boi, pois as coisas mudaram.
Maria arregalou os olhos e ficou na minha frente,
estática. Depois saiu de mansinho, dando um sorriso que mais
parecia de satisfação - o que me deixou curiosa e fez-me
perguntar-lhe:
– Isso quer dizer que a senhora aprovou essa atitude
minha?
– Não sei, depois de quase eu ter sido lançada porta
afora como um cão sarnento pela senhorita, isso quer apenas
dizer que estou surpresa por ver a menina assim, tão senhora
de si.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 228 -
Dizendo isso, Maria saiu, deixando-me a sós. Eu a
amava e isso era um fato. Mas, às vezes, Maria ironizava
muito as coisas e aquilo me tirava do sério.
Assim que a escrava trouxe-me a água para o banho,
não me demorei e arrumei-me o mais rápido que pude. Fiz
uma pequena lista de todos os ingredientes e utensílios que eu
precisaria. Maria ainda veio avisar-me que estaria pronta assim
que eu estivesse, e que teve a permissão da minha madrasta
para sairmos. Isso me foi uma surpresa. Senti no ar que a
condessa tentaria aprontar alguma coisa contra mim. Então,
esperei Maria sair para que pudesse fazer uma oração e
fortalecer meu espírito. Em seguida, saí do quarto e apressei-
me em descer as escadas correndo. Mas deparei-me com a
condessa, que me estava esperando no último degrau, com as
mãos na cintura e ar de soberania. Logicamente, isso não me
era mais uma surpresa. Respirei profundamente e fui descendo
vagarosamente as escadas, pois sabia que, se ela estava me
esperando, boa coisa não aconteceria.
Ficamos frente a frente e, depois de muito cambalear e
de ter-me feito uma cara feia - que não consegui compreender
se era de fome ou de enjoo causado pelo hálito de bebida que
saía da sua boca -, ela falou:
– Onde a senhorita pensa que vai? Não me lembro de
ter-lhe dado permissão para que saísse.
Dei um sorriso matreiro e fui caminhando calmamente,
circulando em volta dela. Ao dar uma volta completa entorno
dela, disse-lhe assim:
– Sério? Pelo que me consta, a senhora deu, sim,
permissão à Maria para que ela saísse comigo.
– Não me lembro de ter dado tal autorização à Maria! E
muito menos me lembro de tê-la deixado sair também!
Adriana Matheus
- 229 -
– Quer dizer, então, que a senhora vai ter a coragem de
chamar Maria de mentirosa assim, na sua frente?
Disse isso porque Maria havia acabado de entrar e
estava de pé atrás dela, com os olhos arregalados. A pobre
mulher mal sabia que direção tomar. A condessa virou-se
cinicamente, olhando para Maria de cima abaixo, e disse:
– Se dei tal autorização, estou tirando-a agora mesmo.
Foi saindo, querendo deixar-nos sem saber o que fazer,
como ela sempre fazia. Mas só que, daquela vez, corri para
frente dela e disse:
– Alto lá! Não é bem assim que as coisas funcionam. A
senhora não vai sair e deixar-nos aqui, falando ao vento.
Vamos terminar essa conversa agora mesmo. Acho muito
interessante a senhora não se lembrar de ter-me dado a tal
autorização. Sendo assim, devo ressaltar e refrescar-lhe a
memória. Sabe por quê? Porque também não me lembro de tê-
la pedido nenhuma autorização para fazer da minha vida o que
eu bem quisesse.
Disse isso desafiadoramente, olhando-a bem nos olhos.
Peguei-lhe um dos braços e falei bem baixinho ao ouvido:
– Vamos combinar o seguinte: a senhora, minha
madrasta, não conta ao meu papai que saí sem suas ordens, e
prometo não mencionar nada sobre suas festas escondidas nos
fins de semana. Isso é muito mais fácil do que minha querida
madrasta pode pensar, sabe como? Faça de conta que não
existo e continuarei a fazer o mesmo - embora não seja da
minha índole ter que mentir para o meu próprio pai! Lembre-se
de que faço isso somente pelo afeto que lhe tenho. Afinal,
sempre fomos tão amigas! Então, o que me diz, querida
madrasta?
Àquela altura, nem me lembro como foi que Maria
desapareceu do meio de nós duas! Eu estava tão interessada
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 230 -
em terminar aquela conversa que me esqueci de tudo ao meu
redor, até de Maria. Minha madrasta, após ranger os dentes de
ódio, disse-me:
– Odeio-a com todas as minhas forças! Pode ter certeza
de que isso não vai ficar assim. Prometo-lhe que farei da sua
vida um inferno.
Ao ouvir aquelas palavras, dei uma gargalhada que
parecia não ser minha e prossegui:
– Engana-se, minha querida madrasta. A senhora já fez
da minha vida um inferno. Agora não fará mais. Sabe por quê?
Porque aprendi com o diabo lá no inferno, onde a senhora me
colocava, que posso ser muito mais má do que pensa. Portanto,
pense duas vezes antes de meter-se comigo ou com Maria de
agora adiante. E que essa conversa termine aqui e agora. Aliás,
já até me esqueci! Imagina... O que é mesmo que devo me
lembrar de não contar a meu pai?
Fitei-a nos olhos e continuei:
– Agora, se me der licença, estou de saída. Até já,
madrasta querida. - joguei-lhe um beijinho com a mão.
Ela ficou boquiaberta e sem reação aparente. Encontrei-
me com Maria, que estava perto da carruagem. Ela continuava
com os olhos arregalados, a cor rosada do seu rosto estava de
um tom empalidecido. Esfregava as mãos uma contra a outra.
Temia por mim, mas, sendo uma criada, não poderia se
intrometer entre mim e minha madrasta. Percebendo seu
desalento, dei-lhe um sorriso largo, tentando disfarçar o
nervoso em que me encontrava. Mas Maria parecia ansiosa por
saber o que havia acontecido. Então, perguntou-me:
– O que foi que a senhora Del Prat disse? Ela lhe fez
algum mal, senhorita?
– Nada demais, entramos em um acordo civilizado.
Não se preocupe, Maria. A condessa não tocou em um só fio
Adriana Matheus
- 231 -
dos meus cabelos. Pelo contrário, acho que de agora em diante
ela vai até me pedir conselhos.
– Hã!? Como assim? O que realmente aconteceu?
Como consegue estar tão tranquila, sabendo que a condessa lhe
odeia?
– Fique calma, Maria. Apascente seus nervos. Acredite:
não aconteceu nada. A condessa não disse muita coisa, pois
ainda está meio em estado ébrio. A senhora sabe que, quando a
minha madrasta está desse jeito, mal dá para entendê-la. Na
verdade, acho que ela confundiu as coisas e achou que não
tinha lhe dado autorização para sairmos. Aliás, descobrimos
coisas tão em comum entre nós! Estou tão admirada quanto a
senhora, acredite!
– E quais seriam essas coisas, Santo Deus!? Vejo que
hoje será um longo dia...
– Está bem, Maria. Vou-lhe responder, mas somente
para matar a sua curiosidade: descobrimos que somos senhoras
distintas, civilizadas e que falamos a mesma língua. Fiquei
impressionada de como eu e minha madrasta poderemos nos
dar bem de agora em diante.
Se Maria não estivesse encostada na carruagem, teria se
espatifado ao chão, pois quase perdeu o equilíbrio das pernas,
por não ter entendido absolutamente nada. Por fim, depois de
ter tomado fôlego, disse-me, com a voz meio trêmula:
– É melhor seguirmos em frente, antes que meu
coração pare de uma vez. Por hoje já me bastam tantas
emoções fortes.
De repente, ao ver Maria subindo na carruagem, deu-
me a sensação de que em breve teríamos que nos despedir para
sempre. Dentro da carruagem, mudei aqueles pensamentos
tristes, tentando animar Maria, que estava tremendo por minha
causa. Inventei uma história engraçada e contei para ela.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 232 -
Também fiz algumas caretas para que se distraísse e mudasse
os pensamentos, antes que eles virassem palavras aborrecidas.
Isso funcionou, pois seguimos o resto do trajeto rindo. Contei à
Maria alguns dos dons que havia recebido. Ela se admirou por
saber que eu havia adquirido o dom da clarividência. Eu
também, pois foi a primeira manifestação de Deus em mim.
Depois de meia hora dentro da carruagem, descemos
em frente a uma casa de chás. Dei à Maria metade da lista que
havia feito e fui saindo.
– Aonde a mocinha pensa que vai sozinha, sem a minha
companhia?
– Procurar um ferreiro, ora!
– Posso saber para quê, já que a mocinha agora
resolveu ser tão independe e desligada de mim? - disse Maria,
mais uma vez usando de suas ironias e, ao mesmo tempo,
preocupada comigo.
– Não se preocupe comigo, Maria. Sei onde tem um: no
final desta rua. Volto logo e encontro-a aqui, neste mesmo
lugar, em frente a esta casa de chás.
Saí e deixei Maria, sem dar muitas explicações, antes
que ela me indagasse mais alguma outra coisa, é claro!
Olhei para todos os cartazes que podia ver, tentando
achar a ferralheria da cidade. Foi quando, finalmente, avistei
em uma esquina um enorme cartaz escrito Ferraria Campo
Belo.
Deu-me certa tonteira ao olhar aquele cartaz. Não
soube explicar de imediato, mas era como se alguém naquele
local não estivesse bem de saúde e, de alguma maneira, minha
energia foi toda direcionada para lá. Cheguei a sentir meu
corpo arrepiar-se. Alguém naquele lugar estava mesmo
precisando de mim. Respirei profundamente e fechei olhos,
Adriana Matheus
- 233 -
buscando forças. Em seguida, caminhei em direção à
ferralheria.
Quando estava virando a esquina, deparei-me com uma
jovem soluçando muito, encostada em um muro. Se tivesse
acontecido isso antes, teria passado despercebida por mim
aquela cena. Mas, agora, era mais que isso: era como se eu
tivesse uma obrigação de captar tudo que estava ao meu redor.
A jovem não tinha mais que dezessete anos. Mas, de
tanto que chorava, dava a impressão de ter muito mais idade.
Abaixei perto dela e perguntei-lhe:
– Tudo bem, senhorita? Sabe informar-me onde
encontro uma ferralheria por aqui? - tentei despistar, já que a
loja estava à minha frente.
– Sim... Fica logo ali, na frente da senhorita. É a
ferralheria do senhor Juan Campos. Ele é muito habilidoso,
mas não é muito amistoso, devo adverti-la. - disse-me isso
entre soluços, passando as mãos sobre os olhos, tentando
esconder-me que estava chorando - como se isso fosse
possível!
– Ah! Desculpe-me, sou mesmo uma distraída!
Imagine, nem vi que estava ali na minha frente! Olhe, não
estou querendo ser inconveniente, mas posso perguntar-lhe
algo?
– Sim, claro.
– A senhorita não gostaria de tomar uma xícara de chá
comigo? Vejo que não está se sentindo muito bem. Veja,
querida, talvez eu não consiga resolver o seu problema, mas ao
menos posso ouvi-la. Às vezes desabafar faz bem ao espírito.
E então, o que me diz?
– A senhorita é mesmo muito gentil, mas não tenho
uma roupa apropriada para entrar em um lugar tão refinado
como aquele.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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– Santo Deus! O que tem de errado com as suas vestes?
A jovem baixou a cabeça, pesarosa, e disse:
– Se eu entrar naquele lugar usando esses trapos,
certamente me colocarão para fora como um cão sarnento.
Nem todos nesta cidade veem os pobres da mesma forma que a
senhorita. Algumas pessoas acham que temos algum tipo de
doença contagiosa. Não nos dão emprego porque somos sujos.
Não temos direito a um médico porque não temos dinheiro
para pagar. Então, quando percebem que não lhes temos
nenhuma valia, arrumam alguma coisa para que sejamos
descartados de vez dessa sociedade egoísta e sem coração. É
muito triste, senhorita, termos que viver na miséria! Mas como
poderemos ser alguém se não nos dão uma oportunidade?
Como podemos ser parte do mundo se as pessoas existentes
nele não nos veem como seres humanos dignos? De que
adianta querermos lutar, se somos podados até de nossos
sonhos? Essa sociedade desumana está sempre tentando
encontrar alguma coisa de que nos acusar. Como vamos
cheirar bem se nem o mínimo recurso para sobrevivência nos
dão?
Aquela jovem não estava errada. Mas seu coração
parecia cheio de revolta e amargura. Sabia que não adiantaria
argumentar muito com ela. Então, disse-lhe:
– Está bem, então. Não vou mais insistir para que vá
comigo à casa de chá. Mas posso me convidar para tomar chá
em sua casa?
– Oh! Senhorita, não temos chá em casa, apenas água. -
disse a jovem, baixando a cabeça, parecendo constrangida por
ter que demonstrar a real situação financeira de sua família.
– Ótimo, estou morrendo de sede. O calor está me
deixando sufocada. Aceito o seu copo d’água.
Adriana Matheus
- 235 -
A jovem esboçou um sorriso meigo e levantou-se. Por
fim, meio a contra gosto, acabou convidando-me para ir até a
sua casa, que não ficava muito longe dali - apenas a uns trinta
metros, creio!
Aprendi uma coisa nessa minha curta existência: nunca
ouvir um não antes de ouvir um sim. Era óbvio que eu nunca
deixaria aquela jovem ali chorando, sem nada tentar fazer por
ela.
Chegamos, por fim, em frente a uma casinha muito
velha e com os alicerces à mostra. O mato cobria toda a lateral.
O portão era de madeira e estava todo quebrado - a jovem teve
que levantá-lo para passarmos. O interior da casa era muito
simples e havia pouquíssima mobília. Para me sentar, a jovem
ofereceu-me um caixote. Ela foi até a cozinha e trouxe-me
água em uma moringa de barro, e serviu-me em um copo,
também de barro.
Depois de tomar calmamente aquela água,
deliciosamente fresca, perguntei-lhe:
– A senhorita vive sozinha nesta casa?
– Não, vivo com a senhora minha mãe. Sabe, senhorita,
minha mãe está muito doente e não tenho como ajudá-la,
porque ninguém me dá um emprego. Não sei como fazer para
pagar o doutor e comprar os remédios dela.
– Eu a entendo. Talvez, se a senhorita me permitir,
possa ajudá-la. Mas nem pense em dizer-me que isso será um
incômodo.
A jovem olhou-me tão triste que, em seus olhos, pude
ver o tamanho de sua dor. Por certo, não poderia abandoná-la.
– O que tem a sua mãe? Preciso saber do que se trata,
para poder saber em quê poderei ajudar.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 236 -
A jovem, então, contou-me tudo sobre a doença da
mãe.
– Minha mãe sofre com dores horríveis nos rins. Isso já
está acontecendo há mais de dois anos. Procurei o doutor e ele
veio até aqui examiná-la. Depois disse que o tratamento seria
muito caro e demorado. Estamos passando por muitas
dificuldades, pois meu pai faleceu precocemente, há seis anos.
Ele não tinha recursos e não nos deixou nada além desta velha
casa.
– Posso vê-la? Se não se importa, é claro!
– Imagina... Que falta de delicadeza a minha. Venha
comigo.
A jovem levou-me até o quarto da mãe, onde ela estava
deitada em uma caminha muito simples, quase sem cobertores
para cobri-la do frio da febre. Fiquei catatônica por alguns
segundos, olhando aquela triste cena, sem saber por onde
começar. Por fim, olhei-a bem dentro dos olhos e disse:
– Quero que a senhorita confie em mim. Mas, antes,
escute o que tenho a lhe dizer, pois não quero que, de modo
algum, pense que estou me esquivando de lhe ajudar. Agora
não posso fazer absolutamente nada pela senhorita, porque
estou com os pés a as mãos atados. Tenho que sair. Vou ao
armazém comprar alguns utensílios de extrema importância
para mim. Infelizmente, hoje já me havia programado para
esse tipo de tarefa. Mas prometo-lhe que voltarei assim que
tiver com tudo pronto para ajudá-la. Se a senhorita puder
deixar sua mãe um pouco sozinha, gostaria imensamente que
me acompanhasse à ferralheria e, depois, fosse comigo
encontrar uma grande amiga.
A jovem olhou para a mãe que, embora muito
convalescida, aprovou com a cabeça para que a filha fosse
comigo.
Adriana Matheus
- 237 -
Passei a mão sobre a testa daquela senhora e perguntei-
lhe:
– Como a senhora se chama?
– Catariana de La Costa. Quero agradecer por tentar
ajudar minha filha e eu. De agora em diante, seremos suas
servas.
– Não tem que me agradecer. Não as quero como
servas, mas como amigas.
Passei novamente a mão em seu rosto, tentando não
deixar que as lágrimas rolassem. Depois, silenciosamente, fiz o
sinal mágico que sempre Maria me fazia para que eu
adormecesse. Este sinal, de repente, veio-me claramente, como
tudo o que estava acontecendo comigo depois da viagem. A
mulher adormeceu rapidamente e, então, pudemos sair
sossegadas. A jovem ficou admirada, mas nada comentou
sobre o acontecido.
Esperei que a jovem trocasse de roupa, pois parecia
muito preocupada com suas vestes. Logo em seguida, fomos à
ferralheria. Lá, encontrei um homem tossindo muito forte. A
tosse era rouca. Observei-o logo da entrada e percebi que
aquela seria uma longa manhã. Mais um precisava de mim e,
com certeza, eu teria que ajudar também. Então, pigarreei para
que ele se virasse e disse:
– Bom dia, senhor!
– Bom dia, senhorita! Em que posso ajudá-la? - disse o
homem, tossindo e olhando-nos de cima abaixo.
– Quero saber se o senhor pode me fazer uma chave?
– Por que a senhorita não procura um chaveiro? Não
sabe ler? Sou ferreiro, não faço chaves.
– Sim, sei disso. Mas quero que o senhor derreta estas
correntes de bronze e me faça uma chave. - disse isso, tirando
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 238 -
de dentro de uma bolsinha algumas correntes de bronze que
eram de minha mãe.
Então, continuando com o assunto, falei:
– Tenho certeza de que o chaveiro entende de chaves,
por certo. Mas não me fará um serviço tão perfeito quanto o
senhor fará.
– Sim, nisso a senhorita tem razão: sou mesmo o
melhor ferreiro do condado. E saiba que, por meus serviços
serem todos manuais, cobro muito caro.
Disse isso olhando-me de cima abaixo, parecendo
duvidar que eu tivesse condições de pagá-lo. A arrogância
daquele homem já estava começando a me incomodar. Mas
apenas lhe disse:
– Faça seu preço e sei que lhe pagarei muito bem,
acredite! A propósito, sei como curar a sua tosse.
Depois de me olhar meio incrédulo, parecendo não
acreditar que eu tivesse dinheiro para pagá-lo, o homem
respondeu-me num tom de deboche:
– Ah... Não sabe, não. O que uma mocinha como a
senhorita pode entender da minha doença? Nem mesmo o
doutor conseguiu curar essa tosse horrível. Ora, senhorita,
aceito fazer o que me pede. Agora, não me venha querer passar
a carroça na frente dos bois e dizer-me que é mais entendida
do que o doutor. O que está querendo me dizer? Que a
senhorita é uma curandeira?
– O orgulho do senhor não vai melhorar as dores das
suas costas.
– Como sabe que sinto dores nas costas?
– Porque percebi que, ao tossir, faz careta e leva as
mãos até as costas. Isso significa que a tosse é intensa e já lhe
afeta os pulmões. Percebi, também, que o senhor sente certa
falta de ar - o que significa que está com um grande muco
Adriana Matheus
- 239 -
preso no peito. É isso que lhe causa essa terrível dor nas
costas. E o senhor tem razão ao dizer que não entendo nada
sobre as coisas que os doutores levaram anos aprendendo nas
faculdades da Europa. Mas tenho uma coisa que os doutores
com certeza não têm. Sabe o que é? Amor e caridade ao
próximo. Compadeci-me de vê-lo trabalhando assim, doente.
Se lhe estou dizendo que sei como curar sua doença, ao menos
o senhor poderia me dar uma chance de poder tentar, não
acha? Quanto a ser uma curandeira, saiba que não sou. Quem
me dera eu fosse, pois seria uma honra para mim ter nascido
com dons tão especiais. Assim, poderia curar muitas pessoas
necessitadas e carentes. Ouça uma coisa: não precisa fazer o
que vou lhe ensinar. À noite, peça à sua esposa para preparar-
lhe um unguento de água e farinha de milho. Depois de pronto,
peça-lhe que coloque o unguento quente dentro de um saco de
pano e, em seguida, coloque sobre as suas costas. Durante sete
dias, na hora de se deitar, repita isso. Com certeza vai aliviar-
lhe as dores nas costas. Mas, por favor, evite tomar golpes de
vento.
Percebi que o homem, embora arrogante, estava
prestando atenção em tudo o que lhe falava. Então, continuei,
passando-lhe uma receita caseira de ervas.
– Existe uma erva que se chama assa-peixe. É muito
comum achá-la no meio do mato. Um raizeiro que conheça
bem de ervas poderá ajudá-lo. Prepare-a do seguinte modo:
coloque duas colheres de sopa das folhas picadas da erva em
uma xícara de chá. Adicione água fervente e, depois, abafe
para amornar. Adoce com mel e tome duas a três vezes ao dia.
Pode também amassegar as folhas e tomar o seu sumo, mas é
meio amargo. Portanto, é mais aconselhável fazer o chá. Isso
vai lhe curar essa tosse. Acredite em mim, senhor Juan.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 240 -
– A senhorita não é uma bruxa, é? Pois não me lembro
de tê-la dito o meu nome também.
Dei um largo sorriso. Confesso que foi tentador não
poder confessar-lhe que sim. Mas, mais uma vez, precisei
esconder minha condição.
– Não, sou apenas uma jovem curiosa. E o seu nome
me foi dito por esta jovem que aqui me trouxe. Ela conhece o
senhor, não conhece?
Ele fez uma aceno positivo com a cabeça e prossegui:
– Não devemos criticar as pessoas, senhor Juan.
Principalmente quando está nos estendendo a mão. Como
disse, sou apenas uma jovem curiosa e gosto muito de ajudar
os outros. Isso sem contar que leio muito, senhor Juan, muito!
Não menti para o senhor Juan. Apenas omiti algumas
coisinhas, para que não saísse acusando-me levianamente.
Afinal, não estava praticando bruxaria, apenas ensinei a ele
uma maneira de curar-se daquela doença. Mas sabia que, se eu
citasse a palavra bruxaria, ele poderia colocar todos os meus
planos a perder por causa do preconceito que já havia
manifestado. O senhor Juan, após muito analisar minhas
palavras, olhou-me meio receoso e disse:
– Farei sua chave. Pode pegá-la amanhã, às oito horas.
Este é um bom horário para a senhorita?
– Sim, está ótimo! Amanhã estarei aqui, britanicamente
no horário combinado. E tenho absoluta certeza de que
encontrarei o senhor bem melhor e mais disposto.
– Acha mesmo que farei uso da sua mandinga? Se
pensa isso, está enganada, pois sou um homem muito católico
e não usarei de nenhum feitiço para curar-me. Não sou o tipo
de pessoa que passa por cima das leis de Deus. Isso seria uma
heresia contra o meu Pai.
Adriana Matheus
- 241 -
A arrogância e a ignorância daquele homem estavam
começando a tirar-me do sério. Mas, por uma questão de
lógica e sensatez, apenas lhe respondi:
– De modo algum, senhor Juan, estou passando por
cima da vontade de Deus. Mas também creio que não seja da
vontade Dele que o senhor continue doente. Também não tive
a menor intenção de ofendê-lo e, se o senhor pensa dessa
forma, então esqueça tudo o que esta jovem ignorante aqui lhe
ensinou. Afinal, nada sei desta vida, não é mesmo? Estando
aqui, diante de um mestre artesão, quem sou para discutir?
Também não quero que o senhor pense que sou intrometida e
sem educação. E, principalmente, não quero que o senhor
pense que estou lhe ensinando um feitiço para que fique ainda
mais doente. Não foi a minha intenção, senhor Juan. Só tentei
ser-lhe gentil e amigável.
Disse aquelas palavras porque estava imensamente
ofendida, porque percebi que aquele velho turrão começou a
ter pensamentos maliciosos e abomináveis em relação a mim.
Com isso, aprendi que, às vezes, não adianta tentar ajudar
algumas pessoas, pois elas, além de nascerem no meio da
ignorância e do preconceito, preferem morrer a darem o braço
a torcer, aceitando que estão erradas.
Olhei para a jovem que me acompanhava e ela estava
extasiada com minhas palavras. Depois de dar uma piscadinha
de olhos para ela, levantei a cabeça e disse:
– Até amanhã, senhor Juan. Espero, sinceramente, que
neste período o senhor reflita e baixe a sua guarda em relação a
mim. Afinal, não lhe estou afrontando em nada. Passar bem.
– Até, senhorita. Criatura insolente! - disse o velho
entre dentes, demonstrando total antipatia por mim.
– Anna, esse é o meu nome. E a recíproca é verdadeira.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 242 -
Falei dessa forma, olhando para trás e fitando-o nos
olhos. Com certeza ele entendeu que também o achei um
antipático. Eu e a jovem saímos da ferralheria, rindo daquele
velhote sisudo e arrogante. A jovem, ainda, acompanhou-me
até a carruagem, onde Maria estava. Eu as apresentei. Depois
de já estarem familiarizadas, virei-me para a jovem e
perguntei:
– A propósito, depois de termos passado todo esse
tempo juntas, ainda não sei o seu nome.
– Chamo-me Samara Cortez de La Costa, às suas
ordens!
– É um prazer, Samara, tê-la conhecido.
Maria deu um sorriso, parecendo ter aprovado a minha
mais nova amizade. Contei a ela, fazendo uma breve
retratação, tudo o que me havia acontecido desde o primeiro
momento em que chegamos à cidade juntas. Maria ficou
indignada em relação à arrogância do senhor Juan, mas
também se compadeceu da história da jovem Samara e deu-lhe
um pequeno obséquio, para que pudesse comprar alguma coisa
de comer para ela e a mãe. Prometi a Samara que voltaríamos
para ajudá-la no dia seguinte.
Depois de nos despedirmos, Maria e eu fomos ao
armazém comprar os outros ingredientes que faltavam.
Logicamente, comprei muitas coisas para minha nova amiga.
Dessa vez, Maria não deu nenhum palpite contrário. Parecia
estar aprovando tudo que eu fazia.
Andamos muito. Fomos a todos os fabricantes de
panelas de ferro da redondeza, até que achei a minha panela -
ou melhor, o meu caldeirão. O fabricante era um senhor que
vendia coisas usadas, e disse que aquele caldeirão havia
pertencido a uma famosa bruxa de Salém. De imediato,
comprei-o sem pestanejar. Depois, fomos a um marceneiro e
Adriana Matheus
- 243 -
perguntei-lhe com qual tipo de madeira ele trabalhava. Ele
citou várias. Mas, de repente, avistei um galho de carvalho
jogado em um cantinho. Perguntei ao homem:
– Senhor, o que fará com este galho de carvalho?
– Este? - disse ele, pegando e examinando o galho de
todos os ângulos.
– Sim. Esse mesmo.
– Vou jogá-lo na fogueira para servir-me de lenha.
– Hã? Não pode estar falando sério!
– Por quê? A senhorita quer este galho?
– Se o senhor for se desfazer dele e quiser me vender,
compro.
– Vender um galho? Não, senhorita, dou-lho, embora
não faço a menor ideia para que ele lhe será útil.
Fiquei muito grata ao marceneiro e, mesmo ele não
querendo aceitar, paguei-lhe. Em casa, pediria a Joseph para
talhá-lo para mim.
Comprei diversos vidros e potes. Maria, por sua vez,
indagou-me porque eu havia comprado tantos vidros, potes e
garrafas. Então, respondi:
– Ora, Maria, as garrafas são para os xaropes. Os potes
são para colocar as compotas especiais que farei, e os vidros
são para colocar as essências aromatizadas - segredinhos que
aprendi com a minha ancestral.
– Sério? Que pessoa mais cheia de mistérios ficou a
senhorita! Agora, além de me tratar mal, anda a fazer mistério
de tudo o que faz.
Ri muito do tom de ironia na voz de Maria e, depois,
completei a curiosidade dela, dizendo:
– Não voltaremos amanhã à cidade para cumprir a
promessa que fiz à jovem Samara.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 244 -
– Jesus! Não me precisa dizer mais nada. Já entendi
tudo, esse será um longo dia... E é melhor eu preparar meu
espírito para o que estar por vir daqui para frente. Santo Deus,
menina, não tenho mais tanta idade para lhe acompanhar
nessas suas novas mudanças de hábito. Pois a senhorita, depois
que conheceu o seu novo caminho, cria tantas ideias como o
vento muda de direção.
Dei uma gargalhada sonora e Maria ficou olhando para
todos os lados, para ver se havia alguém conhecido nos
olhando. Afinal, uma moça de família não podia jamais rir tão
alto. Era escandaloso demais. Qualquer demonstração de
alegria em público, por mais sincera que fosse, era motivo para
excomunhão. Mas não estava, naquele momento, preocupada
com o que as pessoas poderiam falar de mim, muito menos
com as regras da Santa Madre Igreja. Pois, pela primeira vez
em minha vida, estava sendo eu mesma. Havia me libertado
daqueles tabus, cheios de etiquetas de refinamento e educação.
Para mim, aquilo tudo não passava de uma máscara para
encobrir a verdadeira face da devassidão daquele povo
hipócrita e com falsa moral.
Voltamos para a carruagem, que estava em frente à
casa de chá, onde Lorenzo nos estava esperando para
retornarmos à casa. Esperei que o cavalariço empilhasse tudo
em cima da carruagem. Então, disse-lhe:
– Haverá uma pequena mudança nos planos, meus
queridos! Antes de voltarmos para casa, tenho que resolver um
pequeno assunto que ainda está pendente. Não se preocupem:
chegaremos à casa ainda esta tarde.
– A senhorita é quem manda! - disse o cavalariço.
–Vire na primeira esquina, antes da praça, e entre na
terceira rua, antes de chegar à ferralheria. Vou visitar uma
amiga.
Adriana Matheus
- 245 -
Maria olhou para o céu e sacudiu a cabeça, como quem
diz Eu sabia!.
Não demorou muito e, em alguns minutos, já
estávamos em frente à casinha da minha mais nova amiga. A
jovem, ao ver a carruagem parando em frente à sua casa, veio
logo nos receber com um sorriso amistoso nos lábios.
– Senhorita! Não acreditei que viesse. Ainda mais
assim, tão rápido.
Assim que desci da carruagem, ela veio receber-me
prazenteira, dando-me um abraço afetuoso e, em seguida,
convidando-nos para entrar. Antes de entrarmos, pedi-lhe
desculpas por ter antecipado minha visita. Disse-lhe que meu
coração pediu aquela atitude.
Já dentro da casa, deparamo-nos com Dona Catarina, a
mãe de Samara, sentadinha em um caixote. Embora a mulher
estivesse ainda muito pálida, ela me pareceu mais animada do
que quando a vi pela manhã. Samara, por certo, deve ter-lhe
dado algo de comer com o obséquio que Maria lhe doara.
Assim que me viu, abriu um sorriso simples no rosto e
cumprimentou-nos com um aceno de cabeça que mais parecia
gratidão. Pude chegar a uma conclusão com aquela inesperada
visão à minha frente: a mãe de Samara, na verdade, não saía da
cama porque estava enfraquecida. E, por já ter certa idade, isso
a debilitou. Não havia preço no mundo que pagasse aquela
cena. Percebi o quanto é importante ajudarmos os outros.
Mesmo que essa ajuda seja pequena, faz diferença.
Pedi ao cavalariço que trouxesse as compras de
mantimentos que havíamos feito no armazém. Dei a elas,
também, algumas panelas e potes de vidro que havia
comprado. Eu e Maria ajeitamos a casinha, passando a
vassoura e espanando. Maria arrumou toda a cozinha e, depois,
preparou-nos uma deliciosa canja para o jantar.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 246 -
Lorenzo e o cocheiro auxiliar capinaram em volta da
casa e arrumaram o portão quebrado. Ajudei Samara a dar
banho na mãe, que mal podia ficar de pé. Depois de tudo
pronto, procurei por Lorenzo e o flagrei olhando a jovem
Samara de uma maneira terna. Ele parecia estar tão
hipnotizado pela jovem que nem me viu pigarreando para
chamar sua atenção. Então, cutuquei-o com o dedo indicador e
disse:
– Será que o Don Juan poderia me dar um minuto da
sua atenção?
– Hã? Claro que sim, senhorita Anna. Em que posso
ser-lhe útil?
– Por favor, Lorenzo, vá até a casa do doutor e traga-o
aqui. Diga que é a filha do conde Juan Vladimir Porto Señra
que o chama a esta casa. Faça isso agora, que tenho pressa e
urgência. Depois, o Don Juan pode flertar com a jovem
Samara.
Ela corou de imediato. Logicamente, eu já teria planos
futuros para aqueles dois enamorados. Lorenzo apertou o
chapéu nas mãos e saiu tropeçando, parecendo muito sem
graça com o meu comentário. Samara não sabia o que fazer;
então, fez um comentário, tentando desviar a minha atenção
daquela cena que havia visto de dois jovens apaixonados se
olhando.
– Meu Deus, a senhorita é uma duquesa? Estou tão
envergonhada... Santo Deus, como pude ser tão ignorante em
não perceber!?
– Não. Sou apenas filha de Juan Vladimir Porto Señra.
Na verdade, somente minha madrasta é condessa. Meu pai
casou-se com a senhora condessa Marli Von Del Prat e, por
isso, exerce também o direito ao título. Mas nada tenho a ver
com a nobreza. Minha mãe, embora não a tenha conhecido, era
Adriana Matheus
- 247 -
filha de fidalgos, mas eram pessoas muito simples. Eles foram
os pioneiros deste condado; muitas melhorias aqui foram feitas
por eles. Eles, sim, são importantes. Nada sou além de uma
boa amiga. Por favor, não faça cerimônias comigo. Senão, eu
que ficarei constrangida com a senhorita. Não estou aqui para
observar sua casa ou seus modos. Estou aqui para ajudá-la.
– Minha Santíssima Mãe de Deus! Mesmo assim, como
eu pude ser tão displicente, oferecendo-lhe um caixote para a
senhorita sentar-se!?
Dei um sorriso e, depois de sacudir a cabeça, respondi:
– Se não tem outra coisa para me oferecer, então, o
aceito de bom grado, fique sabendo! Além do mais, é melhor
sentarmos em caixotes do que ficarmos de pé, não acha? O
mais importante para mim agora é a cura e a saúde de sua mãe.
Pois ela, sim, tenho certeza de que já lutou muito. Agora
merece, ao menos, um mínimo de conforto. Saiba, senhorita
Samara, que todos estamos aqui para ajudá-las em tudo o que
pudermos. De modo algum estamos aqui para julgá-las ou
prestar atenção nos objetos que faltam em sua casa.
– A senhorita é uma santa! Pelas suas atitudes, provou-
me que tem, sim, a nobreza da alma.
– Oh! Não sou santa nem em pensamento, acredite! Só
resolvi fazer o que todos deveriam: caridade!
Ela ficou sem saber como me agradecer, de tão feliz
que estava com os presentes. Por fim, muito sem graça e de
cabeça baixa, perguntou-me:
– Como poderei agradecer-lhe, senhorita Anna?
Segurei seu rosto magro com carinho, forçando-a olhar
em meus olhos, e respondi:
– Em suas orações, lembre-se de mim, pois muito em
breve serei eu quem precisará da senhorita.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 248 -
Maria, que estava à porta, já ia me fazer uma pergunta
quando fomos interrompidas pelo cocheiro. Ele chegou junto
com Lorenzo, trazendo o doutor, todo aflito. Ele já foi direto
em minha direção, perguntando:
– O que tem a menina e o que faz aqui? Essa gente fez-
lhe algum mal?
– Não, doutor, estou muito bem. Não tenho
absolutamente nada. Essa gente, como o senhor se refere, são
apenas pessoas pobres que precisam da sua ajuda. Como não
têm condições, estou pagando para que o senhor as atenda da
melhor maneira possível.
Fiquei muito zangada com aquele velhote fedido e
cheio de preconceito. Engolindo uma resposta malcriada,
prossegui:
– Mandei chamá-lo, doutor, porque esta senhora
precisa de cuidados. Está muito debilitada e sei que o senhor é
o único médico no condado. Mas, caso o senhor não quiser
atendê-la, irei ao condado vizinho e pedirei ao doutor de lá
para vir aqui atendê-la.
Sabendo da rivalidade entre os dois doutores, acabei
pegando o ponto fraco daquele velhote ensebado. Apertei os
olhos e senti arrepio com aquele pensamento nauseante. Ele
ainda continuou com aquela conversa, parecendo não ter
ouvido o que falei de início.
– Creio que não tenham dinheiro para serem atendidas.
Preciso comer também. – disse ele, com ar carrancudo. - Seu
pai sabe que a senhorita usa o dinheiro dele com indigentes?
Por pouco não o segurei pelo colarinho encardido do
terno. Mas, respeitando a idade em que ele já se encontrava e
também a má condição auditiva, disse-lhe, por fim, quase aos
gritos, para ver se ele me escutaria:
Adriana Matheus
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– Estou pagando! A propósito, o senhor não fez um
juramento junto ao conselho de medicina? Nesse juramento,
não é verdade que não poderia negar auxílio médico a
ninguém? O dinheiro é meu, são minhas economias; não
preciso do dinheiro do meu pai. Além de ter o meu dote, juntei
algumas economias e agora achei uma boa maneira de gastá-
las. Então, já que será remunerado, cumpra o seu papel, se
quiser receber o meu dinheiro... Sabe, doutor, nunca gostei do
senhor, e o que fará aqui eu faria muito melhor. Só que preciso
do seu diagnóstico para saber o que melhor fazer. Agora
comece a trabalhar, examinando a paciente, pois sabemos que
tempo é dinheiro, e o senhor já gastou metade do meu dinheiro
com conversa desnecessária até agora.
Ele ficou muito nervoso, mas o mercenarismo falou
mais alto. Levamos a mãe de Samara para o quarto, para
melhor examiná-la. Samara ficou com a mãe dentro do quarto;
eu e Maria ficamos do lado de fora, apreensivas. A consulta
demorou umas duas horas e, naquele intervalo de espera, mil e
um pensamentos passaram na minha cabeça. Fiquei pensando
em uma ideia para ajudar Samara e deixar Dona Catarina
amparada no pouco de vida que ainda tivesse. Obviamente,
colocá-los-ia em prática. Só precisaria organizar-me mais em
algumas questões.
Depois de muito esperar, o doutor saiu do quarto,
acompanhando Samara. Depois de coçar a cabeça cheia de
casquinha, disse:
– A senhorita tinha razão em estar preocupada com a
saúde dessa mulher. Ela está com anemia profunda e
problemas na bexiga. Eu diria que seus rins também estão
quase parando de funcionar. Isso é o que está causando aquela
cor amarelada nela. Mas devo adverti-las que uma cirurgia
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 250 -
seria de alto risco, pois ela está muito debilitada devido à
anemia.
– O que devemos fazer, então?
– Passarei remédios para a dor e para a anemia. É só o
que posso fazer por hora. Duas vezes por semana, passarei por
aqui para vê-la e acompanhá-la em seu tratamento. É muito
importante a questão da alimentação, que deve se muito rica
em ferro. Ela deve comer muito fígado de boi e, também,
tomar muito suco de frutas.
– Não se preocupe com isso, doutor. Farei o que for
necessário para que elas fiquem bem de agora em diante. Eu
mesma cuidarei da alimentação dessa senhora.
Depois de pagá-lo e ter-lhe adiantado o dinheiro das
futuras consultas, peguei a receita e pedi que Maria fosse ao
boticário para encomendar os remédios. Ela foi de imediato.
Fui para a cozinha e preparei uma poção à base de ervas
medicinais. Coloquei tudo dentro de um vidro e dei à Samara,
para que desse à mãe três vezes ao dia, por um mês.
Eram ervas simples, que podem ser encontradas até no
meio do mato. Usei a tanchagem ou Plantago major, também
conhecida como transagem. Essa erva, tão popular e comum,
combate as seguintes moléstias: inflamação nos ouvidos, nos
olhos, nas gingavas, na garganta, nas amígdalas, nas faringes,
no estômago e nos rins, entre tantas outras doenças.
A outra erva que usei foi a quebra- pedra, que serve
para chás caseiros, para dissolver cálculos nos rins ou pedras,
como vulgarmente falamos. Essa erva tem as seguintes
propriedades: antiespasmódica, adstringente, analgésica,
antisséptica, anti-hipertensora, anti-inflamatória, diurética e
tônica.
Não sabia bem como essa pequena erva veio parar em
Salamanca, na Espanha. Mas o fato é que ela era muito eficaz
Adriana Matheus
- 251 -
para o tratamento de todas as doenças citadas. É muito
importante que eu cite, aqui, que nunca quis ser uma doutora.
As receitas que ensino são apenas auxiliares à medicina. Elas e
as dicas aqui expostas são uma orientação prática e fácil
àqueles que desejam se utilizar de plantas e ervas à disposição
de todos. Nós, bruxas, vivemos de tudo o que a mãe terra nos
fornece. Se ela nos oferece a cura, então, por que não utilizá-
la?
Quando Maria voltou, trazendo o remédio preparado
pelo boticário da região, entreguei nas mãos da jovem Samara,
orientando a maneira como ela daria à mãe. Tomamos a canja
que Maria havia preparado e, depois de tudo resolvido,
despedimo-nos. Ao sairmos, prometi que voltaria a vê-la. A
jovem agradeceu-me tanto que cheguei a corar.
Já na carruagem, Lorenzo olhou-me com os olhos
cheios de lágrimas, dizendo as seguintes palavras:
– A senhorita é um anjo, um anjo... O que faria essa
pequena família se a senhorita não lhe tivesse ajudado?
– Não, Lorenzo, só fiz a minha obrigação como cidadã.
Lorenzo nem desconfiava que eu tivesse planos para
ele e Samara. Maria deu-me um tapinha nas costas, olhando-
me com ar de admiração. Praticamente havia me tornado uma
heroína para aqueles dois. Mas eu não poderia deixar que me
vissem daquela forma, pois não havia feito nada demais.
Na volta para casa, eu e Maria não falamos muito
dentro da carruagem. Só queríamos descansar depois daquele
dia de trabalho árduo. Não vimos a minha madrasta quando
chegamos em casa. Segundo nos informou a copeira, ela
estaria em seu quarto, com terríveis dores de cabeça –
obviamente, causadas pelo excesso de bebidas da noite
anterior. Mas ela disse para a copeira que foi por causa do
desgosto que eu lhe havia causado.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 252 -
Como eu não estava mais com vontade de ouvir as
intrigas da copeira, fui para o meu quarto, deixando Maria a
sós com ela. Tirei os sapatos tranquilamente, sentei-me na
beira da cama e peguei um livro para ler. Naquele dia, estava
muito calma e não deixaria que nada perturbasse minha paz.
Algumas horas depois, a copeira trouxe-me o banho.
De cabeça baixa eu estava e de cabeça baixa continuei, lendo o
meu livro. Mas percebi que ela me olhava com cara feia. Acho
que ela queria que eu perguntasse como a minha madrasta
estava, para que pudesse defendê-la, como sempre fazia. Ao
perceber que não me manifestei com nenhuma emoção
aparente, ela saiu, esbarrando propositalmente o balde em
todos os cantos – pensando, assim, que me incomodaria.
Fiz meu asseio tranquilamente. Coloquei uma camisola
limpa e fresca. Certifiquei-me de ter fechado a janela.
Dispensei o jantar e outras refeições, porque estava satisfeita.
Depois de fazer algumas anotações em meu diário, virei para o
lado e adormeci, simplesmente.
Naquela noite, especificamente, tive um sonho
estranho. Sonhei com um lugar frio e sombrio, onde eu era
mantida em cativeiro por pessoas encapuzadas. Elas
circulavam em volta de mim e apontavam-me o dedo, como se
estivessem acusando-me de alguma coisa. Porém, não
consegui ouvir o que diziam.
Acordei de supetão, como se alguém me estivesse
acordando, ou como se tivesse levado um choque de um raio.
Fiquei muito assustada. Era como se alguma coisa estivesse
para acontecer naqueles dias que viriam pela frente. Também
sabia que aquele sonho fazia parte do meu futuro, mas não
conseguia entendê-lo de imediato. Sabia que as pessoas do
meu sonho eram religiosas, e isso me intrigou muito. Fiquei
Adriana Matheus
- 253 -
durante algum tempo sentada na cama, tentando decifrar
aquele sonho confuso.
De repente, olhei para a janela e ela estava aberta,
novamente. Confesso que me deu certo receio. Quem estaria
entrando em meu quarto e abrindo a janela? E com qual
propósito isso estava ocorrendo? Havia me esquecido de
perguntar à Maria no dia anterior, mas nunca me esqueceria de
perguntar-lhe no dia seguinte.
Mudei meus pensamentos de direção. Levantei-me e fui
até a janela, fechá-la. Resolvi, por uma questão de segurança
própria, trancar a fechadura da porta do meu quarto também.
Como percebi que não conseguiria dormir aquela noite, peguei
meu diário e comecei a anotar algumas coisas nele.
Foi quando ouvi um barulho estranho vindo do jardim.
Fiquei muito intrigada. Então, levantei-me na ponta dos pés,
para não chamar atenção, e fui até a janela. Abri bem
devagarzinho e olhei de meia greta. A condessa estava de
camisola e roupão, correndo pelo jardim em direção ao portão.
Vi quando ela conversou com um homem, que não era um dos
seus convivas. Embora a Lua estivesse iluminando tudo à
distância, não me deixou ver o rosto do homem. Mas, pelo
modo de se vestir, pareceu-me um fidalgo ou mesmo um
monarca. Fiquei imaginando o que aquele homem estava
tramando junto à minha madrasta, àquelas horas da noite. O
mais estranho foi perceber que os dois gesticulavam e olhavam
em direção à minha janela. Pensei Será que minha madrasta
estaria planejando me matar?
Depois de ver e presenciar aqueles fatos, não consegui
dormir mais aquela noite. Fiquei apavorada, pensando que a
condessa poderia estar tentando me assassinar. Aqueles
pensamentos começaram a me deixar trêmula, pois sabia
perfeitamente que a esposa de meu pai era uma mulher
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 254 -
ardilosa e vingativa e, com certeza, estava planejando algo
para se vingar pelas coisas que falei com ela pela manhã.
Sentei-me na cama, cruzei as pernas e comecei a orar com toda
a força do meu ser. Tentei espantar aqueles pensamentos que
não me deixavam dormir. Pedi a Deus que acalmasse meu
coração e que me desse forças e visão para que pudesse ver o
que a condessa estava planejando contra mim.
Depois que orei a Deus, meu coração foi se acalmando
lentamente, até que fiquei mais relaxada. Então, voltei a
escrever no meu diário. Aproveitei para falar sobre a
meditação e o dom da paciência.
A meditação é um processo de se contatar com o ser
interior e canalizar as energias puras e vibratórias num
processo de transcendência. Possui técnicas que permitem que
a vida interior se desenvolva, proporcionando o caminho para
uma percepção maior da vida real. É a forma de nos despertar
para a presença do Divino na criação e no nosso mais profundo
ser. A meditação contribui de forma positiva para nosso
desenvolvimento pleno e harmonioso. São Paulo definiu o
estado da meditação em sua epístola aos efésios, capítulo 4,
versículo 13.
Meditar é orar em silêncio. É ocupar o pensamento
com o vazio - ou seja, temos que esvaziar o pensamento atual,
deixando a mente sozinha. Meditar é a coisa mais difícil que o
ser humano pode imaginar. Pois o homem não consegue, por si
só, estar sossegado dentro de si mesmo. Não só as bruxas, mas
todos os seres humanos deveriam meditar, ao menos uma vez
na vida. Meditar é deixar o pensamento ser absorvido para
dentro de uma realidade suprema da consciência - o que é
absolutamente indescritível. O centro do nosso ser é o ponto
onde Deus nos toca, levando-nos ao despertar espiritual,
produzindo várias experiências de caráter místico. Na
Adriana Matheus
- 255 -
meditação, deve-se silenciar a mente pensante, pondo em
prática o entendimento das coisas que não podem ser vistas e
que pertencem à consciência pura. Temos que ter apenas uma
noção única da meditação: nela não há consciência pensante.
Falo de consciência pura quando o espírito habita a mais alta
verdade, sem qualquer mistura de pensamento imaginativo.
Para chegar a esse nível, devemos calar todas as memórias e
ideias inquietas, silenciando o pensamento. Nenhum
movimento na vida religiosa tem qualquer valor, a menos que
seja um movimento para o interior, em direção ao centro
silencioso da nossa existência, onde está Cristo: o nosso eu. A
meditação é um encontro cósmico, não só com o passado ou
com os espíritos, mas com a nossa mente inconsciente. É o
encontro da paz interior.
Para que uma pessoa entre em contato consigo mesma,
precisa saber que a primeira coisa a fazer é treinar a respiração.
Tem que ser uma respiração correta, disciplinada e induzida ao
mesmo tempo. Não pode existir nada pendente e nenhum
barulho em volta dela, pois isso atrapalha o treino mental. Uma
vez dominada a respiração, a segunda coisa a fazer é corrigir a
postura. Essa postura é designada de hasanas. Depois disso,
comece a desenvolver a sua concentração física e mental. Para
isso, procure respirar, mantendo a postura e olhando para
frente, fixando num ponto. Seguidamente, olhe para o ponto e
para si. Fique assim, em silêncio absoluto. Espere que as ideias
fluirão à mente, mas se não as agarrar, elas, por si mesmas,
passarão. Isso acontecerá até que a mente esteja aquietada e
consiga tocar a consciência pura. Como citei, meditar não é
fácil e nem é para qualquer um.
A busca de Deus, ou contato com as divindades, é algo
intrínseco ao ser humano. O maior contato com Deus é aquele
que estabelecemos através da prática da meditação. Algumas
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 256 -
pessoas pensam que se trata de ensinamentos genéricos, e que
basta esperar o espírito em questão aparecer. Mas no nosso
sentir, há um erro nessa maneira de pensar.
Em primeiro lugar, porque ao nosso redor há sempre
espíritos querendo comunicar-se conosco, mais comumente de
baixa categoria. Em segundo lugar, porque, não chamando um
espírito em particular, abrimos um portal para qualquer
espírito - até mesmo os vulgares ou malignos. Em uma reunião
ou assembleia, não dar a palavra a nenhum espírito que se
manifeste é esperar por um resultado catastrófico. Os espíritos
têm uma necessidade muito grande de se comunicar com as
pessoas - isso é fato consumado. É muito imprudente, também,
que nos neguemos a falar com um espírito que procura
comunicar-se conosco, levando em conta que ele pode ser um
conselheiro ou um mentor espiritual. Quando um espírito aflito
tentar falar, mesmo que seja confusa a sua manifestação e não
consigamos entendê-lo, apenas ouvir é a melhor resposta. Na
maioria das vezes, esses espíritos precisam de ajuda. Devemos
levar em consideração, também, o fato de que os espíritos
estão muito distantes de nós. Por isso mesmo, é difícil que
manifestem a comunicação. Caso alguém queira comunicar-se
com um espírito, deve ter muita paciência, pois ele pode
demorar até dias para que consigamos escutá-lo. Geralmente,
manifestam-se muitos de uma vez, pois a necessidade de se
comunicarem é muita. Isso é o que causava as muitas vozes
que eu ouvia quando criança. O apelo direto a determinado
espírito é um laço direto entre nós e ele. Por isso, ao evocar um
espírito, tenha muita cautela - isso é uma regra básica e
absoluta. Espíritos familiares são habituais e também sempre
aparecem, mesmo sem serem chamados.
Fiz essas anotações porque senti a necessidade de
meditar e tentar chamar o meu mentor espiritual. Ainda não o
Adriana Matheus
- 257 -
conhecia. Mas, como precisava de ajuda para acalmar-me os
nervos e orientação para saber lidar com aquele perigo
eminente, tive que chamá-lo. Podemos, sempre que quisermos,
chamar nosso mentor espiritual. Mas isso não é para se tornar
um hábito frequente, pois estamos lidando com pessoas.
Embora elas não estejam mais no plano terrestre, merecem
respeito de igual modo. Portanto, nunca faça do mentor
espiritual uma marionete.
Relaxei os músculos e fiz novamente minhas orações,
de olhos fechados. Pedi a Deus que me desse a capacidade de
entender os espíritos com clareza, porque sabia que antes, para
mim, eles eram apenas vozes e eu nada entendia do que me
falavam.
Depois de meditar e limpar o meu eu, sentei-me na
cama com as pernas cruzadas e perguntei, em voz alta, mas
com os olhos ainda fechados:
– Acaso há algum espírito familiar aqui presente que
possa responder-me algumas perguntas?
A princípio, nada ocorreu. Então, fiz essa pergunta
mais duas vezes. Até que um vento forte entrou pelo quarto,
com tamanha força que tive que me manter firme. Havia
naquela experiência um fator muito importante: minha janela
estava completamente fechada. Senti medo e calafrio, mas me
mantive inerte e de olhos fechados. Foi, então, que senti uma
forte presença feminina perto de mim. Um suave perfume de
mulher invadiu todo o ambiente. Perguntei, então:
– Quem é você? Se está aqui neste recinto para fazer o
bem, seja bem vinda. Mas se veio atormentar este lar, por
favor, peço sua compreensão para que se retire em nome de
Deus. Se for minha parenta, diga-me seu nome.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 258 -
O vento soprou novamente, só que dessa vez mais
suave e bem próximo ao meu ouvido. E uma voz doce e
sussurrante falou-me:
– Não se preocupe, Anna, não lhe faria nunca nenhum
mal. Sou Elizabeth, sua mãe.
– Mãe!
Tive vontade de abrir os olhos e abraçá-la, mas resisti
mais uma vez, pois sabia que não estava preparada para vê-la
em sua forma incorpórea. Isso sem contar que, sem querer, eu
poderia afastar seu espírito. Um espírito familiar não vem com
a intenção de nos assustar, mas de nos ajudar ou pedir-nos
algo. Mas, muitas vezes, não o vemos de uma maneira muito
agradável. Isso varia muito com a forma que está nosso
pensamento. E o meu, naquele momento, não estava em
perfeita harmonia com o universo espiritual - o que poderia
ocasionar uma manifestação ectoplásmica assustadora.
Continuei aquela conversa, sem fazer movimentos bruscos: da
mesma forma que eu poderia me assustar, ela também poderia
se assustar comigo. Alguns espíritos são cautelosos e sensíveis.
Então, por fim, disse-lhe:
– Mãe, como a senhora está? Tenho tantas saudades...
Sinto tanto a sua falta. Tenho tantas perguntas...
Ela deu um sorriso, que pude perceber com a minha
mente inconsciente.
– Estou bem, minha filha, mas ainda estou estudando
muito.
– Como assim, estudando?
– O mundo espiritual é bem parecido com o mundo de
vocês. Só que aqui vivemos em paz e temos que escolher
tarefas. O trabalho é constante. Tive alguns problemas quando
deixei meu aparelho. Levei algum tempo para aprender que
não voltaria tão rápido. Fiquei em um hospital, curando-me de
Adriana Matheus
- 259 -
uma espécie de loucura sintomática. Não aceitava não ter você
em meus braços e era muito apegada ao amor carnal de seu
pai. Com o tempo, os auxiliares foram me mostrando como era
o funcionamento deste lado. Aceitei, por fim, viver em uma
colônia onde as casas eram parecidas com as do mundo onde
vivi. Conheci muita gente e encontrei alguns parentes, mas
outros decidiram reencarnar. Comecei, então, a fazer um
trabalho social com crianças vítimas de abortos. Elas são
espíritos difíceis, pois foram rejeitados por seus pais e, muitas
vezes, não aceitam uma nova família. Por anos assombram as
casas onde queriam morar, e até deixam seus habitantes com
problemas mentais sérios. O caso mais grave foi de um
menininho cuja mãe tentou três abortos e, no oitavo mês,
quando ele finalmente conseguiu nascer, ela o enforcou ainda
vivo. Mas, mesmo tendo tanto trabalho, sempre tive permissão
para visitá-la. Quando você era criança, eu sempre estava por
perto, evitando que se machucasse ou que alguém lhe fizesse
algum mal.
Interrompi minha mãe, fazendo-lhe uma pergunta que
havia muito tempo me deixava intrigada:
– Foi a senhora quem esteve comigo aos dez anos,
quando me olhava ao espelho?
– Sim. Perdoe-me se a assustei, não foi minha intenção.
Por isso, não apareci mais.
– Eu sei, mãe. Na verdade, sempre soube que era a
senhora quem me cobria à noite. Só não sabia como. A
senhora é o espírito que vai me auxiliar durante minha jornada
terrena?
– Não, só vim para poder apresentá-lo a você e matar as
saudades que sentia.
– Quem será, então? É algum dos meus entes falecidos?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 260 -
– Também não. Seu nome é Heixe, e ele é um espírito
de muita luz e de uma sabedoria infinita. Ele é o responsável
por proteger você e o seu amor. Também é o responsável
pela colônia onde vivo.
– E qual é o nome dessa colônia, mãe? - quis saber.
– La Paz. É um lugar maravilhoso, com tantos campos
e flores... Lá é como se fosse uma fazenda. Só que, ao invés de
cultivarmos hortaliças, cultivamos pessoas. Resgatamos
crianças vítimas de abortos e crianças que são assassinadas de
maneiras cruéis. Damos a elas todo o amor que não tiveram.
Ensinamos-lhes princípios morais e encaminhamo-las para
uma nova encarnação. Confesso, minha querida, que é um
trabalho duro e árduo, mas compensador! Sempre que damos
amor, recebemos de volta. Como vê, essa foi a maneira que
acharam para compensar a falta que você faz para mim.
Ficamos vinte minutos conversando. Ela me respondeu
sobre uma série de perguntas sucessivas que lhe fiz. Foi
maravilhoso poder conhecê-la. Minha mãe pareceu-me um
espírito muito sereno e dedicado. Perguntei-lhe se ela é quem
estava abrindo minha janela.
– Não, Anna. Não temos permissão para fazer esse tipo
de coisa. Quando esses fatos acontecem - o que é uma raridade
-, sempre são provocados por um incumbo: espíritos sem luz,
vulgarmente denominado assim na terra de demônio. Mas não
é o caso aqui.
– Então é uma pessoa de carne e osso que está fazendo
isso?
– Sim, é sim.
– Quem é essa pessoa e por que está fazendo isso?
– A pessoa que está fazendo isso é a sua madrasta. Mas
não tenho permissão de lhe contar mais nada. Terá que
Adriana Matheus
- 261 -
descobrir por sua própria conta. Apenas lhe peço que tome
muito cuidado.
Aquelas palavras só serviram para me deixar mais
apreensiva, pois ressaltaram minhas suspeitas de que minha
madrasta poderia estar tentando algo contra mim.
Interrompemos a nossa conversa, pois uma grande luz
apareceu, iluminando todo o recinto. A luz era tão forte que,
mesmo eu estando com os olhos fechados, pude percebê-la.
Depois de escutar minha mãe apresentando-se, senti um
leve perfume de flores no ar e, então, Heixe apresentou-se. Sua
voz era grave, mas ponderada. Então, como se fosse o vento
forte, ele falou:
– Abra seus olhos, Anna, não precisa ter medo de mim.
Não há nada que temer. Abra os olhos para que possamos falar
com você.
Senti um arrepio percorrer todo o meu corpo.
Lentamente, fui abrindo os olhos, para que a luz que saía de
Heixe não me cegasse, pois era muito reluzente.
Na minha frente, deparei-me com um homem alto,
muito louro, aparentando ter trinta e poucos anos. Suas vestes
eram de um linho muito branco e ele calçava sandálias
douradas. Seus olhos eram de um azul inigualável. Todo o
recinto foi tomado pela forte luz e pelo cheiro de flores que
saíam dele. Fiquei completamente extasiada. Nunca havia
visto nada tão maravilhoso antes. Heixe, percebendo meu
estado de euforia, disse:
– Sou seu mentor espiritual. Estou aqui para ajudar-lhe
no que for preciso.
– Sinto-me muito honrada por receber em minha casa
alguém com tanta grandeza como você. Espero poder ser digna
de tamanha responsabilidade e confiança. Muito obrigada por
ter vindo ajudar-me.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 262 -
Conversei com Heixe a respeito de várias coisas. Tirei
muitas dúvidas que tinha em relação ao mundo espiritual. Ele
foi maravilhoso comigo, tendo paciência e respondendo-me
tudo, pois estava meio confusa e perdida em relação a muitas
coisas.
Heixe contou-me, também, ter sido vítima de uma jura
de amor e, durante duas de suas reencarnações, ele assassinou
seu amor porque sentia ciúmes. Custou a se libertar e a libertar
sua vítima. Até que, depois de muito sofrimento, aceitou ajuda.
Após se restabelecer, estudou durante anos a fio e, finalmente,
encontrou seu amor em uma colônia. Ambos, agora, auxiliam
vítimas de sortilégios e juras.
Sua presença transmitia-me muita paz e sabedoria.
Heixe orientou-me a como seguir o meu caminho. Estava
eufórica e muito feliz por ter tão perto de mim um espírito de
tão alta grandeza. Então, fiz a pergunta principal, o pivô por tê-
los evocado:
– Como farei para descobrir o que minha madrasta está
planejando contra mim? Pois sei que é algo diabólico.
Confesso que tenho medo.
Heixe respondeu-me, meio a contra gosto, da seguinte
forma:
– Tem toda a razão por temê-la. Mas saiba que
estaremos aqui para lhe ajudar, Anna. Não posso dizer-lhe
muita coisa, mas na hora certa você saberá como agir. Tenha
certeza apenas de uma coisa e ouça com muita atenção o que
irei lhe dizer: não centre muito suas energias em apenas uma
pessoa, pois o mal, Anna, às vezes está dentro de quem mais
amamos. Alguém que, para nós, é considerado um herói. Sabe,
minha querida, você passou uma vida de repressões e
sofrimentos nesta casa. Portanto, mediante a sua dor, não
percebeu quem era o seu verdadeiro inimigo. Não quero que,
Adriana Matheus
- 263 -
de forma alguma, se revolte ou se entristeça com as minhas
palavras. Quero apenas que pense e ore muito, minha querida,
pois o que ainda estar por vir pode fazer-lhe querer fraquejar
em sua jornada. Saiba, Anna, que tudo o que nos acontece
nesta terra é permitido pelo Pai Maior. O que posso lhe dizer
mais sobre isso é que essa pessoa que irá lhe trair traz consigo
uma grande mágoa de sua outra vida como Shaara. O espírito
dessa pessoa tornou-se muito revoltado. Resgatá-lo foi muito
difícil. Achamos que uma reencarnação junto a você seria boa
para ele. Mas nos enganamos: as memórias revoltosas que ele
trouxe em seu inconsciente não lhe abandonaram. Preste bem
atenção, pois logo acontecerão fatos que lhe colocarão não só
em perigo, mas também lhe causarão muita decepção. Não
julgue essa pessoa, pois ele a ama muito. Inconscientemente,
não consegue perdoá-la.
Entendi que Heixe falava sobre o meu pai. Aquela
revelação deixou-me chocada. Então, comecei a juntar os fatos
e percebi que Heixe estava coberto de razão. Meu pai sempre
ficava estático, olhando o horizonte. Sua depressão fazia-o
beber compulsivamente. Houve momentos em que o flagrei
olhando para mim como se me odiasse. Eu, às vezes, achava
que a minha madrasta estava certa quando dizia que ele
também culpava-me pelo falecimento de minha mãe. Embora
ele mesmo tenha me defendido certa vez, agora muitas coisas
faziam mais sentido.
Fiquei conversando com Heixe e minha mãe até três da
manhã, quando se despediram de mim. Ela não tinha muita
permissão para me responder, mas ele me orientou,
respondendo tudo o que eu perguntava. Prometeram sempre
atender-me quando necessário fosse.
Aprendi, com essa experiência, que os espíritos
poderiam sempre nos auxiliar e nos ajudar, mas nunca
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 264 -
poderiam interferir em nossos destinos. E que também
poderiam nos responder só o que lhes fosse permitido. Eles
respeitavam a hierarquia das ordens superiores e divinas. Têm
obrigações com seus escolhidos e respectivos trabalhos,
habitam em colônias e podem estar em muitos lugares, mas
nunca ao mesmo tempo.
Sabia que deveria ter muito cuidado com zombeteiros,
pois nosso espaço físico e invisível aos olhos está povoado de
espíritos de todas as classes. Aquele pensamento deixou-me
um tanto assustada e tímida: só de imaginar um espírito
observando-me trocar de roupa, constrangia-me.
– Espero que vocês respeitem minha privacidade!
Imagine só!- disse em voz alta, rindo sozinha.
Aprendi, também, que somos nós que atraímos os
espíritos errantes e sem doutrina – ou, como vulgarmente os
chamamos, espíritos sem luz, ou rebeldes. Isso depende muito
da doutrina espiritual de cada um.
A faculdade mediúnica não é só para isso: ela é apenas
um meio de comunicação. Aprendi que podemos atrair a
antipatia ou a simpatia de um espírito. Compreendi que posso
estar rodeada pelos que têm afinidades ou não, sendo
superiores ou inferiores. Os espíritos não passam de almas
desprendidas dos corpos, que levam consigo o reflexo de suas
qualidades e imperfeições. A ciência humana ainda está muito
longe de aprender sobre essa magnitude. Ouso dizer que irá
demorar muitos séculos para que aceitem esse tipo de
sabedoria astral. Por mais que os estudiosos e cientistas - e até
alguns astrólogos - estudassem, os seres humanos não
alcançariam com facilidade tal sabedoria. Eu, agora, estava
entre dois mundos e sentia-me privilegiada. Minha missão era
ajudar os enfermos e necessitados, e esclarecer-me o quanto
mais na ciência do saber.
Adriana Matheus
- 265 -
Minha mente estava cansada e minha cabeça parecia
estar cheia de bolhas. Mas precisava levantar-me e ir à cidade.
Queria ver como estava passando Dona Catarina, e ainda
precisava passar no ferreiro e pegar minha encomenda. Depois
de muito lutar contra a fadiga e de não ter conseguido dormir,
levantei-me a contra gosto e fui olhar-me ao espelho. Santo
Deus!, pensei comigo. Estava péssima: meus olhos, cobertos
por enormes olheiras. Teria que arrumar uma desculpa para
contar sobre aquilo à Maria. Caso lhe falasse o que havia
acontecido, ela poderia ficar muito preocupada -
principalmente sobre o fato de que meu pai seria o causador de
toda a minha desgraça.
Arrumei-me rapidamente. Não poderia ficar um
segundo parada ou o sono tomaria conta de mim novamente.
Desci para o desjejum e, no caminho, encontrei com a copeira,
que subia com a bandeja de desjejum da condessa.
Cumprimentei-a casualmente. Ela, por sua vez, falou:
– Senhorita, já ia levar seu desjejum daqui a pouco!
Perdoe-me, estou atrasada?
– Não, decidi levantar-me mais cedo hoje. A propósito,
de hoje em diante, tomarei meu café na cozinha com vocês.
Não me olhe assim, porque não estou doente. Muito pelo
contrário: estou me sentindo muito bem. Aliás, nunca me senti
tão bem em toda a minha vida. Sabia que aquela
inesperada e súbita mudança de hábito geraria muitos
comentários entre ela e a condessa, mas foi irresistível
provocá-la. Ao chegar à porta da cozinha, Tereza, Joseph,
Lorenzo e o capataz Tomaz estavam tomando café. Ao me
verem, todos - inclusive Maria - se levantaram, espantados.
Então, disse-lhes:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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– Pelo amor de Deus, sentem-se! Para que tanta
reverência? Acaso aqui chegou alguém da realeza? Fiquem
despreocupados e, por favor, não façam cerimônias comigo.
Dizendo isso, fui sentando e pegando um pedaço de
pão de milho. Percebendo que continuavam de pé, disse:
– Olhem, se for para eu vir aqui todos os dias e ter que
vê-los em pé até que eu acabe de tomar o meu desjejum, então
prefiro ir para o meu quarto e dar-lhes o trabalho de subir as
escadas para me servirem.
Foram se sentando um a um, entreolhando-se. Portanto,
prossegui, dizendo:
– De hoje em diante, serei uma companhia e
constantemente me verão nesta cozinha. Espero que isso não
seja um empecilho, e sim que isso possa nos unir. Afinal, sou
ou não sou a pequena sombra desta casa? - disse isso olhando
para Tereza, enquanto todos soltaram um largo sorriso.
Tomei meu café calmamente, degustando os manjares
que Tereza havia preparado. Tentei deixá-los cada vez mais à
vontade, contando-lhes histórias engraçadas. Tudo isso sob os
olhares atentos de Maria, é claro! Depois de ter saciado minha
fome, olhei para Lorenzo e perguntei-lhe:
– Poderia arrumar a carruagem para mim, Lorenzo? Eu
e Maria iremos novamente à cidade hoje.
– Claro, senhorita Anna! Mas vai demorar um pouco,
porque ainda não tratamos dos animais.
– Não há problema algum, não estou com pressa.
Enquanto isso, irei ao jardim, dar uma caminhada e respirar o
ar puro desta linda manhã.
– Posso saber aonde vamos desta vez? - perguntou
Maria.
– Claro que sim. Iremos à casa daquela jovem que
visitamos ontem.
Adriana Matheus
- 267 -
Respondi a pergunta de Maria olhando para Lorenzo,
que corou de imediato. O rapaz sorveu o último gole do suco
que estava tomando e levantou-se, dizendo:
– Sendo assim, é para já, senhorita. Apronto a
carruagem rapidinho. - disse isso saindo às pressas, porta
afora.
– Será que eu disse alguma palavra mágica?
– Por certo que sim. - respondeu Maria.
O resto da criadagem foi para seus postos, cumprir com
suas tarefas diárias. Enquanto Maria passava as ordenanças aos
criados e escravos da casa, fui calmamente caminhar pelo
jardim. O céu estava lindo naquela manhã, as flores bailavam
ao vento. Continuei, então, caminhando até o portão de saída,
para recordar-me da cena da noite anterior. Quando cheguei
bem perto do portão, notei ao chão um objeto reluzente.
Aproximei-me para ver do que se tratava e percebi que era
uma medalha. Baixei e peguei-a. Na medalha, havia uma
insígnia de um brasão da nobreza. Porém, eu nunca havia visto
nenhum como aquele. Parecia inglês.
Lorenzo interrompeu-me, avisando que a carruagem já
estava pronta. Pedi que avisasse Maria que já estávamos
prontos. Enquanto ela não vinha, fiquei pensando de qual
família real seria aquela insígnia.
Quando Maria chegou, eu já havia entrado na
carruagem e esperava por ela. Dentro da carruagem, mostrei a
medalha e perguntei-lhe:
– Maria, a senhora já havia visto esta insígnia?
– Confesso que não me é estranha. Mas onde foi que
achou isso?
– Na entrada do portão de saída, do lado de dentro.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 268 -
Contei-lhe, então, o que vi na noite anterior e o que
estava havendo nas outras noites em relação à minha janela.
Maria ficou muito assustada e disse:
– Então, agora terá que dormir com a porta do seu
quarto trancada. Se quiser, até posso dormir lá em cima com a
senhorita.
– Obrigada, Maria, mas isso não será necessário. Basta
que eu tranque a porta. Estou de olhos e ouvidos atentos,
acredite!
Ficamos pensativas e nem percebemos que Lorenzo já
havia saído de casa com a carruagem. Mudei meus
pensamentos daquele assunto que nos estava fazendo mal e
perguntei à Maria:
– Não achou Lorenzo muito entusiasmado com a jovem
Samara? Não acha que os dois formariam um belo casal?
– Menina, em que está pensando?
– Hum... Lorenzo é um homem bem apanhado, solteiro,
jovem, trabalhador... Samara é tão solitária e está passando por
tantos problemas por cuidar da mãe sozinha...Ontem percebi a
maneira como eles se olhavam. Acho que poderiam formar um
belo par.
– A senhorita não para mesmo, não é? Agora está se
passando por alcoviteira também? Santo Deus! Acho que,
quando lhe trouxeram de volta da viagem, esqueceram-se de
verificar se o espírito que trouxeram do passado era o mesmo,
viu?
– Ora, Maria, não dizem que voltamos renovadas!?
– Sim, minha filha, por certo é o que acontece. Mas a
senhorita se renovou demais, nem consigo acompanhar tantas
mudanças. A cada instante parece ser uma pessoa. Confesso
que isso está me assustando, pois não sei mais com quem estou
lidando.
Adriana Matheus
- 269 -
– Sou a mesma pessoa, Maria. Apenas decidir olhar a
vida por outro prisma. Não vou aceitar mais que ninguém
mande em mim ou que me obriguem a ser o que eu não quero
ser. De agora em diante, tomarei minhas próprias decisões.
Não quero mais viver às escondidas, chorando. Quero e exijo
que as pessoas me respeitem como eu as respeito.
– Só quero que tome mais cuidado para que nada de
mal lhe aconteça. Gosto muito da senhorita. Concordo que
deva mesmo mudar e não aceitar que lhe façam de capacho,
como faziam antes. Mas isso deve ser devagar, porque,
mudando tão rápido como a senhorita está, pode causar um
choque nas pessoas que não entenderam essa sua mudança de
hábitos. Sabe muito bem o que essa nossa sociedade, regida
por homens, pensa de mulheres que têm certas atitudes. A
senhorita poderá trazer danos a si mesma.
– Não estou fazendo nada demais. Também pouco me
importo com o que as pessoas pensem de mim. Maria, se eu
continuar como eu era, meu destino cumprir-se-á do mesmo
modo, certo?
– Certo.
– Então, que pelo menos eu ocupe o pouco tempo que
ainda tenho nesta vida praticando a caridade, lutando pelos
meus direitos!
– Agora estou entendendo aonde a menina quer chegar.
No decorrer do caminho, eu e Maria conversamos tanto
que nem vimos o tempo passar. Quando aquietamos a boca, já
estávamos na frente da casa de Samara. Ela veio de imediato
receber-nos e abraçou-me ao descer da carruagem. Seus olhos
grudaram em Lorenzo e Maria, ao perceber aquilo, deu-me
uma cutucada com o cotovelo. Assinalei com a cabeça,
positivamente.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 270 -
Ao entrar naquela casa, percebi que a paz reinava
novamente. Dona Catarina estava de pé e havia preparado um
bolo para o desjejum. Samara havia colocado um vasinho de
flores em cima de uma pequena mesa, no cantinho da casa.
Quando Dona Catarina percebeu a minha presença na
casa, veio cumprimentar-me com os olhos cheios de lágrimas.
Dei-lhe um beijo na testa. Para mim, não existia nada mais
gratificante do que ver aquela mulher de pé novamente.
Enquanto conversávamos, pude notar que Lorenzo e Samara
estavam em um canto da sala, olhando-se em silêncio. Então,
percebi que era a hora certa para intervir pelos dois. Enquanto
Dona Catarina levava as xícaras para a cozinha, acompanhei-a
na desculpa de ajudá-la. Foi aí que contei a ela sobre o
interesse de Lorenzo por Samara. Ela disse já ter reparado. E
também disse que fazia muito gosto se eu não me importasse.
Resolvemos, então, juntas, perguntar a Samara se ela gostava
de Lorenzo. Fomos respondidas com um largo sorriso da
jovem, o que confirmou as minhas suspeitas de que os dois
estavam apaixonados. Foi amor à primeira vista. Seriam muito
felizes, por certo.
Fui até a entrada e conversei seriamente com Lorenzo.
No princípio, aquele assunto pegou Lorenzo de surpresa. Mas,
depois, o sorriso largo revelou-nos a verdadeira vontade dele
de se unir à Samara. A conversa foi um tanto longa, pois
precisava deixar certas coisas muito claras. Depois de lhe dizer
tudo o que ele precisava ouvir, convidei-o a entrar, deixando-o,
assim, a sós com Samara e a mãe. Eu e Maria fomos para o
lado de fora da casa, para que os três ficassem à vontade.
Meia hora depois, todos saíram, felizes e prazerosos lá
de dentro. Por fim, Lorenzo disse-me:
– A senhorita é mesmo um anjo. Logo que vi Samara,
apaixonei-me de imediato. Porém, sou muito tímido e talvez
Adriana Matheus
- 271 -
nunca tivesse tido a coragem de me aproximar e dizer sobre
meus sentimentos. Passei a noite de ontem todinha
atormentado, tentando imaginar uma maneira de vê-la
novamente. Quando a senhorita disse que voltaria aqui, foi
como se o céu da esperança se abrisse para mim. Tentei lhe
falar sobre meus sentimentos hoje mesmo, na hora em que ela
veio me servir café, mas estava nervoso demais. As palavras
fugiram-me, como se estivessem agarradas na minha garganta.
Rimos todas ao mesmo tempo nesta hora, porque
Lorenzo gaguejou como uma criança, de tão nervoso que
estava. Resolvido aquele problema, voltamos para casa. Mas,
no caminho, passamos na ferralheria, para apanhar minha
chave.
A carruagem parou do outro lado da rua. Então, pedi a
Lorenzo que fosse buscar minha encomenda. Não queria me
deparar com aquele homem carrancudo novamente e estragar o
doce sabor daquela manhã maravilhosa. Lorenzo assim o fez.
Para minha maior surpresa, o ferralheiro debruçou-se sobre a
janela da carruagem, colocando a cabeça para dentro. Parecia
estar afoito. Achei meio grosseiro da parte dele. Mas, antes
que pudéssemos falar alguma coisa, ele disse:
– Perdoem-me, senhoritas, sinto estar invadindo a sua
privacidade. Mas jamais poderia deixá-la sair sem pedir-lhe
humildemente minhas desculpas por ontem à tarde. As dores
que eu sentia deixavam-me de muito mau humor. Depois que a
senhorita saiu, refleti e resolvi, por curiosidade, tomar o chá
que me receitou. Quero dizer-lhe que, de ontem para hoje, sou
um novo homem. Ainda sinto um pouco de dor, mas não é
mais tão intensa como era. Vim até aqui para entregar-lhe
pessoalmente a sua encomenda e dizer que não irei lhe cobrar
nada. Vai ficar como um presente em retribuição pelo que fez
por mim.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 272 -
– Imagina, o senhor trabalhou, tem o direito a ser
remunerado devidamente. Ficarei muito sem graça se não lhe
pagar pelo trabalho.
– Ficarei ofendido se me fizer esta desfeita.
Olhei-o nos olhos e eram sinceras aquelas desculpas.
Mediante aquela súplica, eu disse:
– Está bem, se o senhor se sente melhor assim, vou
aceitar o presente. Mas quero que saiba que lhe ensinei os chás
porque realmente fiquei preocupada com o senhor, mesmo sem
o conhecer. Se um dia o senhor precisar de mim novamente,
procure por Dona Catariana e peça à filha dela que entre em
contato comigo. Virei ajudar o senhor onde quer que esteja.
O homem sorriu prazerosamente, todo desconcertado
por perceber que Maria o olhava meio de lado. Ela ainda
estava cabreira por causa das coisas que eu havia contado dele
para ela. Despediu-se de nós e se foi.
Às vezes, os problemas fazem-nos parecer alguém que
não somos. A dor nas costas que aquele homem sentia não lhe
dava o prazer de sorrir e tornava-o cada dia mais e mais
carrancudo. Se alguém não o tivesse ajudado, chegaria um dia
em que até a fé em Deus ele haveria de perder por pensar que
Deus não o estava ouvindo em suas orações. Devemos prestar
muita atenção a isso, porque Deus não só nos ouve, mas
também nos envia auxiliares para nos socorrer.
Finalmente, estávamos voltando para casa. Precisava
deitar-me e dormir um pouco para recuperar minhas energias.
Maria também precisava descansar. No trajeto de volta, não
falamos muito. Praticamente fui cochilando o tempo inteiro.
Quando a carruagem finalmente parou, eu mal podia abrir os
olhos, de tão cansada que estava. Desci da carruagem e pude
perceber que havia outra carruagem na lateral da casa. Maria
olhou-me como quem também queria saber quem seria.
Adriana Matheus
- 273 -
Dei o braço à Maria e fomos caminhando até a entrada.
Ela me abriu a porta e foi uma grande surpresa! Meu pai estava
de volta. Quando percebeu que eu havia chegado, virou-se
para a porta e disse:
– Pensei que teria que mandar a milícia atrás da
senhorita. Fiquei sabendo que agora não para mais dentro de
casa.
– É só isso que o senhor tem a dizer-me depois de
meses fora de casa? Achei que sentisse minha falta!
Ele me deu um largo sorriso e veio ao meu encontro,
abraçar-me.
– Lógico que senti sua falta, mas gosto de saber que as
mulheres da minha família estão em casa quando eu retorno.
Agora, pode me dizer onde estava?
– Fui à cidade com Maria, visitar uma amiga.
– Quem seria essa amiga? Não me lembro de ter
amizades.
– Mas agora tenho. Conheci-a ontem, a caminho do
ferreiro.
– A caminho do ferreiro? E o que uma senhorita
poderia querer com um ferreiro?
– Fui pedi-lo que fizesse uma chave para aquele
bauzinho que mamãe deixou para mim.
– Ah, sim. E por que tinha que ser um ferreiro?
– Porque quis que a chave fosse de bronze e fiquei com
medo de o chaveiro não fazer bem feito o serviço.
Ele parecia desconfiado. Por certo, minha madrasta
tinha colocado muitas ideias destorcidas na cabeça dele. Por
isso, contei-lhe a verdade. Depois de muito me olhar, ele disse
para ir-me aprontar para o almoço.
– Pai, essa noite não dormi muito bem. Prefiro jantar
com o senhor, se não se importar, é claro.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 274 -
– Bom, só pensei que estivesse sentindo minha falta.
Mas, pelo que vejo, terei que sentar à mesa sem a minha
família.
– Ora, meu pai! Nunca fomos uma família tradicional.
Não será a primeira vez que o senhor se sentará sozinho à
mesa. Eu mesma já comi sozinha várias vezes em meu quarto
por falta de participantes desta casa à mesa. Desculpe, mas
hoje estou mesmo muito cansada e não farei a sua vontade,
pois estaria sendo hipócrita comigo mesma.
Disse isso o lembrando das vezes em que ele e minha
madrasta discutiam à mesa, deixando-me sozinha. Ou das
tantas vezes em que almocei e jantei sozinha em meu quarto,
porque Maria dizia-me que ambos haviam saído para algum
outro evento.
Subi as escadas, meio cambaleando de tanto sono. Abri
a porta do meu quarto e olhei para a cama, atirando-me sobre
ela. Não vi mais nada: do jeito que eu estava, acabei
adormecendo.
Despertei com Maria batendo à porta. Esfreguei os
olhos e, percebendo o meu estado, dei um sorriso. Então, disse:
– Pode entrar, Maria. Já estou acordada.
– Minha nossa! Nem os sapatos a senhorita tirou para
dormir?
– Não, adormeci do jeito que eu estava. Mas me diga: o
que a faz vir aqui me chamar?
– Seu pai tem um convidado e pediu-me para dizer à
senhorita que desça imediatamente. Parece que é gente
importante.
– Bom, diga ao senhor meu pai que imediatamente será
impossível, porque acabei de acordar. Depois que me lavar, se
estiver pronta, desço.
Adriana Matheus
- 275 -
– Senhorita Anna, sabe que não posso dizer isso ao seu
pai. Afinal, ele é meu patrão.
– Está bem, então. Invente qualquer desculpa e diga
que já estou descendo.
Maria saiu muito desorientada, sacudindo
negativamente a cabeça.
Eu não tinha a menor intenção de contrariar meu pai -
mesmo porque sabia que ele odiava ser contrariado. Arrumei-
me o mais rápido que pude. Coloquei uma saia de veludo azul
marinho, com uma blusa branca de mangas longas, toda
rendada. Usei um conjunto de pérolas para dar certa graça
àquele traje. Prendi o cabelo em um coque e puxei alguns fios.
Apertei as bochechas para dar cor às minhas faces. Depois de
me visualizar no espelho, dei um largo sorriso e disse a mim
mesma Há certas coisas que não mudam mesmo! Por mais
que eu quisesse me libertar de toda aquela superficialidade, eu
ainda era uma mulher. E, como tal, nunca deixaria de ser
vaidosa.
Abri a porta e caminhei calmamente pelo corredor. Era
fascinante saber que havia dois homens esperando por mim.
Isso me envaidecia ainda mais. Por minha vez, queria ser o
centro das atenções - pelo menos para variar. Ao chegar à sala
de estar, encontrei meu pai sentado a uma poltrona em frente à
porta. A condessa estava sentada ao piano, e um jovem ruivo,
de muito boa aparência, em uma cadeira.
Ao entrar, meu pai e o jovem levantaram-se e minha
madrasta parou imediatamente de tocar o piano. Então,
começaram as apresentações:
– Filha, esse é conde Celso D´Louchoa, filho do gran
duque Albert D´Louchoa. Ele ficará conosco para o jantar.
Conde, essa é minha filha, Anna. O meu tesouro mais
precioso.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 276 -
– Senhorita! - levantou-se o conde, fazendo-me
reverências.
Ele continuou com aquela conversa que, para mim,
durou uma eternidade:
– É um prazer conhecê-la. Seu pai falou-me muito bem
da senhorita durante uma viagem que fizemos juntos a
Londres. Ele, porém, mentiu para mim sobre uma coisa.
– É mesmo? E em que meu pai andou mentindo para o
senhor conde? - indaguei-lhe curiosa, olhando para meu pai,
pedindo socorro.
– Sobre sua beleza. Disse-me que a filha era bonita.
Mas nunca, em toda minha vida, vi beleza como a sua.
Senti-me corar e vi que a condessa iria explodir de ódio
e inveja. Afinal, ninguém poderia resplandecer mais do que ela
própria e, com certeza, ela não poderia flertar com o conde na
presença de meu pai.
Maria salvou-me daquela conversa, que já estava se
tornando constrangedora. Veio avisar-nos que a mesa estava
posta.
Fomos para a sala de jantar. O conde deu-me o braço;
minha madrasta acompanhou meu pai. Sentamo-nos do mesmo
lado, meu pai na cabeceira da mesa, a condessa na sua lateral
direita. Quem nos visse diria que éramos uma família
tradicional e exemplar.
O conde indagava-me o tempo todo, querendo saber
tudo a meu respeito. Apenas o respondia polidamente, sem
demonstrar o menor interesse nele.
Foi-nos servida uma deliciosa e poderosa paella como
primeiro prato.
– Conhece a comida espanhola, senhor conde? –
perguntei-lhe, tentando mudar o rumo daquela conversa, que já
estava indo para o campo da intimidade.
Adriana Matheus
- 277 -
– Não. Mas se for tão saborosa como as belas as
mulheres do país, fartar-me-ei.
Corei pela audácia daquele homem. Ele conseguia
deixar-me encabulada. Por fim, respondi:
– Espero que goste, então.
Meu pai começou a lhe fazer perguntas sobre negócios
e política - o que foi um alívio para mim, pois me salvou não
só das conversas indiscretas do conde, como também dos
olhares calientes dele.
Como segundo prato, foi servido um cochinillo assado.
Para sobremesa, uma mousse de maracujá. Comemos
praticamente em silêncio, o que me foi um alívio. Embora o
conde ficasse fitando-me constantemente, consegui manter
minha postura, fingindo não perceber nada.
Ao terminarmos o jantar, fomos para a sala de estar,
onde foi-nos servida uma sangria. O conde, por sua vez,
parecia obcecado para estar perto de mim. Para tentar
desvencilhar daquele assédio, que estava se tornando
constante, tornei a falar sobre a culinária espanhola.
– Então, senhor conde, o que o senhor achou da nossa
culinária?
Ele sorriu maliciosamente, parecendo ter percebido a
minha intenção.
– Digamos que eu achei... caliente! Como as senhoritas
daqui.
– Desculpe-me, senhor conde, mas não o estou
entendendo. Creio que o senhor e eu não estamos falando o
mesmo idioma. Talvez o senhor esteja confundindo um pouco
as coisas. É melhor que encerremos essa conversa por hora.
– Ofendi a senhorita?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 278 -
– Por enquanto, não. Mas antes que nossa conversa
ultrapasse os limites da civilidade, prefiro que encerremos com
ela.
– Não a entendo, senhorita Anna. Se lhe disse alguma
coisa ofensiva, peço-lhe minhas sinceras desculpas. - disse o
conde, sinicamente.
Dei-lhe um sorriso e virei-me para meu pai, dizendo:
– Pai, não estou me sentindo muito bem, peço
permissão para me retirar.
– Estava tão bem agora há pouco! O que foi que
houve?
– Acho que é só uma indisposição. Peço para ir para o
meu quarto.
– Sim, é claro. Pedirei à Maria que lhe acompanhe.
– Obrigada, pai! Senhor conde, espero que em outra
ocasião nossa conversa seja mais proveitosa do que a de hoje.
– Sim, por certo será, senhorita Anna. Em outra
ocasião, espero poder corrigir esse mal entendido.
– Creio que não houve nenhum mal entendido, senhor
conde. Mas vou dizer uma coisa apenas: uma vez perdida a
minha confiança, perdida ela estará para sempre.
Ele abaixou a cabeça, em um cumprimento casual. Dei
um beijo de boa noite em meu pai e passei por minha
madrasta, que me olhava de um jeito incógnito. Havia alguma
coisa no ar. Mas, como eu estava muito irritada com o
comportamento do conde, não prestei atenção aos detalhes - o
que poderia ser perigoso. Devemos nos lembrar de que Deus
está presente constantemente em nossas vidas, mas o diabo
está presente nos detalhes.
Subi as escadas e nem esperei por Maria. Quando
cheguei em meu quarto, joguei-me em cima da cama e
comecei a chorar. Na verdade, não sabia se era de raiva ou de
Adriana Matheus
- 279 -
decepção. Maria chegou e, ao ver-me naquele estado,
perguntou-me, assustada e com as mãos no rosto:
– Santo Deus, senhorita Anna! O que houve?
– Estão me vendendo, Maria. Estou sendo leiloada
como uma escrava ou animal premiado. E o pior disso tudo é
que o meu próprio pai é o responsável por essa
monstruosidade.
Maria entendeu do que eu estava falando e correu ao
meu encontro, dando-me um abraço fraterno. Ficamos
abraçadas por alguns minutos, até que ela falou:
– Fuja, minha filha! Vá para bem longe daqui! Se
quiser, posso enviar uma carta à minha irmã, pedindo a ela que
lhe dê abrigo. Acredite, seu pai nunca lhe encontrará.
Olhei chorosa e comovida para Maria e disse:
– Não posso, Maria... Se fizer isso, meu pai irá puni-la.
Ele pode não ter recursos financeiros, mas ainda é um homem
poderoso. Com isso, pode mandar trucidar aquele povo. Nunca
seria covarde a tal ponto de fugir, Maria, e de principalmente
colocar a vida de outras pessoas em risco. Vou ficar e lutar
enquanto puder. Esse é o meu destino, o meu triste destino,
lembra-se? A senhora mesma viu em seu tarô.
Maria abaixou a cabeça e nada mais disse sobre aquele
assunto. Levantei, passei as mãos pelo rosto, tentando me
recompor. Olhei para todo o quarto e falei:
– Que se cumpra o meu destino, Maria! Mas, se eles
pensam que serei leiloada, nunca isso acontecerá comigo!
Fique sabendo.
– E o que pretende fazer então, senhorita Anna? Pois
seu pai acabou de pedir para avisá-la que marcou um jantar
formal para apresentar o conde à nossa sociedade.
– Eu já imaginava isso. Pois que seja dessa forma.
Estou mesmo precisando me divertir um pouco.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 280 -
– Divertir-se? Não a entendo... Acabei de pegar a
senhorita em desespero por achar que seu pai a estava
leiloando para o senhor conde. E agora fala em divertimento?
– Então, prepare-se para ouvir o Gran Finale dessa
história.
– Ouh lala, e mais o que poderia me surpreender? A
condessa é quem vai organizar o jantar e o baile. O senhor
conde deu-lhe carta branca para gastar o que precisasse.
Depois que a senhorita saiu, ouvi tudo o que diziam. Não que
eu os ficasse escutando atrás da porta... Na verdade, foi quase
sem querer. Eu já estava entrando, mas parei para ouvi-los. O
que pude entender é que a condessa terá total liberdade
financeira para organizar esse baile de boas vindas ao senhor
conde.
Sentei-me na cama e fique pensativa. Como o conde,
que mal conhecia minha madrasta, estava dando esse poder a
ela? Isso me pareceu muito íntimo. Alguma coisa não estava se
encaixando. Tive a sensação de que, muito em breve,
descobriria o que era. Pedi a Maria que me fizesse um chá,
pois precisava dormir bem. Na manhã seguinte, com as ideias
mais claras, tentaria resolver aquele assunto.
Maria saiu, deixando-me sozinha com meus
pensamentos aflitos. Andei de um lado a outro do quarto. Fui
por várias vezes à janela, mas, naquele momento, nenhuma
ideia iluminada passou-me pela cabeça para fazer-me ter uma
real noção de como a minha madrasta poderia ter conseguido
tão rapidamente a confiança do conde. Se ele fosse um de seus
amantes, entenderia. Mas, pelo que me constava, ele nunca
havia estado na Espanha. Algo não estava se encaixando, mas
não consegui ver às claras o que era.
Algum tempo depois, Maria veio trazer-me o chá e
disse:
Adriana Matheus
- 281 -
– Seu pai pediu-me para avisar que o conde retornará
aqui amanhã para jantar novamente. Pediu a sua presença à
mesa. Senhorita Anna, sugiro que aceite com prudência e não
recuse esse convite.
Maria abaixou a cabeça e prosseguiu:
– Eles estão esperando que eu leve uma resposta
positiva da senhorita.
– Não se preocupe, Maria. Diga ao senhor meu pai e ao
conde que estarei presente amanhã a esse jantar. Fique
tranquila, comportar-me-ei dignamente e não demonstrarei que
sei o que está se passando.
Dei um beijo na testa de Maria e pedi para que ela me
deixasse sozinha. Precisava meditar e tentar dormir um pouco.
Minha mente conturbada não conseguiria fluir nenhuma ideia
naquela noite. Foi uma noite muito difícil, custei a pegar no
sono. Mesmo tendo trancado a porta, tive a sensação de que
alguém estava me espionando. Sentia-me impotente mediante
a situação de alguém invadindo a minha privacidade. Por fim,
acabei adormecendo.
Na manhã seguinte, despertei com Maria batendo à
porta. Levantei-me meio sonolenta e abri a porta para ela, que
já me trazia o desjejum. Embora eu quisesse ter ido tomar café
na cozinha, achei melhor não tentar nada contra o gosto de
meu pai naquele dia.
Maria, ao ver-me, logo foi dizendo:
– Bom dia, minha filha. Pelo que vejo, teve uma
péssima noite de sono! Mas logo irá recuperar as forças, pois
lhe trouxe um desjejum bem reforçado esta manhã.
– Obrigada, Maria. Sei que sempre poderei contar com
a senhora. - disse isso analisando a minha fisionomia ao
espelho, vendo minhas olheiras.
Maria, no entanto, prosseguiu:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 282 -
– Infelizmente, tenho a lhe dizer que sua madrasta e seu
pai saíram muito cedo hoje. Os dois pareciam ter um
compromisso inadiável.
– Que estranho... Ela nunca se levanta cedo! Tem
alguma coisa errada acontecendo nesta casa, Maria, e eu vou
descobrir. Por favor, arrume a água para o meu banho. E
separe para mim aquele vestido branco. Irei ao jantar do conde
com ele.
– O que a menina está aprontando? Nunca usou aquele
vestido.
– Sim, eu sei, e essa é a hora. Quero estar
elegantemente sedutora hoje, Maria.
Maria saiu sorrindo, parecendo ter entendido o que se
passava na minha cabeça. Logo que ela saiu, comecei a
imaginar como eu iria colocar em prática meu comportamento
com o conde. Só tinha um pequeno problema: nunca havia me
comportado levianamente antes. Aí, comecei a lembrar-me dos
trejeitos da condessa. Achei engraçado como até mesmo quem
tenta nos fazer mal acaba nos ajudando, mesmo sem saber.
É preciso aprender até com os inimigos e usar suas
armas sempre a nosso favor. Muitas vezes, não percebemos
que nossos inimigos são nossos maiores aliados. Mas isso só
acontece com tempo e maturidade. Estamos tão voltados para
o lado da vingança que esquecemos que também podemos
virar contra nosso opositor as suas próprias estratégias.
Devemos pensar da seguinte forma: eles são nossas espadas
contrárias e, de alguma maneira, estão em nossas vidas para
também nos ensinar. Eu tinha muito que agradecer por
perceber isso ainda no começo da minha juventude, pois
muitos demoram anos até alcançar esse estágio alto de
percepção.
Adriana Matheus
- 283 -
Sentei-me na cama para fazer minhas orações e
agradeci pelo dia perfeito que teria. Então, escutei a voz de
Heixe.
– Anna... Escute com atenção o que tenho a lhe falar.
Fechei os olhos para prestar atenção e não me distrair
com as coisas ao meu redor. Heixe, então, prosseguiu:
– Anna, tenha muito cuidado ao falar com sua madrasta
hoje, pois ela tentará provocá-la ao máximo. É a maneira que
ela vê de prejudicá-la moralmente na presença de seu pai.
Tenha cuidado com o conde, Anna. Ele não é o que parece ser.
– Como assim? Já desconfio dele, mas o que quer dizer
com essas palavras?
– Sei que você tem suas desconfianças, mas esse
homem é ainda mais perigoso do que pensa. É um assassino
perigoso e sanguinário, e também um usurpador.
Fiquei muito assustada com aquela revelação. Porém,
Heixe não me deu tempo de pensar muito e continuou:
– Você deve correr, pois o seu tempo nesta casa está
passando. Vá à casa de madame Hortência amanhã. Lá
encontrará uma resposta para poder ajudar a sua amiga Maria.
Pergunte a ela sobre o paradeiro de um escravo chamado
Lourival.
Eu não conseguia entender em que madame Hortência
poderia me ajudar com relação a Maria. A voz de Heixe foi se
distanciando até que não mais pude ouvi-lo. Mas aquelas
palavras ficaram na minha mente como uma espécie de
enigma. Fui à janela tentar colocar a cabeça em ordem, pois a
cada minuto ela parecia ficar mais cheia de problemas. Pude
observar o vento. Ele estava mudo e um mistério pairava no ar.
Estava tão nervosa e assustada que podia sentir o pulsar das
minhas veias. Meu coração estava apertado dentro do peito.
Quis fugir, desaparecer, mas para onde eu iria?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 284 -
Maria bateu à porta, despertando-me daquele transe de
agonia. Ela havia vindo perguntar se já poderia pedir que me
trouxessem a tina para colocar a água do meu banho. Mas, ao
ver-me, logo percebeu que havia algo de muito errado comigo.
– Você está bem, senhorita Anna? Precisa de alguma
coisa? O que aconteceu? Seu rosto está empalidecido.
Tive que contar à Maria sobre a mensagem que Heixe
me transmitiu. Só omiti a parte em que ele se referia a ela.
Maria abaixou a cabeça e, por fim, disse-me:
– Eu deveria ter-lhe contado o que via em meu tarô.
Talvez eu pudesse ter evitado tantos transtornos como esse.
Não deveria tê-la levado à casa de minha irmã, também.
– Ora, Maria, não seja tola. Nada que falasse comigo
antes teria sentido. Eu era uma jovem mimada e alienada. Não
daria importância a nada que me dissesse antes. E por que está
arrependida por ter me levado à casa de sua irmã?
– Porque acho que sou culpada.
– Culpada pelo quê?
– Por ter antecipado o seu destino.
– Maria, ninguém antecipa o destino de ninguém. E
além do mais, como eu poderia me interar do meu dom sem a
sua ajuda e a de sua irmã? Descobri o meu caminho graças à
senhora. Não tem do que se arrepender.
Maria pareceu não estar muito certa das minhas
palavras. Depois de conversarmos mais alguns instantes, ela
desceu para terminar seus afazeres. Fiquei dentro da tina com
água quente por quase uma hora, pois precisava relaxar.
Depois que me vesti, fui dar uma volta pelo jardim: queria
tomar o sol da manhã e receber boas energias da natureza.
Joseph estava cuidando das flores como sempre fazia,
pacientemente. Acenou-me e retribuí, com um sorriso. Meu
Adriana Matheus
- 285 -
coração estava pesado! Sentei-me em um banco, próximo ao
canteiro de girassóis, e clamei a Deus:
– Deus todo poderoso, se puder, apascente meu
coração, cuja aflição é dominante e incessante. Mostra-me a
verdade onde ela estiver, mesmo que escondida dos meus
olhos e obscura para meu espírito. Estende sobre mim a Sua
mão e guie-me segundo Sua vontade. Acalme essa angústia
que insiste em me rodear como os mares em dias de tormenta.
Toque no meu eterno amor com seu eterno amor e dê-lhe a paz
que ele almeja. Dê-lhe a certeza do meu amor por ele e diga-
lhe que em breve nos encontraremos. Apascente aquele
coração aflito, para que o meu também encontre essa
harmonia.
Naquele momento, meu coração abrandou-se e senti no
vento um perfume masculino muito discreto. Tive a certeza de
que aquele era o cheiro do homem dos meus sonhos. Sorri e
meus pensamentos foram se tornando cada vez mais leves. Era
como se Deus tivesse me ouvido e, de alguma maneira, o
monge também. Senti uma lágrima de felicidade rolar em
minhas faces. Agradeci mais uma vez ao céu por ter me
ouvido.
Voltei para o meu quarto e, lá estando, percebi que a
única maneira de conseguir calar o pensamento em certos
momentos era trabalhando. Olhei tudo ao meu redor e resolvi
fazer uma limpeza em meus guardados. Tirei e encaixei tudo o
que não me servia mais. Juntei muitos vestidos que nunca usei
e nunca usaria e os coloquei em caixas. Chamei por Maria e
por Joana para que me ajudassem. Quando chegaram ao meu
quarto, deparando-se com tamanha confusão, Maria falou:
– Santo Deus, o que houve aqui!? Parece que um vento
forte passou dentro deste quarto!
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 286 -
Joana ficou em pé na porta, sem saber que rumo tomar.
Por minha vez, percebendo que as duas estavam espantadas,
disse:
– Estou apenas fazendo uma limpeza nos meus
guardados. Mas, com certeza, não chamei as duas para me
criticarem ou ficarem em pé, sem nada fazer.
Estava de joelhos, guardando uns livros dentro de uma
caixa, e prossegui:
– Peguem essas caixas aí, perto da porta, e levem tudo
lá para cima, junto aos pertences de minha mãe. São livros
velhos que eu havia trazido para cá e não levei de volta. As
outras duas caixas ao lado da cama são para dar a Lorenzo.
São vestidos que estou dando para Samara.
– E esta caixa aqui, senhorita? - perguntou Joana.
– Essa pode deixar debaixo da minha cama, usarei em
breve.
– E o que há dentro dela?
– Coisa de meu uso pessoal. - eu estava me referindo
aos objetos que comprei para o uso da magia.
Depois de tudo organizado, desci e fui almoçar com
Maria na cozinha. Aproveitando que ainda estávamos
sozinhas, disse-lhe:
– Acho, Maria, que está na hora de tirar esse luto.
– Não me sentiria bem, senhorita Anna. Já me habituei
a andar com essa cor.
– Mas deveria pensar com carinho no que lhe estou
sugerindo. Afinal, só a senhora ainda mantém o luto nesta
casa.
– Sim, por certo. Mas é um hábito tão antigo que nem
sei se tenho algo menos sóbrio.
– Tenho certeza de que encontrará algo em seus
guardados. A senhora ainda é bastante jovem para andar por aí
Adriana Matheus
- 287 -
parecendo uma viúva. Devo lembrar que o viúvo desta casa há
muito tempo já não usa luto. Pense, Maria: a cor negra, além
de ser considerada uma cor fúnebre, é também uma cor que
neutraliza as outras cores. Essa cor pode ter não só
neutralizado a sua vida, mas também pode tê-la impedido de se
casar.
Maria ficou pensativa... Percebendo que havia tocado
profundamente no seu eu, saí, deixando-a refletir sobre o
assunto. De certa forma, eu tinha acabado de interferir
indiretamente na vida dela. Fazendo isso, sem querer,
mudamos a forma de agir e pensar de uma pessoa. Sabia que
isso poderia ser perigoso. Mas, no caso de Maria, foi preciso:
queria que ela tivesse outra postura sobre si mesma. Ela estava
muito apegada a mim e, futuramente, sofreria com a minha
ausência. Ela precisava se distanciar. Precisava ser feliz, e
aquela cor havia se tornado uma espécie de cela em sua vida.
Era como se ela fosse uma lagarta e estivesse precisando de
uma mãozinha da natureza para se tornar uma bela borboleta.
Novamente em meu quarto, parei para escrever em meu
diário. Aproveitei para dar uma cochilada: queria estar bem
disposta para o jantar com o conde. Devo ter dormido muito,
pois nem vi que meu pai e a minha madrasta haviam chegado.
Quando despertei, Maria, toda aflita, veio avisar-me que, se
não me apressasse em me arrumar, não daria tempo. O conde
chegaria às oito para jantar.
Em questão de uma hora, eu já estava pronta e descia as
escadas para encontrar com meu pai na sala de jantar. Ele, por
sua vez, estava tomando uma sangria. Ao ver-me, disse:
– Filha, está encantadora. Sabia que não me faria uma
desfeita.
– E por que eu lhe faria uma desfeita, meu pai? Não
estou entendendo.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 288 -
– Pela atitude que teve ontem no jantar. Achei que
estava dispensando o senhor conde, como sempre faz com seus
pretendentes.
Dei um sorriso, pois havia acabado de descobrir que
estava certa. Depois disse, por fim:
– Então o senhor conde é meu pretende, meu pai? Não
me lembro de o senhor ou quem quer que seja ter vindo a mim
e me consultado se quero ou não me casar.
– Ora, Anna, já está com quase vinte anos. Daqui a
pouco não haverá mais pedidos de casamento para a senhorita.
Quer ficar uma solteirona como Maria? Não estarei aqui para
sustentá-la para sempre. Diga-me, afinal, o que quer da vida,
menina?
Quando eu já estava pronta para responder, a condessa
interrompeu-nos, dizendo:
– Boa noite, marido! Ao entrar, pude ouvir o que falava
com sua filha. Creio que ela quer ser irmã de caridade.
– Boa noite, condessa! Mas por que a senhora acha isso
de minha filha?
– Porque fiquei sabendo hoje que a sua querida filhinha
andou fazendo caridade.
– É mesmo, Anna?! E que tipo de caridade? Para
quem?
– Essa estúpida, meu querido esposo, andou dando
todos os vestidos caríssimos dela para a criadagem. Agora,
além de louca e caridosa, quer andar nua também.
– E por que fez isso, Anna?
– Se a senhora condessa deixar- me responder, poderei
retratar-me.
A megera olhou-me de cima abaixou, fazendo cara de
antipatia.
Adriana Matheus
- 289 -
– Meu pai, em primeiro lugar, não dei todos meus
vestidos para a criadagem. Dei apenas alguns que já não usava
mais e outros que nunca usaria, pois foi escolhido pela senhora
condessa - que, por sinal, tem um péssimo gosto em se trajar.
Dei, também, alguns sapatos velhos, entre outras coisas que
não me serviam mais. Fiz uma limpeza em meus guardados, já
estava sem espaço para tantas tralhas velhas e sem utilidades.
Ressalto: não dei para a criadagem, dei a uma amiga.
– Uma indigente, pelo que me consta. - retrucou a
condessa.
– Não sabia que ser pobre faz de uma pessoa indigente.
Saiba que ela está noiva de nosso cavalariço, Lorenzo.
– Nossa, que partido! Quem sabe, marido, sua filha
também queira se juntar à ralé? Vai ver está enamorada do
cocheiro. Não me faltava mais nada agora, ter que conviver
com esse tipo de gentinha dentro de minha casa. Além de ter
que ouvir comentários sobre criar a filha solteirona de um
homem viúvo, agora também ter que ser o alvo de comentários
de que estamos tão pobres que, agora, andamos até com
concubina do cavalariço! Olhe, marido, não posso aceitar isso
de forma alguma. Não posso permitir que meu nome seja
enlameado de tal forma perante a sociedade. Sinceramente,
acho uma perda de tempo querer incluir sua filha no meio da
sociedade. Já lhe havia sugerido: deveria trancá-la em um
convento. Essa moça é cheia de espíritos imundos, e eles
fazem dela o que bem querem. Ela é como a mãe dela, e o
senhor meu marido sempre soube disso.
Tive que me controlar ao máximo para não estrangulá-
la com minhas próprias mãos. Mas pensei no que Heixe havia
me pedido e avisado. Respirei fundo e disse:
– Fale o que quiser falar de mim, mas não fale mal da
minha mãe, sua bruxa! A intrusa nesta casa é a senhora. Só não
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 290 -
vou tolerar mais insultos de sua parte, e só não abro minha
boca agora para contar a meu pai sobre quem é a senhora
verdadeiramente, porque não quero que ele se aborreça. E
muito menos tenho a intenção de estragar o jantar dele. Pense
bem, senhora condessa, se eu abrir minha boca é a senhora
quem terá que dar certas explicações por aqui. Como, por
exemplo, como a senhora conseguiu que o senhor conde lhe
desse carta branca para organizar o baile de apresentação dele,
sendo que mal se conhecem?
Meu pai interrompeu aquela discussão e falou, num
tom rouco e nervoso:
– Pare as duas com essa discussão! Não quero que o
conde chegue e pegue-as rolando pelo chão como duas loucas.
Sua madrasta está certa, Anna: não fica bem que seja vista por
aí na companhia de uma plebeia. Seja essa moça quem for, não
quero saber que está andando com ela. Não tem estirpe! Não
faz parte da nossa sociedade. O que está acontecendo com
você, minha filha? Era tão sensata! Agora mal cheguei e já
percebo mudanças adversas em seu comportamento. Não me
faça tomar nenhuma atitude drástica a seu respeito. Acho
muito bonito que queira fazer caridade - isso é até bom para a
nossa reputação. Mas não precisa fazer parte da ralé.
Realmente, está mesmo se parecendo como sua mãe: ela não
tinha medidas, estava sempre se misturando com esse tipo de
gente. Até que... - ele se calou, parecia engasgado.
– Até que o quê, pai? O que o senhor ia me dizer?
– Outra hora, Anna, falaremos sobre esse assunto.
Agora não quero mais chatear-me com esse tipo de conversa.
Maria entrou, avisando-nos que o senhor conde havia
chegado. Meu pai foi recebê-lo. Afastei-me da minha madrasta
para não ser mais provocada por ela. Aquela conversa ficaria
pendente, por certo, porque eu não deixaria que meu pai
Adriana Matheus
- 291 -
esquecesse. Tinha algo estranho em relação à história da morte
de minha mãe. Agora, era uma questão de honra descobrir.
Maria, por certo, saberia responder-me. Interrogá-la-ia na
manhã seguinte, a caminho da casa de madame Hortência.
Meu pai chegou à porta da sala de estar na companhia
do conde, que me deu um sorriso enigmático. Em seguida,
veio beijar-me a mão. Em outra ocasião, eu teria puxado-a.
Mas, naquele momento, tive que fingir certo prazer. Ele
levantou a cabeça e fez-me um elogio:
– Está linda, senhorita Anna. Não me cansarei de dizer
isso.
– O senhor é muito gentil, conde. Confesso que está
muito elegante também. Teremos uma noite muito agradável.
Espero que possamos tirar a impressão ruim causada por
ambos.
Olhou-me admirado e falou:
– Tenho certeza de que teremos todo o tempo do
mundo para que mude a má impressão que posso lhe ter
causado. Quanto à senhorita, acredite: só me causa boas
impressões.
Olhou-me parecendo desnudar-me, o que me causou
ainda mais repulsa por ele. Foi muito difícil controlar-me a
noite toda, esquivando-me das investidas do conde. Estava me
sentindo péssima por ter que manter uma personalidade que
não era minha. Era repulsivo ter que fingir daquela forma.
Mas, se eu quisesse descobrir o que estava acontecendo, tinha
que manter a aparência.
O conde mal dirigia a palavra à condessa, mas ela não
parecia irritada - o que era intrigante, pois sempre quis ser o
centro de todas as atenções. Após o jantar, fui com o conde até
a varanda, onde ele me disse:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 292 -
– Anna, creio já ter notado minha afeição pela
senhorita.
– Sim, senhor conde. Creio que sim.
– Quero pedir-lhe que me dê a honra de dançar a
primeira valsa comigo no baile.
Antes que eu pudesse responder alguma coisa, ele
prosseguiu:
– Saiba que não aceito um não como resposta. Então, o
que me diz, senhorita Anna?
– Digo que o senhor é um homem muito persuasivo,
conde. Mesmo que eu lhe disser um sim contra meu gosto,
mesmo assim ficará feliz. Então, mediante a esse tão gentil
convite, aceito.
Ele sorriu satisfatoriamente. Parecia ter ganhado mais
um jogo. No restante daquela noite, o conde ficou na sala,
jogando com meu pai; a condessa retirou- se aos seus
aposentos e, em seguida, fiz o mesmo. Passei metade da noite
imaginando o que o meu pai quis dizer em relação à minha
mãe.
Na manhã seguinte, não deixei que Maria viesse ao
meu quarto, como de costume. Acordei muito mais cedo do
que o resto da criadagem. Minha mente precisava de distração.
Então, ocupei meu corpo com algo útil. Desci, fui para a
cozinha e preparei o café para todos. Enquanto aparecia
imaginação em minha cabeça, ia criando as guloseimas. Maria
escutou o barulho na cozinha e levantou-se para ver o que era.
Ao perceber a minha presença, disse:
– Senhorita Anna, pare imediatamente o que está
fazendo ou seremos todos punidos por causa dessa sua atitude.
– Não posso, Maria. Preciso fazer alguma coisa para
não deixar minha mente torturar-me com tantos pensamentos.
Adriana Matheus
- 293 -
Maria, percebendo que eu estava fora de mim, abraçou-
me, tentando fazer-me parar - eu estava batendo uma massa de
bolo compulsivamente. Então, ainda me abraçando, ela
perguntou:
– O que está realmente acontecendo, minha criança?
Aquelas palavras foram motivos para que eu desabasse
em choro profundo. Então, entre soluços, respondi:
– Como realmente a minha mãe faleceu? Precisa
contar-me isso, Maria. Ontem, pouco antes do jantar, a
condessa insinuou que eu iria terminar louca como a minha
mãe. Meu pai quase falou alguma coisa. Mas, como sempre, a
conversa ficou perdida no ar. Precisa dizer-me a verdade.
– Não sei muito, filha. O que sei é que sua mãe ficava a
maior parte do tempo escrevendo naquele diário que está lá no
quarto dela. Com o passar dos tempos, seu pai começou a se
distanciar dela dia após dia. Sua mãe cobrava muito as
ausências dele, e ele passou a dizer que sua mãe estava muito
doente. Quando ela engravidou da senhorita, a história
complicou-se, pois seu pai não nos permitia cuidar de
Elizabeth. Somente ele e o doutor entravam no quarto. Às
vezes, escutávamos os gritos e pedidos de socorro dela, mas
nunca nos foi permitido tomar alguma providência.
Aquela revelação foi um golpe no meu coração. Então,
disse:
– Maria, a senhora tem que me dar a chaves do quarto
de minha mãe. Não pode me negar isso.
– Filha, se eu fizer isso, serei punida. Ninguém entra
naquele quarto há anos, a não ser para limpá-lo. Se
descobrirem que lhe dei as chaves, expulsar-me-ão desta casa.
– Não vai lhe acontecer absolutamente nada, Maria, eu
prometo. Mas preciso entrar naquele quarto.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 294 -
Maria, percebendo que não conseguiria convencer-me
do contrário, disse:
– Está bem, só lhe peço que espere um dia em que os
senhores não estejam em casa.
– Obrigada, Maria!
Beijei-lhe as mãos e continuei:
– Já que a senhora está de pé, então venha: sente-se,
vamos tomar o desjejum juntas.
– Serei a primeira a ter que experimentar sua tentativa
de envenenamento?
– Lógico que não! Esqueceu-se de que fui criada no
meio das cozinheiras e aprendi tudo?
Por fim, Maria aprovou meus quitutes. Depois de
ajudá-la a arrumar a bagunça que eu havia feito, subi para o
meu quarto, para me limpar. Estava parecendo um boneco de
neve, de tanta farinha que tinha no meu corpo. Comuniquei a
ela que sairíamos, pois queria ir à casa de madame Hortência.
Ela fez uma caretinha de desaprovação, mas sabia que seria
impossível segurar-me dentro de casa.
Esperei Maria subir para lhe avisar que meu pai já
sabia que sairíamos. Não queria que a condessa arranjasse
algum contra tempo. Já no hall de entrada, encontrei meu pai,
que me indagou:
– Posso saber por que quer ir tão cedo à casa de
madame Hortência?
– Ora, meu pai. Não foi o senhor quem me disse que eu
deveria me comportar como uma moça da sociedade? Então,
estou indo à casa de madame Hortência para pedir-lhe que faça
um vestido à altura do baile do conde. Não quer que eu pareça
com a filha de uma criada, quer?
– Se é assim, então vá! Quero que fique radiante.
Adriana Matheus
- 295 -
– Ficarei, meu pai. Não o decepcionarei. A propósito,
estou tirando o luto de Maria. Espero que o senhor aprove.
Não fica bem que ela receba aos convivas com a mesma roupa
que usa há séculos.
– Se acha que isso pode ajudar em alguma coisa e lhe
faz feliz, então, fique à vontade.
Saí e encontrei-me com Maria na porta da carruagem.
Contei tudo o que o meu pai me perguntou. Ela concordou que
eu tivesse lhe dito o que faria na cidade. Assim, não daríamos
margem à condessa.
Chegamos, por fim, em frente à casa cor de rosa de
madame Hortência. Lorenzo foi apressadamente ajudar-nos a
descer. Em seguida, pediu-me autorização para ir ver a noiva.
Logicamente, consenti.
O lacaio de madame Hortência veio às pressas ajudar-
nos. Era um rapaz de estatura mediana, mas muito bem
encorpado, apesar da pouca idade que aparentava. Ao
entramos, madame Hortência recebeu-nos de braços abertos e
perguntou:
– Oh! Minha querida, que prazer e surpresa tê-la aqui!
Em que posso lhe servir hoje?
– Meu pai dará uma festa em nossa casa para apresentar
o senhor conde Celso D’Louchoa à nossa sociedade. Portanto,
viemos aqui para que a senhora me faça um vestido lindo para
o baile do conde. Quero, também, que me veja alguns modelos
para Maria escolher. Ela está tirando o luto. Mas, por favor,
madame: nada extravagante.
– Oh! Minha querida, pode deixar: vou caprichar no
seu modelito. Será algo muito especial. E quanto à senhora
Maria, santo deus! Já estava mais que na hora de tirar aquele
luto horrível!
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 296 -
Chamou todas as suas costureiras e, de imediato, foram
tiradas as medidas de Maria. Enquanto isso, madame
Hortência ia tagarelando sem parar a respeito da festa.
– Espero que o seu pai me convide, pois sentirei
insultada caso ele não o faça. Imagine, eu, uma costureira
renomada, que fiz vestidos até para a corte francesa, ser
deixada de lado em tamanho evento! E quando será o grande
baile?
– Daqui a duas semanas.
– Oh, sim! Isso é tempo suficiente para terminar os
modelitos a tempo.
Enquanto Maria escolhia os modelos a seu agrado,
chamei Madame Hortência à parte e disse, quase em seu
ouvido:
– Madame Hortência, quero perguntar-lhe uma
coisinha. Mas tem que prometer-me que manterá em segredo.
A mulher, que adorava um fuxico, arregalou os olhos,
fazendo um sinal positivo com a cabeça. Quase num sussurro,
indagou-me:
– Oh, é claro! Do que se trata? Saiba que sou um
túmulo: o que me contar, guardo comigo a sete chaves.
Percebendo que madame Hortência estava achando que
se tratava de um mexerico, respondi:
– Na verdade, não quero lhe contar coisa alguma.
Quero, sim, que a senhora me responda uma coisa.
– Claro, querida. O que quiser saber, pode me
perguntar. Sei de quase tudo o que acontece nesta cidade. Não
que eu seja uma mexeriqueira, mas é que muitas coisas
chegam aos meus ouvidos.
– Sei, e jamais pensaria que a senhora é uma
mexeriqueira. Mas o que preciso saber é o seguinte: a senhora,
por acaso, tem ou teve um escravo de nome Lourival?
Adriana Matheus
- 297 -
– Oh! Mas por que a senhorita estaria interessada
naquele negro? Acaso tem a intenção de comprá-lo? Não sabe
como me arrependo de tê-lo comprado do vigário. Aquele
insubordinado e insolente só me deu despesas. Vendi-o há
muito tempo para Senhor Dominique. Soube que morreu no
tronco por causa de suas insubordinações. Imagine, tentou
fugir para o quilombo várias vezes e foi pego pelo capitão do
mato. Apanhou até a morte - graças a Deus, ou todos os
escravos do condado pensariam em fazer o mesmo. Ele era
quase um Deus para toda aquela negrada suja.
Ela me dava náuseas pela maneira como falava, assim,
de seres humanos, criaturas perfeitas e filhos do mesmo
criador. Por certo, o pobre homem estava em desespero e
cansado de ser torturado quando resolveu fugir. Infelizmente,
tinha que conviver com pessoas preconceituosas. Aquela
mulher era uma pessoa digna de pena: por ser um espírito
muito atrasado, precisaria muito de minhas orações. Por certo,
em um futuro próximo, ela voltaria como escrava ou
empregada de uma pessoa de cor, que a faria pagar por seus
delitos. Ela não sabia, mas ela mesma escolheria esse destino
para aprender e evoluir.
Coloquei as mãos sobre as mãos dela e fiz uma oração
silenciosa, fazendo-a esquecer tudo o que havíamos
conversado. Sei que não era correto usar de meus dons para
apagar a memória de uma pessoa. Mas, no caso de madame
Hortência, foi necessário.
Fui interrompida pelo lacaio, que veio avisá-la da
chegada de mais uma cliente. Ele ficou me olhando, meio
assustado. Disse-lhe que estávamos fazendo uma oração.
Madame Hortência ficou meio aérea e perguntou-me:
– Do que mesmo estávamos falando, minha querida?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 298 -
– Do vestido que a senhora irá fazer para mim.
Lembre-se de que terá que ser exclusivo.
Tinha a certeza de que, daquele dia em diante, aquela
mulher passaria a olhar para as pessoas de cor de uma nova
maneira. Infelizmente, tive que usar meus poderes com um ser
tão ignorante.
Tomei fôlego antes de sairmos da pequena salinha onde
estávamos. Madame Hortência saiu na minha frente. Foi
quando percebi que o jovem lacaio apalpara seu enorme
glúteo. Havia muitas intimidades entre aquela repulsiva
senhora e aquele jovem empregado. Continuaram com aquela
intimidade até que os perdi de vista.
Cheguei a uma conclusão: por certo, o jovem negro
Lourival - por dignidade ou por amor à Maria - não se
sucumbira às vontades de madame Hortência. Esse foi o erro
do pobre rapaz. Sabia que eram épocas difíceis para todos e
que, muitas vezes, os maridos viam-se obrigados a viajar,
deixando sozinhas em casa suas jovens e fogosas esposas.
Muitas delas se entregavam por pura satisfação à luxúria -
como a condessa. Outras se mantinham falsamente discretas,
de romances com seus escravos. Outras, ainda, arranjavam um
consorte - como madame Hortência. Isso, é claro, não era
constante. Também existiam senhoras realmente recatadas e
sinceras em seus sentimentos e fidelidade - o que era uma
exceção, pois a maioria dessas esposas era muito mal amada.
Eu não havia vindo neste mundo para julgar ninguém,
mas aquela cena de hipocrisia fazia-me muito mal. Essa era a
sociedade que meu pai fazia questão que eu frequentasse.
Bom, o meu maior problema foi como contar à Maria
que seu único amor havia sido assassinado. Despedimo-nos o
mais rápido possível de madame Hortência, pois não queria
ficar nem mais um segundo perto daquela sujeira toda. Pedi à
Adriana Matheus
- 299 -
Maria que fôssemos à igreja local, pois precisava falar com o
padre Ignácio. Ela, por sua vez, perguntou-me:
– O que houve? Está com problemas de consciência
pesada, logo assim, pela manhã?
Sorri, mas não era essa a minha real vontade. A contra
gosto, respondi:
– Preciso caminhar, respirar e rezar um pouco. Por isso,
quero ir até a igreja. Quero sentir o vento da manhã soprando
em meu rosto.
Mas Maria não era tola e logo desconfiou,
perguntando:
– O que foi que aquela mulher lhe fez?
– A mim, não fez nada. O problema é o que ela faz a
ela e aos outros, todos os dias. Sei que não sou santa e não
posso salvar a humanidade, mas fico triste quando vejo um
espírito se denegrir daquele jeito. E o pior é que pessoas assim
vão à igreja todos os domingos. Comungam cheias de pecado e
sentem-se na capacidade de julgar os outros. Tive que gastar
meu poder de esquecimento com aquela criatura vulgar.
– Então, foi muito sério o que estava falando com ela.
– Sim, Maria, foi. Quando chegarmos à igreja, depois
da conversa que terei com o padre Ignácio, se a resposta for do
meu agrado, prometo que lhe conto tudo. Mas agora preciso
encontrar forças em Deus Pai. Sabe bem que, quando usamos
nossos poderes, ficamos fracas.
Apoiei-me em Maria e fomos caminhando abraçadas
até a igreja. Ao chegarmos lá, corri os olhos por toda aquela
imensidão, tentando encontrar o padre Ignácio. Foi em vão: só
encontrei silêncio, frio e muito luxo. Mas, de repente, ouvi
barulhos de chinelos arrastando pelo chão. Às vezes, ouvir
barulhos em lugares tão vazios dá-nos certo medo. Olhei
imediatamente para trás, achando ser um fantasma. É nas horas
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 300 -
mais banais que temos que aprender a enfrentar nossos
temores. Pois, quando enfrentamos as menores coisas, estamos
treinando para enfrentar as maiores. Abri um largo sorriso ao
perceber aquela figura amiga e bem materializada. Que alívio,
não estava preparada para lidar com um incumbo - não estando
tão fraca.
A mente, em estado débil, cria formas, cores e até
barulhos. Não queria e não iria, de forma alguma, deixar
minha mente ficar atrasada e cheia de absurdos. Já sabia que os
desencarnados não poderiam me fazer mal. O mal eram os
meus semelhantes encarnados: estes, sim, poderiam me
prejudicar de todas as maneiras. Era incrível perceber como
um lugar que pode nos trazer paz consegue, também, causar-
nos tanto pânico. Isso ocorre por causa das duas energias
adversas que se misturam. Muitos vão a lugares santos para
rezar e pedir o bem, mas existem também aqueles que entram
nestes lugares com o coração cheio de egoísmo, ambição e até
mesmo ódio. Existem pessoas que pedem a Deus o mal, como
já citei antes. Deus lhes concede os desejos do coração, não
importa qual ele seja. Não é a quem pedimos, mas a força com
a qual pedimos.
Algumas pessoas têm o pensamento errôneo de que os
íncubos ou súcubos não entram em locais ou solos sagrados.
Pois digo que entram, sim. A maioria desses espíritos
assombra igrejas e locais considerados sagrados porque apega-
se a esses lugares, ou também porque vão acompanhando as
pessoas que frequentam esses locais. Esse pensamento errôneo
chega a ser quase uma lenda. Por isso, a maioria desses locais
é assombrada devido às tantas energias que se misturam no
nosso espaço invisível. No mundo espiritual, existe uma guerra
onde o bem combate o mal, onde os anjos lutam contra os
demônios, onde espíritos iluminados tentam doutrinar os
Adriana Matheus
- 301 -
espíritos impuros e rebeldes. Por isso, é necessário não só
tentar entender o mundo espiritual, mas também respeitar o
invisível. Essa guerra sempre afetou a humanidade desde a
época de Cristo. Por certo, em um futuro muito próximo, essa
guerra invisível será muito mais prejudicial, pois o homem, em
sua evolução científica, afastar-se-á da fé. Com isso,
acontecerá a degradação da humanidade.
Temos que ter uma noção básica de que nem tudo é
lógica, nem tudo é explicável e nem tudo é ciência. Pois, se
Deus quisesse que fôssemos sabedores de todas as coisas, o
mundo e as pessoas não precisariam de um Mestre para guiá-
los.
Maria havia me deixado sozinha dentro da igreja - o
que me foi muito bom, pois consegui recuperar minhas forças
e colocar minhas ideias em dia. Despertei-me daquele quase
transe porque senti alguém me tocar com as mãos. Quando me
virei para ver quem era, disse:
– Padre Ignácio! Que bom vê-lo. Estava mesmo
precisando falar com o senhor.
Ele, por sua vez, respondeu em tom de brincadeira:
– Anda se assustando na casa de Deus, querida? O que
foi que houve, minha filha? O que lhe fizeram os santos desta
paróquia?
Gostaria de ter-lhe dito que não eram os santos que me
assustavam, mas sim as pessoas. Mas, por fim, resolvi apenas
responder:
– Preciso de respostas, padre. Somente o senhor poderá
me responder.
– Calma, filha. Sinto que está muito afoita. Respire um
pouco e depois me explique de que tipo de respostas está
precisando.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 302 -
– Quero, primeiro, que o senhor me responda: que
paradeiro levou um escravo de nome Lourival? O senhor o
conheceu, não?
– Sim, por certo. Comprei-o da fazenda de seu pai.
Mas, a pedido do mesmo, tive que vendê-lo para madame
Hortência. Parecia que esse homem encontrava-se com Maria,
sua governanta, às escondidas.
– E por que meu pai estaria tão incomodado que Maria
se relacionasse com um escravo?
– Porque seu pai temia que Maria fugisse com ele e
abandonasse a senhorita, ainda pequena. Seu avô pegou Maria
ainda menina e ela foi criada para cuidar da casa. Recebeu boa
educação, mas não poderia nunca se casar. Quando sua mãe
casou-se com o seu pai, Maria era pouca coisa mais velha que
ela, e passou a ser a governanta da sua casa. Ela só saía de casa
com a sua mãe. As duas eram muito amigas. Como seu pai
viajava muito, ao descobrir o envolvimento de Maria com esse
jovem escravo, logo o vendeu. Seu pai não queria perder a
companhia de sua mãe. Sua mãe disse que não se importaria
que Maria fugisse para ser feliz, mas seu pai não aceitava.
Trancou Maria por dias em um sótão, até que tivesse
conseguido vender o escravo. Então, a pedido de seu pai,
comprei o escravo, que chegou até a mim muito debilitado.
Cuidei de suas feridas físicas. Mas, infelizmente, não pude
curar sua alma, pois estava indo demasiadamente para um
precipício sem volta. O ódio no coração daquele homem era
muito grande. A mim nunca fez nada - muito pelo contrário,
sempre me tratou com respeito. Então, após alguns meses,
Maria descobriu onde Lourival estava e passaram a se
encontrar às escondidas, aqui dentro desta igreja. Seu pai, ao
descobrir isso, mandou que castigassem Maria, colocando-a no
tronco, para que servisse de exemplo a todos. Fui obrigado por
Adriana Matheus
- 303 -
seu pai a vendê-lo. A primeira pessoa que o quis foi madame
Hortência. Mas ela também se viu obrigada a vendê-lo para
um fazendeiro muito cruel. Dizem que Lourival fugiu e, ao ser
capturado a caminho de um quilombo, morreu com um tiro.
Mas não acredito que aquele homem tenha fugido, pois o amor
dele por sua governanta era muito grande. Ele nunca deixaria
Maria sozinha. Os dois haviam feito uma espécie de juramento
de nunca um deixar o outro.
– Meu Deus, padre, isso é muito grave! Eu tinha meu
pai em alto preço, mas a cada dia descubro uma coisa sobre ele
que mais me decepciona. Não sei como pude ser tão cega!
– Não pense assim, filha!
– E o que o senhor quer que eu pense? Na minha
imaginação, meu pai era um herói. Nunca o vi fazendo nada de
mais, nunca soube que ele torturasse os escravos. E agora
venho saber que ele surrou Maria! Sempre pensei que ela
estivesse conosco esses anos todos porque havia feito um
juramento à minha mãe de sempre cuidar de mim. E agora o
senhor está me contando que ela foi obrigada a ficar comigo.
Santo Deus, padre! Minha dívida com essa mulher é muito
maior do que eu supunha.
– Sinto ter sido eu a lhe contar tudo isso, senhorita
Anna, pois estou vendo que é uma pessoa de coração puro e de
alma inocente. É uma pena que essa pureza será corrompida
em breve.
– Não, padre. Isso não irá acontecer comigo. Agora
quero que o senhor me responda outra pergunta.
– E qual seria, minha filha?
– Conte-me exatamente como minha mãe morreu.
Sempre me contaram que ela morreu no parto, dando-me a luz.
Mas fiquei sabendo de fatos que demonstram que isso não é a
verdadeira história.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 304 -
– Senhorita Anna, essa é uma história muito perigosa
de se envolver. Posso pagar por isso caso seu pai descubra que
lhe falei sobre esses assuntos.
– Por favor, padre, preciso saber. O senhor não pode
me negar isso. Passei muitos anos vivendo na ignorância.
Agora, descobrir a verdade é uma questão de honra para mim.
O senhor entende?
– Sim, entendo. Mas que fique bem claro que não
podem saber que fui eu quem lhe contou isso!
– Não se preocupe, padre. Não contarei a ninguém.
– Não sei muito. Mas o pouco que vou lhe contar é o
que sua mãe me contava quando eu tinha permissão de visitá-
la. Pouco antes de Elizabeth ficar doente, ela me contou o
seguinte...
– Minha mãe estava doente? Mas que tipo de doença
ela tinha? Pensei que ela tivesse falecido por uma insuficiência
respiratória durante o meu parto.
– Por favor, minha filha, deixe-me terminar. Elizabeth,
segundo o senhor seu pai, estava sofrendo de perturbações
espirituais. Foi quando o seu pai chamou-me para fazer um
exorcismo. Primeiro, tive que me certificar de que era verdade
o que seu pai estava alegando.
– E era, padre?
– Não. Felizmente, Elizabeth não tinha nenhum indício
de estar possuída ou perturbada por um espírito maligno. Ela
me pareceu uma mulher muito sensata e muito ingênua, assim
como a senhorita.
– E por que meu pai estava acusando minha mãe tão
levianamente?
– Seu pai sempre foi um homem muito ambicioso,
senhorita Anna, e também um jogador compulsivo. Ele havia
perdido em um jogo a metade da fortuna da família. Seu pai
Adriana Matheus
- 305 -
sempre viajou muito, e sua mãe ficava sozinha durante meses
dento de casa. Seu pai também passou a não desejar mais sua
mãe como mulher. Então, ela desconfiou das atitudes dele. As
brigas entre os dois começaram a deixar sua mãe muito
depressiva e angustiada. Moramos em uma cidade pequena e
os boatos a respeito de seu pai cresciam. Chegou aos ouvidos
de sua mãe um suposto envolvimento dele com uma condessa
muito rica.
– Padre, está querendo me dizer que o senhor meu pai e
a condessa Del Prat já se conheciam quando a minha mãe
ainda estava viva? - sentei-me no banco da igreja para não cair,
pois minhas pernas tremiam sem parar.
– Não sei se a sua madrasta e a suposta condessa que
comentam são a mesma pessoa. Mas o fato é que Elizabeth
narrou tudo isso em um diário. Ela queria que a senhorita, ao
nascer, soubesse toda a verdade. Ela chegou a ameaçar de
acusar seu pai de adultério. Foi, então, que seu pai começou a
levantar a falsa suposição de que ela estava possuída por
espíritos imundos. Quando pude constatar esse fato e provar
que era falso, seu pai, então, aliou-se ao doutor e sua mãe foi
declarada como louca. A intenção de seu pai era internar
Elizabeth em um manicômio assim que a senhorita nascesse.
– Então, foi por isso que ele a manteve trancada em
seus aposentos?
– Sim, nem mesmo Maria podia entrar para vê-la.
Somente ele e o doutor tinham essa permissão. Houve um
baile em sua casa e Elizabeth conseguiu, nesse dia, escapar do
cárcere. Dizem que ela se vestiu de negro e foi para o meio de
todos, e flagrou seu pai junto a essa condessa de quem tanto
todos falavam.
– O senhor está me dizendo que o meu pai deu um baile
em minha casa com a minha mãe ainda viva para essa mulher?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 306 -
– Foi o que me disseram, filha. Talvez Maria possa lhe
esclarecer mais sobre esses fatos.
– E onde está o diário de minha mãe?
– Não sei, filha. Talvez ela o tenha escondido. Seu pai
também nunca o achou.
Fiquei pensando e, depois, respondi:
– Acho que eu sei onde possa estar, padre.
– Filha, prometa-me que terá muito cuidado.
– Não se preocupe, padre, eu terei. E quanto a esse
conde inglês, o que o senhor sabe?
– Na verdade, quase nada. Até achei que estivesse
morto.
– Como assim?
– Parece que houve um assassinato e, se não estou
enganado, a história é que ele e o pai haviam morrido. Mas
deve ser apenas um boato.
– Sim, deve ser um boato.
Fiquei de cabeça baixa, pensando em como agiria ao
ver meu pai. Percebendo meu jeito, padre Ignácio falou:
– A senhorita está bem?
– Sim, estou. Preciso ir, Maria está me esperando lá
fora. Não posso me demorar mais.
– Está bem. Espero que a senhorita consiga resolver
seus problemas com sabedoria.
– Vou tentar, padre. Prometo.
Tomei sua benção e saí para encontrar-me com Maria.
Achei-a parada, estática, em pé em um dos degraus da igreja.
Deu-me tanta pena saber que aquela mulher havia sofrido
tanto! Caminhei em direção a ela e coloquei as mãos em seu
ombro. Ela deu um pulo de susto. Disse-lhe:
– Fique calma, Maria. Não há do que temer.
Adriana Matheus
- 307 -
– Estava distraída em minhas lembranças. Então, como
foi a conversa com o padre?
– Instrutiva. E não agora, mas futuramente, falaremos
sobre o que eu e o padre Ignácio conversamos. Agora preciso,
ainda, digerir o que ele me contou. Vamos para casa, antes que
comessem a ter ideias erradas sobre a nossa ausência.
Maria parecia não estar muito bem, pois não falou
muito no caminho de volta naquele dia. Chegamos à frente da
mansão Del Prat e já não senti mais aquela casa como minha.
Pela primeira vez em minha vida, soube o que queria dizer.
Senti nojo de mim mesma. Sim, senti nojo de mim mesma por
pertencer àquela gente. A condessa estava nos esperando à
varanda, com um sorriso que mais parecia deboche. Pedi a
Deus para dar-me forças, pois não estava com a menor
disposição para ouvir o que quer que fosse daquela boca
imunda. Deus ouviu as minhas preces, porque passamos por
ela, que nada mencionou. Apenas nos olhou com cara feia e
cruzou os braços. Maria baixou a cabeça, mas fingi que não
era comigo.
Maria seguiu para seus afazeres e fui até a sala de
leitura, onde encontrei meu pai bebendo. Ao ver-me, ele
sorriu, falando:
– Estava gastando o pouco de dinheiro que ainda me
resta?
Percebi que ele não estava sóbrio.
– Não, meu pai, ainda deixei o bastante para o senhor
gastar tudo em jogatinas ou para que sua amada esposa esbanje
com futilidades.
Ele veio cambaleando para o meu lado e desvencilhei-
me dele. Por fim, ele disse, apontando o dedo para o meu
rosto.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 308 -
– Você está ficando uma fedelha muito insolente,
sabia? Posso agora mesmo mandar que... - ele interrompeu a
fala.
– Diga, meu pai! O que o senhor vai mandar que me
façam? Serei trancada em meu quarto como uma louca, ou irá
me amarrar a um tronco e dar-me chicotadas para eu servir de
exemplo?
Ele cambaleou e, embora não compreendesse o que eu
estava falando, sentiu aquelas palavras como um peso na
consciência. Então, afastou-se de mim e encostou-se na
parede, sem saber o que dizer. Saí da sala, deixando-o com o
fantasma de suas lembranças.
Fui para a cozinha atrás de Maria. Deparei-me com ela
consolando Tereza, que estava chorando. Quis saber o que
estava acontecendo. Foi quando Maria respondeu-me:
– O netinho de Tereza está muito doente. Ela pediu
autorização à condessa para ir até a casa da filha, mas ela não
deu.
Pensei em uma solução para aquele problema e disse:
– Pode ir, Tereza. Responsabilizo-me. Depois falo com
o meu pai a respeito.
– Mas, senhorita, a condessa poderá puni-la também. E
quem fará o jantar?
– Joana, ora! Maria e eu tentaremos despistar a
condessa. Saia pelos fundos, para que ninguém a veja.
Ela beijou as minhas mãos em agradecimento e eu
disse:
– Vá logo, mulher! Está perdendo o seu tempo comigo!
Tereza saiu de costas, agradecendo. Maria perguntou-
me:
– O que falarei à condessa, caso ela dê pela falta de
Tereza?
Adriana Matheus
- 309 -
– Não se preocupe. Ela está ocupadíssima com os
preparativos do baile para o conde.
Eu e Maria comemos uma prenda na cozinha. Não
estava com muita fome. Acabei deixando metade do que
estava comendo de lado. Subi para meu quarto e fui meditar.
Aquele havia sido um dia bastante difícil. Quase deixei que
energias inferiores me perturbassem a alma. Senti-me fraca e
incapaz por não estar conseguindo falar com Maria.
Temos que ter muito cuidado com a tristeza. Ela nos
deixa vulnerável. É por isso que uma bruxa não pode se
apaixonar: a tristeza e a paixão andam de mãos dadas e, por
nos fazer chorar, enfraquecemos e as lágrimas não nos deixam
ver com clareza que caminho tomar.
Abri a janela e olhei para o céu: a deusa Lua estava
magnífica aquela noite; sua luz iluminou tudo ao redor.
Recorri a ela para recarregar minhas forças. Depois de fazer
minhas orações, fui para a cama e adormeci tranquilamente.
Horas depois, um beijo na testa acordou-me
suavemente. Abri os olhos com Maria dando-me um bom dia.
– Bom dia, filha! Dormiu bem? Desculpe-me tê-la
acordado assim, tão cedo, mas creio que precisamos conversar.
Depois de dar um bocejo, espreguicei-me na cama e
disse:
– Bom dia, Maria, que horas são? Caiu da cama, foi?
– Ainda não amanheceu o dia, mas tive que vir até
aqui. Preciso saber o que a senhorita tanto falava com o padre
Ignácio. Nem venha me dizer que não é nada demais, porque
sei que era sobre mim.
Sabia que Maria sempre sentia quando alguma coisa
estava errada. A minha sombra mental precisava saber a
verdade e, como percebi que não daria mais para remediar esse
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 310 -
fato, levantei-me da cama, fui até o meio do quarto, olhei-a nos
olhos e falei:
– Sim, por certo está com razão: era mesmo sobre a
senhora que eu e padre Ignácio falávamos.
– Sobre o que a senhorita conversou com aquele padre
anarquista?
– Ele não é nenhum anarquista, Maria. Muito pelo
contrário, ele é um homem muito sensato e honesto. Não seja
como essas pessoas que o julgam só porque ele não é velho e
antiquado como o padre Alencar. Por favor, Maria, não faça
um julgamento precipitado antes de ouvir tudo o que tenho a
lhe dizer. Sei muito bem porque a senhora tem esse conceito
dele. Mas quero que saiba que ele não foi culpado por nada
que aconteceu a Lourival. Padre Ignácio também foi obrigado
a vendê-lo para não sofrer punições.
Maria abaixou a cabeça pesarosamente e disse:
– Sei, senhorita Anna. Mas também sei que, como
membro da Igreja, ele poderia ter interferido e pedido para que
Lourival não fosse vendido à madame Hortência. Aquela
mulher horrível torturava Lourival todos os dias. Ele mesmo
me contou que ela o queria intimamente. Mas Lourival nunca
cederia aos caprichos daquela porca gorda.
As palavras de Maria confirmaram a minha
desconfiança. Ela prosseguiu, contando-me:
– Éramos muito jovens e cheios de planos. Nossos
corações eram puros e achávamos que poderíamos vencer
qualquer barreira. Mas não foi bem assim: o preconceito não
permitiu que ficássemos juntos. Depois que Lourival foi
vendido para um fazendeiro de outra região, nunca mais o vi e
também nunca mais ouvi falar nada sobre ele. Ele deve ter
encontrado outro amor. Caso contrário, teria dado um jeito de
voltar e buscar-me, levar-me para onde quer que fosse.
Adriana Matheus
- 311 -
Naquele momento, tive certeza de que Maria nunca
soube o que acontecera com o seu amor. Não poderia mais
deixá-la naquela ignorância. Então, falei:
– Maria, Lourival nunca teve outro amor além da
senhora, acredite.
– Não se preocupe em me falar a verdade, senhorita
Anna. Agora sou mais conformada com essa história. Não é
como antes, que eu ficava muito triste. Agora sou uma mulher
velha e não tenho mais nenhuma perspectiva de vida para
mim.
– A senhora está muito enganada. Sei que ainda será
muito feliz ao lado de alguém que muito lhe quer. E quanto a
Lourival, infelizmente ele morreu, Maria.
A mulher caiu sentada sobre a minha cama, parecendo
perplexa. Portanto, prossegui:
– Sim, Maria. É por isso que ele nunca voltou para a
senhora, como lhe havia prometido. Dizem que ele tentou
escapar do tal fazendeiro e, durante a perseguição, foi baleado
e morreu.
– Lourival nunca fugiria. Não era do feitio dele ser um
covarde. - disse Maria, com plena certeza nas palavras e no
coração.
– É exatamente isso que o padre Ignácio também acha.
Maria, acredito que tenha o dedo do senhor meu pai nessa
história. E nem queira defendê-lo, pois também já fiquei
sabendo do que ele mandou fazer com a senhora.
Maria caiu em prantos e disse:
– Nunca lhe contei toda a verdade porque não queria
que a senhorita crescesse com ódio em seu coração. Desculpe-
me, senhorita Anna, por esse meu momento de fraqueza.
– Não tem de que se envergonhar ou pedir desculpas.
Sou eu quem deveria pedir-lhe humildemente minhas
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 312 -
desculpas, pois indiretamente fui a culpada pela senhora ter
sido privada de viver a sua história de amor.
– Não diga sandices, criança tola. Tudo o que fiz pela
senhorita foi por amor. Se não tivesse tido a senhorita em meus
braços, ali, tão pequenina e precisada de carinho, por certo
teria cometido suicídio, pois me foi muito duro viver sem
Lourival.
Abracei Maria com carinho e deixei-a desabafar toda
aquela dor em lágrimas. Depois de muito conversarmos, pedi-
lhe que voltasse para seus aposentos, pois não seria bom que a
vissem sair àquelas horas do meu quarto, ainda de roupa
íntima. Por certo, achariam que estaríamos planejando algo.
Quando ela estava saindo, virou-se para mim e falou:
– Fiquei sabendo que, mais tarde, o patrão e a condessa
sairão para darem uma volta. Estou pensando em levá-la aos
aposentos de sua mãe.
Dei um largo sorriso de cumplicidade e disse:
– Perfeito! Estarei esperando pela senhora, então.
Fiquei muito triste por Maria, mas foi melhor que ela
soubesse que seu amor estava morto a viver acreditando que
ele a abandonou. Naquela madrugada, até que o dia
amanhecesse, não conseguiria mais dormir. Então, fiquei lendo
meus livros e fazendo minhas anotações até que o Sol firmasse
no céu. Depois, arrumei-me calmamente e desci, encontrando
meu pai já na soleira da porta. Antes que ele saísse, falei:
– Pai, quero ter uma conversa franca com o senhor.
Ele, que já estava saindo, virou-se e disse-me:
– Então será quando eu voltar, pois estou saindo coma
sua madrasta e não quero deixá-la esperando muito tempo na
carruagem.
– Não, pai! Quero falar com o senhor agora. Não quero
mais adiar nossa conversa. Não se preocupe, serei breve.
Adriana Matheus
- 313 -
– Então, que seja. O que há de tão importante que não
possa esperar que eu chegue da cidade?
– Sei que o senhor está arrumando um casamento de
conveniências para mim. Não acho justo que queira me vender
para saldar suas dívidas com o conde.
– Acho que você já está passando dos limites, Anna!
Quero que me respeite, ainda sou seu pai. Todos nesta casa
temos deveres e obrigações. É justo que tenha chegado a sua
hora de dar a sua contribuição.
– Sei disso, pai. Só estou tentando lhe mostrar que,
caso o senhor não tenha percebido, de tola não faço nem o
papel.
– Tudo bem, Anna. Vou ser-lhe mais direto, então: o
conde procurava uma esposa e eu lhe devo muito dinheiro.
Isso sem contar que metade das dívidas da família ele também
pagou. Sendo assim, não vejo nada mais justo que aceitar o seu
casamento com ele. Além do mais, de que está reclamando?
Será uma mulher rica e terá de tudo. E ainda receberá um título
de nobreza. Tem ideia de quantas jovens de sua idade
gostariam de estar no seu lugar? E essa união será muito útil
para os negócios e para a família. Anna, o conde não é nenhum
velhote. É jovem e de boa aparência, e é muito vigoroso! Logo
terão filhos e, além do mais, você acabará se acostumando com
ele. Todo casamento é baseado em negócios. Não achou que
eu lhe criei até agora sem, no mínimo, tirar proveito disso. Já
me bastou sua mãe não ter me dado um herdeiro homem.
Agora chega com essa conversa. Fico satisfeito que esteja
ciente dos meus negócios e, querendo ou não, você faz parte
deles. Agora saia da minha frente, que preciso passar.
Poderia ter-me calado naquele momento e ter aceitado
que o meu destino fosse ao lado daquele crápula, mas tinha
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 314 -
outros planos para mim. Então, mesmo vendo o meu pai
saindo porta afora, disse:
– Saiba que eu não vou ceder tão fácil como o senhor
pensa, meu pai. Pode me casar com este homem, mas juro que
fujo no dia do casamento e o senhor não me verá nunca mais.
O senhor não vai me tratar como trata as suas vacas ou os seus
escravos. Tenho sentimento e sou uma pessoa livre! Vou lutar
por meus direitos enquanto viver.
– Meu Deus, Anna, por que você tem que fazer as
coisas parecerem tão difíceis? Você está complicando uma
coisa que é demasiadamente fácil para uma mulher. Só vou lhe
dizer uma coisa, mocinha: tente passar por cima das minhas
ordens e irá descobrir quem sou realmente.
– Pai, estou falando de sentimentos, dos meus
sentimentos. O senhor está me tratando levianamente como se
eu fosse uma mulher que trabalha em uma taberna. Nunca em
minha vida conheci um homem, e agora o senhor quer me
vender? Sabe, pai, outro dia mesmo eu fiquei pensando no
quanto: estava enganada com o senhor. Pensei que o senhor
era muito diferente de sua esposa - ambiciosa e arrogante, que
o senhor teima em cativar por mero capricho. Mas eu estava
enganada, não é?
– Você está passando dos limites, mocinha! É melhor
que se cale ou não me responsabilizo pelos meus atos.
– Não, pai. Estou expondo minha indignação! Não sou
objeto, pai, sou sua filha! Aposto minha vida como a senhora
sua esposa está envolvida nesse leilão humano. O senhor não
passa de uma marionete nas mãos dela.
Ele me esbofeteou com toda a força no rosto.
Agarrando-me pelos ombros, jogou-me no chão. Revivi minha
vida passada. Sabia que tinha passado das medidas, mas não
poderia abaixar minha cabeça para um ato tão abominável
Adriana Matheus
- 315 -
como aquele. Não era como as outras mulheres. Não poderia
submeter-me a um homem por dinheiro ou para pagar as
dívidas do meu pai.
Depois, parecendo ainda não satisfeito, ele me levantou
do chão por um dos braços e disse:
– Queria fazer isso de uma maneira mais amena e
menos dolorosa para você. Ambos poderíamos ter entrado em
um consenso ou em um acordo vantajoso, o que poderia ter
sido muito bom para ambas as partes. Mas agora estou lhe
dizendo afirmativamente: fará o que eu quiser e quando a
mandar, ou lhe enviarei pessoalmente para um convento, de
onde nunca mais verá a luz do dia, pois me encarregarei de
pedir-lhes que a enclausurem. Veja se arruma um traje que
condiga com a nobreza do conde. Pois, ultimamente, tem se
vestido como uma camponesa.
Em seguida saiu, batendo tão fortemente a porta que
estremeceu todo o ambiente. Pude ainda ouvir seus berros,
gritando por Lorenzo. Fiquei ali, parada no meio do hall, com
os olhos fechados, tentando esquecer aquelas tenebrosas
palavras. Mas, em momento algum, chorei. Não seria fraca,
não daria o meu braço a torcer. Guerreiros não choram, dizia a
voz em minha cabeça. Isso me fez lembrar de minhas
antepassadas, que nunca deixaram o medo ou o fracasso cair
de seus olhos em forma de lágrimas. Eu não seria diferente:
precisava lutar e, para isso, precisava estar muito lúcida. Sabia
que, se aceitasse me casar com o conde, tornar-me-ia uma
marionete em suas mãos. Pois, quando ele se cansasse de mim,
descartar-me-ia, colocando-me de lado - como a maioria das
senhoras casadas, que sempre eram trocadas por concubinas ou
cortesãs. Não queria passar o resto da minha vida amargurada,
fazendo tricô e frequentando a igreja diariamente por não ter
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 316 -
nenhum outro lugar para ir. Não, meu pai não faria isso
comigo.
Maria estava na cozinha e veio correndo, querendo
saber o que havia acontecido comigo.
–Você está bem, Anna? Ouvi seu pai gritando com
Lorenzo, como um louco que acabara de fugir de um
manicômio em chamas.
– Sim, estou muito bem, Maria.
Contei-lhe com detalhes tudo o que acontecera. Depois
de me ouvir atentamente, falou:
– Santo Deus, ele está mesmo louco! E o que pretende
fazer para escapar dessa trama? A não ser que a senhorita
resolva aceitar a vontade de seu pai e casar-se com o conde,
pois não consigo achar nenhuma solução para poder ajudá-la.
– Nunca, jamais serei vendida ou me casarei sem amor.
Darei aos dois uma boa lição.
– Senhorita Anna, deve ter mais cuidado. Seu pai pode
perder a cabeça e nem sei o que ele poderá fazer.
– Não se preocupe, Maria. Serei bastante sutil. Mas,
antes, quero que me dê as chaves do quarto de minha mãe.
Tenho o direito de conhecer o que tem em seus pertences.
– Tudo bem! Mas deixe que acabem de sair e tomem
distância.
– Então está bem. Assim que saírem, suba e traga-me
as chaves.
Disse isso voltando para os meus aposentos. No meio
da escada, ainda ouvi Maria dizer-me:
– Que Deus me ajude! Seu pai, se souber, esfola-me
viva.
Então, respondi-lhe:
– Ele só vai saber se a senhora contar!
Adriana Matheus
- 317 -
Maria saiu meio a contra gosto, pois estava muito
preocupada com as consequências de meus atos. Para falar a
verdade, eu também, mas estava disposta a ir até o fim.
Ao chegar em meu quarto, corri para a janela para
observar quando meu pai partiria na carruagem. Pude observar
a condessa gesticulando muito. Ela conversava com meu pai e,
por certo, estavam falando de mim. Antes de subir na
carruagem, ela olhou para cima e deu-me um sorriso
sarcástico. Cumprimentei-a com a cabeça, pois bem sabia o
que queria dizer-me com aquele sorriso matreiro e os olhos
cheios de maldade.
Maria subiu imediatamente, assim que a carruagem
tomou distância.
– Estou com o coração nas mãos, mas estou aqui,
arriscando-me a ser mandada embora. Tudo por amor e
amizade a uma aprendiz de bruxa que só me põe em confusão.
– Ora, Maria, pense pelo lado positivo: é só comigo que
a senhora consegue ter uma vida agitada e cheia de aventuras!
Lembrei-me de minha infância, quando sempre fazia
Maria correr horrores atrás de mim, ou a fazia subir em cima
de árvores para pegar as frutas que eu queria. Mesmo que
houvesse uma bem pertinho do chão, eu a fazia pegar a mais
alta. Era muito divertido vê-la se atrapalhando toda, subindo
árvore acima. Maria, então, prosseguiu com aquela conversa:
– É mais: se o patrão me pega, vou ter algo muito mais
empolgante do que aventuras ao seu lado. Serei obrigada a
tirar férias para o resto da minha vida.
Não me importava o que Maria pudesse me dizer.
Pegar aquela chave fez meu coração disparar, pois seria a
primeira vez que conheceria as intimidades de minha mãe.
Abrimos a porta e fomos para o final do corredor, na frente do
quarto de minha mãe. Olhei para Maria, muito ansiosa.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 318 -
– Vamos, abra logo. Não temos o dia todo para perder,
ou quer que a copeira venha e nos flagre?
Ao abrir o quarto, senti um carinho muito grande em
todo o ambiente e fiquei muito feliz, pois minha mãe estava lá
dentro, esperando-me com um lindo sorriso. Senti as lágrimas
rolarem e vi quando Maria me olhou. Em seguida, falou:
– Sinto uma presença muito forte aqui dentro. Estou
toda arrepiada. Talvez não seja uma boa ideia ficarmos.
Olhei para minha mãe, que estava sorrindo e olhando
para Maria, com ternura.
– Sim, eu sei, Maria. Minha mãe está aqui e manda lhe
dizer que está muito feliz por vê-la. Não precisa ficar
assustada. Na verdade, ela só está aqui para nos receber.
Maria deu um salto para trás e perguntou onde ela
estava. Respondi que ela estava bem próxima à janela.
– Ufa! Então os arrepios que estou sentindo devem ser
por causa do ventinho frio entrando pela janela!
Eu e minha mãe olhamos uma para a outra com
indignação, pois não acreditávamos ter ouvido aquele
comentário tão esdrúxulo vindo de uma pessoa extremamente
esclarecida sobre a espiritualidade como Maria era. Mas, no
fundo, entendemos, pois ela estava nervosa e assustada. Afinal,
ela nunca realmente havia se confrontado com um espírito.
Aquela presença incorpórea mexeu com seus nervos, fazendo-
a não perceber que estava prestes a cair na obscuridade de sua
imaginação com uma manifestação de ignorância. Engraçado
como as pessoas se assustam com o que não podem ver ou
tocar... Quando, na verdade, a única coisa que pode nos
prejudicar está dentro de nós mesmos: é a nossa maneira cega
e preconceituosa de olhar a vida e as pessoas ao nosso redor.
Os seres incorpóreos nunca poderiam nos fazer mal, a não ser
se os deixássemos invadir nosso meridiano, ou seja, a linha
Adriana Matheus
- 319 -
imaginária que não devemos deixar os espíritos sem luz
ultrapassarem. Esses seres são usados por feiticeiras, para o
malefício da magia negra, na qual os desejos obscuros da
maioria dos seres humanos são atendidos. Na verdade, os
espíritos sem luz são como escravos: apenas cumprem ordens
de seus senhores e estão à espera de uma recompensa.
Abrimos a janela para que o ar e a claridade entrassem.
O quarto era repleto de pequenos bibelôs e parecia que a
tristeza estava bem longe dali. Minha mãe mostrou-me suas
coisas pessoais. Mostrou-me um lugar secreto, onde guardava
o primeiro casaquinho de lã que ela mesma havia tricotado
enquanto estava grávida de mim. Até Maria espantou-se, pois
havia um fundo falso em uma gaveta de sua cômoda. Fiquei
tão emocionada por poder compartilhar aquele momento único
com minha mãe! Encontrei um antigo diário e algumas coisas
que me surpreenderam. Tinha uma estranha varinha de
madeira muito trabalhada, um amuleto, uma toalha bordada em
fios de ouro e um cristal azul. Guardei tudo isso em um
pequeno baú de madeira e marfim. Maria disse-me que mamãe
havia ganhado de meu pai de uma viagem que fizeram à Índia.
Ao abrir seu guarda-roupa, fiquei encantada com o que
vi: logo de primeira mão, um vestido preto, todo de renda
muito fina. Olhei para minha mãe maravilhada. Pedi-lhe
permissão para usá-lo no baile de sábado. Ela respondeu-me,
com um largo sorriso, que tudo aquilo me pertencia. Admirei
cada bibelô. O quarto era muito amplo e tudo era em tom bege
e marfim. A cama de casal era enorme e muito alta. O véu
sobre a cama dava um ar extremamente romântico, mostrando
um pouco do temperamento harmonioso e elegante dela. Ela
me disse que estava triste com papai, mas que era para eu ter
paciência com ele, pois ele estava muito atordoado por causa
das imprudências que havia cometido. Disse-me que ele corria
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 320 -
risco de vida, pois o conde não era uma pessoa tão amena
quanto se mostrava. Pediu que eu também tomasse cuidado
com minhas atitudes com ele e que, principalmente, tentasse
ser discreta quanto à minha nova escolha. Isso me fez ficar um
pouco com o pé atrás quanto ao que faria no baile de sábado.
Depois de muito conversarmos e ela me instruir sobre como eu
deveria proceder em minhas atitudes, despediu-se e retirou-se,
deixando-me pesarosa e com saudades antecipadas.
Agradeci a Maria por permitir encontrar-me com um
pouco da minha história. Saí daquele quarto e tentei deixar
tudo da mesma maneira, pois não quis que ninguém
desconfiasse de nada. Saí com o vestido em minhas mãos, é
claro! Acho que foi o presente mais lindo que eu havia
ganhado. No corredor, entreguei-o a Maria, que me esperava
impaciente. Pedi-lhe que o lavasse em segredo, pois não queria
que ninguém soubesse que eu o usaria no baile do conde. Ela
pegou a chave e desceu para colocá-la no mesmo lugar, para
que ninguém desconfiasse dela.
Voltei imediatamente para meu quarto, levando comigo
alguns dos pertences de minha mãe. Depois de colocar minhas
coisinhas no quarto, em um lugar seguro, fui para a cozinha,
onde fiz minhas refeições ao lado dos criados. O meu lado
humano ainda estava muito triste com meu pai, e não gostaria
de ver ou falar com ele naquele dia tão fatídico.
Depois de ajudar Joana com a louça, voltei para o meu
quarto e resolvi ler o diário de minha mãe. Pude perceber sua
sensibilidade e a maneira humana como via as coisas e as
pessoas. O perdão era o seu lema. Pude perceber que meu pai
não era tão puritano como demonstrava ser - em poucas linhas,
minha mãe dizia saber de suas traições, mas se manteve digna.
Saltei algumas páginas, para não me aborrecer ainda mais
Adriana Matheus
- 321 -
como ele, e descobri uma coisa que me deixou boquiaberta.
Logo depois de dez páginas, estava escrito:
Anna, sei que neste momento você está lendo estas
páginas. Espero que já tenha identificado seu dom. É, filha, sei
que não viverei o bastante para lhe contar sobre isso
pessoalmente. Sou uma bruxa. Antes de deixar meu aparelho,
passar-lhe-ei neste livro todo o meu conhecimento sobre a
magia. Lógico que muitas coisas você terá que aprender por si
mesma, pois a magia é uma busca eterna do saber. Seu pai
nunca soube desse segredo, que agora compartilho
exclusivamente com você. Não culpe Maria: ela prometeu-me
guardar segredo. Nunca lhe revelei sobre o fundo falso ou
sobre a passagem secreta do porão, onde pratico meus rituais
de magia. Nesta hora, sei como está se sentindo e se
perguntando onde fica a passagem secreta. Fica atrás do 3º
lote de vinhos de seu pai. Lá, encontrará tudo o que precisa
saber sobre mim e nossa raiz. Como já deve ter ouvido,
estudei até os dezesseis anos em um colégio de freiras, na
França. Lá, aprendi muitas coisas, inclusive sobre a crueldade
e a falsidade que ocorre por trás das paredes de um convento
rigoroso. Minha mãe queria que eu tivesse uma vida religiosa
e que fosse preparada para ser uma boa esposa e dona de
casa. Só que sempre tive esses sonhos românticos. Também
sentia que o mundo precisava de mim de uma outra forma.
Minha primeira manifestação como bruxa foi quando, no
convento, começou a surgir um boato de que várias freiras
estavam ficando loucas por causa da influência do demônio.
As pobres mulheres davam crises e debatiam-se, jogando seus
frágeis corpos de um lado para o outro da parede de suas
celas. Algumas cometeram suicídio. Algumas engravidaram, e
as freiras as fizeram abortar. O horror e o pânico
expandiram-se por todo o convento, e meus pais estavam
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 322 -
vindo me buscar. Só que algo dentro de mim gritava e dizia
que aquilo tudo nem de perto tinha a ver com o demônio.
Numa bela tarde, eu estava sentada na soleira, lendo um
romance, depois de uma monótona aula de literatura, quando
ouvi alguém me chamar. Levantei-me rapidamente, pois tanto
os padres como as freiras eram muito rígidos quanto à
obediência. Então, de um salto, respondi “Pois não,
senhora!?”. E, abaixando a cabeça, continuei imóvel,
esperando que alguém viesse me impor alguma ordem.
Quando percebi que ninguém falou nada, ergui minha cabeça
e vi que não havia ninguém. Fiquei assustada e saí correndo
para o meu quarto, onde sentei na cama e fiquei tentando
entender o que teria acontecido. Cheguei a pensar que
realmente poderia ser um tipo de demônio que tivesse falado
comigo, o mesmo que estaria deixando as freiras loucas.
Fiquei com mais medo ainda por não saber como diria aquilo
para as freiras sem que elas achassem que estava possuída.
Foi quando a voz, mais uma vez, falou comigo: “Elizabeth,
não temas, não viemos lhe fazer nenhum mal. Escute-nos,
temos que lhe prevenir: está correndo um risco muito grande
aqui dentro”. Primeiro, esconjurei e rezei incessantemente.
Depois, cobri a cabeça com travesseiros, mas as vozes não
paravam. Então, em soluços e com muito medo, resolvi
perguntar: “O que querem de mim? Por que estão me
atormentando? Sou filha de Deus e renego vocês, espíritos
imundos”. Ouvi responderem-me: “Também somos filhas de
Deus, Elizabeth, e precisamos de sua ajuda para evitarmos
mais uma tragédia com as meninas”. Ao ouvir aquilo, fiquei
mais calma. Pois, além de a voz ser suave, parecia-me
sensata. Perguntei “Em que posso ajudar as pobres moças?
Por que os demônios estão torturando essas pobres mulheres,
por que estão possuindo-as?”. Explicaram-me que não eram
Adriana Matheus
- 323 -
demônios, e muito menos pessoas daquele meu mundo.
Indaguei-lhes sobre quem estava fazendo aquilo.
Responderam-me que o padre Moises invadia as celas das
moças e as obrigava a manter relações com ele. Contestei-os:
“Isso é mentira, elas dizem que é um homem sem rosto e
encapuzado”. Eles me disseram que o padre realmente usava
um capuz, e elas não o reconheciam por estarem entorpecidas
com um chá, feito com uma erva muito poderosa, que as
deixava em completo êxtase. Mas como isso era possível, se os
padres não tinham acesso às celas? Segundo as vozes, o padre
convenceu a cozinheira que esse chá as fazia ficar calmas.
Então, ele conseguia entrar em suas celas. Depois do ato
abominável, ele colocava na cabeça delas que foi o demônio
que as violou. As pobres meninas ficavam loucas, pois o
alucinógeno as fazia delirar. Era por isso que os exorcistas
haviam dito nunca terem visto esses tipos de manifestações
antes. As vozes disseram-me que eu poderia ajudar as
meninas, escrevendo uma carta anonimamente, dizendo que,
durante a estadia do padre Moises em outro convento da
região, o mesmo havia acontecido. Eu deveria entregar a
carta ao leiteiro e pedir-lhe que, quando ele voltasse na
manhã seguinte, entregasse à madre. “Lembre-se de ser
bastante severa e cite o nome do convento e o nome da madre
superiora do local”, advertiram-me. Assim fiz, como as vozes
me ensinaram. Naquela noite, mal consegui dormir: se tudo
fosse obra de espíritos impuros, eu estaria envolvida em atos
de bruxaria e satanismo. Isso poderia me custar a vida.
Depois de uma noite péssima, fui a primeira a me levantar.
Mal consegui prestar atenção nas minhas aulas sequenciais e
cotidianas. Depois de muito sofrer por antecipação, ouvi no
meio do corredor um grande zunzunzum. Corremos todas para
ver o que estava acontecendo. O monsenhor havia sido
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 324 -
chamado. Todos estavam trancados e aos berros, na sala da
madre superiora. Deus, com que agonia eu estava... “Onde fui
me meter?”, pensei, temerosa e certa de que estava
encrencada. Somente às duas da tarde, depois de muito
alarido, foi que soubemos o que realmente houve. Os espíritos
estavam completamente certos: padre Moises foi levado por
seus superiores e acompanhado por um inquisidor.
Supostamente, quem estava endemoniado era o padre. Em sua
cela, acharam muitas raízes alucinógenas e abortivas. Raízes
a que só as feiticeiras e os magos teriam acesso. Interrogaram
as jovens freiras e várias disseram que o padre bolinava com
elas, mas que o efeito das drogas as faziam acreditar que fosse
o demônio que se disfarçava de padre Moises. O escândalo
gerou a retirada de muitas moças da escola interna e o
fechamento temporário do convento. Graças a Deus, fui uma
dessas moças. Continuei na França a pedido de uma tia, que
continuou com os meus estudos em casa. Durante um baile,
conheci seu pai. Os espíritos preveniram-me de sua reputação
de conquistador, mas disseram que você nasceria de nossa
união. Disseram que você seria muito especial e que teria uma
missão a cumprir. Mostraram-me várias vezes o seu rostinho
em sonhos. Minha união com seu pai não foi por interesse
meu, pois realmente estava apaixonada por ele. Mas você
também já deve ter percebido que não fui muito feliz, porque
seu pai sempre gostou de viajar e esbanjar. Quando os
espíritos avisaram-me de que minha doença não teria cura
porque se tratava de um mal de sentença, comecei, então, a
preparar um local secreto para que, quando você crescesse,
tivesse o seu lugar para trabalhar. Maria ajudou-me e sempre
me orientou a como agir. Com as viagens constantes de seu
pai, fiquei muito sozinha. Então, a prática da magia foi-me um
aprendizado constante. Algumas coisas estão anotadas para
Adriana Matheus
- 325 -
que lhe sirvam de exemplos. Espero, filha, que cumpra sua
missão com muito amor e designação. Lembre-se de sempre
manter a discrição sobre a magia, e de só praticá-la quando
realmente necessário e para o bem comum. Cuide de seu pai e
nunca o contradiga, pois se torna violento e pode agredi-la.
Ajude Maria a encontrar seu grande amor e liberte-a, pois ela
ainda tem que seguir seu caminho. Deixo-lhe tudo o que
aprendi com os espíritos, e prometo que sempre estarei
presente para protegê-la.
Cumpri tudo o que ela me pediu naquele diário, embora
nem tudo tenha sido da compreensão de todos os que me
cercavam. Mas nunca fiz nada esperando que alguém me
compreendesse. Apenas quis ser livre. Esperava poder seguir o
caminho que escolhi.
Era impressionante como minha mãe poderia saber
que, um dia, eu leria seu diário. O que mais me intrigava era
como ela havia conseguido esconder de meu pai que também
era bruxa. Maria, com certeza, tinha algumas respostas a me
dar.
Peguei no meu diário um pouco para fazer minhas
anotações e esclarecer algumas coisas sobre a tradição da Lua.
Aproveitei para acrescentar as seguintes anotações: nós,
bruxas, acreditamos na deusa como a criadora de tudo e de
todos. A deusa é a principal deidade da bruxaria. Ela é
simbolizada pela Lua e pela Terra, e recebe diferentes nomes
em diversas culturas em que é cultuada e celebrada. A deusa é
eterna, imortal e exerce supremacia em nossas práticas e
rituais.
A bruxaria é uma religião polarizada. É por isso que
também acreditamos no princípio criador masculino do deus
cornífero, simbolizado pelo Sol, representando a fauna, a flora
e os animais. Ele é considerado filho e consorte da deusa. Sei
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 326 -
que isso poderá parecer uma heresia a princípio. Mas, em
nossa cultura, existem muitas coisas misteriosas por si só que
são consideradas abomináveis, irregulares e anormais aos
olhos humanos. Com o passar do tempo e muito estudo, são
coisas com que se aprende a conviver, com naturalidade.
Tudo nesta terra é uma questão de cultura e aceitação.
Mas uma coisa digo: não cultuamos o demônio, não comemos
criancinhas e muito menos praticamos orgias nas quais -
supõe-se - o demônio deita-se com as bruxas.
Não posso dizer o mesmo das feiticeiras. São pessoas à
parte da magia. Não seguem regras e fazem uso de seus
poderes à revelia e mercenariamente. Mas, em nossa tradição,
nunca houve sequer nenhum evento singular a esses
mencionados por inquisidores e fanáticos religiosos. Todos os
rituais mágicos sempre são executados visando efeitos
benéficos, de forma que as pessoas jamais sejam prejudicadas.
A natureza é o templo de nossos antigos deuses. Por
isso, a maioria dos nossos rituais é realizada em meio à mata
fechada. Apesar de muitas bruxas realizarem seus rituais em
suas casas ou locais fechados, por uma questão de privacidade,
discrição e cautela, a natureza é sempre vista como o local
ideal para a celebração de nossos rituais. A magia é um
instrumento que, quando bem usado, torna-se um grande
aliado. Mas, caso contrário, pode desencadear todo o universo
à sua volta. Como devo sempre lembrar, não podemos e nem
temos o direito de interferir no destino de ninguém.
Relembrando uma coisa: bruxas não usam suas
vassouras para voar, nem seus caldeirões para fazer cozidos de
dragão ou sopa de sapo, como diz o dito popular. Esses
instrumentos são realmente utilizados em nossos rituais e
feitiços, mas não da forma fantasiosa e folclórica que diversas
vezes são mencionados em relatos e histórias supersticiosas.
Adriana Matheus
- 327 -
A vassoura original de uma bruxa é feita com um
punhado de planta amarrado ao redor de um cabo: os dois
sexos, o côncavo e o convexo. As bruxas mais antigas usavam
esse instrumento de forma fálica para abençoar, fazendo um
ritual de fertilidade. À noite, pulavam sobre vassouras nos
campos e, quanto mais alto se pulasse, maiores eram as
bênçãos da fertilidade. Esse tipo de ritual era noturno e, por
isso, muitas vezes foi confundido com rituais de maldição - o
que também gerou a lenda de que a bruxa voava em vassouras.
No fundo, as bruxas antigas gostavam de se parecerem
místicas e estranhas - o que foi um erro, pois os supersticiosos
usaram da sua alegria e também de sua maneira debochada
para prejudicá-las com calúnias e estórias folclóricas.
Esclarecendo, também, sobre a viagem, ressalto o
seguinte: quando estamos despertos, o corpo astral coincide
com o físico. Mas, quando estamos adormecidos, ele se
destaca, dando, assim, origem à projeção astral. O corpo astral,
nesse estado, mantém-se ligado ao corpo físico pelo cordão de
prata por toda a vida. Quebrando-o, a vida termina -
desligando, assim, o corpo Astral do corpo Físico. O cordão de
prata é a ligação do corpo físico ao corpo astral, através da
qual é transmitida a energia vital para o corpo físico, durante a
projeção astral, mantendo sempre os dois corpos interligados,
independentemente da distância a que se encontrem. Por mais
afastados que estejam, o cordão de prata jamais se partirá:
antes funcionando como um elástico, trazendo sempre de volta
o corpo astral, por mais longe que ele se encontre. O cordão de
prata também é conhecido como cordão astral, fio de prata,
cordão luminoso, cordão vital, entre tantos outros nomes.
O plano astral é um universo paralelo ao nosso, é a
quarta dimensão. Durante a projeção astral, consegue-se fazer
o que se quiser e ir onde o nosso pensamento desejar. Não
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 328 -
existe espaço nem tempo – mas, sim, forma e pensamento.
Pensa-se num lugar e, quase de imediato, estamos lá. Existem,
no entanto, algumas limitações. Por exemplo: muitas pessoas
que não são capazes de se tornarem visíveis ao visitar um
amigo ou familiar. No entanto, algumas pessoas conseguem.
Há pessoas que não veem a presença de outras na viagem
astral. No entanto, conseguem sentir a presença. Durante a
viagem astral, a projeção pode ser involuntária ou voluntária.
A maior parte das projeções involuntárias acontece ou durante
um sonho ou nas experiências de quase-morte. Nesse caso de
projeção, a pessoa não tem consciência do que lhe está a
acontecer, observando por vezes o seu corpo físico deitado na
cama e imaginando que está desencarnada. Procura
desesperadamente mergulhar violentamente no seu corpo
físico. Muitos dos sonhos de voo e de queda estão
estreitamente relacionados a essa experiência. Entretanto,
outras pessoas que se projetam involuntariamente sentem-se
com uma sensação de flutuação e liberdade tão boa, fazendo-
os sentir demasiadamente bem para se questionarem sobre o
que se está a passar. Ao acordar, algumas imaginam que
aquela experiência foi um sonho bom.
Existem pessoas que praticam viagem astral
voluntariamente, comandando, neste caso, a experiência, tendo
total consciência de que estão fora do corpo. Podem, assim,
observar calmamente o seu corpo, viajar e visitar com
tranquilidade todos os lugares que desejem na Terra, podendo
voar e atravessar objetos físicos. Durante essas viagens, podem
se encontrar e contatar com outras pessoas em viagem astral
ou com entidades desencarnadas. Podem regressar quando
desejarem, bastando, para isso, pensar no seu corpo físico para
que o corpo astral fique novamente ligado a ele. Ressalto que
não é aconselhável que uma pessoa faça essa viagem sozinha.
Adriana Matheus
- 329 -
Isso seria demasiadamente inconsequente. A viagem astral não
é tão simples e pode ser perigosa, pois o indivíduo pode não
conseguir voltar por si só – ou, o que é ainda pior, pode não
querer voltar.
Resolvi, também, esclarecer sobre as formas de
demônios que se manifestavam nas pessoas e como eles as
possuíam. O súcubu é um espírito do mal que toma a forma de
mulher com o propósito de ter relações sexuais com um
homem. A sua versão masculina denomina-se incúbus. O
objetivo dos súcubus e incúbus é unirem-se carnalmente com
um ser humano. Na realidade, sugar-lhe a energia vital, pois
essas entidades alimentam-se dela. Seus ataques ocorrem à
noite. A vitíma raramente se lembra, ou tem uma vaga
memória, muito esfumaçada, como se o ataque lhe parecesse
um sonho ruim. Ao acordar com uma grande sensação de
fraqueza para a qual não acha explicação, o ser possuído pode
ter ataques de fúria e violência, podendo até mesmo machucar
um ente querido. Se os ataques se tornarem sucessivos, a
pessoa começa a ficar pálida, sem ânimo e depressiva,
geralmente com problemas sanguíneos ou pulmonares. Perde
totalmente as forças anímicas vitais. Vai, inexplicavelmente,
perdendo até as suas forças espirituais. Energias são
rapidamente sugadas, podendo ocorrer perda total do apetite
ou compulsão alimentar. O ser atingido pode ficar totalmente
desiquilibrado e, em alguns casos, pode vir a morrer. Isso
explica muitas doenças que nossos doutores não conseguiram
explicar - como a loucura, por exemplo. Ressalto, ainda, que
muitas das vítimas da Inquisição não tinham nenhuma espécie
de demônio em seu corpo físico ou astral.
Terminei minhas anotações e estava sentindo-me
muito melhor. Ocupar a mente com a leitura é a maior e a
melhor higiene mental que podemos fazer. Levantei-me e
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 330 -
arrumei a bagunça que etava no meu quarto. Havia coisas de
minha mãe espalhadas por toda a parte.
Maria subiu, avisando que meu pai e a condessa
estavam de volta e que o jantar seria servido na sala de estar,
às oito em ponto.
– Que interessante! Então agora resolveram que somos
uma família? - respondi à Maria.
– Parece que o casal está divinamente bem. Para falar a
verdade, senhorita, nunca os vi assim, tão harmoniosos e gentis
um com o outro.
– Imagino, Maria. Isso porque ambos estão
concordando em alguma coisa que lhes é conveniente.
Infelizmente, terá que dizer ao meu pai que não estou bem
disposta.
Maria assim o fez. Ela não estava para muitos
argumentos, pois ainda estava se sentindo triste. Fiquei à
janela, observando a natureza. Quando Maria voltou ao meu
quarto, já era noite e eu nem tinha percebido que a tarde caíra.
Mal comi: apenas revirei a comida, para dar a impressão de
que tinha comido. Estava me sentindo entediada e sem lugar.
Deitei-me na cama, peguei um livro e adormeci, sem ao menos
tirar as roupas. Maria deve ter me cobrido durante a noite, mas
não me acordou.
Na manhã seguimte, logo que despertei, percebi
novamente a janela do meu quarto aberta. Lenvantei e fui dar
uma olhada pelo lado de fora. Se foi um sucumbo, não teria
deixado marcas normais. Mas, para o meu espanto, percebi
uma coisa que até então não tinha notado. A trepadeira que
subia pela parede da minha janela estava toda arrebentada.
Concluí que tinha algum estranho no meu quarto, e esse
alguém não era um espírito. Resolvi procurar em todo o quarto
indícios ou pistas que me mostrassem algo mais sobre o
Adriana Matheus
- 331 -
invasor da minha privacidade durante minhas noites de sono.
Para meu maior espanto, descobri que o diário de minha mãe
havia desaparecido. Fiquei desesperada, pois sabia que, quem
quer que fosse, essa pessoa agora me teria nas mãos. Minhas
pernas tremiam tanto... Fiquei sem chão. Maria entrou depois
de ter batido inúmeras vezes. Ao me ver, perguntou,
preocupada:
– Senhorita, o que está havendo? Estou batendo à sua
porta há alguns minutos e, como a senhorita não respondia,
resolvi entrar.
– Desculpe-me, Maria. Realmente não a ouvi.
Aconteceu uma coisa muito grave.
– Então diga-me, senhorita: o que mais descobriu?
– A senhora sabe que desconfiava que alguém estava
entrando aqui. Não são apenas desconfianças, Maria, pois
alguém realmente está entrando em meu quarto, subindo pela
trepadeira. O diário de minha mãe desapareceu. Maria, deixei-
o debaixo do travesseiro.
Ela ficou pálida e tão desorientada como eu. Por fim,
falou:
– A senhorita tem certeza? Meu Deus, sua mãe
escreveu coisas naquelas páginas que podem comprometê-la, e
muito!
– A senhora sabia desse segredo e escondeu-me
também.
– Por favor, senhorita Anna, entenda-me: isso não é
uma coisa que a gente sai falando por aí. A senhorita era
muito imatura e tive medo de que pudesse interpretar mal a
condição de sua mãe.
– A senhora tem razão. E agora não é hora para
discutirmos sobre esse assunto.
– Mas a senhorita está decepcionada comigo?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 332 -
– Não, Maria, só curiosa de como a minha mãe
conseguiu esconder esse segredo durante tanto tempo.
– Não foi fácil, senhorita. Mas, naquela época, como
seu pai viajava muito, sua mãe tinha mais acesso a toda a casa.
Ela mandou construir um local secreto. A senhorita deve ter
lido isso no diário.
– Sim, mas a pessoa que está com o diário agora
tembém sabe disso.
– Então, temos que descobrir quem é essa pessoa,
senhorita, ou estaremos em maus lençóis. Sugiro que nós duas,
de agora em diante, não sejamos vistas tão juntas.
– Não podemos ter tal atitude, Maria. Sempre
estivemos juntas e, se nos separamos agora, a pessoa que está
com o diário poderá desconfiar.
O segredo de minha mãe havia sido descoberto e, mais
do que nunca, precisava tirar Maria daquela casa. Ela voltou
para seus afazeres e fiquei ali, em meu quarto, sentindo que a
qualquer momento alguém entraria com um guarda e entregar-
me-ia à Inquisição.
Por fim, percebendo que não adiantaria fugir por muito
tempo, resolvi descer e caminhar pelo jardim. O dia não
estava ensolarado, pois o tempo estava virando e estava meio
nublado. Meu pai estava na sala de estar, bebendo, e minha
madrasta havia saído para resolver as coisas dos baile.
Eu estava muito perdida e caminhei pelo jardim inteiro.
Precisava encontrar o lugar secreto de minha mãe. Decidi que
seria lá que faria os meus feitiços. Tinha certeza de que nesse
lugar eu encontraria forças para lutar contra aqueles que me
perseguiam em silêncio. Mas meu maior temor, naquele
momento, era descobrir quem estava com aquele bendito
diário. Resolvi, então, descansar debaixo de uma árvore.
Encostei-me e deixei meu pensamento voar. Aquela árvore
Adriana Matheus
- 333 -
começou a me passar suas boas energias e, em instantes, estava
mais tranquila. Veio-me a certeza de que descobriria quem era
o mau caráter que estava invadindo a minha privacidade.
Alguma coisa me dizia que minha madrasta estava envolvida
naquela trama diabólica. Por fim, fiquei ali, deitada de olhos
fechados, buscando na natureza a resposta para as minhas
tormentas.
“Sempre encontraremos uma resposta para tudo, pois o
conhecimento nunca foi negado ao ser humano. Mas devemos
ter consciência de que e para que usamos tanta sabedoria
adquirida. Pois devemos nos lembrar do tratado pessoal de
Deus com os homens. Atos transformam-se em consequencias. E
colhemos exatamente o que plantamos”.
.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 334 -
V – O Mosteiro
epois de ter recuperado minhas energias debaixo
daquela árvore amiga, levantei-me e voltei para
dentro de casa. Meu pai ainda estava na sala de
estar, lendo um livro. Peguei um que me interessava e sentei-me
em uma poltrona lateral. Ficamos ali, sem dirigir a palavra um
ao outro. O ambiente estava pesado e hostil, pois aquele silêncio
forçado fez-me sentir excluída. Mas, no fundo, preferi que ele
não falasse comigo. Embora aquele silêncio me incomodasse,
era melhor do que ouvi-lo dizendo que eu era o pagamento para
o débito dele com o conde.
Depois de algumas horas folheando páginas e mais
páginas daquele livro, sem prestar a menor atenção ao seu
conteúdo, fomos interrompidos pelos relinchos de alguns
cavalos. Era a condessa que havia chegado. Meu pai levantou-
se, foi à janela certificar-se de que era mesmo sua esposa.
Depois, saiu apressadamente para recebê-la.
Assim que ele saiu porta afora, também corri à janela
para olhar aquela cena inédita. Cheguei a pensar que a
condessa havia sofrido algum tipo de acidente por causa da
maneira afoita e apressada com que meu pai saiu do recinto
D
Adriana Matheus
- 335 -
onde estávamos. Mas, para meu espanto, vi uma cena
completamente inversa: a condessa, ao descer da carruagem,
correu para os braços de meu pai, dando-lhe abraços afetuosos.
Os dois pareciam um casal muito apaixonado e em lua de mel.
Aquela cena seria normal se eu não os conhecesse e
convivesse com eles desde menina. Os dois pareciam não se
importar com a criadagem, que os olhava atônita.
Entraram apressadamente para seus aposentos,
deixando para trás Lorenzo e o cocheiro abarrotados de
embrulhos. Maria, que estava no hall de entrada, sequer
conseguiu pronunciar uma palavra mediante aquele casal tão
apaixonado. Definitivamente, havia algo de errado naquela
casa. Em outros tempos, meu pai teria tido um ataque ao ver a
condessa com tantos embrulhos, pois ele estava coberto até o
pescoço com dívidas. Não só eu, mas toda a cidade de
Salamandra sabia que a condessa e meu pai não se entendiam
como marido e mulher.
Depois de presenciar aquela cena exótica quase em
extinção, resolvi permanecer na sala de estar para tentar
colocar as ideias em ordem. Aquela visão amorosa do mais
novo casal romântico do país havia me deixado traumatizada.
Ao meio dia, Maria veio me comunicar que o almoço
estava pronto e seria servido para a família - o que queria dizer
que meu pai praticamente me estava obrigando a sentar-me à
mesa com ele e sua esposa adorada. Já sentada à mesa, o casal
de enamorados parecia não ter notado a minha presença.
Parecia que haviam se juntado num complô silencioso contra
mim. Não que eu desse a menor importância ao desprezo dos
dois, mas a súbita harmonia entre aquele casal parecia algo de
história de horror. Eu precisava prestar mais atenção aos
detalhes. Era pela minha vida que eu temia.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 336 -
Não consegui comer. Apenas remexi minha refeição
em total silêncio. Depois, levantei-me e saí em direção aos
meus aposentos. Ouvi-os comentando algo sobre mim e, em
seguida, riram debochadamente. Confesso que estava com
medo deles, mas não poderia demonstrar isso, pois
demonstraria que a tática que estavam usando estava surtindo
efeito.
Fiquei em meu quarto o restante da tarde, sem sair um
minuto sequer. Eu e Maria, naquele dia, quase não nos
falamos, pois a condessa a ocupou com várias tarefas
relacionadas ao baile do dia seguinte. De uma coisa eu estava
certa: o diário de minha mãe não estava em poder da condessa
Del Prat – ou, caso contrário, ela teria vindo ao meu quarto
para me chantagear.
Meu pai e a condessa saíram logo após o almoço. Já
eram nove horas da noite e os dois não haviam voltado. No
mínimo, estavam na companhia do seu mais novo amigo, o
conde. Maria, assim que conseguiu uma folga, veio ao meu
quarto para saber se eu estava bem, pois ela não havia me visto
desde o almoço. Depois de conversar comigo por alguns
minutos, ela desceu e aconselhou-me a trancar as janelas e a
porta. Foi o que fiz. Maria, por certo, não poderia dormir antes
que o casal de enamorados voltasse. Eu, por minha vez, estava
cansada de esperar por notícias e acabei adormecendo em cima
do meu diário.
No dia seguinte, acordei disposta a não permitir que
nada e nem ninguém me perturbasse a paz. Levantei-me da
cama, fiz minhas orações matinais, abri as janelas, deixando o
ar da manhã entrar no quarto. Depois, fui interrompida em meu
momento de oração pelo som do toque de Maria à porta. Abri
e fui logo dizendo:
Adriana Matheus
- 337 -
– Bom dia, minha querida Maria! Que lindo dia
teremos hoje, não acha? É só gratidão por termos tantas
bênçãos do Pai Maior. O que faremos hoje para compensar os
dias ruins que passamos esta semana nesta casa de aflições?
Maria parecia não ter entendido minha reação e olhou-
me atônita:
– O que deu na senhorita? Viu um anjo durante a noite,
foi? Se isso aconteceu, passe para mim também um pouco
dessa energia incandescente, pois estou precisando me sentir
assim, tão bem disposta.
Maria disse aquilo esfregando as mãos nas minhas
vestes, parecendo querer captar a suposta energia angelical.
Dei-lhe um largo sorriso, pois sabia que ela estava usando de
suas ironias mais uma vez e disse-lhe:
– Não é nada disso, Maria. Estou decidida a não deixar
que ninguém me ponha de baixo astral. Eu disse que iria viver
para lutar por minha liberdade de expressão e igualdade.
Então, que seja com um sorriso nos lábios. Afinal, inimigo só
se vence com perseverança, e não com ódio. Tudo o que os
meus inimigos querem, Maria, é ver-me triste e definhando dia
após dia. Mas lhe juro que não darei este gostinho a nenhum
deles. Hoje acordei com este pensamento e, acredite, é
definitivo.
Maria olhou-me e, depois de parecer muito pensativa,
disse-me:
– Bom, senhorita Anna, espero, então, que não seja eu a
pessoa que irá lhe trazer aborrecimentos. Pois sinto lembrá-la:
é hoje o dito baile que a sua madrasta dará em homenagem ao
conde. Mas, pela sua súbita alegria, vejo que se esqueceu
disso.
– Não... Mas estava tentando pensar em coisas mais
agradáveis.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 338 -
Comecei, então, a mordiscar os lábios. Meu plano seria
colocado em prática, finalmente. Por fim, perguntei à Maria:
– O vestido de minha mãe está pronto?
– Sim, como a senhorita pediu. Mas madame Hortência
enviou hoje mais cedo o que a senhorita havia lhe
encomendado.
– Sério? Hum... Terei que pensar em uma forma de me
livrar dessa encomenda.
– O que a senhorita fará? Pois o vestido de sua mãe está
em meu quarto, guardadinho para que ninguém desconfie de
nada.
– Ainda não sei, mas todos têm que pensar que irei ao
baile com o vestido que encomendei.
– Quanto a isso, a senhorita não precisa se preocupar.
Sabe que sei ser discreta.
– Sim, Maria, sei que posso sempre contar com sua
fidelidade. Agora desça e espere que todos saiam. Então, traga-
me o vestido de minha mãe.
Maria já estava saindo quando ouvimos barulhos
vindos de fora da casa. Olhamo-nos com espanto. Corremos as
duas para a janela. Ao olharmos para baixo, vimos um grande
movimento de pessoas desconhecidas. Havia um grande
alvoroço de criados, correndo de um lado a outro do jardim.
Eles traziam inúmeras peças de coração para dentro do grande
salão. Minha madrasta dava de braços e, ao ver-nos
debruçadas à janela, levantou o nariz e entrou como uma
abelha enfurecida. Eu e Maria nos olhamos novamente e
começamos a rir dos trejeitos de menina mimada da condessa.
Ela estava se sentindo a dona do mundo só porque organizava
o baile do conde.
Adriana Matheus
- 339 -
Depois que Maria desceu para ajudar a condessa e
cumprir o que eu lhe havia pedido, voltei para a janela para ver
onde daria aquela confusão.
Eu estava faminta naquela manhã. Havia me esquecido
de pedir à Maria para trazer-me algo de comer. Mas, quando
ela finalmente voltou, trazendo nas mãos a encomenda que eu
havia feito à madame Hortência, trouxe consigo algo que, com
certeza, nem em meus pesadelos mais temerosos eu haveria de
encomendar: a condessa Del Prat. Ela, ao ver-me, foi logo
dizendo:
– Então, resolveu atender seu pai como uma menina
boazinha?
– Não é o que todos esperam? Que eu me comporte
como uma futura condessa e pague as dívidas da família!?
– Pode enganar o tonto do seu pai, mas sei que está
planejando algo. Saiba que estou de olho na senhorita. Não a
deixarei sozinha um segundo sequer. Sei que vai tentar fazer
algo para se livrar do compromisso que lhe foi imposto.
– E o que eu poderia fazer? Como a senhora mesmo
disse, estará de olho em mim. E, para falar a verdade, espero
que fique mesmo de olho em mim, porque esta noite a senhora
irá colher o bom resultado dos frutos que plantou a vida toda,
condessa.
– Não se atreva a estragar o baile de apresentação que
estou preparando para o conde.
– Não se preocupe. Não farei nada que pareça
escandaloso ou que venha a desonrar a sua conduta. Também
não pretendo fugir, se é o que está pensando, e muito menos
desfazer o compromisso mediante todos os convidados. Mas
de uma coisa eu tenho certeza.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 340 -
– E o que é?
– Estarei presente e serei a pessoa mais comentada de
todo o baile. Desta vez, ninguém reluzirá além de mim.
A inveja relampejou nos olhos da condessa. Ela, depois
de andar pelo quarto todo, olhou para o embrulho em cima da
minha cama e perguntou.
– Esse é o seu vestido?
– Sim, é. Ele é o vestido que me fará reluzir esta noite
perante todos os olhares. Serei a mulher mais cobiçada e linda
do baile. E, por certo, depois que o conde me vir dentro deste
vestido, pedir-me-á em casamento imediatamente.
A mulher olhava para o embrulho, parecendo
enlouquecida. De repente, ela deu um salto, pegou-o e saiu
correndo com o pacote nas mãos. Eu, como tinha que parecer
aborrecida pelo fato ocorrido, fingi correr atrás dela, que se
escondeu em seu quarto, trancando a porta. Mais uma vez,
fiquei pensando em como até mesmo os nossos inimigos são
nossos aliados. Sacudi a cabeça e ri muito, sozinha em meu
quarto.
Quando Maria subiu escondida, trazendo o verdadeiro
vestido que eu usaria no baile, ela disse:
– A condessa esta lá embaixo e parece-me a mulher
mais feliz do mundo. O que foi que a senhorita disse a ela?
– Não disse nada, Maria. Foi ela quem veio ao meu
quarto, tentando descobrir o que eu faria para atrapalhar o baile
do conde. Tentei dizer-lhe que não faria nada. Só insinuei que
seria a mulher mais cobiçada da noite. Acho que ela não
resistiu e roubou meu vestido.
– O quê? Ela roubou o vestido que a senhorita mandou
madame Hortência fazer?
Adriana Matheus
- 341 -
– Sim, aquele mesmo. Agora imagine como ela ficará
encantadora dentro daquele modelito exclusivo que madame
Hortência fez.
Eu e Maria rimos a valer, pois sabíamos que um
modelo exclusivo vindo de madame Hortência só poderia
resultar em extravagância e mau gosto - o que era mesmo o
feitio da condessa.
Maria, depois de me entregar o vestido de minha mãe,
saiu do meu quarto. Coloquei-o dentro de um baú, com muito
cuidado para não o amassar. Sentei-me à frente da penteadeira
e fiquei examinando qual penteado usaria e qual joia me cairia
melhor para usar com o vestido. Optei por um rico colar com
uma única pedra de rubi, ao meio, e brincos e anel com a
mesma pedra.
Horas depois, alguém bateu à porta, tirando-me daquele
devaneio de vaidade. Mas o toque não era o mesmo que Maria
costumava dar. Então, respondi:
– Entre, por favor!
Era a copeira e, depois de olhar por todo o quarto,
parecendo querer bisbilhotar, disse:
– O conde está lá embaixo, no salão, e solicita a sua
presença, senhorita. Mas, se preferir, digo-lhe que a senhorita
não está se sentindo muito bem.
Ela, com certeza, estava ali para me investigar. Mas
soube como lidar com ela, pois mal podia ouvi-la.
– Segundo me consta, estou ótima. Então, diga ao
senhor conde que estarei pronta em alguns minutos.
A mulher saiu cuspindo marimbondos. No mínimo,
esperava uma resposta negativa da minha parte para poder
contar à condessa. Ao sair, tranquei a porta do meu quarto,
para evitar um contragosto. Encontrei com Maria no corredor.
– Então, como estou, Maria?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 342 -
– Está linda, linda, como sempre, senhorita Anna. Só
acho que é muito feno para pouco cavalo.
– Também acho, Maria. Aliás, a senhora está sendo
muito gentil ao referir-se ao senhor conde como um cavalo.
Crápula seria a palavra.
– Meu Deus, senhorita, não deve falar assim do seu
futuro esposo. Ele é um homem tão íntegro e... bonito e gentil.
- ironizou.
– Oh, sim! Íntegro a ponto de pagar a dívida do meu
pai cobrando um juro mínimo. Ou seja: eu, por exemplo.
Bonito como um demônio, que se esconde atrás do rosto de um
anjo. E gentil, por certo, pois espera a hora certa de dar o bote,
como uma cobra.
Maria deu um sorriso, sacudindo negativamente a
cabeça, parecendo entender o que eu havia dito. Ela me
acompanhou até o salão, onde o conde e meu pai estavam. Ao
me verem, levantaram-se e cumprimentaram-me. Não deixei
lhes transparecer qualquer sentimento que demonstrasse que
eu estava aborrecida e magoada. Dei-lhes um sorriso largo e
estiquei a mão para meu futuro esposo, que veio em minha
direção como um cordeiro manso e tolo. Meu pai ficou
boquiaberto porque, com certeza, já estava com a cabeça cheia
de caraminholas, impostas por sua estimada esposa. Então,
usando de um fingimento improvisado, ele falou:
– Demorou, minha filha. Pensei que não desceria a
tempo de ver o conde, pois ele já estava de saída.
– Oh! Com certeza o senhor conde entenderá. Ele sabe
como as mulheres são. Ficamos horas na frente de nossos
espelhos. Afinal, não poderia aparecer feia como um
espantalho na frente de tão garboso senhor.
Adriana Matheus
- 343 -
Senti que o conde ficou envaidecido. Atendeu-me com
um sorriso falso, como era de se esperar de um hipócrita como
ele. Aproximei-me de meu pai e sussurrei ao seu ouvido:
– O senhor não achou que eu lhe daria esse gostinho,
não é?
Meu pai engoliu seco e, por certo, se eu estivesse
sozinha com ele, estaria morta mais cedo. O conde parecia não
ter percebido nada, pois, no mínimo, pensou que eu estava
cumprimentando meu pai com um gesto carinhoso.
– Nunca, em hipótese alguma, pareceria um
espantalho. E feiura, essa com certeza correu bem longe da
senhorita.
– Soube que o senhor queria falar-me. É algo sobre o
baile? - desconversei de imediato, pois não queria dar outro
rumo àquela conversa.
– Sim. Quero falar-lhe, mas não é nada sobre o baile. É
sobre nós dois.
Seu tom de voz havia mudado e era quase um sussurro.
O conde prosseguiu com aquela conversa tediosa:
– Esperaria a vida toda pela senhorita. Se não se
importar, gostaria de pedir a permissão de seu pai para poder
falar-lhe em particular.
Imaginei do que se tratava, mas tinha que me fazer de
rogada. Então, respondi:
– Creio que não sou o tipo de dama que tenha
conversas particulares com um cavalheiro. Mas o senhor é um
homem de modos refinados. Creio que não haja nenhum
problema.
Ele continuou a se sentir muito lisonjeado e mantinha
aquele sorriso traiçoeiro e enigmático no rosto. Meu pai, por
sua vez, respondeu:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 344 -
– Tenho certeza de que o conde não lhe fará nenhum
mal. Não vejo porque não os deixar a sós.
Olhei para meu pai nos olhos e disse:
– O senhor tem razão, meu pai. Que mal o senhor
conde poderia me fazer?
Fechei o semblante, para demonstrar minha
desaprovação diante daquela situação. Por fim, dei o braço ao
conde e fomos caminhar pelo jardim. Lá, delicadamente soltei
o seu braço e, voltando-me para ele, disse:
– Então, senhor conde, o que de tão importante e
sigiloso terá o senhor para me confidenciar?
Ele deu um sorriso enigmático.
– Não vou me fazer de rogado - mesmo porque sei da
sua perspicácia e inteligência aguçada. Confesso que foi uma
das qualidades que muito me atraíram na senhorita.
– Não faça rodeios, senhor conde. Não conseguirá me
conquistar com seus elogios. Conheço muito bem minhas
qualidades.
– É sobre exatamente isso que estou falando. Então,
creio que a senhorita já deva saber que tenho um acordo com
seu pai. Também creio que a senhorita já seja sabedora que sua
dívida era muito alta. Bom, resumindo esses fatos: se o senhor
seu pai tivesse colocado todas as propriedades que possui,
mais os escravos e as joias de sua família, à venda, ainda assim
não saldaria a dívida que tinha. Como um cavalheiro que sou,
após ficar sabendo que seu pai tinha duas mulheres inocentes
em casa, quis imediatamente ajudá-lo. Paguei, assim, todas as
dívidas de seu pai, senhorita Anna. E ainda lhe emprestei uma
grande soma em dinheiro para que pudesse manter-se
dignamente. Não quero que a senhorita se espante: minha
família é muito conhecida por termos um coração generoso.
Além do quê, não poderia sair em total prejuízo: embora agora
Adriana Matheus
- 345 -
eu seja o dono de todas as propriedades de seu pai, necessitava
uma esposa que me desse um herdeiro. Portanto, quero que
saiba de meus próprios lábios que a senhorita agora me
pertence.
Depois de ouvi-lo, indignada com tamanha audácia e
falta de escrúpulo, disse:
– O senhor está sendo indelicado e vulgar. Mas não me
surpreende: desde o primeiro momento em que o vi, soube que
estava diante de um crápula. Na verdade, não sei quem é pior:
o senhor, meu pai ou a condessa. Como o senhor mesmo acaba
de mencionar, a dívida é do meu pai com o senhor. O senhor,
de forma alguma, tem o direito de me incluir no pagamento
dela. Não sou tão esperta como o senhor pressupõe. Caso
contrário, já teria descoberto uma forma de escapar do senhor.
Ele deu uma gargalhada diabólica, falando
sarcasticamente:
– Disse que a senhorita era inteligente, mas não disse
que seria tão fácil se livrar de mim.
– O senhor é o demônio, tenho certeza disso. Não há
nada neste mundo que me fará mudar de opinião. Saiba, senhor
conde, que serei o pior pagamento que o senhor já recebeu em
sua vida.
– Gosto da sua audácia. Saiba que isso me excita.
Gosto de mulheres com senso de humor. Principalmente, gosto
quando elas ficam arredias.
– O senhor é um homem doente, conde. Embora eu
ainda não saiba o seu segredo, em breve vou descobrir. Aí,
com certeza isso será um motivo para o senhor desfazer seu
acordo como meu pai.
Novamente ele sorriu, dizendo:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 346 -
– Se eu fosse a senhorita, não me preocuparia em
descobrir o segredo dos outros, e sim em saber o que uma
pessoa pode fazer tendo em mãos um segredo como o seu.
– Não tenho segredos, senhor conde. Minha vida é um
livro aberto.
Ele se aproximou, lentamente, e disse:
– E se eu disser que tenho sob meu poder certo diário
que pode incriminá-la totalmente? Essas coisas, vistas pelos
olhos da Inquisição, poderão ser motivo para que a senhorita
seja condenada como bruxa - principalmente se a pessoa que
entregar o objeto for de grande influência política e financeira.
Tentei esbofeteá-lo, mas ele me segurou, dizendo:
– Não faça isso, senhorita. Não fica bem para uma
jovem de bons modos violentar seu futuro cônjuge.
– Como foi que o senhor conseguiu esse diário? Como
foi que o senhor conseguiu invadir meus aposentos sem que eu
percebesse ou acordasse?
– Isso foi muito fácil. Fiquei sabendo que a senhorita
sempre toma algum tipo de chá que a sua governanta lhe
prepara à noite. Então, tratei logo de fazer amizade com a sua
copeira, que é uma mulher muito persuasiva financeiramente
falando. Pedi a ela, então, que misturasse às ervas do consumo
da sua casa algumas das minhas ervas, cuja função é fazer
adormecer. A senhorita tomava sem perceber a diferença.
Então, mais uma vez, usei meu poder de persuasão com a sua
madrasta - que, além de bela, é extremamente carente de
afeições masculinas. Com isso, consegui que ela me desse a
chave do portão de sua residência. Assim, eu subia durante a
noite para ter com ela e, depois, entrava em seu quarto para
admirá-la. Em seguida, descia pela trepadeira. Confesso que
foi tentador vê-la seminua, deitada indefesa em sua cama.
Sabe, senhorita, cheguei a esta cidade muito entediado,
Adriana Matheus
- 347 -
confesso. Mas descobri que aqui, apesar de ser um pequeno
condado, está sendo para mim muito prazeroso e proveitoso
também. Que mais posso querer? Tenho uma linda jovem
como minha futura esposa, e sua fogosa e exuberante madrasta
como minha consorte.
Fiquei perplexa ao ouvi-lo. Cheguei a cambalear. Meu
estômago remexia-se em sinal de desprezo. Minha cabeça
rodopiava como o vento. Se eu fosse uma cobra, tê-lo-ia
picado. Por fim, disse-lhe, com a minha voz trêmula:
– Como o senhor consegue ser tão desprezível? Como
pode querer casar-se comigo, sabendo que o odeio mais do que
tudo neste mundo?
– Não me importo com o seu desprezo, muito menos
com o seu ódio. Afinal, terei o que me pertence e que é meu
por direito.
– Jamais me sucumbirei aos seus caprichos. Juro que
descobrirei o seu segredo.
– Até lá, lembre-se de que sou o dono do seu segredo.
A qualquer momento, mesmo a contragosto, posso entregá-la à
Inquisição, acusando-a de práticas ilegais de bruxaria. Pense
bem, senhorita Anna. É melhor facilitar as coisas para todos.
Assim, será prazeroso para ambas as partes.
Não respondi a mais nenhuma palavra que o conde me
dizia. Naquele momento, estava me sentindo totalmente
impotente e indefesa. Segui em direção à minha casa. O conde
seguiu-me, com um semblante que era só satisfação e vitória.
Quando finalmente entramos em casa - pois pareceu ser
uma eternidade aquele curto trajeto ao lado do conde-, chamei
por Maria. Meu pai, ao ver-nos, perguntou-nos:
– E então, o que conversavam afinal?
Fui a primeira a responder-lhe:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 348 -
– Creio que nada de que o senhor já não esteja ciente,
meu pai!
O conde retrucou:
– Senhor Juan, creio que sua filha está um pouco
encabulada. Então, serei o portador de tão boas notícias. Eu e
sua filha estamos noivos! Isso quer dizer que o baile dessa
noite será não só para a minha apresentação, mas também para
anunciar o nosso noivado.
Aquele homem repulsivo estava me deixando sem
saída. Quis fugir, mas não poderia deixá-lo perceber que
estava insatisfeita. Ele precisava acreditar que me tinha nas
mãos, até que eu pudesse me livrar daquela chantagem.
Meu pai parecia eufórico com a notícia. Mandou logo
abrir um champagne. Maria, que havia vindo atender ao meu
chamado, ficou extasiada, em pé, olhando-nos, sem entender
absolutamente nada. A condessa apareceu e veio
cumprimentar-nos com falsidade. Tive que aparentar
felicidade. Precisava pensar rápido. Depois do brinde, o conde
despediu-se, prometendo fazer uma surpresa no baile daquela
noite. Vindo daquele monstro, não quis nem imaginar o que
seria. Por fim, vendo que estavam todos satisfeitos, puxei
Maria pelas mãos e disse-lhes:
– Se me derem licença, preciso descansar para estar
bem disposta mais tarde. Não quero que meu futuro marido me
veja com olheiras durante a nossa festividade. Quero, também,
agradecer a minha querida madrasta por ter se empenhado
tanto em organizar meu baile de noivado dessa noite. Estou
muito feliz porque, afinal, esse baile agora também é meu, não
é, meu querido conde?
– Sim, minha amada noiva. Não só o baile, mas tudo o
que dentro dele estiver.
Adriana Matheus
- 349 -
A condessa parecia que iria explodir de tanto ódio, mas
não disse uma só palavra. Ela teria que engolir que havia
arrumado tudo aquilo para o meu noivado com aquela besta
humana.
Dei um beijo na testa de meu pai, fingindo afeto e
obediência. Não poderia deixar de dar aquele tapa de luva. A
condessa, parecendo não aguentar a cena, subiu em disparada
aos seus aposentos, sem dizer uma palavra a ninguém. Um
inimigo eu havia vencido com a mesma moeda. Ainda me
faltavam dois.
Quando finalmente saí, carregando Maria pelas mãos e
deixando para trás aqueles dois leiloadores da vida humana,
pude ouvir o conde falando com meu pai:
– Sua filha é como um potro indomado, senhor Juan.
– É, eu sei. Puxou o gênio da mãe.
– Mas não tenho pressa. Colocá-la-ei do meu jeito.
Disso o senhor não tenha dúvidas.
– Vá com calma, meu caro amigo. Ela ainda é só uma
menina.
– Sim, eu sei. Mas meninas se transformam em
mulheres, não é mesmo?
Os dois comemoraram com sonoras gargalhadas. Era
detestável a maneira como se referiam a mim. Maria seguiu-
me, mas quase não conseguiu alcançar-me, pois acelerei os
passos no corredor. Ao chegar a meus aposentos, caí sobre a
cama, deixando todo aquele horror transportar-se para o peso
em que se encontrava meu corpo. Maria, ao entrar e ver-me de
bruços na cama, perguntou-me curiosa, com ar de indignação:
– O que houve, senhorita Anna? Não pude ouvir o que
conversavam, pois falavam muito baixo.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 350 -
Eu estava enfurecida e, depois de ranger os dentes,
virei-me para Maria:
– Argh! Foi o conde, Maria, que pegou o diário de
minha mãe. Ele agora me tem em suas mãos. Também era ele
quem entrava em meus aposentos durante a noite. A copeira
colocou ervas entorpecentes no meio das suas ervas. Ele a
pagou para que fizesse esse serviço sujo. É por isso que eu não
o via invadindo meu quarto à noite. A condessa entregou-lhe
as chaves do portão de entrada. Eles são amantes; o conde
mesmo me contou isso. Depois que ele visitava a condessa em
seu leito, saía e entrava em meus aposentos, descendo, então,
pela trepadeira. Sabe Deus o que aquele doente fazia comigo
enquanto eu dormia.
– Minha Nossa Senhora de Guadalupe! Isso é muito
sério, senhorita Anna. Esse homem é muito perigoso. Ele
chega a ser diabólico. Que Deus tenha pena da senhorita. Mas
uma coisa me intriga:
– E o que é, Maria?
– Como esse peste pode ter entrado em seu quarto, se
ele e seu pai chegaram juntos da Inglaterra?
– Não, Maria. Esse homem sem escrúpulos disse ao
meu pai que ficaria um ou dois dias na Inglaterra para resolver
negócios. Mas ele não fez isso. Sabendo que meu pai ainda
faria várias paradas no caminho para resolver os próprios
negócios, ele deixou a Inglaterra no mesmo dia para não
perder tempo. Foi assim que esse demônio chegou aqui antes
do meu pai. Quando meu pai chegou aqui, o conde demorou
quatro dias a aparecer na cidade.
– Santo Deus, minha filha! Esse homem tem pacto com
o demo, pois parece fazer tudo de caso pensado.
– Sim. Agora tenho que trancar minha porta sempre. E,
com todo perdão, Maria: não tomarei mais os seus chás.
Adriana Matheus
- 351 -
– Não se preocupe, senhorita. Não levarei como uma
ofensa, pois também tomei do veneno do conde.
– Maria, aconteça o que acontecer, quero que saiba que,
mesmo que pareça ser o pior, o que farei será melhor do que
ser vendida. Nunca me darei por vencida. Não serei objeto de
pagamento. Não sou escrava e, mesmo se o fosse, tenho
sentimentos e sangro como todo mundo.
– Senhorita Anna, saiba que sempre estarei do seu lado
para o que for necessário. Mas, às vezes, acho que deveria
fazer o que lhe mandam. Será melhor e a senhorita não sofrerá
tanto.
– É melhor ceder ao egoísmo do meu pai e perder a
minha liberdade? Nunca. Por que temos que mudar por causa
das pessoas e aniquilar a nossa essência? Se eu fizer isso, será
como usar viseiras para olhar sempre na mesma direção.
Suponhamos que eu aceite os cortejos do conde e ceda às
sandices de meu pai. Ele paga a dívida? Sim. Mas fará outras
mais. Não poderei ser vendida outras vezes. Ele nunca
aprenderá se tudo for do jeito que ele quer. Não sou mulher de
me render a um homem sem amor.
– Mas se a senhorita não fizer o que lhe impõe, seu
destino será cruel.
– Meu destino não pode ser mais cruel do que ter que
passar a vida toda ao lado de um homem vulgar, que me
trocará por uma esposa mais jovem assim que enjoar de mim.
Tenho muitos sonhos, Maria, e sei que nunca os realizarei.
Então, que seja o que me foi imposto por Deus, e não pela
vontade de um homem comum.
– Nunca conheci uma mulher tão destemida e com
tanta determinação quanto a senhorita. Lembrar-me-ei da
senhorita pelo resto de minha vida. - deixou as lágrimas
rolarem em suas faces, emocionadamente.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 352 -
– Não chore, Maria! Preciso de terra seca para pisar.
Se a senhora chorar, afundar-me-ei no barro da sua
desesperança.
– Desculpe-me, senhorita Anna. Foi inevitável. Mas só
em pensar que ficarei um dia sem a sua companhia, já me dá
um aperto no coração...
– Não pense assim, Maria. Sei que ainda me olha como
se eu fosse uma criança. Mas cresci, graças à senhora e a tudo
que tenho aprendido com a tradição. Agora desça, por favor:
prepare-me um banho e, se possível, algo para comer, pois
ainda não comi nada desde a manhã. Por favor, se puder,
prepare uma emulsão para colocar na água do meu banho.
Quero estar perfeita esta noite. Agora vou tentar dormir um
pouco, pois não quero parecer cansada para a hora do baile.
Não posso dar a eles o luxo de me verem com olheiras.
Depois que Maria saiu porta afora, fui para a janela
meditar, contemplando a natureza. Vi quando meu pai saiu de
carruagem com o conde. Os dois pareciam estar alcoolizados.
Em um instante, perdi-me olhando Joseph. Vi quando Maria,
carinhosamente, levou-lhe o almoço. Os dois conversavam e
sorriam, como se o mundo tivesse certo toque de magia. Então,
finalmente percebi que tinha algo muito mais importante a
fazer do que me preocupar com as ninharias que perturbavam
minha mente. Soltei o coque, tirei os brincos e desci ao
encontro daquele casal perfeito. Maria, ao ver-me, afastou-se
de Joseph, dizendo:
– Santo Deus, menina! Não disse que ia tentar dormir
um pouco? Eu ainda nem tive tempo de preparar-lhe algo para
comer.
Adriana Matheus
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– Não tem nenhum problema, Maria. Só vim até aqui
para repousar ao sol. Quero ficar com uma cor rosada no rosto.
Veja: trouxe até um manto para me deitar.
– A senhorita vai deitar-se aqui fora? Não vai querer
comer nada?
– Pode me trazer aqui fora mesmo. Vou ficar aqui, sim,
e tentar dormir debaixo daquela árvore, pois ela me traz boas
energias.
– Que seja, então, como a senhorita deseja. - Maria
saiu.
Eu estava tranquilamente estendendo a manta no
gramado quando ouvi a voz de Joseph chamando-me:
– Senhorita Anna!
– Sim, Joseph. – disse-lhe, virando-me para atendê-lo.
– Consegui sementes de girassóis e, como Maria
contou-me que a Senhorita gosta muito desta planta, gostaria
de saber onde quer que eu plante as sementes.
– Se não for muito, quero que o senhor me dê um
pouco dessas sementes, pois quero levá-las comigo. O restante
pode plantar onde bem desejar.
– Como assim? A senhorita Anna está pensando em
nos deixar? Acaso irá fazer outra viagem com Maria?
– Não, Joseph querido. Em breve todas as suas
perguntas serão respondidas. Por hora, apenas faça o lhe pedi.
– Sim, senhorita Anna. Perdoe-me pela intromissão.
Maria retornou, trazendo-me um pedaço de pernil e um
copo de suco de melão. Enquanto eu estava saboreando o meu
quase desjejum, Maria e Joseph continuavam conversando
afastadamente de mim. Embora eles estivessem entretidos um
com o outro, eu os observava atentamente. Então, percebi que
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 354 -
era a hora de intervir por aqueles dois que, a meu ver, eram
feitos um para o outro.
Terminando, então, de saborear minha refeição,
levantei-me e caminhei em direção a eles, que se afastaram
com a minha presença. Então, disse-lhes:
– Sabiam que os senhores formam um belo casal?
Maria corou e Joseph abaixou a cabeça, sem graça.
Porém, prossegui:
– Ora, ora! Porque ficaram sem graça? O amor é isso:
estar bem com quem nos damos bem. Por que não pensam em
se unir, já que ambos são sozinhos e desimpedidos? Nunca
pensaram nisso? Vou deixá-los pensando sobre o assunto.
Disse isso percebendo que os dois não conseguiam
dizer uma palavra sequer. Em seguida, saí, voltando para
minha árvore. Não demorou muito para que o cansaço me
levasse a sono profundo.
Tive um sonho muito estranho: uma grande ave
pousava sobre o meu corpo nu e levava minha alma,
serenamente, para um lugar que mais parecia o paraíso. Devo
ter ficado ali por muitas horas, pois acordei com Maria
sacudindo-me e pedindo para levantar-me. Senão, atrasar-me-
ia para o baile. Abri os olhos, meio atordoada, e fui logo
dizendo:
– Hã? O que houve, Maria?
– Precisa acordar, senhorita. Já é tarde e tem que se
banhar e se vestir para o baile.
– Nossa, dormi muito, não foi?
Contei à Maria sobre meu sonho estranho. Ela o
traduziu, dizendo que se tratava de uma ave de rapina - o que
queria dizer que alguém do meu convívio estava tentando me
seduzir. Por fim, Maria insistiu:
Adriana Matheus
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– Levante-se, minha filha. Seu banho já está pronto,
como me pediu. Coloquei rosas vermelhas, que é para abrir o
seu caminho do amor, e jasmim com alfazema, para aromatizar
a água.
– Que bom! Assim me apaixono de vez pelo conde, que
já está quase casado com meu pai.
– Hã? Não entendi, filha. O que quis dizer dessa vez?
– É que os dois estão tão unidos - por um elo que
julgam ser eu - que só faltam confirmar a união entre si. Fico
tão emocionada que posso chorar agora mesmo. Mas creio
que, se pararem para pensar, o verdadeiro elo entre eles é a
condessa.
Maria sorriu, mas me preveniu:
– Não deixe que a ouçam falando assim, ou acharão
que a senhorita não é uma pessoa normal. Pois pensarão que a
senhorita está falando da união entre dois homens.
– E tenho que ser normal? Não me importa o que
digam a meu respeito. O importante é que a senhora tenha
entendido o que disse. E se meu pai e o senhor conde não
querem que boatos circulem em torno deles, então que parem
de serem vistos juntos como um casal de namorados. Pois hoje
mesmo, mais cedo, vi-os bêbados, andando abraçados em
direção à carruagem. Se algum inquisidor os tivesse visto, por
certo seriam chamados de sodomitas.
– Só não deixe seu pai ouvi-la falando desse jeito.
Senão, ele...
Interrompi Maria:
– Senão, ele pode o quê? Pode bater-me, ofender-me,
ignorar-me, ou quem sabe coisa pior? Maria, ele já fez tudo
isso e mais um pouco. Só está faltando cumprir o resto da
missão.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 356 -
– Mas fico preocupada com o que pode lhe acontecer.
Seu pai, se a ouvir falando dessa forma, pode trancá-la em seus
aposentos ou enviá-la para bem longe desta casa - como, por
exemplo, para um manicômio, onde a senhorita pode ser
torturada constantemente por ser considerada louca.
– Nossa, jura? Acredite: ele jamais faria isso. Pode ser
que, depois do baile, ele me desse alguma punição. Mas antes?
Isso seria sonhar alto demais. Maria, Maria... Só está assim
porque sua cabeça está confusa com as coisas que lhe falei a
respeito de Joseph. Sinto muito se a fiz ver o que já está na
frente dos olhos há muito tempo e que a senhora, por estar
sempre tão ocupada com os afazeres e comigo, não se dava ao
luxo de enxergar. A senhora está amando... E não tem que ter
vergonha disso. Então, pare de usar subterfúgios para ignorar o
amor que está sentindo por Joseph. Maria, a senhora está
fugindo de si mesma.
– Não deveria ter falado comigo daquele jeito na frente
de Joseph. A senhorita caçoou de mim. O que ele irá pensar
agora?
– Não! Jamais tive a intenção de caçoar da senhora.
Maria... A senhora está amando e está sendo amada. Só não
consegue perceber isso por estar relutando consigo mesma.
Acha-se velha, gorda e, na sua cabeça, o tempo já passou, não
é verdade?
Ela confirmou positivamente com a cabeça. Prossegui:
– Sei que a senhora está realmente preocupada comigo.
Mas, conhecendo-me como me conhece, sabe que não vou
parar de falar o que penso das pessoas ou do que quer que seja.
Então, não fique usando o pretexto de que meu pai irá me
punir por causa das minhas ideias, pois sabemos que isso será
inevitável futuramente. O que é importante agora é a sua
felicidade com Joseph.
Adriana Matheus
- 357 -
– Imagine se uma mulher na minha idade tem o direito
de amar de novo!
– E por que não? Não vejo nada demais em duas
pessoas maduras encontrarem entre si o verdadeiro amor. A
senhora está viva e ainda tem o direito de amar muito. Vá atrás
do que lhe pertence, mulher, e seja feliz. Faça isso sem olhar
para trás, sem medo ou preconceito. E principalmente: sem
pensar em mim uma única vez na sua vida. Esqueça a questão
de que Joseph irá pensar mal da senhora. Na verdade, ele só
está esperando que a senhora lhe dê uma chance para que ele a
faça feliz. Segure o seu homem! E nem pense em mim. Sabe
muito bem que nesta casa a minha missão já acabou.
Ela enxugou uma lágrima, pronta a rolar, e abraçou-me.
Em seguida, respondeu-me:
– A senhorita às vezes fala como uma mulher muito
experiente. Se eu não a conhecesse, ficaria confusa.
– Como todas nós, mulheres, quando se trata de algo
relacionado ao coração. As experiências que trago são de
minhas vidas passadas. E me diga só uma coisa: estou errada?
A senhora tem alguma coisa a perder? Vá viver com sua irmã,
case-se e seja feliz enquanto pode. Sabe que ela lhe está
esperando. Também será bom para Joseph. Afinal, ele já está
cansado de tanto trabalhar.
– E se ele descobrir que sou uma bruxa e repudiar-me?
– “E se? E se?”. Ora, Maria, deixe disso. Joseph é um
homem maduro e experiente. Vai é gostar daquela terra toda
para plantar e cuidar. Agora devemos entrar, pois tenho que
me preparar para a primeira parte do meu plano.
– Como assim? Que plano é esse?
– Sinto muito, Maria, mas não posso dizer-lhe. Peço
apenas que confie em mim.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 358 -
Ela, então, não perguntou mais nada a respeito. Ao
entrarmos, demos de cara com a famigerada condessa, afoita
com o restante dos preparativos, mas fingiu nem ter-nos visto.
Virei-me para Maria, perguntando-a se madame Hortência
havia entregado também os novos vestidos.
– Sim, senhorita Anna. Fiquei até sem jeito de ver tanta
coisa bonita.
– Ah! Então coloque o mais bonito esta noite e vá ter
com Joseph.
Ela saiu completamente corada, sem nada mais a dizer.
Meu banho já estava pronto, esperando-me. Comecei,
então, a despir-me serenamente. Toquei a água com o dedão
do pé e, finalmente, relaxei meu corpo naquele líquido
purificador. Fechei os olhos e ouvi quando a condessa entrou
na ponta dos dedos e pegou a chave de minha porta, trancando-
me por fora. Sorri, pois já estava esperando que ela fizesse tal
artimanha infantil. Ela sabia que, se eu não comparecesse ao
baile, meu pai ficaria furioso e punir-me-ia. Sabia, também,
que ele não faria escândalos e não subiria naquela noite ao
meu quarto - o que lhe daria tempo de voltar à cena do crime
para colocar a chave em seu devido lugar enquanto eu dormia.
Óbvia demais e pouco esperta para mim. Terminei o meu
banho, deitei-me na cama e fiquei lendo o restante do meu
livro, enrolada em um roupão de seda lilás. Maria bateu à
porta.
– Senhorita Anna, está tudo bem?
– Sim, querida Maria, está. Tudo está como eu havia
previsto. E você, já está pronta?
– Ainda não, mas já irei me aprontar.
– Ótimo! Joseph está lá no fundo, perto da floreira.
– Vou terminar meus afazeres. Tem certeza de que
conseguirá sair daí?
Adriana Matheus
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– Claro! Assim que o conde chegar, farei a minha
entrada triunfal.
– Se é assim, descerei. Veremo-nos amanhã.
– Obrigada, Maria, mas acho que ainda hoje nos
veremos.
Levantei-me da cama e fui arrumar meus cabelos. Fiz
um lindo coque e puxei algumas mexas. Usei um conjunto de
rubis que já estava separado. O mais difícil foi o espartilho,
mas consegui, com muito custo. Fiquei na janela, observando
os convidados chegarem um a um. Já eram oito horas quando o
conde resolveu dar o ar de sua graça. A condessa e meu pai
estavam no hall de entrada, recebendo os convivas mais
solenes. Ela olhou para cima e sorriu, como quem estava
vingada. Entrei e, calmamente, coloquei meu vestido. Vesti as
luvas pretas, também de renda, e ouvi quando a condessa, do
lado de fora da porta, chamou-me:
– Anna, seu pai pediu-me para vir apressar a senhorita.
Mas é uma pena, não é? Porque vou dizer a ele que não irá
descer. Que está furiosa e que quase me agrediu. Agora, se me
der licença, vou para a minha festa. Que pena que você não
poderá ver a cara de aborrecimento dele... Mas tenho certeza
de que verá amanhã. Durma bem, minha filha.
Não pude ver a face dela, mas sabia que estava rindo da
suposta situação que ela pensava ter causado. Esperei que ela
descesse as escadas para terminar de me vestir. Finalmente,
depois de me arrumar, vesti o vestido negro de minha mãe.
Olhei-me no espelho para ver como tinha ficado: perfeito. Era
um vestido negro todo de renda, com pequenas lantejoulas,
que realçavam ainda mais a exuberância do tecido. Sua saia era
muito rodada, pois tinha sete véus, um sobre o outro. A blusa
deixava os ombros à mostra. Uma pequena rosa negra de
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 360 -
veludo salientava-se no meio do busto, prendendo o babado de
renda.
Depois de terminar aquele ritual de vaidade, fui à
mesinha de cabeceira e peguei a chave de bronze que tinha
mandado o ferreiro fazer. Abri a porta e, elegantemente, segui
pelo corredor em penumbra. Do alto da escada, pude ver
muitos convidados. Minha vontade era de sair correndo para o
meu quarto, mas era tarde demais: um criado avisou que eu
estava descendo. Todos olharam para cima, boquiabertos. Meu
pai e a condessa, que usava o vestido que encomendei de
madame Hortência, ao verem-me vestida de negro com os
trajes de minha mãe, empalideceram imediatamente. Pareciam
ter visto um fantasma descendo as escadas. O sussurro foi
geral, e muitos disseram:
– Como ela se parece com Elizabeth!
Mediante o estado de catatonismo em que se
encontrava meu pai, o conde tomou a decisão de conduzir-me
para o meio do salão, estendendo-me a mão para que eu
acabasse de descer os degraus. Todos abriram alas para que eu
e o conde passássemos em meio aos convivas. Ele, então, fez
uma pequena observação:
– Fui informado de que a senhorita não estava disposta.
Juro que pensei que haveria de me fazer esta desfeita.
– Não estou compreendendo o que o senhor quer dizer
com isso. Por que, afinal, eu lhe faria uma desfeita? Creio que
temos um acordo, não é mesmo? Saiba que o senhor está me
ofendendo, pois não sou uma pessoa que volta atrás com a
palavra. Agora, responda-me, meu querido conde: quem foi a
pessoa maliciosa que lhe disse que eu faria uma desfeita dessas
ao meu futuro esposo?
Adriana Matheus
- 361 -
– Não sei ao certo o que está acontecendo nesta casa.
Mas, para mim, basta que a senhorita esteja aqui para firmar
seu compromisso comigo.
– Concordo plenamente com o senhor. E espero que,
daqui por diante, antes que o senhor ouça alguma maledicência
a meu respeito, procure saber primeiro se ela é verdadeira.
A valsa começou e o conde e eu demos início ao baile.
Preferi valsar em silêncio. Não queria muita proximidade com
aquele homem. Ao terminar a música, meu pai veio pedir ao
conde para dançar a próxima valsa comigo. Imediatamente, ao
ter-me em seus braços, ele me disse:
– Esse vestido era de sua mãe! O que é que está
tentando fazer, sua insolente? Saiba que amanhã será punida
por tentar desafiar-me.
– Ora, meu pai, não estou lhe entendendo! Por que o
senhor haveria de me punir, se lhe estou obedecendo
rigorosamente? O que tem demais eu usar o vestido de minha
mãe? Acaso viu um fantasma ou foi a sua consciência que lhe
está pesando? Sinceramente, o senhor confunde-me. Mas vou
enterá-lo dos novos acontecimentos dentro de sua casa: estou
usando este vestido velho de minha mãe porque a sua
queridíssima esposa roubou o meu e o está usando neste
momento. Então, vendo-me sem saída, decidi procurar por
toda a casa algo apropriado para usar no baile e não ter que
decepcioná-lo com a minha ausência. Também quero preveni-
lo de que, a partir de hoje, firmo um compromisso com o
homem que comprou todas as suas propriedades. Sendo assim,
como ele mesmo disse, como tudo o que existe dentro dessa
casa, também pertenço a ele. Então, ressalto que o senhor não
tem mais o direito de punir-me, pois não lhe pertenço mais.
O ódio nos olhos do meu pai era visível, mas ele teve
que se manter dançando comigo até que a valsa parasse. Os
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 362 -
musicistas deram uma pausa para que todos descasassem - o
que foi um alívio, pois meu pai estava apertando os meus
braços com muita força.
Quando a música cessou, o conde veio em minha
direção, dizendo:
– Pensei que teria que esperar por mais uma valsa até
poder tê-la em meus braços novamente. Ainda não tive a
oportunidade de dizer-lhe, mas a senhorita está lindíssima
neste vestido.
– Fico satisfeita em ver que agrado meu futuro esposo.
Espero poder sempre agradá-lo.
– Eu também, senhorita. Confesso que hoje, pela
manhã, deixou-me furioso. Mas, depois que estava só, percebi
que nunca havia conhecido alguém com tanta personalidade
assim.
– É mesmo? E houve outras mulheres que o senhor
também recebeu como pagamento?
– Senhorita Anna, estou tentando dizer-lhe que estou
completamente apaixonado. Na verdade, nunca senti nada
assim. Não deveria rejeitar meu sentimento. Pode ser perigoso.
–Para quem: para mim ou para o meu pai? O senhor
vem me falar de amor sob imposições e ameaças?
Francamente, deveria tentar outra estratégia. Essa não
funcionará comigo, conde. Aceitei selar esta noite um
compromisso com o senhor. Agora, não espere que eu leve
este compromisso adiante, e muito menos que eu lhe tenha
algum afeto. Não me vendi, senhor conde, e jamais faria isso.
– E o que a senhorita pretende fazer? Fugir? Creio não
ser uma boa ideia. Encontrá-la-ia facilmente.
– Não sou mulher de fugir.
Adriana Matheus
- 363 -
Meu pai se aproximou de nós e interrompeu aquela
conversa - que estava ficando perigosa -, perguntando
ironicamente:
– E então, estão se entendendo bem? Como está se
comportando a minha filhinha, conde? Está lhe dando muito
trabalho?
– De modo algum, senhor Juan. Sua filha consegue ser
encantadora até mesmo quando tenta não ser.
Um criado veio servir-nos uma taça de champagne.
Isso desviou um pouco a atenção de meus leiloeiros. O líquido
efervescente desceu pela minha garganta e logo me surtiu um
efeito entorpecente. De imediato, senti-me tonta. Alguma coisa
estava errada, porque minha visão começou a ficar turva.
Tentei manter-me ereta e pedi licença aos dois cavalheiros,
pois precisava tomar um pouco de ar. Fui, então, à varanda. As
imagens rodopiavam como mariposas na luz. Procurei por
Maria. Precisava dela imediatamente. Até mesmo a luz do luar
estava dando-me náuseas. Olhei para baixo e a vi conversando
com Joseph de mãos dadas, sentados discretamente em um
banquinho, na lateral do jardim. Embora ela estivesse plena de
felicidade, precisaria interrompê-la e pedir-lhe ajuda. Ela olhou
em minha direção e fiz-lhe um sinal. Não pude perceber se ela
havia entendido o meu pedido de socorro, pois uma mão
tocou-me o ombro. Logo que me virei, a condessa foi falando,
em um tom exasperado:
– Não sei o que fez para sair de seu quarto, mas tenha
certeza de que irei descobrir. Não pense que se livrará de mim
assim tão fácil!
Eu mal podia entender o que aquela louca estava me
dizendo, pois as palavras que saíam de sua boca pareciam
destorcidas. Mas lhe respondi:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 364 -
– Não sei do que a senhora está falando! Tão cedo e já
está em estado de ébrio? Que feio! O conde não se sentirá à
vontade com essa conduta tão vulgar.
Ela levantou a mão para me esbofetear. Foi quando o
conde e a conteve, segurando sua mão. A condessa olhou-o
fulminantemente nos olhos, parecendo não ter aprovado aquela
atitude de “herói”. O cafajeste, por sua vez, disse em tom de
ironia:
– Acalmem-se, minhas queridas! Não briguem por
minha causa. Prometo dividir a atenção com as duas. Mas não
quero que fiquem enciumadas e violentas uma com a outra.
Não há necessidade para isso, senhora condessa. Sabe muito
bem que não quero que toquem em minha futura esposa.
A condessa olhou-o de soslaio, furiosamente, e saiu
como que pisando duro, deixando-nos a sós. O conde olhou-
me nos olhos e falou:
– A senhorita está bem? Não quero que machuquem o
brinquedinho que ainda não usei.
Não cuspi nas faces daquele homem nojento por um
milésimo de segundo apenas. Mas resolvi manter-me quieta.
Então, respondi, fingidamente:
– Sim, estou muito bem, graças ao senhor. Senhor
conde, não sei o que há comigo, mas estou me sentindo muito
tonta. Desculpe-me, nunca me senti deste jeito.
Senti que iria cair. O conde amparou-me. Por fim,
quando levantei a cabeça para agradecê-lo, ele aproximou os
lábios dos meus e disse, num tom que mais parecia um
sussurro:
– Calma, moça! Acho que deve ter se excedido no
champagne.
– Não me excedi em coisa alguma, conde. Não tomei
mais que dois goles da bebida. Há alguma coisa errada.
Adriana Matheus
- 365 -
– Por que não para de me chamar de senhor e passa a
me chamar pelo meu nome, Albert? Afinal, seremos marido e
mulher muito em breve.
Tentei empurrá-lo, pois estava grudado em mim.
Estava enfraquecida por causa da tonteira. Ele continuou a me
segurar fortemente:
– Não seja tão arredia comigo. É melhor não fazer tanta
força. E vá se acostumando com os meus carinhos, pois não
gosto de mulher puritana.
Eu já não tinha mais reação. Meus membros estavam
adormecidos. Então, o conde puxou a minha cabeça para junto
de si e beijou-me. Tentei esbofeteá-lo, mas foi em vão, pois ele
segurou minhas mãos. Depois de ter forçado aquele beijo,
puxou-me, cambaleando para dentro do salão. Foi logo
pedindo a atenção de todos. Disse, então, em voz alta, batendo
com uma colher em uma taça:
– Meus queridos, hoje é um dia muito importante para
mim, pois estou sendo integrado em sua comunidade. E é com
imenso prazer que estou pedindo em casamento a senhorita
Anna Vladimir Gondin, filha do senhor Juan Vladimir Del
Prat.
O alarido de espanto foi geral. O conde prosseguiu, não
me deixando dizer absolutamente nada:
– Senhorita Anna, presenteio-a com o anel real de
minha avó. Que esta joia seja o elo entre nossas famílias.
Todos aplaudiam e, quando o conde colocou finalmente
o anel em meu dedo, caí em um abismo profundo. Foi como se
formasse na minha frente um enorme buraco negro. Não me
lembro de mais nada, pois desmaiei.
Horas depois, acordei em meu quarto, rodeada por
várias pessoas. O doutor passava-me nas narinas um líquido
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 366 -
horrível para que eu despertasse. Maria estava ao meu lado e
perguntou-me, passando a mão pela minha testa:
– Fique calma, minha filha. Estou aqui agora. Não a
deixarei de novo, prometo.
– Maria, o que houve? O que aconteceu comigo?
– Fique quietinha. Alguém colocou um entorpecente na
sua bebida. - disse ela, sussurrando ao meu ouvido.
Fiquei quieta, esperando que Maria colocasse para fora
toda aquela gente curiosa. Não vi o conde, mas Maria depois
me informou que ele havia ido embora. Quando o quarto já
estava vazio, tentei levantar-me, mas...
– O que fizeram comigo, Maria? Não me lembro do
que aconteceu. Eu estava me sentindo tão bem. Só consigo me
lembrar do beijo que o conde forçou-me a dar-lhe, e depois do
anel em meu dedo.
– Meu Deus, ele fez isso? Então é como eu suspeitava.
Foi o conde que colocou o entorpecente em sua bebida. Ele
queria fazer-lhe algum mal. A sua sorte foi não ter tomado
todo o líquido que estava em sua taça. Caso contrário, poderia
estar acordando nos aposentos do senhor conde agora. Mas
quando a vi na varanda, percebi que havia algo de errado com
a senhorita. Só sinto não ter-me apressado em atendê-la
quando me chamou.
– Este homem é mais perigoso do que supúnhamos.
Devo precaver-me contra ele de agora em diante.
– Sim. Não deve ficar mais sozinha com ele - pelo
menos o quanto puder evitar.
– Não se preocupe, Maria. Só temos o direito de errar
uma vez, e já errei duas. A primeira quando deixei minha
porta aberta, depois de já ter encontrado minhas janelas
destrancadas. E a segunda foi aceitar uma bebida na presença
do conde. Deveria ter desconfiado quando ele pegou a taça,
Adriana Matheus
- 367 -
parecendo saber qual era a minha. O que farei, Maria? Estou
me sentindo completamente vulnerável nesta casa.
– Não sei, minha filha. Não consigo pensar em nada
para ajudá-la, a não ser em pedir-lhe mais uma vez que fuja.
– Não posso fugir, Maria. Para onde eu iria?
– Para a casa de minha irmã, como já mencionei.
– Maria, a senhora está se esquecendo de que o conde
tem o diário de minha mãe. No diário dela, há o mapa de como
chegar até a casa de sua irmã. Não posso colocar aquele povo
em risco por minha causa.
Maria sentou-se na beira da minha cama, parecendo
sentir-se impotente também.
– Esta noite direi ao seu pai que, devido ao seu estado,
dormirei aqui com a senhorita. - disse Maria, depois de muito
pensar.
Em seguida, saiu e trancou o meu quarto pelo lado de
fora, com a minha chave extra. Logo depois que Maria saiu,
percebi uma pequena bola de luz em um canto do quarto.
Curiosamente, levantei-me para ver de perto. Ao me aproximar
daquela bola de luz, ela se materializou. Afastei-me para trás,
meio assustada. Vi uma senhora trajando um fino vestido de
seda verde. Depois de muito me olhar, ela me disse:
– Desculpe-me por invadir seus aposentos, minha
jovem. Mas estou aqui para preveni-la quanto ao conde. Este
homem não é quem todos pensam. Ele é um assassino e
usurpador.
– Sim, meu mentor espiritual já me disse isso. E quem
é a senhora, por favor?
– Sou a marquesa de Monte Carlo, mãe do verdadeiro
conde de Monte Carlo. Este homem assassinou o meu filho e o
meu marido. Agora está usurpando o lugar deles. Tenha
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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cuidado, minha filha. Ele é mais perigoso do que a senhorita
supõe.
Dizendo isso, o espírito desapareceu. Fiquei parada, em
pé, no meio do quarto, sem saber o que fazer. Minhas pernas
começaram a tremer de tal maneira que me vi obrigada a voltar
para a cama. Fiquei encolhida e assustada, esperando que
Maria retornasse.
Quando estamos nos sentindo coagidos, não
conseguimos ver a solução para os nossos problemas. De
repente, senti as lágrimas rolarem-me nas faces. Queria ter um
amigo para me proteger. Queria colo de mãe. Sentia-me tão só!
Embora estivesse preparada para enfrentar meu destino,
naquele momento a solidão tomou conta da minha alma.
Parecia que meu espírito estava envolto por uma grande
escuridão. Meu coração estava cada vez mais apertado. Não
tinha para onde ir, correr, escapar, o que quer que fosse. Sem
querer, blasfemei em voz alta:
– Se eu morresse, seria melhor para todo mundo!
De repente, uma voz me respondeu ao ouvido:
– Melhor para quem, Anna? Para você? E a pobre da
Maria, que lhe cuidou com tanto zelo, abdicando-se da própria
vida? Está sendo egoísta e imatura, Anna! Esse é o erro de se
saber o futuro. Muitos acham que podem antecipá-lo ou
modificá-lo. Acredite: acabam terminando no abismo sem fim
da escuridão imortal. Não vai querer isso para sua vida, Anna.
Não passamos pelos problemas da vida - são os problemas que
passam por nós, ensinando-nos a viver. Então, devemos viver
de maneira que esses problemas sejam exemplos de como não
procedermos de maneira excêntrica e precipitada. Não posso
permitir que siga seu destino sem ao menos aprender o dom da
paciência. Você tem que entender que é uma pessoa diferente.
Estou muito decepcionado com você. Saiba que as palavras
Adriana Matheus
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nunca são totalmente jogadas ao vento. Elas podem ser
ouvidas por espíritos impuros, que podem vir atender o seu
suposto desejo. Uma atitude precipitada poderia prejudicar
todos à sua volta. Se fizer o que disse há pouco, Maria seria
colocada na rua e, com isso, voltaria para a casa da irmã. Ela
nunca mais veria Joseph. Lorenzo seria despedido e, com isso,
cairia nas bebidas e não mais se casaria com Samara. Esta, por
sua vez, acabaria se tornando uma prostituta para tentar se
sustentar. Tereza e seu esposo seriam despedidos também e,
como estão em idade avançada, não arrumariam mais
emprego. Com isso, a pobre netinha morreria de fome. Tereza
e o marido têm uma família que depende deles. Como
percebeu, tem muita gente que depende de você, Anna. Mesmo
assim, teve um pensamento tão egoísta como esse? Não posso
acreditar no que ouvi, Anna!
Eu estava debulhada em lágrimas, mas respondi, entre
soluços:
– Perdoe-me, Heixe! Por favor, perdoe-me, meu amigo!
Porém, ele prosseguiu:
– Não sou eu quem tem que lhe perdoar. É você
mesma. Precisa parar de sentir pena de si mesma. Levante-se
desta cama e vá até o pequeno templo que sua mãe construiu.
Prepare uma poção, faça o ritual da chuva. Purifique sua alma
e deixe que a chuva lave as mazelas da sua alma. Agora vá e
faça o que tem que fazer. Tenha cuidado apenas para que a
condessa não descubra nada.
Quando Maria voltou, contei-lhe o que havia
acontecido. Ela fitou-me tristemente e respondeu:
– Saiba que o seu mentor espiritual está coberto de
razão, senhorita Anna. Esse foi o pensamento mais egoísta que
a senhorita já teve. Como acha que me sentiria sem a
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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senhorita? Não pensou nos sentimentos das pessoas que a
amam de verdade?
Maria ajeitou um lugar no chão para dormir, sem
dirigir-me a palavra novamente.
Depois que ela adormeceu, ainda fiquei um bom tempo
acordada, refletindo sobre aquele assunto. Muitas pessoas
confiavam em mim, e quase coloquei toda a tradição a perder
por causa de um pensamento egoísta. Às vezes, ficamos cegos
com nossa revolta e agimos de maneira insana. Achamos que
não temos nada mais a perder, mas esquecemos tudo e todos
que nos cercam. Fui uma tola por pensar tão levianamente.
Ainda bem que tinha amigos no espaço para me auxiliarem. O
suicida não é somente aquele que se envolve com
entorpecentes ou bebidas - estes se suicidam lentamente. O
suicida também é aquele que se anula espiritualmente,
matando o seu aparelho. E era o que eu ia fazer, caso Heixe
não tivesse vindo em meu auxílio. Uma bruxa ou uma pessoa
que tenha dons especiais não pode jamais ter este tipo de
pensamento, pois isso faz com que vá contra as leis da
natureza de Deus. Logicamente, o mesmo serve para todas as
pessoas – mas, principalmente, para todos aqueles que seguem
uma tradição espiritual.
Fiz minhas orações e olhei para Maria, que estava
deitadinha no chão somente para me proteger. Como fui
egoísta, Senhor, em dizer que sou sozinha... Depois de muito
meditar sobre minha vida, adormeci, deixando que meu corpo
repousasse em sono profundo.
Quando acordei, o dia ainda não tinha raiado. Então,
levantei-me bem devagarzinho e coloquei o roupão, cutucando
Maria bem de mansinho para que não se assustasse. Então,
chamei-a baixinho:
– Maria, Maria... Acorde, por favor...
Adriana Matheus
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– Hã? Menina, o que faz fora da cama? Está bem? O
que está sentindo? Meu Deus, dormi demais, foi isso? -
levantou-se de um salto só, com os olhos que pareciam dois
pires de tão arregalados.
– Maria... Não faça tanto barulho... Calma, não estou
sentindo nada, estou muito bem. Levante um minuto e venha
comigo. Quero que me mostre onde é o templo que minha mãe
fez.
Ela levantou meio receosa e, parecendo não crer no que
eu dizia, vestiu o roupão e saímos no meio da casa escura,
carregando um lampião que mal deixava enxergar os próprios
pés.
Atravessamos todo o pátio do fundo da cozinha e
chegamos ao porão, onde meu pai guardava seus preciosos
vinhos. Acendi outro lampião que estava pendurado junto à
porta.
Maria retirou uma garrafa da adega. Então, como em
um passe de mágica, abriu-se uma porta secreta. Entramos e
acendi mais dois lampiões que estavam pendurados. Todo o
lugar ficou logo iluminado. Parecia uma caverna mística.
Fiquei extasiada e boquiaberta com o que vi.
– Maria, minha mãe construiu isso antes de eu nascer?
Como ela conseguiu fazer isso sem que meu pai percebesse?
Quem a ajudou?
– Sim, senhorita Anna. Elizabeth construiu isso tudo
com a minha ajuda e de alguns irmãos da tradição, que vinham
até aqui enquanto o seu pai viajava. Este local demorou algum
tempo para ficar pronto, pois foi feito parcialmente, nos
intervalos e ausências do seu pai. Elizabeth era uma mulher
muito discreta e reservada. Por isso, foi fácil esconder a
tradição de seu pai.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 372 -
Depois de andar por todo o local e admirar tudo o que
encontrei, disse à Maria:
– Venha, ajude-me a lavar esse caldeirão. Preciso fazer
um preparo para o ritual da chuva. Meu primeiro equinócio
será comemorado com a chuva no fim do outono.
– Jura? E quando será?
– Na próxima quarta-feira. A chuva será à noite.
Devemos nos preparar para irmos à floresta. Temos que nos
preparar para a purificação do corpo.
– Posso participar? Nunca fiz o ritual da purificação.
– É claro que sim! Então, faremos juntas a poção.
Maria lavou o caldeirão e a colher de pau. Decidi não
usar o material que havia comprado: aquele me serviria muito
bem e já estava cheio de boas energias. Limpamos todo o
ambiente nos mínimos detalhes. Preparamos as ervas para o
cozimento. Pegamos a imensa colher de pau e mexemos a
poção - as duas juntas, ao mesmo tempo. Durante o processo,
dissemos:
– Que o espírito da cura se reúna a esta essência,
trazendo-nos paz, harmonia e forças para que nosso corpo
físico possa conseguir seguir a sua jornada.
Cantamos, também, naquela língua antiga. E rimos
muito, passando energias positivas para a essência.
Rodopiamos e dançamos em volta do caldeirão, enquanto ele
cozinhava a poção. As chamas pareciam dançar conosco. A
dança é, para nós, uma forma de libertação. Quando dançamos,
soltamos a alma e não pensamos em mais nada à nossa volta.
Talvez tenha sido um grande erro dançarmos naquela
noite. Pois ficamos tão inertes que não percebemos a presença
silenciosa e maligna da condessa, que nos vigiava
sorrateiramente. Ela havia sido acordada pela copeira, sua
cúmplice, que nos denunciou. A fumaça e a penumbra do lugar
Adriana Matheus
- 373 -
não nos deixaram perceber sua presença. Ela ouviu tudo,
atentamente, sobre as poções e o ritual da chuva.
Eu e Maria parecíamos estar embriagadas pela essência
que saía do caldeirão. As ervas eram muito fortes, e o cheiro
nos fez viajar. Acrescentei sálvia e óleo de girassol. Por fim,
sentamos e rimos muito, pois estávamos felizes e absortas.
Tomamos o chá do poder e abrimos o nosso chácra do
conhecimento. O poder do chá era inigualável e, logo ao
bebermos, sentimos toda a força do universo nos cercando.
Esse chá representa toda a força da mãe terra, a fonte de vida,
o côncavo e o convexo, o macho a fêmea. As duas forças
uniam-se durante a ingestão desse chá. Seu poder de cura era
infinito. Mas o principal objetivo é curar a alma. Depois de
muito meditarmos, disse à Maria:
– Acho que passamos da hora. Precisamos apagar o
fogo e tampar o caldeirão. Lembre-se de vir aqui e cozinhar as
ervas até quarta-feira.
– Pode deixar que ficarei atenta para não deixar passar
do ponto.
Esse ritual tinha que ser preparado com muita
antecedência. A erva devia ser cozida até desmanchar, pois o
banho era por inteiro e deveríamos deixar a terra consumir
tudo o que saísse do nosso corpo. Nesse ritual, damos à terra
todos os nossos problemas, e recebemos da chuva toda a sua
energia renovadora. Pois a chuva traz tudo de bom que a terra
nos dá. Isso se chama círculo rotativo. A terra recolhe a água
que sai do nosso corpo doente, e a chuva leva o que não presta
para o céu, reciclando essa energia e devolvendo-a em forma
de energia positiva.
De repente, escutamos um barulho do lado de fora.
– O que foi isso, Maria? - perguntei assustada.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 374 -
– Não sei, senhorita Anna. Espere aqui que irei ver o
que é.
Senti um frio na barriga. Algo estava errado e havia
ativado todos os meus sentidos. Comecei a ficar com dores de
cabeça. Foi aí que percebi a presença da condessa: ela havia
estado ali o tempo todo e, com certeza, eu estava em suas
mãos. A partir daquele momento, eu sabia que seria
chantageada por duas pessoas ao mesmo tempo. Maria voltou
e disse-me:
– Não vi ninguém, senhorita Anna. Deve ter sido algum
tipo de animal.
– Pouco provável, Maria. Com certeza, foi a condessa.
Meus sentidos de bruxa mostraram-me ser ela.
– A condessa? Meu Deus, ela fará chantagem com nós
duas. O que faremos?
– Devemos ter calma, para melhor raciocinarmos sobre
o que fazer.
– E o que faremos com essas provas? - disse Maria,
apontando para tudo à nossa volta.
– Eu poderia dizer que estávamos procurando um vinho
raro para ofertar ao meu futuro marido e, sem querer,
descobrimos esse lugar.
– E o que diríamos sobre o caldeirão e a poção que está
ainda em cozimento?
– Sim, a senhora tem razão. Não conseguirei inventar
uma desculpa plausível para essa situação eminente. O melhor
a fazer é esperar para ver o que a condessa fará.
– Sim, mas até lá morreremos ansiosas, sem saber o
que a condessa irá nos aprontar.
Sentei ao chão e coloquei as mãos no rosto, pensando
em como achar um meio de driblar a condessa, pelo menos até
o dia do ritual da chuva. Sabia que, se eu quisesse usar meus
Adriana Matheus
- 375 -
poderes, poderia pôr um fim naquilo tudo. Mas nunca poderia
usá-los em benefício próprio, pois as consequências seriam
muito piores. Quando usamos nossos poderes para controlar
alguém ou para fazer um indivíduo esquecer-se de uma
situação, além de gastarmos muita energia vital, podemos
passar por coisas horríveis. Como, por exemplo, ser
atormentada dia e noite por espíritos levianos. Isso pode
resultar na loucura mental do corpo físico ou no suicídio do
indivíduo em questão. Por isso, disse à Maria, que estava se
borrando toda, por medo da sombra que nos espreitou a noite
toda:
– Não faremos absolutamente nada.
– Como assim, nada?
– É o que a senhora ouviu. Daremos tempo ao tempo e
ele se incumbirá de nos responder.
Maria não disse mais nada, mas senti que estava aflita.
Arrumamos as coisas, apagamos o fogo do caldeirão e saímos,
em silêncio. Passamos tranquilamente pelo pátio e pelos
corredores. Foi assustador pensar que poderíamos ser pegas de
repente. Maria deixou-me na porta de meu quarto e desceu. Foi
uma madrugada muito difícil. Cheguei a pensar que não
passaria daquela noite. Arrumei-me e, em seguida, fiz minhas
orações. Não poderia descuidar do espírito. E também não
estava mais em condições de dormir. Abri a janela e vi Joseph,
já se preparando para cuidar do jardim. Então, resolvi descer e
fazer-lhe companhia. Abri vagarosamente a porta e saí, meio
que na ponta dos pés. Já estava no meio do corredor quando a
condessa agarrou-me pelo braço e puxou-me para um canto,
interrogando-me:
– Estava aprontando alguma coisa ilícita naquele porão.
Pretendo descobrir o que é.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 376 -
Percebi, então, que a condessa, por causa da fumaça,
não conseguiu ver o que estávamos fazendo e também não
ouviu o que dizíamos. Então, respondi-lhe, tentando inverter
aquela situação:
– Ah! Então a senhora não sabe? Se a senhora anda
espionando as pessoas atrás das portas, deveria saber.
– Infelizmente, não deu para ver por causa da
penumbra. Mas saiba: estou de olho.
Respirei aliviadamente, confirmando a minha atual
suspeita de que a condessa não sabia de nada. Tentei apressar-
me para contar à Maria, aliviando-a daquele fardo
desnecessário. Fui saindo, mas a condessa, que ainda segurava
meu braço, prosseguiu:
– Antes de sair, terá que me contar: que lugar era
aquele?
– A senhora não sabe? É ali que queimam as ossadas
dos escravos que morrem torturados. Estou impressionada
como a senhora, que vive nessa casa há tantos anos, possa
estar tão alienada deste fato tão corriqueiro. Agora, se a
senhora duvidar da minha palavra, posso eu mesma levá-la até
aquele local. Ou melhor: peço a meu pai que lhe mostre o local
pessoalmente.
– Não será preciso. Saiba que sei de tudo o que se passa
dentro da minha casa. – mentiu, querendo parecer senhora
absoluta de tudo.
Olhando-me bem nos olhos, ela prosseguiu com a
conversa:
– E o que estava fazendo junto à Maria àquela hora da
madrugada?
– Santo Deus, senhora condessa! Como a senhora é
desinteressada e insensível! Ainda não sabe que uma de nossas
escravas perdeu um bebê por esses dias? Eu e Maria estávamos
Adriana Matheus
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acendendo velas e rezando para a pobre alma daquele pequeno
inocente. A fumaça que a senhora viu foi porque queimaram
os ossos do pobrezinho ainda hoje. Cheire só o meu braço para
a senhora ver como estou cheirando a defunto queimado.
Disse isso estendendo e colocando meu braço nas
narinas da condessa, que recuou e soltou-me, finalmente. A
tola mulher, além de apavorada, ainda disse, arrogantemente:
– Saia de perto de mim, com esse cheiro de escravo
queimado! Não faço questão de me envolver em assuntos de
escravos. Deixo isso para seu pai. Mas não me surpreendo em
saber que uma estúpida como a senhorita se envolva nesses
casos medíocres, com esse tipo de gente.
– Sabe, condessa, a senhora é mesmo uma pessoa
muito doente. Por que não aproveita que o médico está na casa
e faz uma consulta? Mas não se esqueça de informar-lhe que
sua doença é na alma: chama-se preconceito.
A condessa empinou o nariz e saiu, remexendo as
cadeiras, até entrar em seus aposentos. Por minha vez, saí pelo
corredor afora, saltitante como uma menina. Procurei Maria na
cozinha e contei-lhe tudo. Ela se arriou sobre uma cadeira e
disse:
– Definitivamente, a senhorita é mais cheia de
artimanhas que o próprio demo!
– Eu!? De maneira nenhuma, Maria. A condessa que é
desprovida de neurônios - o que, para mim, é uma salvação.
Acredite, Maria: ninguém nos impedirá de realizar o ritual da
chuva.
Eu já ia pegar algo para comer quando resolvi
perguntar outra coisa à Maria, ainda sentada naquela cadeira,
sem conseguir dizer-me uma só palavra:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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– Ah! Já ia me esquecendo... A senhora retornou ao
crematório para acendê-lo? Lembre-se de que nosso cozido
deve ferver diariamente.
Maria pareceu entender sobre o que eu queria dizer e
riu a valer. Depois de degustar tranquilamente meu desjejum,
virei-me para Maria e falei-lhe:
– Iremos ter com Joseph daqui a pouco - fique a
senhora sabendo!
– E para quê? No que a senhorita está pensando em
envolver o pobre homem? – perguntou, com medo do que eu
poderia estar planejando.
– Nada demais. Só vamos, de uma vez por todas,
resolver a sua situação que está pendente com ele.
Disse isso degustando uma deliciosa fatia de queijo.
Maria, por sua vez, levantou-se apressadamente da cadeira e
começou a remexer nos objetos da cozinha, desconexamente.
Até que, não resistindo, perguntou-me:
– Posso saber qual seria a situação pendente que tenho
para resolver com o senhor Joseph?
– Ora, Maria! Fracamente, não lhe cabe agora se fazer
de rogada comigo. Sabe muito bem que estou falando do seu
afeto por ele. Não achou que eu não faria nada quanto a essa
questão, não é mesmo?
– Para falar a verdade, já estava suspeitando que a
senhorita fosse me colocar em mais uma de suas confusões.
Mas, dessa vez, imploro-lhe: não me faça passar por tamanha
vergonha. Pois, caso contrário, irá ver essa sua amiga aqui
esticadinha ao chão. E creio que não quer isso, não é verdade?
Ela apertava as mãos uma contra a outra, enquanto me
olhava com um olhar suplicante, esperando que eu lhe desse
uma resposta a seu favor. Porém, respondi:
Adriana Matheus
- 379 -
– Se for para o seu bem, pode desmaiar à vontade!
Quem sabe Joseph, ao vê-la esticada ao chão, abaixe-se para
beijá-la e já lhe faça um pedido de casamento ali mesmo.
Maria virou-se de costas para mim, benzeu-se e
respondeu:
– Perdeu foi o juízo de vez, viu!? Imagina só se irei
permitir tamanho despudor!
– Ora, então a amarro e pronto!
Percebi que Maria estava rindo baixinho, pois havia
gostado da ideia de ser beijada por Joseph - embora
continuasse a manter aquela postura rígida. Enquanto ela
ficava sonhando com o suposto beijo dele, comecei a matutar
uma forma de tirar Maria de toda aquela enorme confusão na
qual eu estava atolada até o pescoço. Podia-se dizer que eu
estava em um beco sem saída. Mas não poderia deixar minha
melhor e única amiga ir direto para o poço, sem fundo, junto
comigo. Depois de muito queimar tutano e deixar meus
cabelos todos enfumaçados, cheguei a uma real conclusão,
finalmente: Maria deveria escrever urgentemente para sua
irmã. Mas, como eu sabia que ela não concordaria com o meu
plano, teria, então, que eu mesma escrever a tal carta.
Meu pai e a condessa saíram muito cedo e,
provavelmente, não voltariam tão rápido. Maria disse para ele
que eu ainda estava dormindo - o que me deu tempo suficiente
para pôr o meu plano em prática.
Naquela manhã, Tereza chegou um pouco mais tarde e
parecia estar de mau humor. Pelo que aparentou, não nos
queria por perto. Mas ela normalmente já era assim: detestava
invasores no seu território sagrado. Porém, naquele dia, o mau
humor imperou sobre ela. Eu e Maria saímos à francesa,
deixando a mulher com seus próprios demônios.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 380 -
Do lado de fora, corri os olhos, tentando achar Joseph.
Por fim, avistei-o cuidando das magnólias. Olhei para Maria,
dando-lhe um sorriso maroto, e saí correndo em seguida, para
chegar perto de Joseph antes dela. Maria tentou acompanhar-
me, mas fui muito mais ágil. Quanto cheguei à frente de
Joseph, estava morrendo de rir de saber que Maria estava
vindo toda afoita atrás de mim. Joseph, parecendo perceber
que tinha algo no ar, olhou para mim e correu os olhos para
localizar Maria. Ele, também num tom de riso, disse:
– Senhoritas, onde pensam que vão desta forma aflita?
Em seguida, o homem levantou-se para nos
cumprimentar melhor e se tornar ciente do que estava
acontecendo. Depois de olhar-nos dentro dos olhos, ele falou:
– Em que posso ajudá-las? O que houve? Aconteceu-
lhes algo?
Então falei, sem muito dar margens a outros
comentários e perguntas, antes que Maria pudesse interromper-
me:
– Querido Joseph, estou ciente de seus sentimentos por
minha amada Maria. Quero que saiba que é recíproco. Porém,
ela é tímida demais para lhe dizer isso. Portanto, estou aqui,
sendo uma intermediária entre os dois.
Maria não sabia onde se enfiava, de tão envergonhada
que a fiz ficar. Ela me beliscava e tentou várias vezes tampar a
minha boca. Mas, uma vez que comecei a falar, ninguém
conseguiria impedir-me de terminar.
Joseph olhava para Maria com olhos vidrados e cheios
de lágrimas. O homem parecia estar com aquele sentimento
entalado no peito havia anos. Percebendo que ele não tinha
coragem de abrir a boca, prossegui:
– E então, senhor Joseph? O que tem a me falar a
respeito do que lhe acabo de dizer?
Adriana Matheus
- 381 -
Ele girou o corpo de um lado para o outro, parecendo
procurar algo nos bolsos de trás da velha calça. Fiquei ali,
esperando uma resposta, mas o pobre homem parecia tão
preocupado em achar sabe-se lá Deus o quê que me deixou ali,
parada à sua frente, por vários minutos. Por instantes, achei
que havia cometido um grande erro, porque o homem não
respondia nada e parecia ter escondido o rosto debaixo do
chapéu de palha. Olhei para Maria, que parecia estar ansiosa
por uma resposta dele. Então, resolvi arriscar tudo, antes que
virássemos um fóssil humano, por causa de um simples sim de
Joseph para Maria. Imagine só minhas futuras gerações
passando por ali, depois de milhares de anos, e achando uma
jovem bruxa e uma senhora petrificadas. Por certo, indagariam
entre si Nossa, o que será que transformou essas pobres
mulheres em fóssil? E alguém estudioso no caso responder-
lhes-ia Foi a demora de um simples “sim” do futuro
pretendente de uma delas. Aquele pensamento fez-me rir
sozinha. Portanto, tratei logo daquele assunto banal, dizendo:
– Joseph, por céus, homem! Está entalado com um
sapo, ou os comichões são por causa de uma urtiga?
Fiz-lhe, então, uma simples pergunta, de maneira
pausada:
– O senhor gosta de minha governanta, Maria Peres?
Sim ou não?
– É que não entendi o sentido da pergunta.
Sua voz era tremida e vi o quanto aquela conversa seria
demorada e difícil. Meu Deus, pensei comigo. Ou ele era um
desprovido de inteligência ou era surdo. Ou ainda pior: estava
se fazendo de sonso mesmo!
– Estou lhe perguntando se o senhor quer se casar com
Maria, homem!
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 382 -
– Bom, confesso que já andei escrevendo alguns
versinhos para ela. Mas nunca me atrevi a ir além disso, pois
ela é uma dama de muitíssimo respeito.
Oh! Glória, meu Deus, até que enfim!, pensei. Não era
muito, mas pelo menos ele havia dado um sinal de vida.
Aproveitando aquela oportunidade, Maria falou, por fim,
porque parecia que também estava engasgada e aflita por uma
resposta daquele aprendiz de Romeu, confuso e tímido:
– Ora, homem, e desde quando versos são sinal de falta
de respeito? - ela colocou as mãos na cintura e fez uma cara de
brava.
Dirigindo-se a mim, ela disse:
– Pense bem, senhorita Anna: passei esse tempo todo
na desesperança de encontrar minha cara metade, sendo que
ela estava o tempo todo ao meu lado. Esse homem cabeçudo
fez-me perder o melhor tempo da minha vida só porque me
julgava uma mulher acima dele. Imagine só: como posso
perdoá-lo por ter ficado solteirona esses anos todos?
Quem ficou de olhos arregalados desta vez fui eu, que
fiquei admirada por ver a revolta de uma mulher solteirona.
Deus, que bom que não chegaria a tanto! Às vezes, o que o
nosso destino nos reserva é mesmo uma dádiva! Pois não me
conseguia ver dando uma crise daquelas por falta de um
casamento. Céus! Depois de ter que pegar meu maxilar, que
estava caído ao chão, falei a Joseph:
– Bom, o que posso dizer, senhor Joseph? Depois de
um desabafo desses, é melhor que o senhor tome logo a atitude
de pedir-lhe a mão.
– Mas não pode ser assim. Tem que ser com jeito e...
Maria não deixou que o pobre homem, prestes a ser
enforcado, dissesse uma só palavra:
Adriana Matheus
- 383 -
– Que jeito, homem? Acha mesmo que estamos em
idade de esperar mais alguma coisa? Acha que quero ser
cortejada a essa altura da nossa história? Conhecemo-nos há
mais de dez anos. Diga-me: o que o senhor ainda não conhece
da minha pessoa? Se tiver alguma dúvida em se casar comigo,
então não me merece. Mas se sente algum sentimento por
mim, vá logo e se decida de uma vez por todas. Não tenho
mais a intenção de criar os netos da senhorita Anna.
Continuei recolhida à minha insignificância e de olhos
bem arregalados. Por fim, disse, humildemente:
– Se o problema é a ocasião, pedirei permissão ao meu
pai para que assemos um leitão com direito a rodada de banjo.
Joseph, no entanto, fez uma pergunta que, embora
parecesse um tanto irregular, era de se esperar mediante a
reação quase histérica de Maria:
– Quero só perguntar uma coisa.
– Lógico que sim, Joseph, mas que seja breve. -
respondeu Maria, parecendo estar sem a menor paciência.
O homem, tirando o chapéu da cabeça e torcendo-o nas
mãos, levantou os olhos e, meio sem graça, respondeu
timidamente, parecendo saber qual seria a reação de Maria:
– Acaso a senhora não estaria esperando criança,
estaria?
– Esperando o quê, seu cara de fuinha? O que está
pensando de mim? Acha que sou sua parenta por acaso?
Imagine: esperando criança com cinquenta anos!
Na verdade, Maria estava com cinquenta e oito anos.
Mas eu é quem não a contrariaria, principalmente naquele
momento tão solene para ela. Maria já estava saindo pisando
duro quando Joseph a segurou pelo braço e disse-lhe, olhando
nos olhos:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 384 -
– Aonde pensa que vai a minha futura esposa? Não
quero que a senhora me interprete mal, mas a pergunta que
acabo de fazer foi apenas para me certificar de que a senhora
não havia feito nada de errado. Mas peço-lhe humildemente o
seu perdão, pois procedi como um tolo machista, sendo que a
conheço há tantos anos.
Dizendo isso, Joseph puxou Maria pela cintura, dando-
lhe um beijo apaixonado. Por minha vez, afastei-me um pouco,
deixando que aquele novo casal se entendesse sozinho. Estava
feliz, pois mais uma parte da minha missão estava cumprida.
Caminhei um pouco mais adiante e fui olhar o canteiro
de tulipas. Estava quase me perdendo em meus próprios
pensamentos quando Joseph chamou-me.
– Senhorita Anna, posso falar-lhe um instante?
– Sim, Joseph, mas onde está Maria?
– Foi para dentro da casa. Ela parece estar muito feliz,
a senhorita não acha?
– Joseph, parece que sim. E o senhor cuide bem dela,
está me ouvindo?
– Disso a senhorita não tenha dúvidas.
– Confio no senhor e sei que fará muito bem à Maria.
Mas, antes que o senhor se una a ela, quero lhe falar algo
muito sério.
– Então diga, senhorita Anna. Afinal, queremos a
senhorita como nossa madrinha.
– Fico muito feliz, mas antes tem que saber algo sobre
Maria e eu. Pois, como fui intrometida em uni-los, sinto-me na
obrigação de lhe contar sobre certos fatos.
– Senhorita, vou deixá-la falar para não lhe parecer mal
educado, mas já sei do que se trata.
– Bom, Joseph, não sei se o que está pensando é sobre a
mesma coisa que lhe contarei. Maria e eu pertencemos a uma
Adriana Matheus
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tradição milenar. Muitas pessoas têm certa dificuldade em
aceitar nosso tipo crença.
– A senhorita quer me dizer que ambas são bruxas?
– Sim... Mas de maneira alguma fazemos o mal aos
outros, como nos julgam erroneamente.
– Senhorita Anna, de maneira nenhuma tenho comigo o
defeito de pré-julgar os outros. Sempre respeitei todas as
crenças porque trabalho com a natureza. Muitas vezes, por
estar sempre em contato com ela, já vi e ouvi coisas que nunca
contei por medo de acharem que estou possuído por um
espírito maligno. Sei bem o que é guardar um segredo. Quem a
senhorita acha que construiu o esconderijo de sua mãe?
– Foi o senhor, Joseph? Por que nunca me contou
nada?
– Como disse a senhorita, sou muito bom em guardar
segredos. Sua mãe era uma pessoa admirável! Confidenciou
coisas que nunca contaria a ninguém. Ela estava sempre pronta
a servir a Deus e aos necessitados. Quando um empregado ou
até mesmo escravo necessitava de seu auxílio, ela enfrentava
até mesmo seu pai. Nunca ouvimos um grito ou xingamento da
parte dela como ouvimos de sua madrasta. Muito pelo
contrário: ela conseguia tudo com um sorriso e muita
gentileza. Por ter estado ao lado de uma pessoa tão fantástica,
como poderia não aprender a respeitar sua crença? Ao
contrário do resto das outras pessoas, jamais fiz objeções ou
repudiei o que não conhecia. A experiência que adquirimos
com o passar dos anos traz-nos sabedoria e discernimento de
como olhar para o que julgamos ser irreal e imaginário.
Mesmo que Maria fosse uma possuída - o que não é -, ainda
assim a amaria do mesmo jeito. Aprendi que tudo tem jeito na
face da Terra. E, para a morte, cabe a Deus saber o que fazer.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 386 -
Fiquei admirada ao ouvir tais palavras saindo da boca
de um homem tão simples como Joseph. Com isso, aprendi
mais uma lição: não julgar ninguém pela aparência ou
simplesmente porque a pessoa demonstra-se tímida mediante
tais situações. Digo isso porque julguei muito mal Joseph
quando ele aparentou-se em cima do muro, mediante a
resposta que exigi que desse à Maria. Depois de olhá-lo
admiradamente, respondi:
– Joseph, não sabe o quanto fico feliz por saber a sua
maneira de pensar. Mas algo terrível está para acontecer com
Maria. Por isso, tenho urgência que se case com ela e vá para o
norte, onde estão os parentes dela. A menos, é claro, que o
senhor tenha alguma objeção em ir morar na floresta.
– Imagina, senhorita Anna! Será um prazer poder
conviver com a natureza. Além do mais, estou mesmo
precisando descansar. Só não sei se serei bem recebido pela
família dela!
– Foi o que imaginei que o senhor pensaria. Não se
preocupe, pois são pessoas fantásticas. Com certeza, o senhor
será muito bem recebido por todos. Falo assim porque tive o
enorme prazer de conhecê-los pessoalmente, quando eu e
Maria passamos aquele fim de semana lá.
– E as senhoritas, por que estão correndo perigo?
– Porque o conde, com quem me obrigaram a firmar
compromisso, tem em seu poder o diário de minha mãe. Neste
diário, ela conta tudo sobre a tradição, sobre a parceria dela
com Maria nos rituais, e sobre a futura herdeira - no caso, eu.
Ela mencionou até mesmo os poderes que eu herdaria dela.
– Minha nossa, senhora senhorita Anna! Isso é grave.
Esse homem não pode, de forma alguma, casar-se com a
senhorita. Com certeza fará da sua vida e a de Maria um
Adriana Matheus
- 387 -
verdadeiro inferno. Pode contar comigo para o que der e vier a
partir de agora.
– Sei disso, Joseph. Por isso, hoje mesmo escreverei
uma carta para a irmã de Maria. Quero que os dois fujam daqui
ainda no próximo final de semana. Agradeço-o imensamente
pelo apoio que me está dando.
Joseph respondeu-me um pouco apreensivo em relação
à suposta fuga:
– Não podemos fugir, senhorita Anna. Somos adultos e
não fizemos nada demais. Não é correto fugir como dois
criminosos.
– Joseph, sabemos disso. Mas, quando o conde revelar
a meu pai quem foi a minha mãe e quem sou, por certo ele
culpará Maria e a entregarão à Inquisição. Agora não é hora de
ter orgulho. É hora de pensar somente em Maria e no povo
dela. Pois, no diário de minha mãe, também há um mapa
ensinando o caminho até a casa da família de Maria. O certo
seria que tentássemos encontrar o diário e tirá-lo do poder do
conde.
– Tem razão. Devo pensar em minha amada e no bem
estar de sua família. Mas como a senhorita pretende recuperar
o diário de sua mãe?
– Isso o senhor deixe comigo.
Viramo-nos automaticamente, pois Maria chegou e
interrogou-nos, toda desconfiada.
– O que estavam tramando em minhas costas?
Rimos, pois sentimos o tom de ciúmes em sua voz.
Contei-lhe, então, quase tudo que conversávamos. Ela nos
olhou matreiramente, suspeitando que não estivéssemos
falando totalmente a verdade. Porém, nada disse. Então,
Joseph, percebendo aquele ciúme todo, abraçou Maria. Ela lhe
disse:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 388 -
– Ora, deixa de assanhamento, homem! Ponha-se em
seu lugar.
Joseph riu às gargalhadas. Achou graça porque Maria
mal havia se acertado com ele e já estava enciumada daquele
jeito. Depois de nos despedirmos dele, voltamos as duas para
dentro de casa. Pedi à Maria que cuidasse do cozimento das
ervas, pois deveriam estar prontas para o ritual. Subi para o
meu quarto, pois precisava achar uma veste apropriada para
que eu e Maria usássemos no ritual. Infelizmente, não tinha
nada apropriado. Fiquei imaginando onde encontraria algo.
Caminhei em direção à janela para abri-la e, ao olhar
para baixo, vi que a carruagem do conde estava parando em
frente à entrada da casa. Fiquei imaginando o que aquele
homem poderia estar fazendo ali se os donos da casa não
estavam presentes.
Não demorou muito e Maria subiu correndo para me
avisar que o conde estava pedindo para falar comigo
imediatamente.
– O que esse maldito ainda quer comigo, depois de
tudo o que aprontou?
– Não sei, senhorita. Mas, com certeza, não a deixarei
sozinha com ele novamente.
Descemos juntas e de mãos dadas. Ao entrar na sala de
estar, o conde estava me esperando e veio todo faceiro ao meu
encontro, dizendo:
– Senhorita Anna, fico feliz em vê-la de pé! E como foi
que teve tão rápida melhora? O doutor falou-me ontem que a
senhorita estava muito debilitada e talvez não se recuperasse
tão rápido.
– Vai ver foi um engano médico, ou quem sabe um
milagre divino!?
Adriana Matheus
- 389 -
Ele se aproximou para beijar-me. Mas, graças a Deus,
deu um passo para trás, porque Maria entrou em sua frente. O
conde olhou para ela, furiosamente, e disse:
– Vejo que a senhora zela muito bem a minha noiva.
– Por certo que sim, pois a criei como uma filha.
– E a senhora e minha noiva vão sempre juntas a todos
os lugares?
– Sim. Essa também é uma das minhas funções nessa
casa. Mas, acredite: faço isso por mero prazer e amizade à
senhorita Anna.
– Acredito que sim. Mas andei investigando um pouco
sobre a sua história e soube que a senhora não é muito de
frequentar a igreja, assim como a mãe da senhorita Anna. Não
é mesmo, minha noiva querida? Dizem que ela era uma mulher
muito misteriosa e quase nunca era vista na cidade. O gosto de
sua mãe por coisas exóticas era muito suspeito, não? – disse,
dirigindo-me a palavra.
Por minha vez, não pude ficar calada e respondi:
– Aonde o senhor conde está querendo chegar? Nós
duas já estamos cientes de que o senhor sabe do nosso segredo.
O que o senhor quer realmente nesta casa a essa hora?
– É por isso que gosto da senhorita, porque é uma
mulher inteligente. Mas, já que tocou no assunto, quero que
peça à sua governanta que se retire da minha frente, pois tenho
o direito de ficar sozinho com a minha noiva.
No entanto, ressaltei:
– Direito a que? De ficar com uma mulher em cuja
bebida o senhor teve a coragem de mandar que misturassem
entorpecente para que assumisse um compromisso com o
senhor, sem ao menos saber o que estava fazendo?
– Como a senhorita é esperta! Já que agora conhece
como posso ser perigoso, poderia simplesmente fazer o que
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 390 -
estou lhe pedindo, ou vai querer que eu pegue esta maldita
mulher e a entregue à Inquisição agora mesmo? - disse isso,
passando por trás de Maria e colocando um punhal em sua
garganta.
Gelei ao vê-la no poder daquele assassino e disse-lhe,
suplicando pela vida de Maria:
– Por favor, senhor conde, não machuque Maria. Ela é
uma boa pessoa e não fez nada para o senhor. Diga-me o que
tenho que fazer para que o senhor nada faça a ela.
– Agora, sim, parece que vamos chegar a um acordo.
Peça à sua governanta que saia daqui e acompanhe-me até
onde estou hospedado.
– Está bem, senhor conde. Vou com o senhor. Mas, por
favor, liberte Maria agora.
Maria, ao se ver livre daquele homem, saiu correndo
para o jardim, enquanto eu e ele seguimos atrás. O conde
estava falsamente abraçando-me, mas o punhal estava em
minhas costas. Foi quando, de repente, avistei a carruagem de
meu pai, que estava chegando com a condessa e o padre
Ignácio. Nunca fiquei tão feliz por ver a condessa e meu pai e,
principalmente, o padre. Logo que o cocheiro abriu a porta da
carruagem, padre Ignácio desceu e, parecendo perceber que
havia alguma coisa errada, perguntou:
– Interrompemos alguma coisa, senhorita Anna? Não
sabem que não fica bem que uma jovem fique a sós com seu
noivo na ausência de seus familiares?
Aproveitei aquela situação e corri para abraçar o padre,
livrando-me, assim, daquele monstro. O padre, parecendo
perceber que algo estava realmente errado, falou ao meu
ouvido:
– Acalme-se, minha filha. Seja o que for que estava
acontecendo, a senhorita agora está a salvo.
Adriana Matheus
- 391 -
Por fim, o padre Ignácio falou, dirigindo-se ao conde:
– E então, meu filho, o que tem a me dizer sobre o que
citei?
– O senhor tem razão, padre. Não deveria ter vindo
aqui. Mas, realmente, não sabia que o senhor Juan e a condessa
não estavam em casa. Peço desculpas a todos pelo meu mau
comportamento, mas quero que saibam que foi sem querer. –
disse, olhando para o meu pai e a condessa, aparentemente
atônitos.
Seguiram todos para dentro e fui atrás deles,
acompanhada do padre Ignácio e de Maria. Padre Ignácio,
durante o trajeto, disse-me:
– Quero que a senhorita vá à igreja e conte-me
exatamente o que está se passando nesta casa.
– Não está acontecendo nada, padre. - olhei para Maria,
que ainda estava amedrontada devido ao fato ocorrido.
Padre Ignácio, então, complementou aquela pergunta:
– Então por que quando a abracei estava tão gelada?
– Deve ter sido impressão do senhor, padre. Não há
nada de errado comigo.
– Está bem. Se não quer ir à igreja para se confessar,
daremos um jeito para que me conte hoje mesmo. Quem sabe
descubro um jeito de ajudá-la?
Fomos todos para a sala de estar. Meu pai mandou
servir um chá com bolo para o padre. O assunto foi sobre os
pregões do meu casamento. Eu, sentada ao lado do padre
Ignácio, ali fiquei até que ele se retirasse. O conde, no entanto,
lançava-me olhares fulminantes. Até que, por fim, resolveu
acompanhar padre Ignácio e foi embora. Porém, padre Ignácio
não deu muita importância para o conde e deixou que ele fosse
embora na sua frente. Meu pai ofereceu ao padre a carruagem
para levá-lo até a cidade. Acompanhei-o até ela. Foi aí que abri
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 392 -
meu coração ao padre Ignácio, dizendo tudo que estava
acontecendo. Ele, depois de me ouvir atentamente, disse-me:
– Minha filha, vou entender a sua história como uma
confissão. Pois, caso contrário, estaria pondo a sua vida em
perigo. Tenha cuidado com esse homem, pois me pareceu
muito perigoso. Quanto ao diário de sua mãe, deixe comigo:
darei um jeito para tirá-lo do poder do conde.
Beijei as mãos de padre Ignácio em forma de
agradecimento.
– Não tenho como agradecê-lo, padre! Mas como o
senhor irá recuperar o diário de minha mãe?
– Não se preocupe com isso, minha filha. Também
tenho os meus segredos e métodos para conseguir o que
preciso. Só lhe digo uma coisa: o diário de sua mãe não voltará
para suas mãos. Ele será destruído para a segurança de todos
nós.
Dizendo isso e subindo na carruagem, o padre deu-me
sua bênção e partiu.
Já dentro de casa, tentei respirar mais tranquila. Por
fim, procurei por meu pai, que estava na sala de estar com a
condessa.
– Pai, posso ter uma conversa em particular com o
senhor?
– Pode dizer-me o que quiser na frente de minha
esposa, pois nada tenho a esconder dela.
– Quero pedir permissão ao senhor para matar um
leitão e fazer uma rodada de banjo esta noite.
– E para que devo dar permissão para este evento? O
que está querendo comemorar?
– Nada demais, pai. Mas, como fiquei noiva e os
criados não puderam participar, quero dar a eles a alegria de
também terem uma festa.
Adriana Matheus
- 393 -
A condessa, ruim a valer, disse:
– Era só o que nos faltava, Juan! Sua filha agora, além
de andar com indigentes, quer dar uma festa para os criados.
Ignorei o que ela dizia e prossegui:
– Pai, é aniversário de Maria. Queria dar-lhe esse
presente. Não negue isso a ela, que sempre lhe foi fiel.
– Está bem, mas que limpem tudo quando terminarem.
E diga-lhes que fui eu que dei autorização, mas que não se
habituem com isso.
A condessa fuzilou-o com os olhos e saiu em direção
ao quarto. Imediatamente, corri até Maria para contar-lhe a
novidade. O resto, dali para frente, seria com ela. Depois de
ter contado a ela sobre o que padre Ignácio prometeu-me que
faria, dei-lhe um beijo na testa e fui para o meu quarto.
Tranquei a porta pelo lado de dentro. Fiquei horas em pé, ali,
encostada nela. Senti o suor escorrendo frio na minha testa.
Era como se eu estivesse vivendo tudo novamente. Não sabia o
que fazer para me livrar daquele homem perverso e matreiro. E
o que era pior: com poderes para condenar um ser humano
pelo mais horrível crime que ele não houvesse cometido. Pela
primeira vez em minha vida, senti o cheiro da morte. Era como
se todas as minhas ancestrais estivessem ali, tentando dizer-me
como era o medo e a dor que sentiram através daquele cheiro
de cipreste que estava no ar. Eu tremia tanto que dava para
ouvir meus dentes batendo. Fiquei em estado catatônico,
encostada na porta do meu quarto.
Fui interrompida em meus pensamentos por Maria, que
batia levemente à porta. Virei-me para abri-la. Por fim, depois
de fitar-me, ela disse:
– Em primeiro lugar, quero agradecê-la por tudo que
fez por mim e por Joseph. E em segundo lugar, quero dizer-lhe
que entenderemos se a senhorita não descer para a festa, pois
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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dado tudo que fez por nós e a situação que viveu hoje, não é
justo que se exponha ainda mais.
Não pude responder-lhe porque a condessa entrou em
seguida e logo foi dizendo:
– Sabia que encontraria as duas feiticeiras juntas,
tramando algo contra a moral e os bons costumes.
Gelei ao ouvi-la falar daquele jeito. Não podia ser que
ela também soubesse do meu segredo e de Maria. Por fim,
respondi, fingindo apatia:
– Não estamos tramando absolutamente nada.
Estávamos só conversando coisas que não lhe dizem respeito.
E de onde foi que a senhora tirou essa história louca de que
somos feiticeiras?
– Ah, claro! Estavam combinando com qual traje
elegante irão à festa dos plebeus, que resolveu dar para essa
gente imunda.
Naquele momento, Maria tomou a palavra e, pela
primeira vez em sua vida, enfrentou a condessa, exigindo
respeito:
– Senhora condessa, sempre lhe tratei com o devido
respeito, embora não merecido. Mas não vou mais permitir que
trate meus amigos desta forma, sejam eles quais forem.
– Insolente! Ponha-se no seu lugar e só se dirija a mim
quando eu lhe der permissão. Pois saiba que, para mim, sua
festinha medíocre só será realizada porque meu marido não
tem noção do ridículo. Caso contrário, ela nunca se sucederia.
Ande, vá, passe da minha frente! Volte para o seu lugar, junto
aos seus e aos seus afazeres de criada.
Dizendo isso, a condessa foi saindo porta afora.
Percebi, então, que Maria não estava no seu melhor dia e que,
a qualquer momento, poderia pôr tudo a perder por causa de
alguém que não valia a pena. Segurei sua mão no exato
Adriana Matheus
- 395 -
momento em que ela agarraria os cabelos da condessa. A
condessa virou-se para trás e, parecendo não perceber nada,
disse:
– Ainda esta aí, criatura inútil? Quer que me queixe
com Juan? Posso dizer que nada faz além de fuxicar o dia
todo, e que já está velha e caquética para dar conta do serviço.
Por exemplo: uma boa governanta não deixaria seus
subalternos tão relapsos. Veja todo esse pó! Esse quarto está
parecendo uma pocilga. Não que ele não seja o tipo de
ambiente adequado para a minha enteada. - olhou para mim
com ar zombeteiro, tentando tirar-me do sério - o que quase
conseguiu.
– Se inventar qualquer coisa que seja contra Maria,
terei que expor suas andanças obscuras na ausência de meu
pai. Garanto-lhe que provas e testemunhas não me faltarão.
– Está me ameaçado, criatura dos infernos?
– Pode ser que sim, pode ser que não... Só irá depender
da forma com que a senhora procederá.
– Ainda vou conseguir provas para entregá-la à
Inquisição e terei o maior prazer em vê-la morrer queimada.
– Não duvido! Pessoas como a senhora fazem qualquer
coisa para calar a boca da verdade. Mas está se esquecendo de
uma coisa: adultério também é considerado um crime
hediondo pela Inquisição. O inquisidor pode vê-la como uma
possuída pelo demônio - o que não é nenhuma novidade. Por
que a senhora não para de insinuar coisas sobre mim e Maria e
vai logo ao que interessa?
– Ainda não tenho provas, como disse, mas tenho
desconfiança de que está envolvida com bruxaria e artes do
demônio.
– E o que a faz pensar desta forma?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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A condessa enfiou a mão no seu decote e tirou um
medalhão. Ao ver aquilo, empalideci. No dia em que fui ao
quarto de minha mãe, trouxe junto com o diário alguns
pertences dela. Junto deles estava aquele medalhão que, de
alguma maneira, havia parado nas mãos da condessa. Olhei
para Maria, que estava totalmente pálida também. Então,
fingindo uma falsa frieza, respondi:
– Onde foi que a senhora achou esse medalhão e a
quem ele pertence?
– Interessante, não é? Achei aqui em seu quarto. Então,
isso quer dizer que só pode pertencer a uma das duas. – disse,
suspendendo o medalhão na mão.
– Então isso quer dizer que a senhora invade o meu
quarto na hora em que bem entende? Saiba que este medalhão
não me pertence e que pode muito bem ter sido a senhora que
o colocou aqui para me acusar levianamente.
– Levianamente ou não, vou conseguir provar que a
senhorita está envolvida com a arte do demônio. Este
medalhão é uma prova disso.
A condessa, então, virou-se novamente em tom de
arrogância para Maria, dizendo:
– Ande, criada! Não fique aí, em pé, como um dois de
paus. Siga-me. Tem muito serviço a fazer. Caso contrário, não
poderá participar da sua festa de plebeus.
Em seguida, para me perturbar mais um pouco, ela
falou:
– Até breve, minha enteada querida. Em breve irei vê-
la queimando no inferno, onde é o seu lugar.
– Não se preocupe. Estarei lá esperando pela senhora,
que também é vista pela Inquisição como uma discípula do
demônio.
– Então agora também está me acusando levianamente?
Adriana Matheus
- 397 -
– Não. Só estou mostrando que, em questão de pré-
julgamento, o inquisidor, a Igreja e o povo veem-nos de
maneira semelhante. Estamos caminhando para a mesma
fogueira. Se tivermos sorte, queimaremos juntas.
Ela bufou como um touro selvagem. Eu detestava ter
que agir do mesmo modo que ela, mas era a vida da minha
amiga que estava por um fio. Maria seguiu-a para não mais
causar confusão. Pude ouvir os gritos histéricos da condessa
com Maria no corredor.
Minha vida estava parecendo um pesadelo. Botei as
mãos no rosto, sem saber que rumo tomar. Precisava ter forças
para mim, para Maria e para todos que me cercavam. Não
aguentava mais ficar trancada naquele quarto, sem nada para
fazer. Pelo jeito, não poderia participar da festa de noivado de
Maria e Joseph, para não levantar suspeitas de que ambos
ficariam comprometidos. Pois, para o meu pai, a festa era para
comemorar o aniversário dela. Fiquei andando pelo quarto, de
um lado para o outro, como uma barata tonta, sem ter o que
fazer. Até que Maria voltou, trazendo Joana e também um
balde de água para eu tomar banho. Maria parecia ter
adivinhado que eu precisava relaxar e, logo após Joana sair,
colocou na água da tina um líquido que, segundo ela, far-me-ia
relaxar completamente. Enquanto me despia para submergir
dentro daquele líquido, ela falou:
– Se não fosse pela senhorita, hoje, por certo, eu teria
perdido as estribeiras. Já não aguentava mais vê-la ofendendo
a senhorita e eu daquela forma.
– Percebi, Maria. Só que teremos que ter muita cautela
de agora em diante, ou poremos tudo a perder. Preocupo-me
contigo, pois tem muito mais a perder do que eu.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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– Não diga uma tolice dessas. Ambas temos muito a
perder. Só não sei se não farei um feitiço para me vingar da
condessa, pois ela conseguiu hoje me tirar do sério.
– Não diga isso, Maria. Sabe que não deve criar
energias negativas em volta da senhora. Limpe seu coração.
Não desperdice o poder da magia com uma pessoa tão
medíocre como a condessa, pois não vale a pena. Lembre-se de
que temos o livre arbítrio, e essa escolha é somente sua.
– Sei disso. Mas, se temos o livre arbítrio, por que ela
não escolheu o lado bom e menos cruel?
– Tudo bem, então. Concedo-lhe a permissão para usar
apenas um pequeno feitiço para dar à condessa uma lição. Mas
tem que me prometer que me dirá o que é.
– Ainda pensarei o que será, mas lhe direi, com certeza.
Agora preciso descer, ou terei que fazer um chá para a senhora.
Seria tão bom se pudesse fazer um dos meus preparos
especiais... Daqueles que fazem pessoas como ela dormir para
sempre!
– Maria! Nem brinque com isso. Poderíamos ser
jogadas em óleo fervente só de ouvir-nos dizer tal barbárie.
Ela saiu, rindo como uma bruxa que era. Fiquei
pensando, quando ela fechou a porta, no quanto uma pessoa
sozinha pode contaminar tudo de bom ao seu redor. A
condessa despertou em Maria o seu lado negro e perverso e,
mesmo que ela nunca colocasse em prática, já havia sido
contaminada. Se isso acontecesse com outra pessoa de caráter
fraco, com certeza ela teria criado uma raiz maligna em seu
coração.
Adormeci profundamente dentro daquela água
quentinha e relaxante. Despertei, assustada, com uma voz
rouca falando muito próxima ao meu ouvido:
Adriana Matheus
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– Que pele macia, senhorita Anna! Aposto que estava
sonhando comigo.
Dei um salto dentro d’água, tentando esconder-me
daquele invasor.
– O que está fazendo aqui, senhor conde? Como se
atreve a invadir a privacidade de meus aposentos?
– Não consegui resistir quando ouvi a senhora Maria
comentando com o jardineiro que a senhorita estava no banho.
Aproveitei-me da oportunidade de todos estarem entretidos
com os preparativos da festa e subi para vê-la em seu estado
natural. Confesso que não poderia ter uma visão melhor,
depois de uma noite tão estafante como a de ontem e um dia
tão decepcionante como o de hoje.
– Saia daqui agora ou chamarei meu pai para retirá-lo
pessoalmente!
– Senhorita Anna, seu pai tem dívidas muito altas
comigo. Se vier atender seus apelos de donzela em perigo, por
certo fará olhos e ouvidos de mercador. E ainda tem um outro
fator: por que não trancou a porta de seus aposentos? Por certo
estava esperando que eu subisse. Ninguém acreditará na
senhorita. Então, só lhe resta ser boazinha.
Ele colocou a mão dentro da banheira, tocando meu
corpo nu. Senti-me congelar dentro da água quente. Meu
fôlego estava se esvaindo.
– O senhor é um crápula e enoja-me.
Ele segurou meu rosto com toda a força, deixando-me
completamente sem nenhuma reação. Naquele momento, a
condessa entrou no meu quarto e flagrou-me no exato
momento em que o conde tocava-me intimamente.
Definitivamente, aquele não foi um bom dia para mim. A
condessa, usando de suas ironias vulgares, disse:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 400 -
– Ora, ora! Mais que cena mais fascinante e romântica.
O jovem conde e a bruxa, juntos em um lânguido caso
amoroso. Imagina só se não é a mesma bruxa que anda me
desafiando e me acusando de leviandades! O que pensaria seu
pobre pai se entrasse neste exato momento? Por certo, não
ouviria nenhum argumento notório.
– Não é o que está pensando. – eu disse, tentando
afastar aquele homem, que não saía de perto de mim.
– E como sabe em que estou pensando? Ah! Havia
esquecido: também lê pensamentos, não é, bruxa maldita?
Levantei-me da banheira, sem me preocupar com
minhas condições de nudismo. O conde olhou-me como um
cão cheirando o cio. A condessa, com desprezo. Peguei a
toalha e disse-lhes:
– Saiam os dois do meu quarto, agora! Antes que eu
comece a gritar por socorro! E garanto que será muito
agradável ver os capatazes de meu pai tirando-os daqui para
fora aos safanões.
– Se sua madrasta não nos tivesse interrompido,
teríamos nos divertido muito. – disse o conde, dando uma
gargalhada que mais parecia ser um eco vindo do inferno,
enquanto se retirava dos meus aposentos.
A condessa seguiu-o e parecia haver cumplicidade
entre aqueles dois a respeito daquela situação. Fechei a porta -
com chave desta vez - e pude ouvi-los do lado de fora.
– Espero que tenha conseguido pelo menos fazer seu
trabalho decentemente.
– Se a senhora não tivesse chegado tão em cima da
hora e pudesse ter guardado sua curiosidade, por certo eu teria
ido até o fim.
– Ela não cederia assim tão fácil.
Adriana Matheus
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– Não mesmo? Não conhece os meus métodos de
persuadir uma dama?
– Hum! Por certo não foram tão eficazes.
Depois de um tempo, não consegui ouvi-los mais, pois
se distanciaram a caminho das escadas. Mas de uma coisa
estava certa: os dois estavam juntos naquela trama. Ambos
davam-me náuseas. Arrumei-me rapidamente, sem dar
importância ao luxo. Coloquei apenas um vestido de renda
branca e um xale bege para proteger-me do frio da noite. Desci
as escadas, com medo de ser recepcionada pelos dois crápulas
no meio do caminho. Corri para os aposentos de Maria, que
estava se aprontando para a festa.
– Senhorita Anna! Não deveria estar aqui. É muito
arriscado, depois de tudo que passou hoje.
– Arriscado é ficar sozinha no meu quarto. Não faz
ideia do que tive que passar até decidir estar aqui agora.
Contei à Maria tudo que havia ocorrido.
– Então, senhorita Anna, não saia de perto de mim. Se
possível, durma aqui hoje. Definitivamente, temos que dar
uma lição em sua madrasta. Ela não pode continuar do jeito
que está, pensando que pode fazer o que quiser com todas as
pessoas.
– Olhe, Maria, até agora tenho escondido da senhora o
meu plano. Mas, pelo que vejo, terá que estar ciente dele para
também poder se defender. Preste bem atenção, pois não quero
que tenha nenhuma dúvida. E quero que saiba que essa é a
minha decisão final. Joseph está apoiando. Portanto, só falta
que a senhora se entere do meu plano agora.
Expliquei todo o plano à Maria, que me ouviu atenta. O
plano era o seguinte: Joseph esperaria por Maria na saída do
bosque dos mortos, enquanto eu e Maria faríamos o ritual da
chuva, normalmente. Assim que o ritual terminasse, ela sairia e
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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se encontraria com Joseph no local combinado. Eu, porém,
ficaria no lugar onde realizaríamos o ritual da chuva. Depois
de limpar tudo, rasgaria minhas vestes, jogaria sangue de
galinha em cima de mim, e fingiria um desmaio. Assim,
quando o conde, a condessa e meu pai chegassem com a
milícia, pensariam que fui vítima de um ritual de magia negra.
Fingiria estar tendo convulsões até que eles me levassem em
segurança para casa. Quando lá já estivesse, daria um jeito de
tomar um remédio que eu mesma haveria de preparar para que
dormisse até o dia seguinte - o que daria tempo de Joseph e
Maria escapar. Quando eu acordasse, começariam as
interrogações e eu diria que não conseguia me lembrar de
absolutamente nada. Diriam que eu estava sob influência
demoníaca e chamariam por padre Ignácio. Então, eu contaria
todos os fatos a ele e pediria que ele dissesse que a única
solução seria que me internassem em um convento, em São
Francisco, onde eu poderia cumprir o restante do meu destino.
Logicamente, não diria que Maria era a culpada. Eu
diria a todos que ela fugiu com Joseph porque ambos estavam
com medo e não queriam compactuar comigo naquele tipo de
insanidade.
Maria, depois de ouvir-me atentamente, falou:
– Esse seu plano é muito arriscado, senhorita Anna. E
pode não funcionar da maneira como a senhorita imagina. E
quanto ao diário de sua mãe? E se padre Ignácio não conseguir
recuperá-lo?
– Já pensei nisso também, querida Maria! Esse será o
plano dois. Caso isso ocorra, direi a todos que fiz tudo porque
estava influenciada pelas palavras do livro. Minha mãe há de
me perdoar por essa mentira, mas tenho que encontrar o meu
grande amor e não posso, de forma alguma, deixar que me
obriguem a casar-me com aquele assassino.
Adriana Matheus
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– Vejo que a senhorita pensou em tudo mesmo!
Mesmo assim, ainda é arriscado deixá-la com esse homem e
sua madrasta. Não sei como Joseph pôde aceitar fazer o que a
senhorita lhe pediu. Ambos perderam a noção do real perigo,
é? Vou procurar Joseph imediatamente e cancelar isso tudo.
– De jeito nenhum! Fará tudo como o combinado e
fugirá no dia do ritual da chuva - amanhã. Confie em mim,
Maria, tudo dará certo.
– Senhorita Anna, e se não acontecer assim como
esperamos? Confio na senhorita, mas não confio no diabo e
nas pessoas que são usadas por ele.
– Tenha calma, minha amiga. Acontecerá exatamente
do jeito que estou planejando, acredite! Preparei um sortilégio
do tempo que fará tudo acontecer como quero. Agora, deixe-
me vê-la. Hum... Está linda! Joseph é mesmo um homem de
muita sorte.
Dei-lhe um beijo e abracei-a muito forte, pois estava
chegando a hora de nos despedirmos de nossa amizade. Maria
percebeu isso em meu abraço e chorou. Porém, sequei suas
lágrimas com a ponta dos meus dedos e disse-lhe:
– Seja forte, mulher! Escolhi esse destino. Sei que o
que estou fazendo é errado, pois estou antecipando-o e
interferindo no tempo e no espaço. Mas isso é o melhor a
fazer. Caso contrário, a senhora será crucificada pela
Inquisição.
Depois de dito isso, acompanhei-a até o jardim, onde
Joseph a esperava. Todos celebraram contentes, sem saberem
de nada. Às vezes, percebia no olhar de Maria certa tristeza.
Mas o restante da noite foi muito tranquila. A música durou até
alta madrugada. Samara, que estava presente com a mãe, fez-
me companhia o restante da noite, porque Maria tinha que dar
atenção aos seus convidados.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 404 -
Maria seria muito feliz ao lado de Joseph. Ela iria se
casar com um homem pobre, mas que pôde escolher. Não seria
uma união baseada em imposições ou chantagem. Estava
muito feliz por minha amiga. Ela, definitivamente, merecia ter
um pouco de felicidade.
Não conseguiria me ver jamais ao lado de um homem
por conveniências. O simples fato de pensar que poderia ser
tocada todas as noites por alguém pelo qual não sentia
absolutamente nada me embrulhava o estômago.
Às três da madrugada, a festa cessou e todos se
retiraram para suas casas. Alguns criados ainda ficaram
ajeitando tudo, para deixarem tudo em ordem para o dia
seguinte. Eu e Maria fomos para os aposentos dela. Naquele
dia, dormi no quarto de Maria para evitar novos contratempos.
Confesso que foi a melhor noite que já tive em toda a minha
vida. Quando amanheceu, Maria levantou-se e não quis me
acordar. Foi cumprir seus afazeres. Seria uma semana longa
para ela.
Às nove horas, levantei-me, vesti-me e fui à cozinha
para comer alguma coisa. Percebi que todos estavam muito
felizes e Tereza cantarolava. A festa havia surtido um efeito
positivo no coração dos criados. A copeira, ao ver-me, saiu de
mansinho. Percebendo que ela iria fazer alguma coisa, segui-a.
Não estava enganada: encontrei-a junto à condessa, levando
informações sobre mim. Cheguei de mansinho por trás das
duas e falei:
– O que a senhora está ganhando em dar informações
sobre mim à senhora condessa e ao conde? Sei muito bem o
que a senhora fez. Sei que colocou entorpecentes na minha
bebida.
As duas não souberam o que me responder. Prossegui:
Adriana Matheus
- 405 -
– É assim, condessa, que a senhora consegue
informações a meu respeito? A senhora usa de métodos baixos,
subornando essa pobre infeliz. Mas diga a ela que, quando ela
não tiver mais nenhuma utilidade para a senhora e o conde,
vão descartá-la da mesma forma como está tentando fazer
comigo. Sinto muita vergonha das senhoras, pois ambas são
mulheres e estão sujeitas a passarem pelos horrores da
Inquisição. Mas, mesmo assim, julgam-se no direto de
inventarem falsas acusações para me condenarem a um destino
tão cruel.
A copeira, ao ouvir minhas palavras, caiu em choro
profundo e disse-me:
– Desculpe-me, senhorita Anna. Mas a condessa disse
que me despediria caso não fizesse tudo o que ela me pedisse.
Tenho uma filha que não se levanta da cama e depende muito
de mim. A condessa disse que pode dizer aos inquisidores que
minha filha está daquele jeito porque está possuída por
espíritos imundos. Desculpe, senhorita, mas minha filha é
muito importante para mim. Nada tenho além dela. Sou viúva
e não tenho outro meio de sustentá-la além desse trabalho.
– Nada neste mundo justifica o que a senhora está
fazendo comigo, pois nada lhe fiz. Por que a senhora não me
contou isso antes? Talvez eu pudesse ajudá-la. Sinto muito,
senhora Cornélia, mas não consigo achar uma justificativa para
que me tenha traído. Logo a mim, que sempre fui tão gentil
com senhora.
Saí, deixando as duas para trás. Ainda pude ouvir
quando a condessa gritou com a mulher como uma louca.
Encontrei Maria no caminho e chamei-a para ir à igreja
comigo. Ela concordou de imediato. Pedi a Lorenzo que
atrelasse os cavalos à carruagem. Em seguida, fui pedir
permissão ao meu pai, que autorizou sem fazer muitas
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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interrogações. Logicamente, disse-lhe que seria para tratar de
assuntos do meu casamento com o conde.
Depois de tudo estar pronto e Maria já ter dado as
ordenanças à criadagem, seguimos para o portão, onde
Lorenzo nos esperava. Foi aí que tive outra ideia súbita. Voltei
e perguntei a Joseph se ele poderia nos acompanhar até a
igreja, pois precisava marcar a data do casamento dele com
Maria. Ele disse:
– Bom, acho que os patrões não vão precisar de mim
agora. - aceitou.
Chegamos à igreja em pouco tempo, pois Lorenzo
resolveu correr com os cavalos. Deixei o casal rezando
enquanto procurava por padre Ignácio. Ao avistá-lo, ele veio
em minha direção e perguntou-me:
– Aconteceu algo, minha filha?
– Não, padre. Nada que o senhor já não saiba. Viemos
aqui pedir um favor ao senhor, mas terá que atender a esse
pedido meu o mais rápido possível!
Contei ao padre que Maria e Joseph haviam ficado
noivos em sigilo. E pedi-lhe se poderia, naquele momento,
realizar o casamento religioso dos dois para que não vivessem
em pecado. O padre olhou-os sentados no banco da igreja e
chamou-os:
– Então, meus filhos, estou ciente de que querem se
unir. Isso é verdade?
– Sim, senhor padre. - disse Joseph.
– E o que acham se eu lhes casasse agora?
Joseph olhou para Maria e ambos concordaram entre si.
Ele respondeu:
– O senhor nos faria essa caridade?
– Tratando-se de duas pessoas maduras, cientes dos
sentimentos que se sentem um pelo outro, por que não?
Adriana Matheus
- 407 -
Padre Ignácio vestiu-se a caráter para aquela cerimônia.
Prosseguiu com aquele ritual, que não demorou muito. Ele os
abençoou e, em seguida, disse:
– Estão casados agora diante de Deus e da Igreja. Nada
poderá separá-los.
O mais novo casal foi dar uma volta pela cidade,
enquanto fiquei na igreja, conversando com padre Ignácio. Ele,
porém, disse:
– Que bom, senhorita, que ficou aqui na igreja comigo.
Precisava mesmo ter uma longa conversa com a senhorita.
Andei sabendo que a Inquisição está investigando até mesmo a
casa da parteira Magdalena e da viúva Dolores, do senhor
Gustave e dos irmãos Johnson também.
– E o que fizeram de tão grave para merecerem ser
investigados pela Inquisição?
– A parteira Magdalena, dizem, usa rezas estranhas na
hora de fazer seus partos. Os boatos em torno desta mulher é
que as crianças que ela trouxe ao mundo têm tido
comportamentos estranhos. A viúva Dolores está vendendo
xaropes, cataplasmas e poções para unir casais. Dizem que ela
e suas filhas estão sendo usadas pelo próprio demônio para se
sustentarem. O senhor Gustave, dizem, está usando rezas
diabólicas para curar as supostas enfermidades alheias. Por
fim, os irmãos Johnson, dizem, não saem dos tabernáculos. À
noite, estão sempre sendo vistos rodeados por mulheres de
conduta duvidosa, sempre embriagados, rodopiando pelas ruas.
Usam nomes feios quando passam pelas senhoritas de boa
família. Não estão respeitando nem mesmo as senhoras
casadas. A comunidade está preocupada com que possam estar
influenciados por algum tipo de demônio sedutor e promíscuo,
que está usando a boa aparência dos rapazes para seduzir as
donzelas e as senhoras do vilarejo.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 408 -
– E o senhor, padre Ignácio, o que realmente acha disso
tudo?
– Prefiro ser agnóstico neste caso e deixar que a justiça
civil faça sua sentença.
– Hã? O senhor quer dizer que prefere ficar em cima do
muro como um covarde?
– O que posso eu, um simples padre de uma pequena
paróquia, fazer? Já não são muitos os paroquianos que me
aceitam. Por eu ter vindo de outra província e ter ideias
divergentes, sou considerado por eles um padre anarquista. Por
não ser um homem de idade avançada e não ter nascido na
Espanha, sabe muito bem que passo por muitas dificuldades.
Se eu interferir nestas questões da Inquisição, então, serei por
certo excomungado. Senhorita Anna, sei como se sente em
relação a toda essa desigualdade. Mas o mundo,
principalmente o mundo masculino, envolve muitos preceitos e
regras. Sabe que as mulheres são muito visadas e não devem
sair por aí, expondo-se de qualquer maneira. A Igreja tenta ser
branda nestes casos. Mas há muita pressão política e
socioeconômica que envolve todas essas questões. O
financeiro do mundo fala mais alto. A Igreja vive de verbas e,
embora tenha uma boa influência sobre a monarquia, ainda
assim recebemos ordens superiores. Infelizmente, senhorita
Anna, não posso opinar nestes casos.
– Mas, no fundo, o senhor sabe que essas pessoas são
inocentes?
– Até que provem o contrário, sim.
Senti-me tão impotente como o padre Ignácio. Se não
poderíamos ter uma parteira, por que então os doutores não
atendiam gratuitamente as mulheres pobres da vila? Se Deus
escrevia certo por linhas tortas, por que não deixavam a viúva
Dolores e o senhor Gustave curarem da maneira que Deus lhes
Adriana Matheus
- 409 -
tinha permitido? E quanto aos irmãos Johnson, eram jovens
demais e tinham vindo recentemente do mar. Queriam gastar
seu dinheiro promiscuamente, se assim fosse. Mas a vida
alheia sempre incomodava. Pois, desta forma, era mais fácil
esquecer os próprios problemas, e - é claro - desviar a atenção
alheia para outro lado.
Mediante aquela conduta acovardada de padre Ignácio,
percebi que não poderia contar mais com a ajuda dele.
Colocaria em prática, então, o plano dois. O padre, percebendo
que eu estava absorta em meus pensamentos, chamou-me:
– Senhorita Anna!
– Sim, padre Ignácio. Perdoe-me, distraí-me em meus
próprios pensamentos. O que estava mesmo falando comigo?
– Estou preocupado no momento é com a senhorita. Se
a Inquisição virar-se para sua pessoa, não sei o que acontecerá.
– Serei levada para um convento!
– Se isso acontecer, depois de uma acusação de
bruxaria, sofrerá horrores, pois as freiras de qualquer convento
em que lhe puserem obrigá-la-ão a fazer de tudo. Suas
penitências serão as piores, pois sempre lhe acusarão de
bruxaria - não importa o que diga ou faça. Quero que me diga:
é uma bruxa ou não?
– Se eu disser que sim, entregar-me-á ao inquisidor?
– Não estou aqui para julgá-la, mas ficarei atento para
ajudá-la no que me for possível.
– Sim, sou uma bruxa. Mas, independente do que o
senhor possa pensar, não fazemos mal a ninguém. Não
cultuamos o demônio, não comemos criancinhas, não
seduzimos homens casados, não tiramos ninguém de suas
famílias. Consideramos o matrimônio um laço sagrado. Nosso
compromisso é com Deus e com as forças da natureza. Não
somos santas - ninguém é. Temos um dever com a
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 410 -
humanidade: o dever do bem comum, da caridade sem olhar a
quem. Somos diferentes, porque vocês assim o querem. Porque
todo mundo nesta vida tem um quê de bruxa.
Padre Ignácio deu um passo para trás e tampou a boca,
em sinal de espanto.
– Santo Deus misericordioso!
Puxou-me pelo braço, afastando-me ainda mais das
pessoas ali presentes.
– Senhorita Anna, não diga isso a mais ninguém. Caso
contrário, os resultados serão catastróficos.
– Padre, isso não é uma coisa da qual me envergonhe
ou pela qual tenha que me sentir mal. Lógico que não vou sair
por aí, dizendo aos quatros cantos da terra que sou uma bruxa.
O padre tampou minha boca com sua mão em sinal
desaprovação ou medo.
– Calma, padre. Sei o que o senhor está pensando: que
pode perder a batina ou ser excomungando por ser visto em
companhia de uma bruxa. Mas não se preocupe porque, se
depender de mim, ninguém saberá da minha condição.
– Não, senhorita Anna. Temo por você mesma.
– Nunca negarei quem sou. Nunca mudarei minha
maneira de ver as coisas. Nunca me transformarão em uma
pessoa comum e sem vida. Não serei como o gado, padre,
nunca. Antes de respeitar as pessoas, respeito-me. Antes de
respeitar as crenças dos outros, respeito meus princípios.
Amai-vos uns aos outros como se amam a si mesmos. Jesus
não disse isso?
– Sim, filha. Mas pode parecer blasfêmia aos olhos das
outras pessoas - principalmente aos olhos de um inquisidor. É
muito jovem para pensar desta maneira e não será
compreendida. Tudo bem que não quer mudar sua maneira de
pensar, mas pode fingir para não se prejudicar.
Adriana Matheus
- 411 -
– E em que isso me fará ser diferente de todos? Não, o
senhor não conseguiria me entender. Prefiro morrer queimada
a me anular como pessoa e como ser humano.
Ele só fez abaixar a cabeça. Por fim, falou em um tom
que mais parecia um sussurro:
– Então, sinto não poder fazer mais nada pela senhorita.
Só queria poder ter sua coragem.
– Hum, talvez não possa intervir por mim. Mas, se não
tiver medo de pegar uma doença ou de ser possuído por um
espírito maligno, e se quiser dar-me um abraço, não farei
objeção.
Ele sorriu e disse:
– Claro, minha amiga. Saiba que nem acredito nessas
superstições.
Demo-nos um gostoso abraço fraternal. Isso não era
para todos. Reparando em sua tristeza, resolvi fazer um
comentário:
– E se eu tiver muita sorte, poderei contar com sua
visita quando estiver no convento. Afinal, sabe que só um
padre tem permissão de visitar uma pessoa como eu.
Ele me afastou de seus braços. Olhando-me fixamente
nos olhos, indagou:
– Por que insiste em dizer que irá para um convento?
Então, depois de um grande suspiro, contei-lhe tudo o
que eu havia passado naqueles últimos dias.
– É bonita a sua história, senhorita Anna. Mas por que
acha que o senhor Juan lhe enviará para o mosteiro de San
Francisco?
– Em primeiro lugar, para não deixar que a notícia
escape e corra o risco de sujar o nome de sua amada esposa.
Em segundo lugar, porque usará toda a sua influência para que
eu não seja queimada viva. Não porque me ama, mas por
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 412 -
castigo de eu não querer me casar com o conde, e também por
crer que vou detestar ir para lá. E, em terceiro lugar, por
preguiça de procurar algo mais distante mesmo. Sem saber, ele
me estará empurrando para o meu destino.
– E como pode saber que esse suposto monge não é
alguém influenciado pelo próprio demônio para fazer com que
peque, desmoralizando o nome da Santa Madre Igreja?
– Padre... Muito me admira o senhor falando desta
forma!
– Tem razão. Não estou aqui para julgar ninguém. Só
espero que tenha razão nisso tudo, pois não gostaria de visitá-
la na Crucilândia.
Rimos e voltamos para o meio dos convidados, antes
que outros comentários maldosos surgissem sobre mim e do
pobre padre. Na verdade, eu estava muito satisfeita por ter
contado a alguém além de Maria. Foi como um desabafo.
Encontrei Maria conversando com seu esposo. Ela era
pura felicidade. Essa missão eu já havia cumprido. Fiquei
admirando aquele casal, até que eles se afastassem mais e eu
os perdesse de vista. Mas... alegria de bruxa dura pouco.
– Achou que escaparia de mim, querida, escondendo-se
atrás da batina de um padreco?
Não precisei virar-me para saber que era o conde.
Virei-me lentamente e respondi-lhe à altura:
– Não está sendo um tanto pretensioso em achar que
estou fugindo da sua pessoa? - olhei-o de cima abaixo.
– Não pensou desta forma quando tentou me seduzir
em seu quarto, ontem à noite, mostrando-me seu lindo corpo.
Formas perfeitas, devo dizer.
– O senhor sabe que não foi bem assim.
– A senhora sua madrasta estava presente e poderá
confirmar minha versão. Sabe que posso condená-la à
Adriana Matheus
- 413 -
fogueira. Posso dizer que o demônio em seu corpo tentou
seduzir-me para que não lhe entregasse.
– Senhor conde, em primeiro lugar: o senhor não tem
provas suficientes para me acusar de coisa alguma. Em
segundo lugar: sei que não é o inquisidor. Em terceiro e último
lugar: sei que anda de fornicação com minha madrasta. Mas
saiba que é preciso muito mais que ter posses, olhos azuis e
vestir calças. Sinto informá-lo de que o senhor vai ter que
nascer e renascer para tentar seduzir-me algum dia. Agora, se
me der licença, vou ter com os meus.
Ele agarrou-me novamente pelo braço, mais fui salva
por Lorenzo, que chegou naquele exato momento e foi logo
dizendo:
– A senhorita está precisando de ajuda?
– Sim, Lorenzo. Este senhor aqui presente estava
querendo me forçar a segui-lo.
– Sugiro que o senhor solte a moça agora, ou terei que
fazê-lo pessoalmente. - disse Lorenzo, fechando uma das mãos
e batendo contra a outra.
– Está desafiando minha autoridade, lacaio?
– Se for preciso... Posso até ser demitido, mas não
deixarei que encoste um dedo na senhorita Anna.
– Vejo que a senhorita Anna tem muitos admiradores.
Por hora, vou me retirar. Não me rebaixarei em lutar com um
lacaio aqui, no meio da rua. Mas saiba que vou voltar.
– Estarei esperando-o.
Ele se foi, mais uma vez.
– A senhorita está bem?
– Sim, Lorenzo. Graças ao senhor.
– Não estarei sempre por perto, senhorita. Deve ter
cuidado. Por que não conta para seu pai?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 414 -
– Bem que o faria, mas ele está certo de que o conde é
um santo e de que, firmando compromisso entre mim e ele,
salvará as finanças. Mas o conde só quer tirar proveito da
situação, desonrar-me e desfazer o compromisso em seguida.
Lorenzo fechou os punhos e disse:
– Que sem-vergonha, mau caráter... Se eu o pegar, juro
que o mato.
– Não vale a pena, Lorenzo. Pessoas como o conde
sempre conseguem o que querem. Por certo, ainda seria
condenado por causa de algo tão sem valor. Tem que pensar
em Samara. Por falar nela, por que não veio?
– Ela está terminando o enxoval, junto à mãe. Mas
mandou lembranças.
– Que bom saber que a mãe dela está bem, e que tudo
entre vocês continua encaminhando.
– Graças à senhorita! Conheci o amor da minha vida...
Sabia que ela está me ajudando com os estudos?
– Nossa, finalmente uma boa notícia! Sabia que Samara
seria a mulher ideal para o senhor. Posso lhe pedir uma coisa?
– Claro, o que quiser.
– Dê-me um abraço?
Sabia que seria a última vez que o veria. Lorenzo ficou
meio cabreiro, pois não entendeu absolutamente nada.
– Ande, homem! Aproveite que todos não nos estão
vendo, para evitar mexericos.
Então, ele me abraçou, finalmente, mas com um medo
de dar dó. Vi uma lágrima de gratidão em seus olhos. Tirei dos
bolsos um pequeno obséquio e coloquei em suas mãos.
– O que é isso, senhorita Anna?
– Não é muito, mas dá para ajudar com o casamento.
Consegui vendendo o meu colar de esmeraldas.
– Senhorita! Não poderei aceitar...
Adriana Matheus
- 415 -
– Se não o fizer, ficarei muito ofendida. Para onde
estou indo não precisarei de nada disso.
– E para onde a senhorita está indo?
– Saberá no momento certo.
– Agora, se puder, leve-me até Maria. Preciso falar-lhe
algo muito importante.
Ele me acompanhou em silêncio até onde estava o
casal.
Ao me aproximar de Maria, parabenizei-a pelo seu
casamento e contei-lhe o ocorrido desde a conversa com o
padre Ignácio até o encontro com o conde. Embora não
quisesse aborrecê-la, sabia que Maria não me deixaria em paz
até que eu lhe contasse tudo, pois aquela mulher me conhecia
apenas de olhar para mim.
– Senhorita Anna, não irei deixá-la sozinha hoje. Temo
que o conde invada seu quarto esta noite, pois ouvi seu pai,
enquanto eu ainda estava na casa, convidando-o para passar a
noite lá como hóspede. Dormirei com a senhorita.
– De jeito nenhum! Casou-se e agora deve ficar com
seu esposo. Imagina: no seu primeiro dia de lua de mel, já
separada de seu marido? Isso não é certo. Vá ter com ele. Sei
muito bem como me cuidar.
Joseph interrompeu-nos:
– Isso é que não mesmo! Maria está certa: esperamos
tanto tempo! Além do mais, um dia a mais ou a menos não fará
diferença. Não somos jovens, afoitos pela lua de mel. Nossa
relação será baseada na fidelidade, na confiança e no amor
verdadeiro. E isso sei que já temos. O resto é consequência
natural. Vá, Maria! Entendo completamente sua preocupação.
Não confio neste homem. Ele tem sangue ruim. Usa
artimanhas para conseguir o que quer.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 416 -
– Obrigada, senhor meu marido. Sabia que entenderia.
Criei esta jovem desde quando ainda era um bebê, e não a
deixarei logo agora, em nossos últimos dias juntas. Nada de
mal lhe acontecerá enquanto eu estiver por perto. Já está
decidido: dormirei em seu quarto. Se alguém vier interrogar-
me, direi que não fica bem que uma mocinha solteira durma só
debaixo do mesmo teto com o seu futuro marido.
Tudo ficou decidido por conta dos meus amigos, e
quem seria eu para contrariá-los? Fiquei muito feliz por saber
que existia amor por mim entre aquelas pessoas maravilhosas.
Nunca as esqueceria.
Depois de termos ido à casa de chá para comermos
algo, retornamos os três para casa. Estava exausta. Tudo o que
queria era tirar as roupas e os sapatos, e deitar-me para
descansar. Ao chegarmos à casa, não percebi nada demais.
Tudo parecia muito tranquilo. Maria voltou para seus afazeres
e Joseph a seguiu. Subi para meus aposentos. Dentro do
quarto, fui tirando toda a roupa, sem me preocupar com a
organização ou higiene pessoal, pois estava realmente cansada
devido à alta hora em que fui dormir na noite anterior. Resolvi
deitar-me, pois estava exausta. Puxei calmamente os lençóis
quando ouvi os cavalos muito agitados do lado de fora da casa.
Curiosa como sempre fui, não poderia deixar de ir ver o que
era. Ao chegar à janela, vi uma cena que realmente me
impressionou. Embora soubesse que era apenas uma visão, eu
tinha que saber do que se tratava. Então, fiz um pequeno ritual
para saber quem era o homem que apareceu naquela visão.
Fechei os olhos e apertei as mãos uma contra a outra, deixando
os dois indicadores em posição ereta. Abri os olhos e girei as
mãos, fazendo um círculo imaginário, abrindo, então, um
portal.
Adriana Matheus
- 417 -
Descobri que o homem na minha frente era o inquisidor
que me condenaria. Ele estava lá, de pé, em frente à minha
janela, segurando as rédeas dos cavalos. Parecia saber que eu
apareceria à janela. Mirei os indicadores juntos, em direção
àquela figura sinistra. Fixei meus pensamentos, canalizando
toda a minha energia. Senti toda minha força saindo do meu
corpo. Os raios eram de luz e abriram um portal em volta
daquela figura sinistra. O que vi foi realmente de impressionar,
pois criaturas terríveis que lhe cercavam: demônios
devoradores de energia, espíritos zombeteiros e desprovidos de
inteligência. Algumas dessas criaturas montavam-lhe as costas,
fazendo com que ele tivesse uma forma arcádica. Outros
falavam-lhe blasfêmias aos ouvidos. Alguns, ainda, mordiam-
lhe a panturrilha, fazendo-o ter dores abomináveis nas pernas.
Eram criaturas monstruosas e envolviam-no como sombras
negras. Também havia alguns espíritos revoltados, de pessoas
que ele havia condenado injustamente.
Maria chegou, trazendo-me um chá de hortelã,
camomila e cidreira. Fiz sinal para que ela ficasse em silêncio
e não chamasse a atenção daquelas criaturas, pois poderiam se
sentir ainda mais revoltadas e virem perturbar nossos sonhos à
noite. Maria fez uma oração de proteção e voltou-se para olhar
o que eu via. Em seguida, exclamou em um sussurro:
– Minha nossa! Quem é esta pobre alma atormentada?
Como consegue sobreviver com tanto tormento?
Os demônios ficavam ainda mais agitados a cada
movimento do inquisidor. Enquanto ele desatrelava os cavalos,
os demônios mordiam-lhe as orelhas, fazendo-o ter uma
espécie de cacoete. O coitado repuxava constantemente a
cabeça de um lado para o outro. Voltou a fitar-me e,
novamente, ficamos olhando um para o outro, inquisidor e
bruxa. Maria teve a boa ideia de puxar-me para dentro. Não
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 418 -
por medo dele, mas por chamarmos à atenção algum dos
demônios que estavam envolta dele. Encostamos à parede e
Maria fechou as cortinas, lentamente. Corremos juntas para a
cama e ficamos de mãos dadas. Maria colocou o chá para mim
em uma xícara de porcelana com florzinhas azuis. Tomei de
uma golada só. Ela se despiu para dormirmos. Também tomou
o seu chá de uma golada só. Naquela noite, resolvemos não dar
uma só palavra uma à outra, para evitar atrair tais energias
ruins para os sonhos.
Na manhã seguinte, ao acordar, Maria já não se
encontrava comigo. Já havia descido para preparar o desjejum
e verificar o banho que tomaríamos antes de começar o ritual
de purificação. Comecei a arrumar meus pertences e guardei
minhas coisas pessoais em uma tábua solta no chão. Guardei o
livro das sombras, a varinha e alguns amuletos. Arrumei todo o
quarto e fiz uma oração de despedida:
– Obrigada, Senhor, por ter sido meu amigo e mentor
durante essa caminhada tão difícil. Muito obrigada pelos
meus algozes, cuja incompreensão e intolerância fizeram-me
ver a luz, a Sua luz, Senhor. Guarde-me dos espíritos
malfeitores e zombeteiros. Mas que se faça em minha vida
somente a Sua vontade. Assim seja.
Maria estava atrás de mim, com a bandeja do desjejum.
Confiou-me o seu silêncio em sinal de respeito.
– Vim tomar café com minha amiga. Posso?
– Claro que sim, Maria. Vou adorar ter a sua
companhia para o desjejum. Alguém já se levantou?
– Somente Joseph e aquele diabo disfarçado de Lorde. -
Maria referia-se ao conde.
– E o que faz esse maldito, acordado a essa hora da
manhã?
Adriana Matheus
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– Isso não sei. Mas é melhor prevenir. Por isso, estou
aqui, para tomar o desjejum com a senhorita.
Enquanto servia o nosso desjejum, Maria fez-me uma
pergunta que parecia não querer se calar:
– De quem era a visão daquele homem que vimos
ontem?
– Era do inquisidor que me irá sentenciar.
– Santo Deus! Nunca vi alguém com tantos demônios
de uma só vez. E o que é pior: aquele homem da visão parece
ser uma pessoa tão cega pelo ódio que não consegue perceber
que eles estão à sua volta.
– Maria, nem que ele quisesse poderia. Tem com ele
espíritos que estão impregnados em sua essência. Caso
tentássemos tirá-los, poderíamos levá-lo à morte, pois já fazem
parte um do outro.
– É. Mas talvez fosse melhor assim, pois ele pararia de
sofrer e de fazer sofrer todos à sua volta.
– Maria, sabe muito bem que qualquer coisa que leva
alguém a perder a vida e que não seja por morte natural é
considerado um crime imperdoável perante a lei de Deus e dos
homens.
– Mas podem nos condenar e nos matar por crimes que
nunca pensamos em cometer?
– Não estamos aqui para julgar.
– Mas podemos ser julgadas?
Maria estava revoltada por saber que eu seria
enclausurada em um convento e nada poderia fazer. Então,
resolvi dar por encerrada aquela conversa. Inclusive para evitar
conflitos mentais - o que poderia causar um desgaste de
energia desnecessário.
Depois de tomarmos o desjejum em quase total
silêncio, arrumei-me para extrair o óleo gerado pelo cozimento
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 420 -
das ervas, necessário para o ritual daquela noite. Saímos do
quarto nas pontas dos pés, para não acordar o resto da casa.
Chegamos à cozinha. Atravessei direto para a adega, onde abri
a porta secreta e fui aos afazeres. Mas, desta vez, Maria ficou
do lado de fora, para evitar surpresas desagradáveis. Enquanto
ela supostamente ficava na cozinha, adiantando os afazeres
domésticos, eu estava no porão, extraindo o óleo das ervas já
cozidas. Fiz um círculo de proteção em volta de mim. Este
círculo era feito com um pentagrama no meio, cercado por
dois círculos - um pequeno e um grande - e alguns símbolos.
Este símbolo é erroneamente chamado de o olho do diabo.
Deixei de lado todo o mundo ao meu redor. Comecei
no preparo do óleo que eu usaria. Purifiquei meu espírito com
orações que surgiram em minha mente, na mesma língua na
qual havia falado no primeiro dia em que entrei ali. De
repente, Maria veio correndo chamar-me:
– Venha depressa, senhorita Anna! Seu pai já
perguntou por você duas vezes. Disse que ainda estava
dormindo, mas agora não tenho mais nenhum argumento.
Entreguei à Maria todas as poções. Ela as guardou em
sua bagagem, que já estava pronta para a fuga daquela noite.
Deixei comigo somente a que usaria no ritual. Fui para o
jardim e fingi que estava lendo um livro, debaixo da minha fiel
árvore. Meu pai parecia aflito a me encontrar, pois veio afoito
ao meu encontro:
– Onde estava? Procurei a senhorita por toda a casa.
– Por certo não deve ser nada de tão importante, vindo
do senhor...
– O conde queria despedir-se da senhorita.
– Não disse? Não era mesmo nada de tão importante
assim.
Adriana Matheus
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– Não creio que esteja lhe dando a atenção que ele
mereça.
– O senhor não se preocupa mesmo comigo, não é, pai?
Ou o senhor é cego ou não percebe realmente que esse homem
é mau caráter.
– Não é verdade. Tanto me preocupo que estou vendo
nesta união uma oportunidade de vê-la bem de vida quando eu
não estiver mais por aqui. E o que quer dizer quando faz
tamanha acusação?
– Pai, o senhor conde está...
A condessa interrompeu-nos no exato momento em que
eu iria revelar suas proezas junto ao seu amante.
Imediatamente, ela disse, parecendo adivinhar o que eu haveria
de revelar a meu pai:
– Juan, venha. Recebemos um convite para o baile dos
Menellaus. Acho melhor que envie uma resposta, pois não
perderia esta oportunidade de poder estar presente em baile
como esse.
– Minha filha, como percebeu, temos uma festividade a
mais. Por certo deve ser o jantar de noivado da senhorita
Lucinda. Espero que tenha um bonito vestido para logo à noite.
A propósito, o que estava mesmo tentando me falar?
Olhei para a condessa, que estava esperando minha
resposta se eu iria ou não ao tal jantar.
– Não é nada, pai. Deixa para lá. O senhor não veria a
verdade, nem que ela fosse uma raposa vestida de ovelha. E
não sei se quero ir ao jantar. Não estou me sentindo muito
bem.
– Seu futuro noivo irá. Então, não quero mais falar
sobre esse assunto. Vou entrar com a condessa, mas estaremos
lhe esperando na sala de estar. Portanto, não se demore, por
favor.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 422 -
Fiquei quieta, vendo-os sair da minha frente. A
condessa estava de braços dados com meu pai, mas não podia
deixar de olhar para trás e fazer uma careta zombeteira. Sacudi
a cabeça de forma negativa, achando aquela atitude muito
infantil.
Não demorei para seguir as ordens que meu pai havia
me dado e voltei para dentro de casa. Meu pai e sua esposa
passaram a manhã na sala de estar. A condessa resolveu
demonstrar seus dons musicais ao piano. Toda aquela
satisfação significaria duas coisas: ou meu pai estava muito
inspirado a noite passada - o que era pouco provável, pois
dormira embriagado -ou ela estava disfarçando a sua maldade,
tramando contra mim junto ao seu consorte de luxo. Ou seja: o
conde e ela já sabiam o que fariam para me incriminar. Mas eu
já estava preparada, pelo menos era o que eu esperava.
Ao ver-me, o conde veio em minha direção, com um
sínico sorriso de satisfação. Beijou minha mão e perguntou:
– Onde a pequena mariposa andou pousando? Não a vi
a manhã toda.
– Estava em meu quarto, mas é claro que o senhor já
sabia disso.
– Será mesmo?
– Se o senhor está insinuando alguma coisa, é melhor
que fale aqui e agora.
– Não estou com vontade de discutir com a senhorita,
pois agora estou de saída para resolver alguns negócios
pendentes. Mandei chamá-la por isso. Mas saiba que a
esperarei no baile desta noite.
Dizendo isso, o conde virou-se para meu pai para se
despedir.
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– Por que tanta pressa, senhor conde? Fique para o
almoço. Sabe que é um prazer tê-lo como hóspede em nossa
casa. – disse meu pai.
– Não se preocupe, senhor Juan. O senhor terá o prazer
de ter-me muitas noites a fio em sua casa como seu hóspede.
Depois disso, ele se despediu da condessa e saiu com
meu pai. Voltei, então, para o meu quarto, sem me despedir da
condessa - não queria pegar energia negativa daquela mulher.
Precisava me preparar para ter forças para a peça teatral que
montaria logo à noite.
Maria veio ao meu quarto, algumas horas depois,
perguntar se eu queria que ela trouxesse o almoço para mim.
Respondi-lhe que não, só queria ficar um pouco quieta com os
meus pensamentos. Então, ela se retirou.
Depois de algumas horas lendo meu livro, acabei
adormecendo profundamente e sonhei com o meu amor
verdadeiro. Ele estava tão bonito! Estava feliz e sorridente e
disse-me Está muito perto de nos encontrarmos. Tenha um
pouco de paciência, meu amor. Então, quando ele ia pegar a
minha mão, alguma coisa aconteceu, pois o vi caindo em um
abismo negro e acordei chorando. Passei as mãos pelos olhos,
levantei da cama e andei pelo quarto, de um lado ao outro. Era
a segunda vez que o via caindo em um precipício. Maria
entrou sem bater, parecendo aflita. Foi logo dizendo,
interrompendo meus pensamentos:
– Se pai pediu que se aprontasse. Sairão mais cedo,
porque parece que irá chover. O que a senhorita fará para se
livrar desta questão? Não poderei estar presente nesta festa, e
sabemos muito bem que o conde se fará presente.
Depois de pensar alguns minutos, respondi-lhe:
– Traga-me umas toalhas bem quentes. Lembre-se de
que quanto mais quente, melhor.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 424 -
– O que fará, menina?
– Nada demais. Só não vou a festa alguma com aquele
homem.
Maria, mesmo sem saber o que eu faria, saiu para
cumprir o que eu lhe havia pedido. Duas horas depois,
retornou com as toalhas quentes e encontrou-me toda arrumada
para o baile. Colocou as mãos na cabeça e perguntou:
– O que a senhorita, toda arrumada desse jeito, quer
fazer com dúzias de toalhas quentes?
Porém, não lhe respondi. Apenas pedi-lhe outra coisa:
– Maria, preste atenção: quero que desça e diga a meu
pai que suba para vir buscar-me aqui em cima.
– Mas não disse que não iria?
– Faça o que eu lhe estou pedindo, mulher. Não se
preocupe: dará tudo certo.
Quando meu pai chegou à porta e, correndo em minha
direção, disse:
– Anna! Santo Deus, filha! Está bem? Seu rosto está
vermelho como um tomate.
Quando colocou as mãos em mim, sentiu o calor do
meu corpo.
– Cristo! Deve estar com uns quarenta graus de febre.
Por que não está na cama?
– Porque o senhor disse para não desacatar suas ordens.
Prefiro ir a receber uma surra.
– De jeito nenhum. Ficará em casa, mocinha, e cuidará
desta febre. Por certo é o resfriado que teve e que ainda não
curou totalmente.
Chamou Maria aos berros. Até eu mesma acreditei na
minha suposta doença. Quando Maria chegou a meu quarto,
olhou-me sem entender absolutamente nada. Fez-me uma cara
de quem estava desconfiada.
Adriana Matheus
- 425 -
– Cuide bem de minha filha e faça com que essa febre
suma de vez. Use seus chás. Por certo, sempre funcionam.
Depois, virou-se para mim e falou exatamente o que eu
esperava ouvir:
– Não se preocupe, filha. Direi aos anfitriões e ao
conde sobre seu estado febril.
Beijou minha testa e constatou a temperatura alta do
meu corpo. Deu mais algumas ordens à Maria e saiu em
seguida. Corri para a janela e fiquei olhando de meia greta, até
eles sumirem na outra extremidade da rua. Maria, assim que
percebeu que o casal já estava bem longe, indagou:
– Menina, o que foi que fez? Seu pai estava totalmente
desnorteado. E não adianta mentir para mim, pois bem sei que
é mais uma de suas artimanhas. Acaso usou algum tipo de
feitiço para uso próprio? Sabe muito bem que não é permitido
usar sortilégios para engambelar os outros.
Nem consegui responder, pois estava muito
concentrada, tentando tirar aqueles panos enrolados em volta
do meu corpo. Ufa! E torce daqui e puxa acolá... Tirar aquele
monte de toalhas quentes era uma questão de honra e
desespero, pois quase morri de tanto calor. É que eu havia
escondido as toalhas debaixo do espartilho e dentro dos
saiotes. Para aparentar um rosto avermelhado, coloquei uma
das toalhas quentes nas faces. Antes de meu pai chegar, joguei-
a debaixo dos travesseiros. Maria ficou ali, olhando-me
admirada, sem saber de onde vinha tanta toalha. Por fim,
acabou rindo largamente, sem parar. Então, depois de me livrar
daquela tralha quente, disse à Maria:
– Confesso que já estava assando. Agora vamos rápido.
Senão, não teremos tempo suficiente.
Descemos as escadas correndo e, ao passarmos para o
hall de entrada, pedi à Maria que me buscasse um xale que eu
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 426 -
havia esquecido em seu quarto. Quando Maria chegou, saímos
rapidamente ao encontro de Joseph. Ele já estava na lateral da
casa, de prontidão, esperando-nos com uma pequena charrete,
já atrelada aos cavalos. Ao ver-nos, olhou para Maria e falou:
– Santo Deus, mulher! Por que está trazendo tanta
tralha?
Maria, levantando as duas maletas de couro, respondeu:
– Uma são os meus pertences pessoais. A outra são
coisas que trago comigo e não lhe dizem respeito, ora!
Joseph olhou-a, respirou profundamente, mas nenhum
outro comentário fez em seguida. Colocamos, então, todas as
coisas na charrete e seguimos em direção ao bosque dos
mortos. Lembrei-me, exatamente naquele momento, de uma
lenda do século XIV: havia uma jovem feiticeira que, por onde
quer que passasse, secava tudo. Ela era o mal encarnado,
segundo os moradores. Então, resolveram caçá-la. Depois de
julgá-la no tribunal local, decidiram dar-lhe uma cruel
sentença. Amarram-na a uma árvore até que morresse de fome,
de frio e de sede. Ela foi devorada pelos lobos. Contavam,
ainda, que durante seus dias de flagelo, ela urrava como um
animal feroz. Seus gritos de horror eram ouvidos até mesmo
pelos moradores da aldeia vizinha. Outros diziam que ela
amaldiçoou aquela floresta, não deixando que nenhuma planta
saudável brotasse de seu solo. Nas noites do dia trinta e um de
outubro dos anos seguintes, alguns aldeões juravam ter ouvido
seus gritos de desespero ecoando pelo vento. Diziam que até o
vento vindo daquele lugar era amaldiçoado e trazia o cheiro de
enxofre do inferno.
Escolhemos aquele lugar porque o acesso era difícil.
Muitos não se atreveriam a ir até ali, por medo das lendas
locais. Era um trajeto difícil e já estava começando a chover.
Algumas vezes, tivemos que descer da charrete e ajudar Joseph
Adriana Matheus
- 427 -
a desatolar as rodas do lamaçal. A charrete era frágil e
balançava muito e, o que era pior, fazia um barulho
insuportável. Não tive medo da escuridão mortal que cercava
toda a floresta. Mas o lugar, confesso, congelou meu coração.
Se olhássemos para frente, não víamos absolutamente nada. E
se olhássemos para trás, não conseguíamos ver sequer o chão.
Somente um homem como Joseph, experiente em trilhas,
conseguiria entrar e sair daquele lugar coberto pela escuridão e
a névoa constante. A tristeza e a agonia eram contagiantes.
Tinha cheiro de morte no ar, o que fazia jus ao nome dado
pelos aldeões. Era como se um espírito desesperado por
socorro estivesse por perto, implorando para ser ouvido. Por
fim, resolvemos parar. Escolhemos um local perto de uma
velha árvore petrificada, chamada de árvore do sacrifício.
Joseph levou a charrete para a estrada, mais fundo,
escondendo-a perto de um arbusto seco. Olhei todo aquele
ambiente sem vida e me comovi. Não sabia até que ponto
aquelas lendas eram verdadeiras, mas de uma coisa tinha
certeza: algo de muito ruim tinha acontecido naquele local.
Toda a vegetação havia secado totalmente. As árvores
pareciam estar mortas, e nem a grama crescia. Não havia pio
das corujas, nem uivo de lobos. Nem as crianças da noite, os
morcegos, voavam assombrando-nos com seus bateres de asas
rasantes.
Olhei para Maria, que parecia ter tido a mesma
impressão que eu. Fomos para trás das árvores e tiramos
nossas roupas. Ficamos somente de camisolas. Maria ungiu
todo o meu corpo com o óleo de girassol. O mesmo fiz com o
dela. Acendemos uma fogueira para nos aquecer, pois o vento
silvava e soprava fortemente. Mesmo que pressentíssemos que
em breve a chuva cairia, teimamos em acender a fogueira para
nos aquecer. Assim também pensávamos conseguir enxergar
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 428 -
melhor o local. Mas foi uma tentativa inútil, pois só
enxergávamos as coisas que estavam próximas de nós, pois o
nevoeiro era intenso e misterioso. No céu, as nuvens
começaram a se formar. Logo a Lua foi sumindo. Quando os
primeiros pingos começaram a cair, já havíamos preparado
todo o local. Enquanto Maria espalhou as sementes de
girassóis em volta de toda aquela árvore petrificada, eu fazia o
círculo, usando a vassoura sagrada. Depois, desenhei o
pentagrama da proteção no meio do círculo sagrado e giramos
nossas varinhas no ar, fazendo desenhos desconexos.
Clamamos os sete nomes sagrados da magia. Depois,
plantamos em todo o local as mudas que eu havia pedido a
Joseph para conseguir para mim. Fizemos isso para fertilizar
aquele lugar morto. Por fim, começamos as rezas em voz alta:
– Senhor, que a grande Deusa possa ouvir a nossa
humilde oração. Que possamos, com o nosso amor e bondade,
trazer de volta a beleza, a fertilidade e a paz para esse lugar
triste e sombrio. Que a nossa irmã desencarnada consiga
sentir toda a proteção emanada deste círculo sagrado. Que
seu coração se abra para o amor e o perdão, para que seu
espírito possa libertar-se desta prisão de ódio e ressentimento.
Pedimos ao espírito aprisionado de Áurea Scoth que se
manifeste, para que possamos mostrar-lhe o caminho a seguir.
Os espíritos aprisionados por Áurea àquelas árvores
foram se manifestando, dando formas aos troncos. Seus
gemidos de sofrimento eram assombrosos e torturantes a
qualquer ouvido lúcido. Mas não podíamos dar a impressão de
que sentíamos medo, pois qualquer demonstração de fraqueza
poderia deixá-los muito agitados e afastar o espírito de Áurea
Scoth de nós. De repente, uma brisa cheirando a cipreste
aproximou-se, mas não conseguiu entrar no círculo, cuja
função era exatamente essa. O que está fora não pode entrar, e
Adriana Matheus
- 429 -
o que está dentro não poderá ser atingido por nenhum espírito
imundo ou atormentado. Sabíamos que o cheiro de cipreste
significava a presença de um espírito atormentado. Em
algumas ocasiões, esse cheiro pode significar que alguém
próximo irá morrer. Mas ali, naquele momento, significava a
presença de alguém muito atormentado. Trancamos a mente,
apertamos as mãos contra o peito, fechando os olhos para que
aquele espírito atormentado não nos engabelasse ou nos
assustasse com outras formas ilusórias. Geralmente, os
espíritos atormentados tentam fazer-se parecer assustadores ou
tomam a aparência de anjos e fadas, para que os deixemos em
paz ou para desistirem de nos intrometer em suas vinganças ou
perseguições. Em outras ocasiões, esses espíritos podem se
fingir gentis e tomarem a foram de criaturas encantadoras,
apresentando uma falsa sabedoria. Áurea, por certo, havia se
tornado um obsessor. Mas nada do que ela fizesse nos faria
desistir de ajudá-la e de prosseguir com a nossa tarefa. Demos
continuidade às orações e aumentamos o fervor das palavras,
dizendo:
– Dê-lhe, meu pai, a Sua mão para que o espírito de
Áurea siga o seu destino em paz. Liberte-a desta prisão, desse
sofrimento sem igual.
Então, eu Maria dissemos juntas, em voz alta:
– Siga em paz, minha irmã, sem olhar para trás. Deixe
as marcas de sua dor na memória de seus algozes. Apague a
sua para começar uma nova vida junto aos irmãos de
sabedoria. Siga para a luz que brilha à sua frente. Veja
quantos irmãos estão lhe esperando para recebê-la de braços
abertos.
Falamos isso, pois as luzes dos irmãos desencarnados
brilhavam à nossa frente e podíamos vê-los esperando por
Áurea, a feiticeira. Sentimos novamente o vento forte perto do
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 430 -
círculo. Só que, desta vez, cheirava a flores do campo. Logo se
formou um pequeno redemoinho. No meio dele, surgiu uma
linda mulher de cabelos negros e ondulados e olhos azuis
como a água marinha. Ela estava vestida de céu e com muitas
chagas por todo o corpo. Delas, saía mel. Em pensamento,
contou-nos como foi violada por todos os aldeões e que,
depois de ser julgada injustamente e torturada violentamente,
foi acorrentada naquela árvore petrificada, onde fez um
juramento: nunca mais deixaria brotar daquele lugar uma só
folha verde enquanto houvesse um descendente de seus
algozes. Mas, que ao ver tanto amor, bondade e desinteresse
vindos de nós, estava pronta para desistir de sua jura e seguir
seu caminho em paz, com os irmãos espirituais. Toda aquela
névoa ao seu redor sumiu, dando lugar a uma luz muito
brilhante. Depois, Áurea transformou-se em uma pequena
estrela e desapareceu na imensidão do céu.
Então, continuamos com o ritual. Por fim, a chuva
começou a cair. Eu disse, em alto tom:
– Que o fogo nos empreste sua alma, fumaça, e que ela
leve todos os nossos pecados para o céu. Que a água da
chuva, nossa irmã e purificadora, nos devolva essa energia
renovada de volta para a nossa mãe terra. Que essas águas
em forma de lágrimas abençoem esta terra tão sofrida. Que
essas águas sagradas possam, também, lavar nossos pecados.
Que a nossa essência purificada traga de volta todo o amor e
o perdão para este solo, que durante anos sofreu
silenciosamente por um crime cometido por nossos irmãos já
desencarnados. Crime esse que fez uma de nossas irmãs ficar
aprisionada nesta floresta por anos, causando dor e
sofrimento não só a todos os aldeões e ao solo, mas também a
ela mesma. Peço, Senhor, perdão pelos ignorantes que por
aqui passaram. Mande, meu Pai, um espírito iluminado e de
Adriana Matheus
- 431 -
muita sabedoria para lhes tirar da escuridão onde se
encontram agora. Dê-lhes, meu Deus, uma chance de se
redimirem de seus erros e pecados! Que o vento purifique
essas águas e que elas nos devolva a nossa essência, depois de
tê-la sanado dos pecados recebidos da humanidade. Pelo
poder da terra, pela força do fogo, pela alma dos ventos e pela
pureza das águas, que se abra o portal e cumpra-se a minha
missão.
Um enorme raio de fogo cercou todo aquele lugar,
clareando até a mais longínqua imensidão escura que tomava
conta dali. Sentimos a presença da grande Deusa e do grande
Deus. Seus poderes eram tão grandes, tão imensos, que eu e
Maria tivemos de nos agarrar uma a outra. O calor daquele
fogo espiritual, misturado às forças da natureza, formava um
enorme redemoinho, que limpou toda a floresta daquela
mazela de revolta, vingança e loucura. Senti que toda a floresta
veio nos agradecer por termos libertado aquele espírito sofrido,
que havia tanto lhe sufocava a vontade de viver. Rodopiamos e
dançamos alegremente, recebendo a chuva com os braços
abertos, lavando todos os pecados de nossa alma. Nossos
corpos estavam completamente encharcados, mas não
sentíamos frio ou incômodo por estarmos molhadas dos pés à
cabeça, pois o amor dentro de nós era imenso e indescritível e
esquentava nosso corpo. Logo a chuva parou - embora tivesse
sido fortíssima, foi passageira. Olhamo-nos de cima abaixo e
gargalhamos. Então, procuramos Joseph, que estava debaixo
da charrete para não se molhar. Rimos ainda mais. Ele nos
olhou, interrogativamente:
– Não acham melhor trocarem de roupa? Vão pegar
uma febre e cairão de cama.
Sufocamos outra gargalhada, mas abaixamos a cabeça e
saímos em procura de toalhas secas. Maria trocou-se de
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 432 -
imediato e fiz o mesmo. Depois, sentamos na charrete e
arrumamos a comida que trouxemos para dar término àquele
sabat. Estendemos uma toalha bordada com desenhos místicos.
Então, servimos o pão e o vinho de samhaim. Recuperamos as
forças com uma sopa mágica.
Levantamo-nos e novamente varremos todo o local
com a vassoura sagrada. Desta vez, apagamos o círculo. É
muito importante usar a vassoura antes e depois de cada ritual.
Às vezes, também temos que usá-la durante o ritual. Demos
uma olhadela em volta e não acreditamos no que vimos: havia
pequenos brotos na velha árvore, que já não estava mais
petrificada. O chão estava repleto de graminha, ainda fina e
rasteira. Uma enorme coruja pousou sobre a velha árvore. Um
gamo correu em direção ao fundo da floresta. Os lobos
uivavam, cantando para a imensa Lua que reluzia no céu. A
vida finalmente estava de volta àquele lugar. Com certeza, ali
seria um novo paraíso celestial. Ficamos muito felizes e
choramos de emoção. Até Joseph ficou extasiado com o que
viu. Demos as mãos, os três, e agradecemos as bênçãos
concedidas naquela noite maravilhosa e produtiva.
De repente, ouvimos barulhos vindos do meio da
floreta escura. Aquilo gelou minha alma. Sabia bem o que era.
Pela segunda vez, senti-me como Cristo quando foi entregue
aos inimigos. Então, não conseguia pensar em mais nada e
disse à Maria:
– Corra com Joseph para longe daqui.
– Senhorita Anna, não posso deixá-la aqui sozinha –
disse Joseph.
– Anna, filha, venha conosco. Joseph tem razão: ainda
há tempo para a senhorita. Eu lhe imploro: não me deixe,
filha... Passamos tantas coisas juntas... Morrerei pela senhorita
Adriana Matheus
- 433 -
se for preciso. Eles não a entenderão, Anna... Não se vá, não
me abandone...
Maria ajoelhou-se e implorou para que não a deixasse
partir. Suas lágrimas comoveram-me, mas não pude
demonstrar nenhuma emoção, pois poderia colocar a vida dela
e de Joseph em risco. Olhei para ele, que também estava
chorando, e pedi-lhe auxílio com os olhos. Ele enxugou as
lágrimas e veio retirar Maria de perto de mim. Quando ele a
levantou do chão, dei-lhe um enorme abraço e disse:
– Para que consiga seguir em paz meu caminho,
precisarei que a senhora seja como sempre foi: forte e sensata.
Nunca nos esqueceremos, Maria, porque sempre estaremos
juntas em pensamento. Ninguém nunca conseguirá nos separar
porque o elo que nos uniu sempre nos unirá. Somos como essa
chuva que caiu e fertilizou esta terra hoje. Somos a terra, o sol,
o ar e sempre estaremos juntas, porque somos parte do mesmo
universo. A distância, para nós, não existe, porque ela é como
olhar o horizonte: cada vez que fazemos isso com os olhos do
aparelho, vemos coisas ao longe. Mas quando olhamos com os
olhos da alma, vemos apenas um caminho a percorrer até
alcançar o objetivo almejado. Sempre poderá me enviar cartas
pelo padre Ignácio. Agora, levante a cabeça e siga em busca da
sua felicidade.
Dei-lhe um beijo na testa e segurei seu rosto em minhas
mãos, para nunca mais me esquecer da minha amiga e mãe.
Foi o pior dia de minha vida. Engraçado como o amor nos
obriga a fazer coisas que não queremos fazer... Fiz minha
única amiga chorar e não tinha como evitar. Então, tentando
tirar Maria daquele local perigoso, disse:
– Não os estou expulsando, mas quero que ambos
corram agora para que não cheguem aqui e os vejam.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 434 -
Joseph saiu, segurando Maria. Ao tomarem certa
distância, ela tentou escapar de Joseph, que a abraçou
fortemente, tentando acalmá-la. Maria gritava meu nome e
esticava os braços em minha direção. Mais uma vez, minhas
premonições se concretizaram. Fiquei olhando-os sumir em
meio à noite escura, até que, finalmente, nada mais eram além
de um simples vulto. Enxuguei minhas lágrimas, rasguei
minhas vestes, arranhei meu rosto com minhas próprias unhas,
joguei sangue de galinha em meu corpo e fingi estar desmaiada
ao chão. Ouvi o grito de alguém. Não me atrevi em abrir os
olhos para saber de quem se tratava. Ouvi um homem dizer
algo:
– Vejam! Ela está caída aqui! Parece ter sofrido algum
tipo de violência.
– Há sinais de satanismo por todos os lados. Por certo,
as marcas em seu corpo foram deixadas por algum tipo de
demônio. Essa mulher está tomada por forças malignas.
Tive muita vontade de rir, pois percebi a ignorância
daquelas pessoas. No mínimo, aquele homem era
completamente louco e sua mente perturbada criava mais
histórias que a imaginação de uma criança de cinco anos.
Percebi que meu pai aproximou-se, pois ouvi sua voz bem
próxima a mim. Mas o inquisidor gritou, dizendo:
– Não! Os demônios dela passaram para o seu corpo.
Essa mulher está infestada de súkumbos. Aquele homem que a
tocar ficará atraído por essa mulher pecadora e imunda.
– O que são súcumbos? - perguntou o conde,
curiosamente.
– São demônios femininos que usam o corpo das
mulheres para seduzir os homens. Esse tipo de demônio, além
de destruir a vida de quem quer que seja, pode também levar o
indivíduo possuído à morte.
Adriana Matheus
- 435 -
Ele falava isso porque não podia ver os demônios que o
cercavam. Mesmo de olhos fechados, pude perceber
mentalmente a quantidade de demônios que estavam em volta
daquele homem, pois soltavam garagalhadas tenebrosas. Rezei
para que ele não me tocasse, pois aí sim, literalmente falando,
eu estaria perdida. Outra voz masculina ainda insistiu com meu
pai, dizendo:
– Senhor, não toque nela. Não ouviu o que o inquisidor
disse?
– Ninguém vai me impedir de levar minha filha para a
carruagem. Se quiserem discutir alguma coisa sobre este caso,
discutiremos em minha casa. Mas não a deixarei aqui, neste
chão molhado e, por certo, morrendo de frio.
Ufa!, pensei comigo. Até que enfim alguém sensato.
Pensei que ficaria ali até congelar, esperando aquele louco
endemoniado decidir se eu era ou não uma bruxa.
– Juan! Não espera mesmo que eu vá dentro da mesma
carruagem com essa endemoniada, espera? - disse a condessa,
parecendo não querer dividir aquele pequeno espaço comigo.
Porém, meu pai estava decidido a me levar com ele:
– Minha cara esposa, aonde vai e com quem vai eu não
sei. O que sei é que Anna, minha filha, irá na mesma
carruagem que eu.
– Recuso-me a entrar na carruagem em que esta mulher
está! - retrucou.
– Faça como quiser. Pode ir a pé ou no colo de alguns
dos soldados. Ou, se preferir, pode ficar aí mesmo onde está e,
é claro, poupar-me o trabalho de devolvê-la a seu pai - que é o
que eu já deveria ter feito há muito tempo. Mas não me
perturbe mais com seus chiliques histéricos. Este momento é
muito delicado para mim.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 436 -
Meu pai, então, pegou-me no colo e saiu carregando-
me em meio à pequena multidão que se formara em nossa
volta.
– Não lhes disse? O demônio tomou conta da mente de
senhor Juan. - disse o inquisidor. Porém, meu pai pareceu não
dar importância às sandices dos demais presentes e levou-me
para dentro da carruagem, cobrindo o meu corpo com
cobertores e deitando-me em seu colo. Ele, então, ordenou a
Lorenzo:
– Lorenzo, siga para a minha casa. Minha filha e eu
estamos cansados.
– Sim, senhor, imediatamente.
A condessa seguiu na carruagem do seu comparsa, o
conde. Os soldados e o inquisidor seguiram-nos cavalgando. O
balançar da carruagem e o aconchego do colo do meu pai
fizeram-me cochilar. Afinal, foram raras as vezes em que
estivemos tão próximos daquele jeito.
Ao chegarmos em casa, Lorenzo ajudou meu pai a
tirar-me da carruagem. Papai levou-me para meu quarto e
pediu à aia que me despisse e trocasse minhas roupas. Depois,
desceu e despachou aquelas pessoas indesejadas, pedindo-lhes
que voltassem no dia seguinte para retomarem o assunto em
questão. Isso me deu mais uma noite em minha casa. A
condessa, naquela noite, recusou-se a dormir no mesmo quarto
que meu pai, dizendo que ele estava contaminado pelos
demônios que habitavam meu corpo. Agora, sim, ela
enlouqueceria de uma vez por todas. Pois além de viver com a
cabeça cheia de caraminholas tramando contra as pessoas,
ainda arrumou parceria com um inquisidor totalmente
excêntrico que, por certo, enfiou mais sandices em sua mente.
Agora, a pobre mulher, além de tramar, ainda tinha que se
preocupar em esquivar-se dos supostos demônios que
Adriana Matheus
- 437 -
habitavam meu corpinho tão puro e inocente. Era hilário
imaginar a condessa de olhos arregalados, a altas horas da
madrugada, sentada na cama só com os olhos de fora, vigiando
para não deixar o coisa ruim se aproximar dela. Pobre mulher!
Confesso ter dormido maravilhosamente aquela noite. Só me
preocupei com Maria que, por certo, estaria triste de verdade.
Acordei, dei uma espreguiçada e levantei de uma só
vez meu desjejum - estava em uma bandeja do lado da cama.
Tomei calmamente e fui para a janela, observar o movimento.
Como eu já esperava, havia várias carruagens e cavalos no
pátio de minha casa. Como as pessoas gostavam de um mal
feito, qualquer coisinha era motivo de atração circense. Tereza
entrou, trazendo água para que me lavasse. Por certo, a criada
ficou com medo de mim depois de ter ouvido os boatos
mentirosos e alucinados que saíram da boca da condessa.
Tereza, então, disse-me, meio constrangida:
– Queria dizer, menina, que não acredito em nada que
dizem sobre a senhorita. - abraçou-me e saiu em seguida.
Fiquei feliz por saber que os verdadeiros amigos nunca
duvidam de nós, e que jamais caem em armadilhas levianas.
Lavei-me e vesti-me. Coloquei-me simples e formal. Meu pai
foi o primeiro a entrar em meu quarto. Deu uma leve
batidinha e, ao ver-me sentada, perguntou:
– Como está, Anna?
– Muito bem. E como eu deveria estar?
– Não se lembra de onde estava ontem à noite e de nada
que lhe acontecera?
– Não. Do que o senhor está falando? - menti.
– Encontramo-la caída no meio da floresta dos mortos.
Suas roupas estavam todas rasgadas, seu corpo estava todo
arranhado. Como pode não se lembrar do que houve?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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– Já disse: não consigo me lembrar de absolutamente
nada. O que o senhor está dizendo para mim é grego. - sentei-
me na cama e fiz uma cara de ingênua.
Meu pai sentou-se ao meu lado e disse:
– Anna, quero ajudá-la. Mas, para isso, preciso que
colabore comigo. Diga-me olhando em meus olhos: foi violada
por algum bandido?
– Não! Estou bem. Por que está me perguntando essas
tolices? Não conhece meu comportamento? Perdeu a confiança
em mim, pai?
– Confio na senhorita, Anna, mas algumas coisas não
estão se encaixando. Sabe que não sou homem de acreditar em
misticismos.
Olhei-o no fundo dos olhos e disse:
– Então, terá que continuar confiando.
– Eles a levarão de mim, filha. Não poderei fazer nada.
Se deixar que pensem que é uma feiticeira, eles lhes
condenarão e sabe Deus o que lhe farão.
– Não, pai. O senhor entregar-me-á, como tentou fazer
vendendo-me para aquele homem inescrupuloso, para saldar
suas dívidas. O senhor só pensou em si mesmo e no santo
nome de sua ambiciosa esposa. Mas se esqueceu de que sou o
único laço consanguíneo que o senhor verdadeiramente tinha.
Vá, abra a porta, antes que a derrubem por causa do peso de
estarem todos encostados nela.
Meu pai olhou-me espantado e só fez abaixar a cabeça.
– Tem certeza de que está preparada para isso?
– Sim. Deixe que entrem meus algozes.
Como eu havia dito, quando meu pai abriu a porta,
caíram todos de uma vez uns em cima dos outros, tropeçando
como urubus. Fiquei admirada de ver senhores tão distintos,
como o magistrado da cidade e Lorde Oswald, tentando
Adriana Matheus
- 439 -
equilibrar-se em cima do próprio peso para levantar-se. Todos
fingiram estar tirando a poeira das vestes. Depois, olharam-me,
esperando que meu pai lhes dissesse alguma coisa. Por fim,
Lorde Oswald perguntou, curiosamente, não aguentando
manter-se calado:
– Conseguiu arrancar dela alguma confissão?
Meu pai, porém, respondeu-lhe:
– Não estava tentando fazer minha filha confessar coisa
alguma. Só estava tentando encontrar uma resposta plausível
para o fato ocorrido ontem à noite. Mas, pelo jeito, ela não
consegue se lembrar de nada.
– Por certo o demônio afastou-se quando viu a luz. -
respondeu o magistrado.
Quando ele falou que a luz afastou o demônio, por
certo não era a dele, pois ele era uma das pessoas que estavam
rodeadas de pequenas criaturas zombeteiras. Meu pai tentou,
ainda, fazer-me falar na frente de todos o que eu estava
sentindo:
– Diga a eles, minha filha, o que está sentindo, para que
percebam que você é inocente.
– Já lhe disse, pai: não estou sentindo absolutamente
nada. Estou é achando engraçado todos esses senhores e
nobres aqui em meus aposentos, tentando achar algum defeito
em mim para esconderem seus próprios defeitos.
– Blasfêmia! O demônio está zombando de nós. - disse
um nobre rechonchudo, o senhor Oswald.
– Devemos levá-la para uma interrogação formal, a
portas fechadas. – disse, por fim, o inquisidor, que me
observava.
O homem mais parecia um mouro por causa de sua
forma arcaica. Ele era exatamente como eu e Maria vimos em
nossas visões: os demônios em seu corpo faziam sobre o seu
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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ombro os mesmos gestos que ele fazia ao falar, só que de
maneira zombeteira. Aqueles demônios o induziam a fazer
todos os tipos de crueldades jamais imaginadas por um ser
vivente temente a Deus. Aquele homem realmente era uma
pessoa que precisava de um exorcismo. Quase não consegui
olhar para ele por causa das criaturas deformes que o
rodeavam, blasfemando e fazendo gestos obscenos.
Por fim, meu pai, ao perceber que o inquisidor
aproximava-se de mim para tocar-me, disse-lhe, segurando sua
mão:
– Ninguém tocará em nenhum fio de cabelo da minha
filha.
Um soldado da milícia tentou se aproximar de mim,
mas Lorenzo e outros dois capatazes de meu pai mostram estar
armados, afastando-o de imediato. Então, imediatamente, o
soldado baixou a guarda e posicionou-se em um canto da
parede. O padre Ignácio chegou, dando braçadas, empurrando
toda aquela gente curiosa e impertinente que estava
aglomerada em meus aposentos. Quando conseguiu chegar até
a mim, disse:
– Saiam desse quarto imediatamente! Quero falar a sós
com a senhorita Anna.
– Ficou louco, padre? Esta mulher está repleta de
demônios. Já enfeitiçou o conde Alfred, dois empregados da
casa, e o próprio pai. O senhor não pode, de modo algum, ficar
sozinho com essa discípula de satã.
– Sim, é verdade. Quase a pedi em casamento por causa
dos súcumbos que estão dentro do corpo dela. Eu estava
totalmente enfeitiçado por esta mulher a ponto de quere-me
unir a esta bruxa, que invadiu minha mente com o seu poder
maligno. – disse o conde.
Adriana Matheus
- 441 -
Que hipócrita!, pensei comigo. Finalmente eu havia
conseguido me livrar daquele compromisso com aquele
homem inescrupuloso e assassino. Sentia-me muito orgulhosa
de mim mesma, pois nunca cedi de livre e espontânea vontade
às investidas daquele falso conde. A minha vontade, naquele
momento, foi de entregá-lo, dizendo tudo o que sabia sobre
ele. Mas tinha que deixar uma carta na manga para o último
momento.
Padre Ignácio interrompeu meus pensamentos quando
se sentou ao meu lado, na beirada de minha cama, e ordenou
em um tom severo, olhando novamente para aquelas pessoas
que teimavam em permanecer ali:
– Já havia pedido que se retirassem. Por favor, saiam
imediatamente. Quero falar a sós com a senhorita Anna.
Uma senhora muito gorda, que mais me lembrava um
grande porco capado, fez o sinal da cruz e um comentário
ofensivo:
– Pobre vigário... A maldita feiticeira já possuiu a sua
pobre alma!
Padre Ignácio, ao ouvi-la, respondeu severamente:
– E possuirá a sua se não fizerem o que mando agora.
Não veem que estão tirando o direito desta jovem a confessar?
Ela é ainda minha paroquiana e não lhes dou o direito de
ofendê-la sem ao menos ouvi-la antes.
– Blasfêmia! Bruxa não tem direito a defesa. - disse um
homem sem dentes e muito magro que estava no meio daquela
gente toda.
– Se é assim, então ficaremos. Tornaremos essa
confissão oficial. - disse o magistrado.
– Senhor Cortez, pelo respeito que tenho pelo senhor e
pela sua posição em nossa comunidade, este é um assunto que
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 442 -
só diz respeito à Igreja. Creio estar suficientemente preparado
para lidar com seres de outra dimensão.
Meu pai, então, interveio mais uma vez:
– É melhor sairmos todos. Vamos ver se o padre
consegue algum resultado favorável.
Falou isso e foi empurrando todos para fora do recinto
que, pelo jeito, já não me pertencia. Assim que conseguimos
ficar a sós, padre Ignácio falou:
– Filha, preste atenção no que vou dizer agora: quero
que me responda com toda a sinceridade possível.
Antes que o padre Ignácio prosseguisse, fiz um sinal
para ele, apontando o inquisidor, que estava encostado na
parede com os braços cruzados, ignorando suas ordens. Padre
Ignácio ficou furioso por ter sido desrespeitado e falou-lhe
asperamente:
– Creio não ter sido muito claro ou o senhor deve estar
sofrendo de perda de audição. Quero falar com essa moça a
sós.
– Não creio que ela tenha alguma coisa para falar que
um inquisidor não possa estar presente para ouvir. Quero que o
senhor saiba que estou aqui representando as leis da Santa
Madre Igreja.
Padre Ignácio colocou pessoalmente para fora o
homem surdo, segurando-lhe o braço e dizendo:
– O senhor pode ser o representante até mesmo do rei,
mas ainda mando nesta paróquia e meus paroquianos merecem
todo o meu respeito, assim como essa moça que aqui está.
Em seguida, olhou para mim, fazendo um sinal com o
dedo indicador nos lábios para que eu ficasse em silêncio.
Depois de ter colocado o homem para fora, ele esperou dois
minutos e abriu a porta de supetão, pegando aquela senhora
gorducha grudada com os ouvidos nela. A mulher caiu,
Adriana Matheus
- 443 -
esborrachando-se no chão como uma abóbora podre. Padre
Ignácio, indignado, falou:
– Que vergonha, mulher! Escutando atrás da porta? Vá
para baixo com os outros. Aqui não tem nada que lhe diz
respeito. Saiba que quero sua confissão na missa de domingo.
A mulher, custosamente, levantou-se do chão. Mesmo
com as bochechas vermelhas como tomates de vergonha, ainda
falou:
– Só estava tentando ouvir se os demônios no corpo
desta bruxa estavam machucando o senhor.
– Se fosse um exorcismo - o que não é -, a senhora
realmente correria o risco de ser possuída por um espírito
maligno por causa da sua proximidade tão homogênea com a
vítima em questão. Mas agora que já se certificou de que não
há demônios nenhum aqui, se a senhora não se retirar
imediatamente, eu mesmo tratarei de jogá-la escada abaixo.
A mulher saiu, fazendo o sinal da cruz e benzendo-se,
chamando o nome de tudo quanto era santo que haveria de se
lembrar. É claro, ao chegar perante os demais curiosos no
andar de baixo, ela inverteu toda a história, dizendo que ouviu
os gritos que eu dava quando o padre jogava em mim a água
benta. Este tipo de pessoa é que fazia a má fama das bruxas.
Pessoas sem nenhuma ocupação, sem razão para viver e, com
certeza, muito mal amadas. Pessoas que precisavam se garantir
causando a desgraça alheia, criando um motivo para que todos
prestassem mais atenção em sua figura patética e
insignificante. Tanto que eu nunca a havia notado além
daquele dia. Com certeza, ela deve ter conseguido uma boa
plateia para o seu teatro de mentiras e injúrias.
– Então, minha querida Anna, agora podemos
conversar. - disse padre Ignácio, com a voz cansada e pesarosa.
– Sim.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 444 -
Atirei-me em seus braços, pois estava me sentindo
completamente só e desprotegida. O peso do mundo parecia ter
caído sobre as minhas costas.
– Santo Deus! Calma, minha filha. Preciso que me
conte exatamente o houve para que possamos, juntos, resolver
esse problema.
Contei até os pormenores dessa nova situação.
– O senhor também irá me condenar por isso, não é?
– De modo algum. Já conversamos sobre isso. Não vim
a esse mundo para julgar quem quer que seja. Só me garanta
uma coisa apenas: algum dia a senhorita já teve contatos com o
demônio, ou qualquer ser vindo do inferno?
– Não, padre. Juro que não. Só não me peça para negar
quem sou. Se me perguntarem se sou uma bruxa, direi que sim.
– Agora, sim, consigo entender a carta que todos
comentavam quando cheguei. Pensou em tudo, não foi?
– Espero que sim, padre. Muita gente neste momento
está dependendo de mim.
Padre Ignácio olhou-me indignado e prosseguiu:
– Lançou-se na noite escura sem temor, por confiança e
amor verdadeiro. E foi amor ao próximo. Cada vez mais a
admiro, por ver o quanto o seu coração é cheio de fraternidade
e compaixão. É a pessoa mais corajosa que já conheci - até
mais que muitos soldados, pois foi capaz de abrir o peito para
o perigo eminente que está à sua frente. Está determinada a
enfrentar um cruel destino por amor ao seu próximo, abrindo
mão da própria liberdade e, talvez, da própria vida. A senhorita
é uma verdadeira filha seguidora do Cristo. Tenho muito
orgulho de você e nunca me esquecerei desta moça corajosa e
determinada que agora está aqui na minha frente.
Ele me abraçou e, dando-me sua benção e um beijo na
testa, prosseguiu:
Adriana Matheus
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– Só preciso que confie em mim. Tudo o que eu fizer
ou disser jamais pense que será para o seu mal. Por isso, mais
uma vez vou lhe perguntar: a senhorita confia em mim?
– É claro que sim, padre. Se não confiasse, não teria lhe
contado todo o meu segredo.
– Então, fará exatamente do jeito que combinarmos.
Promete?
– Sim, prometo.
– Se a senhorita não colaborar, não poderei ajudá-la.
Ele segurou meu rosto para ter certeza de que estava
lhe ouvindo atentamente. Falou-me tudo em um tom de voz
que mais parecia um sussurro. Tudo isso para que não
fôssemos ouvidos pelos curiosos que estavam de prontidão, do
lado de fora da porta novamente. O desespero daquelas
pessoas era tanto que havia hora em que ouvíamos seus
tropeços e esbarrões na porta. Pareciam cães de guarda. É
engraçado como a vida alheia é muito mais interessante do que
a nossa própria vida. Então, o padre Ignácio levantou-se e
abriu a porta. Como esperávamos, estava novamente repleta de
curiosos tentando escutar minuciosamente o que
conversávamos. Imagine só: havia um que levou um copo para
tentar ouvir melhor. Outro tentava furar a parede. Eu era
praticamente a atração principal daquele espetáculo de injúrias.
Senti-me como um animal enjaulado, sendo exposto no meio
de uma multidão furiosa e pronta para atirar-me pedras. Padre
Ignácio olhou para eles indignadamente e falou, em um tom
sério:
– Entrem. Ela já está pronta.
– Ela confessou? Louvado seja o senhor padre! Nunca
duvidei que o senhor fosse capaz de fazê-la confessar. Então,
diga-nos: o que ela confessou ao senhor? - disse o magistrado.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 446 -
– Não tenho que lhes dizer nada em público. Este é um
caso reservado e de ordem judicial. Portanto, cabe às partes
competentes decidirem o que devem fazer.
Falando isso, o padre foi empurrando todos os curiosos
que ali se encontravam.
– Vamos, saiam daqui. Só entrarão as partes
interessadas no assunto.
Então, pôde entrar o meu pai, o chefe da guarda, o
magistrado, o inquisidor, o conde e o Lorde Gaspar - por estar
envolvido na política local – e, finalmente, a condessa. A
senhora gorducha também tentou invadir meu quarto assim
mesmo, mas o padre a bloqueou imediatamente na entrada,
empurrando-a com as mãos.
– Aonde a senhora pensa que vai?
– Ora, também sou importante neste caso! Afinal, fui
testemunha de um exorcismo. Vi esta mulher manifestar o
demônio.
– Senhora Eulália, se não sair daqui agora, juro que
pedirei ao chefe da guarda que lhe dê voto de prisão por
desacato e desobediência às autoridades presentes.
O chefe da guarda, na mesma hora, tomou a frente e
colocou-se de prontidão, com a mão na arma que estava em
sua cintura. Padre Ignácio fechou a porta, empurrando
fortemente com as mãos a velhota sisuda e mentirosa. Ela,
ainda, se fez de sonsa, mas padre Ignácio expulsou-a como um
cão sarnento. E ainda preveniu os outros curiosos que também
teimavam em bisbilhotar:
– E que isso sirva de lição a todos os bisbilhoteiros
presentes aqui! - gritou para aquelas pessoas.
Por fim, todos saíram, resmungando e debatendo-se
como crianças fazendo pirraça. Então, a portas fechadas, padre
Ignácio começou o interrogatório.
Adriana Matheus
- 447 -
– Senhorita Anna, é verdade que não se lembra de
absolutamente nada do ocorrido ontem à noite?
– Sim, padre, é verdade.
– Sabe que irá a julgamento sob pena de morte?
– Sim, estou ciente de tudo o que ocorrerá comigo.
– Então, sabe que não pode mentir. - padre Ignácio deu
uma piscadinha para mim.
Baixei a cabeça, para que não percebessem nossa
cumplicidade.
– Sim, padre, sei.
– Então, responda-nos: quem estava presente com a
senhorita durante aquele ritual satânico?
– Não houve nenhum ritual satânico. Eu estava sozinha.
Não havia ninguém comigo. Os senhores estão tentando me
confundir.
– Está mentindo! - disse o inquisidor.
– Então, como consegue explicar todas aquelas marcas
no solo e sinais de bruxaria espalhados por todos os lados? -
continuou o padre.
– Não havia ninguém. Só consigo me lembrar das
formas incorpóreas que me levaram no colo para a floresta.
– Oh! - exclamaram os demais presentes.
– Foram os demônios! - sussurrou o magistrado,
fazendo sinal da cruz.
– Então, o que tem a dizer sobre a carta escrita pela sua
governanta? - prosseguiu o padre, pedindo silêncio a todos,
que não paravam de tagarelar.
– Quero que todos os demais presentes prestem muita
atenção. A carta é muito esclarecedora neste caso.
Dizendo isso, tirou a suposta carta de Maria de dentro
de uma bolsinha de couro e deu início à leitura. Seu conteúdo
pareceu intrigar e interessar todos os ouvintes. A carta dizia:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 448 -
Caro senhor Juan,
É com muito pesar que venho através desta dizer-lhe que
estou deixando sua morada. Sinto ter que estar abandonando meus
afazeres e meus compromissos como sua leal serva. Sinto mais
ainda por estar rompendo o compromisso feito à sua esposa, a
senhora Elizabeth Goldin. Mas é com imenso pesar que deixo o
ofício como sua governanta. Embora lhe tenha todo o respeito deste
mundo e gratidão por sua generosidade comigo, venho comunicar-
lhe que não poderei mais permanecer em sua residência. Já faz
algum tempo que venho tentando poupar-lhe maiores desgostos.
Embora eu tenha tentado lutar contra os meus próprios princípios
religiosos para achar uma forma de ajudar e afastar a senhorita
Anna, sua filha, das ciladas do demônio, confesso ser impossível.
Pois a senhorita Anna está totalmente possuída. Embora eu tenha
feito de tudo ao meu alcance, não posso mais continuar, pois me
sinto fraca e incapacitada de lutar contra o demônio que age em sua
filha de maneira desordenada. Ela tem tido ataques de
sonambulismo, influenciados pelos demônios que a possuem durante
o sono. Por várias vezes, segui-a durante a noite até o jardim, onde
ela parecia não estar ciente do que estava fazendo. Creio que isso
deve ter vindo de um local secreto que a senhorita Anna achou sem
querer, depois de ter lido o diário de sua estimada e falecida esposa
Elizabeth. Creio que ela deve ter construído o obscuro local para
culto demoníaco. Peço que o senhor, como um bom pai e sensato
homem, encaminhe-a aos rigores de um convento, onde poderá
afastar-se por completo dessas criaturas horríveis que tanto a
atormentam. Vendo-me, então, de mão atadas, desfaço a promessa
que fiz à senhora Elizabeth em seu leito de morte. Sendo assim,
deixo o meu cargo de governanta disponível a quem quer se
interesse. Espero, sinceramente, que o senhor compreenda minha
atitude aparentemente covarde e leviana. Embora eu o admire muito
e tenha por sua filha alta estima, não quero manter contato com o
demônio ou com alguém que tenha alguma proximidade com ele.
Sem mais,
Adriana Matheus
- 449 -
Maria Constança
Sua criada.
Fiz uma carta de meu próprio punho. Enquanto saíamos
apressadamente no meio da noite, deixei-a cair no chão, perto
da escada, sem que Maria percebesse, para que algum dos
empregados a encontrasse. Ao ler, quem quer que fosse
pensaria que Maria estava abandonando a casa por medo de
parecer ter estado envolvida em rituais de magia negra. Se eu
tivesse deixado a suposta carta que Maria havia escrito para
meu pai diretamente, e ela fosse lida por ele, certamente teriam
perseguido tanto ela quanto Joseph. Àquelas alturas, estariam
mortos. Porém, a carta foi encontrada por Tereza, que
procurou o padre Ignácio na igreja e entregou a carta a ele. Ele
seguiu imediatamente para a casa dos Menellaus, entregando-a
ao meu pai, que a leu em voz alta para o conde e para os
demais presentes. Foi assim que o boato da carta se espalhou.
Ao voltarem todos para casa, não me encontraram. Deu-se
início, então, a uma busca pela redondeza. Em seguida, o
conde enviou seus soldados para me procurarem e acionou o
inquisidor, que estava na cidade disfarçadamente, embora eu já
o tivesse visto em minhas visões junto a Maria.
Todas nós fazemos um juramento em que nos é
expressamente proibido mentir sobre a nossa condição de
bruxa. Devemos manter fidelidade às irmãs, mesmo sob
tortura. É por isso que fiz Maria ir embora fugida. Se alguém a
interrogasse, ela também diria a verdade sobre si, mas nunca
sobre mim. E isso não seria justo com a mulher que, além de
ter me criado como mãe e sido a minha única companheira até
aquele momento, também perdeu sua juventude por fidelidade
e ignorância de meus avós e de meu pai.
Padre Ignácio deu procedimento ao interrogatório:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 450 -
– E então, senhorita Anna? Pode nos dizer o que sua
governanta quis dizer ao senhor Juan, fazendo-lhe tais
acusações?
– Ela estava tentando me ajudar.
– Por quê?
– Porque ela dizia que o demônio pegava-me durante a
noite e fazia de meu corpo o que bem queria.
– Oh! - exclamaram novamente.
– Então, confessa ter pacto com o satã? - interveio o
inquisidor.
– Não! Apenas disse que estou sendo usada, mas não
consigo me lembrar do que faço durante a suposta possessão.
Nem sei o que fiz ontem à noite.
Padre Ignácio socorreu-me, não deixando que ninguém
falasse mais nada. Então, continuou:
– A que veredicto os senhores conseguem chegar?
Por fim, o magistrado falou, ainda meio confuso:
– Diria que teríamos que analisar o caso, com calma, e
interrogá-la em uma corte de maneira formal.
– E os outros demais presentes? O que têm a dizer?
– Concordamos com o magistrado. - disse o chefe da
guarda.
– Então, marcaremos uma audiência pública para
amanhã bem cedo. Assim, depois de ouvirmos o que todos
dirão, daremos o veredicto, decidindo o futuro desta mulher. -
disse o magistrado, todo entusiasmado por finalmente ter algo
para fazer. Afinal, nunca houve um julgamento naquela cidade
pacata.
– Então, prendam a bruxa e levem-na para que aguarde
sua sentença na prisão, antes que ela faça mal a alguém ou
fuja. - disse a condessa, tentando livrar-se de mim.
Adriana Matheus
- 451 -
– Concordo com a condessa: esta mulher é uma
feiticeira perigosa. Eu mesmo quase caí nos seus encantos. -
finalmente o crápula do conde abriu a boca.
Lógico que ele gostaria que eu fosse para a prisão: lá
seria bem mais fácil para ele subornar um guarda e pôr aquelas
mãos imundas em mim.
– De jeito nenhum! Ela é uma moça de família e não
está acostumada a um lugar como aquele. Como pároco desta
cidade, sugiro que ela fique em sua casa, trancada em seu
quarto, até amanhã.
– Senhor Juan tem algo contra?
– Lógico que não. Ela ficará aqui, sob meus cuidados.
– E se ela resolver tentar escapar? Ou matar alguém
durante a noite? - a condessa tentou envenenar mais uma vez
(morro de medo dela...)
– Cale-se, mulher! Está decidido: minha filha ficará
nesta casa até que decidam o que será feito dela.
– Senhor Juan, a senhora sua esposa está coberta de
razão. E se sua filha tentar escapar durante a noite? Ou tentar
algo contra até mesmo o senhor? - disse o inquisidor.
– Garanto que ela não fugirá. Dou minha palavra como
cavalheiro. E quanto à preocupação se ela vai ou não fazer mal
a alguém desta casa, por que o capitão da guarda não coloca
dois guardas na porta, para garantirem a nossa segurança?
Houve novo murmúrio de conversa e, por fim,
chegaram a uma solução.
– Tem razão. Disponibilizarei dois de meus melhores
homens para que fiquem de prontidão, do lado de fora do
quarto da senhorita Anna.
– Então é melhor que coloquem outros dois montando
guarda do lado de fora da casa. – sugeriu a condessa.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 452 -
Ela não parava mesmo. Era uma pena que eu não podia
falar nada. Senão, com certeza teria lhe dito umas boas
verdades. E que bom que haveria guardas em minha casa para
me proteger. Assim, não seria perturbada por ela e pelo conde
durante a noite.
– Que assim seja, então. - disse o magistrado.
– Senhores, se estão todos de acordo, então vão para
suas casas descansar. Teremos um dia cansativo amanhã. -
disse meu pai, parecendo estar exausto.
– Tem mais uma coisa. Que fique bem claro que
ninguém entre neste quarto ou saia. Que esta mulher seja
levada a julgamento assim que o dia raiar. - disse o inquisidor.
– Dou-lhes a minha palavra. - disse o padre Ignácio.
– E a minha de cavalheiro. - confirmou meu pai.
Por fim, saíram todos. Cada um olhando-me com uma
cara pior que a outra. Ao passarem por mim, benziam-se,
como se estivessem vendo em mim o próprio demo. Fiquei
boquiaberta com a atitude ignorante daquelas pessoas. Mas,
ignorantes ou não, o importante é que me deixaram em paz.
Finalmente, pensei comigo. Padre Ignácio, ao passar por mim,
benzeu-me com as mãos, fazendo em minha testa o sinal do
santíssimo e confirmando em seus olhos nosso pacto de
silêncio e cumplicidade.
Assim que a porta fechou-se e, finalmente, o quarto
esvaziou-se, caí sobre a cama e chorei a noite toda. Sequer tive
forças para fazer minhas orações. Por causa dos soluços,
cheguei a engasgar com as palavras. Senti a presença dos meus
amigos espirituais. Mas, naquele momento, tudo o que eu
queria era sentir o calor e o abraço de minha amiga Maria.
Senti tantas saudades... Meu coração doía tanto que, se a dor
fosse real, eu mesma a teria arrancado do peito com as minhas
próprias mãos. Nas horas de muita dor, temos que ter cautela
Adriana Matheus
- 453 -
para não blasfemarmos contra Deus. Pois a fragilidade faz-nos
pecar contra tudo o que é sagrado. Naquele momento, agarrei-
me à fé e ao sagrado, cuja imagem sempre ficava na beira da
minha cama... Tentei desvencilhar minhas lembranças daquele
dia, mas todas as minhas tentativas foram em vão.
Rolei boa parte da noite de um lado para o outro. O
silêncio era torturante. Sempre odiei a solidão. Por fim, acabei
adormecendo com o som mudo do mundo.
“Nunca desista de seus objetivos, nem mesmo quando
alguém tentar frustrá-los. Saiba que somos testados vinte e
quatro horas. Isso é só para que os anjos tenham a certeza de
que nunca iremos desanimar no meio do caminho. Os
verdadeiros obstáculos são aqueles que deixamos para trás. E
a verdadeira vitória é aquela em que aprendemos a
reconhecer de imediato. Siga o seu caminho em paz e deixe
para trás os que tentarem derrubá-lo. Perdoe e deseje que
vivam. A vida é uma vingança - e a morte, um descanso. Pense
nisso”.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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VI – O SEGREDO DOS GIRASSÓIS
dormeci profundamente no início, mas a
madrugada invadiu-me com sonhos turbulentos.
Imagens desconexas iam e vinham, perturbando-
me a mente e a alma. Horas eu acordava como se meu corpo
estivesse tendo uma convulsão; horas visões assustadoras, com
rostos destorcidos e fantasmagóricos, assombravam-me. Era
como se meu espírito já soubesse o que estava para acontecer
comigo. Meus instintos de bruxa estavam agitados como átomos
em movimento.
Quando o dia amanheceu, apenas abri os olhos
lentamente, porque já estava acordada há muito tempo. O sol
entrou no quarto, trazendo sua poesia matinal e, como havia me
deitado com as janelas abertas, da cama pude olhá-lo
despontando no horizonte. Dei uma espreguiçada e tentei
levantar-me, mas minha cabeça doeu e tudo rodopiou à minha
volta. Então, deixei meu corpo cair pesado sobre a cama
novamente.
A noite anterior havia sido uma das piores da minha
vida. A despedida de Maria e as acusações levianas que foram
levantadas em falso contra mim fizeram-me sentir como se o
peso do mudo estivesse sobre minhas costas. Lembranças tristes
A
Adriana Matheus
- 455 -
e saudosas misturavam-se na minha mente. Queria deixar as
lágrimas caírem para aliviar aquela tensão toda, mas não
conseguia. Eram muitos os fatores que me deixavam tensa.
Inclusive a atitude de meu pai preocupava-me: embora ele não
tivesse deixado ninguém me fazer mal, havia alguma coisa de
errado no ar, pois aquela súbita espontaneidade dele em me
defender demonstrava que algo não se encaixava com a real
situação. Aquela atitude estava cheirando a trama e
oportunismo.
A opressão que passei foi muita para uma noite. Precisei
livrar-me daqueles pensamentos para tentar, ao menos, fingir
que existia algo de bom no coração de meu pai em relação a
mim. Comecei a pensar no quanto ele estava sendo enganado
pela esposa e que, embora ele tivesse tido comigo uma atitude
egoísta, preocupava-se com a família. Tentei realmente achar
uma resposta para os absurdos por que eu estava passando. Por
fim, desviei o pensamento de que meu pai era um vilão. Tentei
vê-lo como uma vítima daquela sociedade inescrupulosa. A
minha maior preocupação seria com os demais, que tentariam a
todo custo fazer-me confessar uma coisa totalmente inversa do
que realmente era a tradição da serpente ou tradição da Lua,
como também era conhecida. Meus sonhos de liberdade e
igualdade tornaram-se pesadelos - se é que algum dia pude
realmente ter o direito de sonhar... Incrível como vivi em poucos
dias tudo o que uma pessoa levaria no decorrer de sua existência
para viver.
Devido ao cansaço e à fadiga da noite anterior, acabei
esquecendo-me de tirar as roupas. Deitei-me em uma posição
muito desfavorável, com um infernal espartilho que me
estrangulou a cintura a noite inteira - o que me causou uma
terrível dor na cabeça e no corpo. Minha vontade era de ter uma
varinha mágica igual a dos contos de fadas e, com ela, abrir um
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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vácuo no tempo – sumindo, assim, de todo aquele problema.
Mas, infelizmente, ser uma bruxa também exigia
responsabilidades que não podiam ser ignoradas. Infelizmente,
ser uma bruxa era muito mais do que um conto de fadas ou uma
brincadeira folclórica. As fantasias que se criam sobre nós,
bruxas, quem dera fossem verdade!
Naquele momento, eu estava passando pela fase dos
efeitos e causas. Tudo porque interferi no meu próprio destino.
Havia criticado a minha ancestral Shaara - quando ela tentou
mudar o seu futuro, invadindo o espaço e o tempo -, mas
também mudei o meu, quando não aceitei as imposições do meu
pai. Quis ser livre nas minhas opiniões e vontades - o que, para a
época em que vivia, não era uma coisa normal. Deveria ter
deixado que as coisas fluíssem normalmente e seguissem o seu
rumo certo. Quando comecei a ver meu futuro, deveria
imediatamente ter esvaziado minha mente, como me ensinou
Dona Helena: toda ação leva a uma reação. Novamente,
deparei-me com meus ensinamentos e percebi que havia ido
longe demais, passando por cima de todas as leis da tradição.
A minha vontade de estar ao lado do homem dos meus
sonhos foi tamanha que me levou a estar onde me encontro
agora, nesta cela fria, com condições subumanas. Fui uma
inconsequente e sonhadora. Por mais que sempre tenha lutado
pela liberdade, deixei-me levar pela ilusão e pelos sentimentos
carnais. Definitivamente, o coração é enganoso. O que mais me
entristece é pensar que fiz tudo porque acreditei que poderia ser
salva pelo meu príncipe encantado. Talvez essa seja a maior
falha humana: acreditar na palavra do próximo. Se eu tivesse me
contentado em saber apenas o meu passado, confiado que em
um futuro vindouro encontrar-me-ia com o monge, talvez
tivesse aprendido a confiar na fé, não sendo tão intolerante,
precipitando os efeitos e causas. Deveria ter vivido aquela vida
Adriana Matheus
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de imposições, onde talvez tivesse sido feliz. Poderia ter me
casado com o conde. Certamente, quando ele se cansasse de
mim, trancar-me-ia no convento, onde eu cumpriria meu destino
ao lado do monge. Mas não: quis ir muito mais além e, com
isso, interferi no meu destino, antecipando o que poderia ter
acontecido anos mais tarde. As dúvidas e o se sempre encontram
um lugar em nossas mentes depois que algo desagradável nos
acontece - ou depois de tomarmos decisões erradas, das quais
acabamos por nos arrepender. Naquele momento, precisava
arranjar forças dentro de mim, em um lugar completamente
desconhecido, antes que novamente as fraquezas da minha
mente tomassem conta do meu ser.
Voltemos novamente à minha história, em que meu
destino estava prestes a ser selado. Olhei rapidamente pela
janela, que havia deixado aberta inconsequentemente. Seria
difícil encarar aquela luz. Estava me sentindo como um ébrio
depois de uma noite de bebedeiras, estirada sobre a cama, com
os braços abertos e pensando coisas que nem eu mesma
conseguia distinguir.
Era tudo ou nada. Tinha que ser de repente, em um
supetão. Dei um pulo da cama, caindo sentada em seguida -
quase desmaiei por causa da terrível dor de cabeça. Foi quando
notei que havia um enorme alarido do lado de fora do meu
quarto. Fiquei com os olhos arregalados com todo aquele
alvoroço. Escutei alguém discutindo em um tom de voz muito
exasperado. Era a voz do meu pai, que estava tentando entrar.
Parecia que os guardas não o deixavam. Então, escutei um
barulho estrondoso. Só me dei conta do que era quando a porta
do meu quarto abriu-se e o meu pai caiu quarto adentro. Fiquei
atônita por ter visto aquela cena tão inusitada.
– Pai! É o senhor?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 458 -
Fiquei tão feliz por vê-lo. Estava tão sozinha que, mesmo
que ele me esbofeteasse, ficaria feliz apenas por ter tido o
contato daquelas mãos. Meu corpo tremia tanto que dava a
impressão que eu estava com febre alta. Meu pai levantou-se,
ainda cambaleando por causa da forma com a qual havia
entrado. Correu para minha direção e abraçamo-nos com
sofreguidão. Aquele momento foi único para mim, porque foi a
primeira e última vez que meu pai abraçou-me depois de adulta.
Olhei-o nos olhos, parecendo não acreditar:
– Pai, não sabe o quanto eu estava precisando do senhor.
Estou me sentindo tão sozinha... Estou com medo; minha alma
está fria como meu corpo agora. - disse isso porque senti um frio
que me gelava por dentro.
Ele continuou olhando para mim e disse-me:
– Estou aqui porque confio em Deus e sei que contará a
mim toda a verdade, minha filha. Quero que confesse que foi o
demônio quem a induziu a ter aquela atitude insana. Quero,
também, que diga que foram Maria e Joseph quem estavam
evocando o demônio, que lhe deram uma poção mágica para que
você adormecesse. E que foi assim que eles a levaram para o
meio daquele bosque maldito. Diga isso e poderá ter o perdão da
Santa Madre Igreja. Todos entenderão, pois verão que você é
uma jovem frágil e ingênua e que estava sob o poder e as forças
da magia negra. Aqueles velhos malditos arrependeram-se,
fugiram no meio da noite, sem darem satisfações. Dizendo o que
lhe sugiro, eles levarão a culpa toda, enquanto você se casará
com o conde e irá para bem longe desta cidade. Pense, minha
filha. Eu mesmo ouvi falar de vários casos em que o demônio
toma a forma de pessoas e até consegue conviver no meio de
uma família, sem que alguém sequer venha notá-lo. Por certo,
aceitarão essa história de que Maria evocava o demônio, e de
que Joseph era um bruxo poderoso e fazia uso do maldito
Adriana Matheus
- 459 -
conhecimento com as ervas para lhe pôr em transe. Vamos
resolver isso. Confie em mim e faça o que lhe estou
aconselhando. Tudo dará certo, minha filha. Você vai se casar
com o conde. Com essa feliz e satisfatória decisão, resolveremos
todos os problemas - inclusive os financeiros. Em breve
estaremos todos novamente frequentando a alta roda da
sociedade europeia. E quanto às vias de fato, não se preocupe,
pois todos logo esquecerão. Essa história acabará como mais um
mexerico infundável. Por certo, Maria e Joseph serão capturados
e, mais cedo ou mais tarde, serão mortos, levando consigo esse
segredo. Eu mesmo darei um jeito de impedi-los de dizer
alguma coisa. Esses traidores malditos pagarão por fugirem de
mim assim, como dois ratos, na calada da noite. Verão o quanto
custa terem brincado com alguém da nossa estirpe. Aquela
velha sempre foi uma insolente. Nunca gostei dela. Aquele
velhote não passava de um inútil. Só o tolerava aqui por pena.
Acharam que eu fosse mesmo acreditar naquela maldita carta
que me escreveram? Ambos vão me pagar por terem caluniado a
minha família. Basta, minha filha, que aceite e faça o que estou
lhe sugerindo.
Mal pude acreditar nas palavras que saíam da boca do
meu pai naquele momento. Como ele conseguia superar as
minhas expectativas em relação a ele ser um cafajeste e mau
caráter? Depois de ter ficado boquiaberta com tamanha decisão
vinda da parte dele, respondi:
– Hã!? O senhor deixa-me sem chão, meu pai. Quer
dizer que não veio aqui para me ver? Para saber como estou?
Meu Deus! Definitivamente, o senhor conseguiu se superar. Juro
que achei que estava realmente preocupado comigo. Achei que
poderíamos ter uma chance de resgatar o nosso passado, meu
pai, o nosso tempo perdido. Não estou acreditando no que estou
ouvindo. Como pude ser tão ingênua em relação ao senhor e a
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 460 -
todos? O senhor só está preocupado com as suas dívidas e com
o que as pessoas poderão falar, caso saibam que estamos na
falência. Nada do que estou sentindo importa realmente para o
senhor. Acha mesmo que fui capaz de fazer as coisas horríveis
das quais essas pessoas estão levianamente me acusando? Pai,
nunca fiz pacto com o diabo ou com qualquer outro ser do
inferno. Desde quando o senhor passou a acreditar nessas
sandices folclóricas? Não me lembro de tê-lo visto dando
importância a mexericos. O senhor conhece-me desde criança,
pai. Sabe muito bem que nunca me envolvi em sacrifícios de
espécie alguma. Sabe muito bem que não sou adepta a comer
carne de espécie alguma. E como o senhor pode ser tão cruel
com Maria e Joseph, caluniando-os e acusando-os de coisas tão
bárbaras? Pai, Maria ajudou o senhor a cuidar de mim. Ela
sempre lhe foi fiel! E Joseph!? O pobre homem dedicou os
melhores dias de sua vida cuidando do nosso jardim, entre
outras coisas que o senhor lhe pedia e que ele nunca negou
fazer. Acho mesmo que nunca teve uma companheira. Viveu
nesta casa por amor ao senhor e por mamãe. Meus Deus, pai,
foram as ervas de Joseph e Maria que curaram a moléstia da sua
esposa e tantas outras moléstias que surgiram nesta casa! A
ambição está lhe cegando a visão da verdade. Sinto muito, pai,
mas nunca poderei inventar tais coisas contra Maria e Joseph.
Não posso mentir quanto a isso. Nunca os prejudicarei. Prefiro a
morte a ter que inventar tais atrocidades contra duas pessoas
inocentes, se tudo o que eles fizeram nesta vida foi cuidar de
mim. Portanto, não me peça para mentir, meu pai.
– Então, você é inocente? Graças a Deus! Sabia que
todas as sandices que essas pessoas estão dizendo sobre ser uma
bruxa, entre outras coisas, não passavam de calúnias.
Conversarei com o conde. Sei que ele irá relevar tudo isso.
Afinal, um homem tão bom, fino e...
Adriana Matheus
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– E rico? Não é mesmo, pai? O senhor não vai falar
coisa alguma com aquele déspota usurpador. Será que o senhor
não percebe que o conde nunca teve a intenção de se casar
comigo? Toda essa história leviana de que os colonos, a justiça
local, o inquisidor, e o senhor participaram só serviu de
desculpas para que ele colocasse em ação o que, na verdade, já
estava planejando. Não percebe que a senhora sua esposa está de
comum acordo com o conde? Eles fugirão assim que toda essa
história se apaziguar! Na verdade, pai, sou apenas uma atração,
um esteio para que todos - inclusive o senhor - se escondam
atrás de mim. Assim, enquanto todos estiverem voltados para
mim, não prestarão atenção nos reais fatos que estão
acontecendo. Esqueça o conde, pai. Se vendermos alguns bens,
junto com os dotes que já possuo, por certo o senhor poderá
quitar suas dívidas com ele. A condessa também tem muitas
joias que poderão ser leiloadas. Poderemos nos apertar por uns
tempos. Mas, com o esforço e a colaboração de todos, sairemos
desta situação. Pai, raciocine, suplico! Não há nenhuma
vergonha em ser pobre, ou em estar falido financeiramente.
Vergonha é não ter dignidade e coragem de levantar a cabeça e
seguir em frente. Juntos, pai, como uma família que nunca
fomos, venceremos tudo. O senhor vai ver! Quanto a ser ou não
verdade o que dizem a meu respeito, fica a cargo da sua
consciência. A única coisa que lhe peço é que me aceite como
sou. Ponha a mão na consciência e não acuse Maria e Joseph
levianamente. Pense, meu pai, em tudo o que acabo de lhe dizer.
Seja sensato, pelo amor de Deus.
Ele ficou parado na minha frente, parecendo estar
raciocinando. Por fim, resolveu responder:
– Acha mesmo que vou expor minha esposa e o meu
bom nome ao descaso da humilhação, sendo que tenho a solução
aqui na minha frente?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 462 -
– E qual seria essa tal solução? Vender-me como escrava
branca ou acusar de bruxaria e de crimes levianos dois inocentes
somente para que a senhora sua esposa se safe dos crimes de
luxúria dela? Quer que eu me case com aquele imundo para que,
com isso, o senhor quite as suas dívidas de jogo. É isso que o
senhor espera de mim, não é, meu pai? Se isso acontecesse - o
que não vai -, jamais seria feliz. Nunca mais falaria com o
senhor. Nunca o perdoaria. Antes de ser sua filha, antes de ser
uma mulher que o senhor se sente no direito de leiloar, sou um
ser humano. Sangro, choro, sinto dor e tenho sentimentos. Eu
penso, pai - não sou irracional. Não pode se passar por leigo
quanto a isso.
– Do que você está falando? Está louca! Padre Ignácio
está certo: devemos mandá-la para um convento para se curar
das alucinações e devaneios em sua mente, causados pelo
demônio que já está se apoderando de você. Deve ser um
demônio muito poderoso, pois está influenciando a sua maneira
de entender a realidade da vida. Onde já se viu dizer que mulher
pensa? Desde quando mulher tem algum direito? Onde foi que
ouviu tais insanidades? Nasceram ignorantes e submissas
porque Deus assim quis. Não adianta tentar querer ser diferente,
pois a única coisa para a qual vocês servem é procriar. Não pode
mudar os fatos ou as leis dos homens e sobre elas tentar travar
uma guerra solitária. Não pode mudar o rumo dos fatos - sempre
foi assim e sempre haverá de ser. Você deverá obedecer ao que
lhe for imposto pelos homens ou pelo chefe da casa – que,
afinal, sou eu. Imagina só, uma mulher pensando!
Ele deu um sorriso sarcástico e malicioso e prosseguiu:
– Quem está dormindo é você, Anna. Por certo, o
demônio lhe está embutindo tais pensamentos na cabeça. Mas
assim que for exorcizada, vai recuperar sua sanidade mental.
Vou usar minha influência e meu conhecimento para que vá
Adriana Matheus
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para um convento onde terá tratamento adequado. Por certo, se
não for demônios, deve ser loucura. De lá, poderá ser transferida
para um manicômio, caso seja necessário. Mas lembre-se, minha
filha: basta que diga que entende o que lhe digo, é certo que
envio imediatamente alguém para lhe tirar de lá. Mas é
importante que não se demore nessa decisão, pois já está ficando
velha e logo já não arrumará um partido tão lucrativo como o
conde.
Era inacreditável ter que ouvir aquelas abominações
saindo da boca do meu pai. Mas eu precisava responder antes
que ele me fizesse calar para sempre.
– É! O senhor tem mesmo razão. Não sei o que falo. Por
certo, estou possuída pelo demônio mesmo! Se for assim, que o
senhor e essa gente vejam-me como uma louca endemoniada,
que assim seja. Mas é muito triste saber que o senhor considera-
nos, as mulheres, como um animal irracional. Isso também quer
dizer que, quando o senhor se deita com sua esposa, está se
deitando com uma das éguas do seu estábulo? Meu Deus! Estou
perplexa com tanta atrocidade que sai de sua boca, meu pai. O
senhor prefere deixar-me ser trancada como uma louca
endemoniada em um convento do que ouvir a verdade, do que
fazer a coisa da maneira correta. Se isso é o que o senhor acha
certo, então, cale-me. Faça como todos: sufoque a voz da
verdade. Mate-me, se assim o quiserem. Mas a verdade
aparecerá mais cedo ou mais tarde. E o senhor? Ficará sozinho
com sua consciência e embriaguez.
Disse aquilo porque sentia o forte hálito de bebida que
saía de sua boca. Depois de fitá-lo desafiadoramente, prossegui:
– Vou lhe contar uma coisa sobre sua esposa, pois acho
que o senhor ainda não sabe o que anda acontecendo debaixo do
seu próprio teto. Caso o senhor não tenha percebido, a senhora
sua esposa é uma desfrutável e anda o traindo. Não estou
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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dizendo isso para magoá-lo ou para vingar-me. Mas acredito que
o senhor está sendo ingênuo em relação a essa mulher.
Ele olhou-me fulminantemente e, por fim, respondeu
ironicamente:
– Todos temos que fazer certos sacrifícios para manter a
família, minha doce e querida filha! Aprenda que nada nesta
vida sai de graça.
– O senhor sabia? Como pude ser tão tola a esse ponto!?
Eu o achava vítima. No entanto, o senhor sempre foi conivente
com todas as traições da condessa?
Senti a cabeça dar uma girada, como se o mundo todo
estivesse caindo sobre mim. Era inacreditável que um homem
admitisse aquele comportamento leviano de sua esposa somente
para manter as aparências e o status. Depois de me ver ficar sem
atitude, ele continuou:
– Há coisas que uma esposa tem que fazer para manter
seu casamento feliz. Existem certos sacrifícios que são
necessários para o entendimento de um casal. Em um
casamento, tanto o marido quanto a esposa têm que ser
compreensivos e, muitas vezes, coniventes com certas coisas.
Ora, Anna! De onde você achava que vinham as roupas caras
que você usava? E toda a comida que comemos? Achava mesmo
que eu, à beira de uma falência, poderia suprir o luxo de uma
mulher tão cheia de mimos como minha esposa? Se pensa desta
forma, vejo que realmente é uma tola e ingênua. Tinha muitas
esperanças em você. Cria que, quando crescesse, dar-me-ia certo
lucro. No entanto, está se comportando como a garotinha
mimada e estúpida que sempre foi. Está sendo ingrata com a
condessa. Você deveria ao menos aprender a se calar e a
respeitar quem a alimentou por tantos anos. O obséquio que sua
mãe lhe deixou só poderá ser usado quando seja maior de idade
ou quando sele uma união matrimonial. Portanto, acho que já
Adriana Matheus
- 465 -
está mais que na hora de você ser mais compreensiva e retribuir
todo o sacrifício que fizemos por você. Afinal, se minha atual
esposa faz por mim tais sacrifícios, porque você, como minha
filha, também não pode simplesmente cumprir um simples
pedido meu? Afinal de contas, o conde é um homem ainda
jovem e cheio de vigor. E muito rico, sim: poderá lhe dar tudo o
que desejar. Não terá nunca que passar dificuldades.
– O senhor enoja-me. Está tentando me prostituir como
faz com sua esposa. Saiba que nunca vou ceder às suas
vontades. Prefiro apodrecer no calabouço de um convento como
louca endemoniada a fazer parte deste mundo miserável em que
o senhor insiste em sobreviver. Se já que não se importa com a
reputação de sua esposa, dê ela mesma de presente ao senhor
conde e poupe aos dois o trabalho de fugirem. Mas saibam que
pretendo gritar aos quatro ventos o que estão tentando fazer
comigo.
Meu pai olhou-me nos olhos como se sentisse repulsa
por mim. Esbofeteou-me nas faces, fazendo-me cair deitada
sobre a cama. Levantei-me, colocando as mãos no rosto, mas
nada disse. Novamente, apenas o fitei, tentando reconhecer
quem era o homem à minha frente. Depois que ele me olhou
com desprezo, prosseguiu:
– Então, a partir de hoje, renego-a como minha filha e
excomungo-a como ser humano. Não moverei uma palha para
amenizar sua pena. Por mim, apodrecerá em uma cela escura e
úmida para aprender a respeitar e obedecer às pessoas que só
quiseram o seu bem. E quanto a dizer sobre o que acabamos de
falar, não acreditariam em uma louca tendo crises de possessão.
Eu mesmo farei questão de me certificar de que sua pena será a
mais dura possível.
Ele gritou para que os guardas viessem me buscar.
Naquele exato momento, lembrei-me do pai de minha ancestral
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 466 -
Shaara, também ancestral do meu pai e que morreu pensando
que ela o tivesse traído. Definitivamente, meu pai trouxe
consigo essa revolta do passado. Ele me odiava
incondicionalmente por causa das lembranças da outra vida. Ele,
então, gritou, chamando os guardas e ordenando:
– Guardas! Tirem essa mulher da minha frente! Levem-
na para a carruagem. Já está na hora de cumprir minha
obrigação como cidadão espanhol.
Havia o fato de que ele também estava alcoolizado, mas
o ódio mortal por mim só era justificado por causa das
lembranças inconscientes que ele trazia, achando que Shaara o
teria traído e abandonado ao descaso do destino. O fato de que
eu não me tornaria submissa aos seus caprichos era somente a
centelha para que aquela raiva toda aflorasse. No fundo, ele
estava usando a promessa que o conde havia feito de esquecer
todas as suas dívidas quando firmasse compromisso comigo.
Meu pai estava, inconscientemente, tentando achar um motivo
para que eu fosse trancada em um calabouço e esquecida por
ele, como ele achou que foi no passado.
Por certo, todos viveriam bem. Meu pai continuaria a se
fingir de cego, deixando que o conde saboreasse os carinhos de
sua jovem e desfrutável esposa para, com isso, poder viver de
aparências. Mas, quanto a mim, acabei tornando-me um estorvo,
um contratempo para minha família, já que não tinha mais a
menor serventia. Ter sido esbofeteada doeu muito, mas o que
mais me doeu foi o fato de estarem me negociando como uma
mercadoria.
Aprendi a duras penas que vivemos em um mundo
teatral, onde somos obrigados a fazer parte de uma bela e feliz
historinha escrita pelas mãos dos ditadores, dos opressores e dos
fanáticos religiosos. O problema era a realidade por trás dos
bastidores – essa, sim, era muito triste. Pois, quando caíam as
Adriana Matheus
- 467 -
cortinas da aparência, a feia face da mentira e da falsidade vinha
à tona, dando lugar a uma dura realidade de miséria e fome,
onde os podres não podiam se misturar com a burguesia
decadente, escondida por trás dos bastidores. Eu não era daquele
mundo, nem sabia como proceder no meio de tanta injustiça e
desigualdade. Deus não poderia estar deixando que aquilo
acontecesse em vão. Tinha que ter algum propósito para tanto
sofrimento!
Corrigi imediatamente meus pensamentos para não
blasfemar contra o Pai. Deus não tem culpa sobre os erros da
humanidade. Tudo o que fazemos, mesmo sobre um ato
impensado, é culpa única e exclusiva de nós mesmos. Temos o
livre arbítrio de fazer e falar o que bem quisermos. Por isso,
temos que ter muito cuidado nas horas de dor ou de desespero,
para que não venhamos a fraquejar e blasfemar contra quem nos
deu o direto a escolha. Muitas pessoas se questionam por que
razão Deus, sendo tão zeloso e de absoluto amor, deixou que o
seu único filho Jesus Cristo morresse de uma maneira tão brutal.
Algumas ainda têm a ousadia de dizer que o Pai virou-se de
costas na hora da morte de seu único filho, para não o ver sofrer.
Isso não é verdade. Um Pai zeloso e amoroso nunca viraria as
costas ao seu filho amado. Jesus teve o livre arbítrio e escolheu
a sua sentença. Com certeza, na hora de sua morte, o Pai estava
segurando suas mãos para que o seu filho, assim, não sofresse
mais do que ele havia escolhido. E não nos castigou mais porque
o próprio Jesus o implorou Pai, perdoai-os, porque não sabem o
que fazem... Para mim, Jesus sempre vai ser um mestre em
sabedoria, benevolência e perfeição. Quanto ao Pai maior, este é
indiscutível em suas inúmeras qualidades, pois são supremas e
absolutas.
Quando o oficial chegou, trouxe mais dois guardas com
ele. Baixei minha cabeça e deixei que me levassem amarrada
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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pelos pulsos, como um animal selvagem. A cada volta que o
oficial deu com a corda apertando meus pulsos, senti minha
liberdade indo embora. Nada mais tinha a dizer; meu silêncio o
faria por si. Por mais que qualquer pessoa passe por um
momento de irracionalidade e insanidade, ela sempre tem um
momento chamado de consciência. Ninguém nesta vida se livra
da consciência. Ela é como um grito que nunca se cala dentro da
gente. Mesmo que mantenhamos uma aparência de
tranquilidade, mesmo que não tenhamos a coragem de admitir o
quanto somos falhos e que cometemos injustiças, esse grito
vem, mais cedo ou mais tarde, para nos mostrar o quanto somos
falhos.
Fechei bem os olhos e apertei as mãos sobre o rosto.
Queria esconder-me de toda aquela vergonha. Acabei desabando
em prantos. Meus soluços tornaram-se compulsivos. Por mais
que não queiramos fraquejar, a dor da decepção torna-se um
ponto de partida para a vulnerabilidade. Afinal, somos seres
humanos e, como tais, temos sentimentos. Não tive coragem de
olhar para o meu pai nem que eu quisesse. Levantei a cabeça e
engoli as lágrimas. Não daria o gosto da derrota nem a ele nem
àquelas pessoas. Quanto mais fracos aparecemos perante os
inimigos, mais eles se sentem no direito de nos pisarem. Temos
que ter na mente as seguintes palavras: não damos asas a cobras
e nem cutelo ao carrasco, porque inimigo se vence com
determinação, coragem e oração. O silêncio é a maior arma
que o ser humano tem nas mãos. A confiança em Deus e na
espiritualidade amiga é a única certeza de que venceremos todas
as barreiras. A fé é uma noite negra: não sabemos se seremos
salvos, mas temos a confiança de que seremos. É como se atirar
de um despenhadeiro para se livrar de um dragão. Não
saberemos se a voz que nos impulsiona é ou a não a de Deus,
mas temos que arriscar. A vida é um risco constante. Quem não
Adriana Matheus
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arrisca, nunca vai ter a certeza se poderia ter dado certo ou não.
São as incertezas que nos fazem pensar. São os erros e os
tropeços que nos fazem crescer. Não existe este ou aquele que
nunca deixou de aprender algo. Existem, sim, pessoas que
preferem dizer que não se lembram de nada que lhes aconteceu.
Essas pessoas só fazem isso quando se trata de algo que elas
fizeram a alguém – porque, quando se trata de algo que foi feito
a elas, lembram-se por toda a eternidade. Nossos erros nunca
são visíveis ou lembrados. Nunca seremos capazes de admitir
que fazemos coisas que prejudicam o nosso semelhante. Mas, se
em algum momento alguém nos faz qualquer coisa que não nos
deixa satisfeitos, corremos em apontar o erro dessa pessoa.
Assim, ninguém vê o nosso. É fácil viver assim, não é?
Desmemoriado, sem lembranças, vagando sobre o lago do
esquecimento. Ouvir o que alguém tem a nos falar é essencial -
mas aprender com os nossos próprios erros é indispensável. Isso
não significa que nunca mais vamos errar. Porque erramos todos
os dias, todas as horas e não pararemos nunca. Isso porque
somos burros demais? Não. Porque somos fracos e não
controlamos nossos impulsos.
Quando começamos as descer as escadarias, mantive-me
em silêncio. Ao terminar, pude ver que os demais presentes iam
abrindo alas para que os guardas passassem comigo. Aquelas
pessoas que se encontravam nos degraus olhavam-me como se
sentissem por mim uma grande repulsa. Não vi a condessa - o
que foi uma surpresa. Ela não estar presente para se vangloriar
da minha derrota significava que ela estava aprontando alguma
coisa. Esse pensamento gelou-me a espinha.
Tereza, ao ver-me, caiu em prantos. Tentei passar as
mãos em seu rosto quando passamos por ela - que estava em um
dos degraus-, mas o guarda puxou minhas mãos. Um dos
guardas quase me derrubou, empurrando-me pelas costas no
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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final da escada. Só não caí porque o outro, que segurava as
cordas, puxou-me para junto dele. Um guarda ainda muito
jovem que estava na porta, esperando para abri-la, zombou de
mim quando me viu escorregar:
– Voe, bruxa maldita!
Parei no hall de saída e dei uma última olhada para me
despedir do lugar onde passei toda a minha vida. Foi a última
vez que vi minha casa.
O guarda novamente empurrou-me porta afora, tentando
mostrar-me que não podia parar. Cambaleei, mas não caí. Do
lado de fora, fui observando o jardim e as lembranças do
passado me vieram à mente: coisas muito pessoais, como o
cheiro das rosas que Joseph sempre me dava pela manhã; e
quando Maria me trazia sumo de frutas frescas embaixo do pé
de cedro. Esbocei um discreto sorriso. Olhei para tudo e disse
Adeus!, antes que o guarda me jogasse carruagem adentro.
Amarraram minhas mãos na portinhola, na parte de
cima, fazendo com que meus braços ficassem pendurados. Vai
ver acharam que eu iria fugir. E se o fizesse, para onde iria? E
para que tanta violência? Será que os supostos demônios em
meu corpo poderiam me possuir e me fazer sair mordendo a
todos? Certas medidas de segurança eram desumanas e
desnecessárias. Mas eram usadas para que a população ficasse
acuada e respeitasse as autoridades locais.
Comecei a bater o queixo. Sentia frio, pois saíra sem ter
a menor chance de levar um xale. Embora o sol já tivesse
despontado no horizonte, a neblina ainda era muito densa e, por
certo, choveria naquele dia, pois o céu estava cinza.
Olhei mais uma vez para a casa que um dia foi o meu
habitat. Vi à janela a condessa, que observava tudo por trás das
cortinas da sala. Pela distância em que se encontrava, não dava
Adriana Matheus
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para saber o que ela estava pensando. No mínimo, seus
pensamentos eram de vitória.
Às vezes, julgamos e interpretamos mal as pessoas. A
condessa não era minha amiga, mas mesmo assim a entendia.
Ela era mais uma vítima de meu pai e daquela sociedade
machista. Entendia-a e não esperava ser entendida por isso.
Sabia que ela vingava em mim todas as suas frustrações. No
fundo, era muito difícil para ela ter que ser submetida a tais
coisas - logo ela, que sempre tivera de tudo. Casou-se porque já
estava com 28 anos e o pai não poderia ficar com uma filha
solteirona em casa. No fundo, o pai da condessa quis livrar-se
dela como o meu. Embora a entendesse, não significava que
eram justificáveis seus atos de maldade comigo. Mas é a vida!
Tornamo-nos vítimas das frustrações das pessoas com quem
convivemos. Mesmo sabendo que meu destino não seria dos
melhores, compadeci-me por vê-la ali, atrás das cortinas, pois
acabaria por se afundar nas bebidas e também passaria a gritar
com as paredes, pois não teria nem a mim nem a Maria para lhe
servir de esteio. Quando o conde se cansasse do seu
brinquedinho, descartá-la-ia, deixando-a ao relento.
Definitivamente, deve ter sido muito difícil para a condessa ter
deixado seus sonhos, sua vida e, provavelmente, um amor. E
agora lá estava ela, vivendo ao lado de um homem muito mais
velho, que bebia dia e noite e era um compulsivo por jogos. Por
não cumprir mais os deveres como marido, fazia vistas grossas e
deixava-a ter seus amantes para, com isso, lucrar também.
Era bizarro e inacreditável saber que os homens usavam
seu poder sobre as mulheres para fazê-las suas meretrizes
particulares. Logicamente, isso acontecia debaixo dos seus
próprios lençóis. Mesmo sabendo que o adultério era
considerado um crime hediondo para a Santa Madre Igreja, os
nobres não só o praticavam às escondidas, mas também
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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prostituíam suas esposas, fazendo-as cometer o mesmo crime.
Pois, para a sociedade, o importante era manter as aparências.
Também tinha o fato de que, enquanto estivesse dando lucros
favoráveis à Igreja, o povo não faria mal algum. Mas tinham que
se manter rigorosamente em dia com seus dízimos, entre outras
coisas. Qualquer deslize seria imperdoável e prejudicial à saúde
deles. Logicamente, todos sabiam das depravações dos nobres.
Mas era mais sensato que permanecessem calados. Assim, a alta
sociedade permanecia intacta.
Aqueles hipócritas depravados comiam e bebiam às
custas da desgraça alheia - da escória, como chamavam os
menos favorecidos. Repudiavam a pobreza como se eles fossem
vermes. Mas era o lodo de suas atitudes que destruía a raça
humana. Vivi em uma época onde a degradação não era só dos
corpos maus cheirosos. Vivi em uma época onde a
insociabilidade e a hipocrisia tomavam conta da humanidade
como uma doença contagiosa. As pessoas não se misturavam
umas com as outras. Os pobres tinham um espaço na exclusão.
Tinham que viver escondidos. Pessoas com deficiências eram
excomungadas ou tinham que pedir esmolas nas ruas. Os
negros, estes então... Sofreram com o preconceito dos que se
diziam ter poder sobre as pessoas. Gostaria de ter podido fazer
alguma coisa, mas só fui descobrir meu real caminho quando já
estava na hora de me encontrar com meu destino. As crianças
eram obrigadas a fazer duros trabalhos, enquanto as filhas das
senhoras feudais sequer podiam vestir-se sozinhas. Se um
menos favorecido ou uma mulher, como no meu caso, os
desafiassem, por certo poderia considerar-se morto. Mesmo que
confessassem e se arrependessem, como lhes era imposto muitas
vezes, por certo faltar-lhes-iam alguns pedaços do corpo. Aí,
sim, estariam fritos em óleo fervente, pois como
sobreviveríamos em uma sociedade totalmente preconceituosa?
Adriana Matheus
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Ninguém lhes daria trabalho nem esmolas, e ninguém se casaria
com uma ex-bruxa. Principalmente porque nunca existirá ex-
bruxa. Uma vez conhecedora da magia, não adianta tentar se
converter.
As pessoas que eram consideradas bruxas, mesmo que
fossem perdoadas pela Santa Madre Igreja, jamais obteriam o
perdão. Mesmo demonstrando arrependimento, elas acabariam
mendigando, pois o povo nunca mais as olharia com os mesmos
olhos. Uma vez pagão, sempre pagão. Se eu tivesse aceitado o
que o meu pai havia me sugerido, teria que viver sob vigilância
constante e só sairia de casa acompanhada por um guarda e uma
aia de confiança do conde. Meu pai também poderia ser
chamado a qualquer deslize meu e poderia castigar-me, se assim
achasse necessário. Uma pessoa que estava em uma situação
como a minha, quando morria, era jogada em valas ou enterrada
em locais exclusivos para hereges, excomungados e pagãos. Não
obtinha da Santa Madre Igreja autorização e o direito de ser
enterrada em um cemitério público ou em um local sagrado. Na
maneira de ver desses hipócritas, Deus também não perdoava os
pecadores e os hereges. Eram pessoas que pregavam a palavra
do Criador sem ter o menor amor no coração. Mas, se Deus não
perdoava ninguém, então por que ele mesmo disse Sou a
ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra,
viverá; e quem vive e crê em mim, nunca morrerá?
A única coisa que Jesus realmente fez foi pregar o amor
e o perdão. Ele também nos ensinou que só o Pai poderia julgar-
nos e mais ninguém. Isso me pesou na alma naquele momento.
Se Jesus Cristo foi só perdão e bondade, como poderia o ser
humano, cheio de corrupção, com coração carregado de
maldade, sentir-se no direito de injuriar e julgar o seu próximo?
Por que ser diferente era um crime, um pecado? Por que tinha
que haver somente uma religião que pregasse sobre o Cristo
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 474 -
verdadeiramente? Por que tudo era heresia? Por que as missas
tinham que ser celebradas em latim, se a maioria da população
mal sabia assinar o próprio nome? Aos pobres, quando lhes era
permitido assistir uma missa, tinham que ficar do lado de fora da
igreja. Os negros nem da porta podiam passar. Se a casa era de
Deus, por que tanta desigualdade, preconceito e soberba? Será
que o mundo mudaria algum dia? Será que as pessoas em outra
época, em outra encarnação, seriam mais evoluídas? Será que os
apóstolos também tiveram dúvidas? Pois elas me pesavam o
ser. Que triste ter que fazer parte de uma humanidade tão
desigual! - pensei, por fim. Então, deixei-me levar pela
paisagem...
A caminho da cidade, fui observando tudo ao meu redor
nos mínimos detalhes, numa espécie de despedida fúnebre.
Adorava a cidade de Salamanca, com suas enormes montanhas e
árvores. Esta cidade mágica enfeitiçava os olhos de quem quer
que por ela passasse. Salamanca é uma província raiana da
histórica Região de Leão, na Espanha, e situa-se a nordeste de
Portugal. Também é influenciada pela bacia do rio Douro. Sua
denominação, em idioma local antigo, era doiri. Essa região
chegou a sofrer influências romanas, árabes e diversas outras
mais sutilmente. É uma terra de clima ameno e topografia
variada. A cidade é situada em local mais plano, mas com
montanhas ao norte e ao sul. Dona da penúltima catedral gótica
construída na Espanha, como seus maiores tesouros
encontramos: a Universidade de Salamanca, a segunda
universidade mais antiga da Europa, fundada no ano 1218 por
Alfonso IX de Leão; as Catedrais Nova e Velha; Plaza Mayor;
Ponte Romana, e outros, sem fim. Seu título deve-se ao fato de o
arenito, utilizado em suas antigas construções, apresentar
coloração levemente dourada clara. De acordo com a luz, pode-
se verificar que o título faz juz à sua beleza. Em suas terras, são
Adriana Matheus
- 475 -
produzidos vinho e azeite, e há alguma criação de ovinos e
caprinos. Não possui temperaturas extremas de calor e frio, e
recebe pouca afluência de chuvas. Já em suas montanhas, pode-
se verificar mais abundância pluvial. O mais rico de Salamanca
talvez seja sua história secular, onde se verifica acontecidos
inusitados. Cristóvão Colombo mesmo chegou a passar pela
cidade. Nela tivemos a Inquisição e a migração de judeus,
portugueses, árabes e tantos outros mais que compunham seu
quadro histórico. Também devido à sua localização geográfica,
sofreu influência de correntes celtas em dados momentos e
ocasiões. Talvez daí venha sua significação. Salamanca, com
certeza, seria no futuro um local onde as minhas irmãs poderiam
se encontrar.
Sonhos, belezas e histórias. Tudo isso passava na minha
frente. Eram pequenos momentos dos quais eu sentiria saudade.
Residia dentro daquela cidade uma força maravilhosa e que o
tempo nunca poderia apagar. Nenhuma maldade poderá acabar
com a magia de Salamanca. Isso eu sabia porque estava em meu
coração. Minha alma estaria ali para sempre. Poderiam me tirar
tudo, menos os sonhos e as lembranças dessa formosa província.
Eu era realmente apaixonada por Salamanca, pelo meu país,
minha Espanha... Viajei mentalmente, percorrendo toda aquela
terra maravilhosa com meus pensamentos e lembranças. Só fui
interrompida quando chegamos à cidade e pude ouvir o alarido
das pessoas que estavam nas ruas, naquela manhã de fim de
outono. Pareciam estar sabendo que eu ia ser levada a
julgamento, pois seus olhos curiosos e amedrontados não
desgrudavam da carruagem que estava em disparada. As pessoas
fizeram uma espécie de procissão nas laterais das ruas, de um
lado a outro. Multidões aglomeravam-se nas calçadas. Ouvi
gritos e xingamentos, mas não sabia decifrar nenhuma daquelas
palavras que, por certo, não eram de misericórdia ou de afeto.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 476 -
Impressionante como más notícias chegam rápido! Voam nas
asas do vento.
Minhas mãos e meus braços já estavam começando a
doer e a ficarem dormentes. Percebi, também, que meus punhos
estavam arroxeados. O pior é que nem poderia mexê-los muito,
pois a corda estava muito arrochada e poderia cortá-los, com
certeza. Minha boca estava seca e sentia medo e fome. Que
combinação sem requinte!
Meu pai não estava dentro da carruagem comigo.
Acompanhou-nos a cavalo. O guarda que me escoltava não me
pareceu muito amistoso. Olhava-me com certo pavor, escondido
atrás do semblante fechado. Resolvi permanecer calada, pois o
medo nas pessoas é geralmente muito perigoso. Elas acabam
usando a violência como uma forma de defesa. Então, por
sensatez, evitei até respirar muito alto.
O cocheiro corria tanto que parecia que iria tirar o pai da
forca. Meu estômago começou a embrulhar de tanto que sacudia
a carruagem. Elevei meu espírito ao céu em orações. Em um
instante, estava longe de tudo aquilo. Fechei os olhos bem
apertados, para olhar para dentro da minha alma, tentando achar
algum lugar tranquilo. Quando nos concentramos muito,
chegamos a lugares imaginários. Mas, naquele momento, só
queria me concentrar naquela magnífica paisagem de Salamanca
à minha frente. Viajei mentalmente por todo aquele cenário.
Senti meu corpo leve. Era como se o meu períspirito estivesse se
desprendendo naquele exato momento. Era uma forma de
socorro mental. Eu estava tentando encontrar a paz e segurança
dentro de mim mesma. Realmente, precisava desligar-me
daqueles acontecimentos - ou acabaria ficando louca. Cheguei
até a esboçar um sorriso causado pelo nervosismo em que me
encontrava, mas o guarda cutucou-me com a ponta do fuzil,
fazendo-me sair do meu estado de transe. No mínimo, deve ter
Adriana Matheus
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pensado que eu estaria maquinando algo – ou, quem sabe,
naquela mente poluída, ele imaginou que eu já estivesse
incorporada por algum súcubo.
Súcubo é um demônio com aparência feminina, que
invade o sonho dos homens. Fazendo isso, eles podem
corromper totalmente a pessoa. Súcubos são demônios que se
alimentam da força sexual das pessoas. Quando estes demônios
invadem o sonho de uma pessoa, eles tomam a aparência do
desejo sexual delas e os atacados têm a melhor experiência
sexual de suas vidas nesses sonhos. A energia que vem do
prazer do atacado é sugada pelos súcubos. A palavra súcubos
vem do verbo em latim que quer dizer deitar-se sob. Íncubos são
demônios masculinos que afetam as mulheres. Ambos sempre
agem à noite, enquanto suas vítimas dormem. Para o meu
entender, nada mais era do que uma pessoa com seus desejos
sexuais reprimidos. E isso acabava aflorando durante o sonho,
quando o corpo está livre de represálias. Mas, por ter a mente
ignorante e ingênua, esses pobres tolos saíam a confessar tais
sonhos aos padres, que, por sua vez, condenava-os, dando-lhes
várias penitências e castigos abomináveis. E se o sonho
prosseguisse - o que quase nunca acontecia, porque,
logicamente, quem seria louco de ser torturado tantas vezes? - o
padre ou responsável diria que o infeliz estava dominado por
demônios da luxúria. Nem quis pensar no que aquela mente
libertina à minha frente poderia estar pensando a meu respeito.
No mínimo, achava que eu estava tendo delírios imorais porque
esbocei um sorriso. Mediante aquela cutucada, abri meus olhos
rapidamente e comecei a olhar pela janela, já que nem com os
meus pensamentos eu podia ficar sozinha.
Ao passarmos frente à igreja de padre Ignácio, vi um
cortejo fúnebre. O senhor Manoel Borges havia falecido. Houve
certo comentário que poderia ter sido por causa da peste, mas
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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nada havia sido comprovado. Todos pareciam não querer falar
sobre o assunto, sendo que a peste era considerada uma doença
do diabo. Próximo à praça principal, algumas moçoilas
desfilavam em seus belos trajes e, ao ver passando a carruagem
em que me encontrava, viraram de costas imediatamente,
impulsionadas por suas aias. No mínimo, pensavam que eu
jogaria um feitiço sobre elas ou, quem sabe, transformá-las-ia
em sapo ou coisa parecida.
Além de ter me tornado a única atração do condado,
também havia me tornado uma aberração da natureza. Sei que,
naquela manhã, não tive a oportunidade sequer de olhar-me ao
espelho, mas tinha certeza de que em minha face não haviam
nascido verrugas da noite para o dia. E sabia que, em meus
cabelos, embora despenteados, não tinham cobras mostrando a
língua. Mas, quando eu olhava para os rostos amedrontados
daquelas pessoas, era isso que elas passavam para mim. Senti-
me um monstro, uma aberração da natureza.
Quando chegamos, finalmente, frente ao tribunal local,
uma multidão já se reunia, aguardando a chegada da atração
principal - no caso, eu. Algumas pessoas estavam carregando
foices e paus nas mãos. Outras trouxeram cesta de legumes e
ovos podres. Senti um calafrio repentino invadir todo o meu ser
ao ver toda aquela gente aglomerada em frente ao tribunal. Por
instantes, achei que nem chegaria a julgamento. Os demônios
não me fariam mal. Mas, com certeza, poderia esperar tudo
daquelas pessoas. Na verdade, sabia que naquelas atitudes
ameaçadoras elas estavam demonstrando uma forma de
autodefesa. Isso foi o que me assustou: o medo que elas sentiam
de mim poderia surtir reações diversas em cada uma delas. As
pessoas, quando estão sendo influenciadas ou passando por uma
histeria coletiva, podem ser muito perigosas, em todos os
sentidos.
Adriana Matheus
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Fui despertada daquele transe de medo pela voz
estridente de um homem. Estiquei o pescoço para ver. Era a voz
do chefe da guarda, gritando do lado de fora da porta tribunal.
Aquele homem espalhafatoso deixou-me ainda mais aflita com o
seu abanar de braços e gritos estridentes. Ele era um homem alto
e muito magro. Parecia ter saído de uma catacumba, pois sua cor
muito pálida e seus olhos extremamente esbugalhados eram
assustadores. E aquele bigodinho, então? Todo engomado sabe-
se Deus pelo quê! Arrepiei-me dos pés à cabeça ao ver aquela
figura exótica e nada convencional. Sua farda não lhe caía bem,
pois ficava curta nas bainhas e justa demais nas pernas e braços.
Eu até poderia ir para a fogueira, mas não consegui deixar de
observar o desleixo de quem estava tentando achar algum
defeito em mim. O homem, definitivamente, parecia-se com um
boneco fantoche, personagem de alguma cena de um teatro de
horror. Engoli o riso mais uma vez e continuei a detalhar aquele
pobre infeliz que havia caído nas minhas graças. Se eu estivesse
no escuro e sem ninguém por perto e aquela figura tivesse
aparecido de repente, no meio do nada, juro que cairia dura e
tísica ao chão. Santo Deus, tenha pena de minha alma, pensei
comigo! Estava sendo soberba e insana.
A cada instante, ficava mais desesperada. Isso fazia com
que a minha mente começasse a ter devaneios de tolices. No
fundo, não queria acordar para a realidade dos fatos - o que
explicava certos pensamentos ilógicos para o momento em
questão. Embora eu tivesse tentando manter meus nervos sob
controle para não cair em prantos e demonstrar fraqueza, estar
amarrada como um animal e vigiada por aquele soldado na
minha frente estava me deixando psicologicamente
desorientada. Às vezes, quando estamos muito assustados, não
conseguimos sequer ouvir o som que sai da boca das pessoas. Só
vemos que elas mexem os lábios. Era o que estava acontecendo
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 480 -
comigo. Eu estava quase em choque e, por isso, minha mente
tentava ser irracional. Era como se ela estivesse me protegendo
de um colapso repentino. Depois de respirar profundamente,
esvaziando a minha mente, voltei à realidade de novo. Lá estava
o homem comprido a falar e gesticular. Foquei-me em seus
lábios para sair daquela surdez mental e poder ouvir o que o
chefe da milícia estava dizendo. Por fim, depois de muito
esforço, consegui sair do devaneio e ouvi o que estava sendo
dito:
– Vamos, minha gente! Deem passagem para um oficial
em serviço. O show ainda não começou. Vão se afastando da
carruagem e dando-me licença, para que faça meu trabalho
como se deve.
Aqueles braços compridos iam abanando e afastando a
multidão que, aos poucos, foi abrindo passagem. Uma menina
fez-me uma careta e a mãe logo tratou de tapar os olhos da
pobre. Ela só estava brincando, mas a mãe deve ter achado que
eu a transformaria em uma boneca.
– A que horas vão queimar a bruxa? - perguntou uma
velha senhora.
O chefe da guarda, porém, respondeu-lhe, parecendo não
estar interessado em dar muitas respostas:
– Vamos deixar que os responsáveis respondam a todas
essas perguntas na hora certa, minha senhora. Primeiro, ela
deverá ser interrogada. Depois disso é que saberemos quais as
medidas serão tomadas.
Por fim, depois de muito esforço para abrir caminho por
entre a multidão, o capitão da milícia conseguiu aproximar-se da
carruagem. Abriu a portinhola, olhou-me seriamente, sem
nenhuma palavra a dizer, e foi desamarrando meus pulsos. Meus
braços pareciam estar mortos, devido ao tempo que ficaram
suspensos. O chefe da milícia tirou-me da carruagem aos
Adriana Matheus
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safanões. Ele não estava com medo de mim, mas tinha que
mostrar ao povo que tinha autoridade. Fui, em seguida,
amarrada novamente. Só que, dessa vez, com os braços para
trás. Comecei, a partir daquele momento, a sentir que minha
liberdade tinha sido tirada de mim para sempre. As pessoas que
estavam do lado de fora do tribunal sussurraram coisas absurdas.
Outras, ainda, gritaram como se vissem em mim algum tipo de
forma deforme. O pânico de algumas delas causou uma histeria
coletiva. Os poucos guardas que existam ali mal conseguiam
controlar a multidão que havia se formado na porta do tribunal.
Subi a escada empurrada e quase recebi o golpe de uma pedra
que um fazendeiro lançou em mim.
Já dentro do tribunal, fui obrigada a ficar sentada por
horas em um corredor escuro, pois o magistrado e o inquisidor
ainda não haviam chegado. Fiquei observando o corredor.
Metade das paredes era de madeira e a outra metade era
decorada por enormes quadros. Um imenso lustre estava
pendurado sobre a minha cabeça. Seis bancos compridos
seguiam em fileiras corredor adentro, um ao lado do outro. A
porta de entrada era imensa e pesada, e a porta a sala de
audiência era dupla e muito alta. Era um lugar muito frio. Não
tinha nenhuma planta ou decoração que harmonizasse o
ambiente. Tinha certo clima de tristeza no ar. Era como se as
almas do purgatório gritassem por clemência o tempo todo ali
dentro. Eu estava parecendo um porco espinho, de tão arrepiada
que fiquei ao perceber que aquele lugar era um grande portal
para os espíritos sem luz e em aflição.
Dentro da sala de audiência, reuniam-se algumas pessoas
ilustres e importantes, como: o conde Alfred; o chefe da milícia,
senhor Antônio Santos; os dois maiores representantes
paroquiais, padre Ignácio Manuel, padre Alencar Sorancco;
madame Hortência Rivald; a condessa Marli Von Del Prat; meu
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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pai, Juan Vladimir Porto Señra; senhor Álvaro Lancastro; lady
Dornellas Carrucci; um representante legal de sua majestade o
rei, o Lorde Marllon D’ Runchieir; o Lorde. Octávio Güllians
III; o sobrinho de sua majestade a rainha, o duque Philip
Gonzáles; e, por último, o senhor Emanuel Tostes, que
representaria o povo legalmente e por todos faria as perguntas,
se necessário. Esse tipo de coisa praticamente não acontecia,
pois o representante do povo apenas servia para levar as notícias
do que se passava dentro da sala de audiência, já que o povo, em
certos momentos, não podia estar presente.
Por volta de onze e meia, chegaram o magistrado
Narcíseo de Freitas e o inquisidor Nicolau Neufrien. E, para o
espanto de todos, vieram acompanhados do bispo, Dom
Helvécio Hernandez, e do Prior Eurico Pastorino de La
Constance. O alarido foi tamanho quando o homem desceu da
carruagem que, de dentro do corredor do tribunal, pude ouvir. E
até mesmo eu, que já não esperava mais nenhuma surpresa,
fiquei completamente extasiada ao ver tal figura ilustre. Ao
passar por mim, olhou-me de soslaio, demonstrando desprezo
absoluto. Seu olhar era severo e gelava até os que já estavam
mortos. Ele era um homem alto e forte. Sua presença era de
imponência. Dom Helvécio Hernandez era muito comentado por
seus feitos e proezas pela forma como julgava os condenados de
feitiçaria. Diziam que as suas torturas eram implacáveis e que
não havia quem não confessasse todos os pecados a ele. Ele
vestia uma túnica negra comprida. Em sua cabeça, havia uma
mitra preta e vermelha. Ele aparentava ter uns setenta anos de
idade. Pela forma sisuda do rosto, por certo nunca em sua vida
soubera o que era um sorriso. Eu sabia que seria severo e
impiedoso comigo. O homem não era um emissário da Igreja,
mas sim um emissor de Lúcifer. Quando ele estava passando
perto de mim, ventou forte e o cheiro que pairou no ar foi de
Adriana Matheus
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enxofre. Mas o mais estranho era que todas as portas estavam
fechadas. Havia algo de malévolo nele. Pude jurar que uma
sombra entrou ao seu lado na sala de audiência.
Definitivamente, aquele homem não era um ser humano.
Até aquele momento, não pude ter certeza se a sombra
era uma ilusão da minha mente cansada e nervosa, ou se
realmente a sombra entrara na sala com Dom Helvécio. Olhei
para todos os lados, mas nada vi. Até que, de repente, lá estava
ela, flutuando como um lençol negro sobre a porta da sala de
audiência. Era uma criatura irreal, com rosto deforme, olhos
vermelhos e um sorriso apavorante na boca. Quase não dava
para se ver nitidamente, mas os olhos foram o que mais me
assustou, pois demonstravam que era um demônio devorador de
almas. Ficou pairando alguns minutos, parecendo estar
procurando uma vítima para se apossar da sua alma. Tive que
me manter bem discreta para que ele não percebesse que eu
podia vê-lo. Pois, quando um demônio como aquele percebe que
podemos vê-lo, por certo se torna muito mais perigoso. Depois
de alguns minutos, pensei que ele tivesse ido embora. Mas, logo
em seguida, ele estava sobre a minha cabeça e sua forma
incorpórea já havia mudado de novo. Desta vez, ele parecia ter
criado asas de morcego. A figura deforme olhou-me com ar
zombeteiro e maligno. Eu, por minha vez, baixei os olhos,
tentando não demonstrar nenhuma reação. Se a morte tinha uma
forma, ali estava ela, na minha frente, olhando para mim.
Confesso que fique fiquei apavorada. Percebi que, além de
apavorante, era um zombeteiro, pois podia mudar de forma. E
ele, ao perceber que eu podia vê-lo, agarrou-se nas paredes com
suas unhas compridas e começou a correr pelo teto. Depois,
voltou para a porta da sala de audiência e sorriu-me, mostrando
sua língua de cobra.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Certos espíritos acompanham as pessoas quando elas têm
um coração muito perverso. Tais espíritos são vulgarmente
chamados de demônios, atraídos por nossas energias - sendo elas
negativas ou positivas. Ou seja, se vibrarmos boas energias,
vamos atrair bons espíritos. Mas, naquele caso específico, o
espírito já havia tomado conta daquele corpo. Ambos eram
praticamente um só ser. Dom Helvécio estava carregando sobre
o corpo todo o peso das injustiças que cometera contra suas
vítimas. Aquele demônio era o seu julgador e, quando ele viesse
a morrer, com certeza ele seria o seu algoz e o faria ver as
atrocidades cometidas em vida. Por certo, Dom Helvécio havia
julgado muitas pessoas levianamente. O que eu achava mais
interessante era saber que esses homens de Deus faziam parte de
um clero e se diziam ter o poder de julgar e exorcizar as pessoas
supostamente endemoniadas, mas não conseguiam ver o
demônio que estava possuindo o seu próprio corpo.
Certos espíritos atormentam seus obsediados da pior
forma possível. As formas mais comuns de obsessão são: a
obsessão simples, a fascinação, a auto-obsessão, o obsessor por
amor e o suicida. O ser humano é objeto e alvo do processo de
obsessão constantemente. O obsediado trata-se de alguém cujo
débito é muito elevado diante da lei divina.
No plano de evolução espiritual em que se encontra,
nosso planeta é um local de expiação, no qual se concentra um
grande número de espíritos vibrando nas mais baixas
frequências possíveis. Esses espíritos vivem presos a situações
emocionais de ódio, raiva, egoísmo, amor não-correspondido,
entre outras emoções. Estão de tal forma presos ao plano físico
que muitos acreditam ainda estar em seus corpos carnais. Assim,
vivem próximos das pessoas com as quais um dia conviveram,
afastando-se dos planos espirituais mais elevados e atrasando
sua reencarnação. Entre esses espíritos, ainda existem aqueles
Adriana Matheus
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que têm a consciência de que estão mortos e de que já não
habitam mais um corpo físico. Mas, como ainda estão presos às
vibrações muito baixas do mundo espiritual, realizam ações que
visam a prejudicar os vivos e atrapalhar ao máximo a vida e a
evolução espiritual de suas vítimas encarnadas. Esses espíritos
são os que chamamos de obsessores. Sua sensibilidade à Luz
Divina foi embrutecida pelo tempo e por sua natureza moral.
Eles ficam estagnados num círculo vicioso e numa obstinação
tão intensa que não é raro se esquecerem de quando e do porque
de tudo ter começado. Na maioria das vezes, estão tão cansados
e vivem há tanto tempo nessa condição que não sabem mais
como caminhar em direção ao esclarecimento e à Luz de Deus -
necessitando, assim, de toda ajuda que lhes possa ser fornecida.
É fácil para nós imaginarmos o surgimento de tais
obsessões pelo caminho do ódio. Afinal, sabemos do que os
homens são capazes quando tomados pela raiva descontrolada.
Mas também surgem obsessões, até mais graves, em virtude do
amor. O amor gera correntes que, unidas a outros sentimentos
como egoísmo, apego, carência afetiva intensa, falta de auto-
estima, podem produzir obsessões. A revolta, a dor e a raiva
podem mudar a energia do amor. Basta que exista um grande
apego alimentado por um forte egoísmo, gerado num coração
que viva uma grande carência, e teremos um espírito que sentirá
uma grande dificuldade de se separar dos entes queridos. Como
o amor e o ódio estão separados por uma barreira quase
imperceptível, em algumas oportunidades imaginamos que um
espírito está com ódio - quando, na verdade, ele pode estar
escondendo a dor de um amor não correspondido. Ou até
mesmo pode ser uma entidade que ainda quer manter o apego
que tinha em vida, agindo de forma a manter a outra pessoa
presa ao círculo de sentimentos que demonstrava quando o
espírito estava encarnado. De todas as formas de obsessão, a
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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gerada pelo amor é a pior de todas, pois aquele que ama sequer
pode imaginar ou aceitar que, na verdade, está atrapalhando seus
entes queridos. Ele acredita estar ajudando-os, supondo que não
poderiam viver sem sua presença e auxílio. A relação entre o
obsessor e suas vítimas é variada e segue por caminhos
tortuosos, mas que inevitavelmente levam à degradação física e
moral do obsedado - o que, por fim, pode levar à vitória do
espírito obsessor.
As obsessões são as ações que influenciam os vivos,
estimulando reações e semeando a discórdia e o ódio, nascido da
força exercida pelos espíritos inferiores. Eles influenciam
maleficamente, como os demônios das histórias bíblicas. Assim
como ocorre nessas histórias, as formas de o obsessor atuar
também são sutis e intangíveis. Só após muito tempo é que se
tornam evidentes. Nunca devemos tentar fazer um exorcismo ou
desobediar sozinhos, porque não sabemos o grau da obsessão no
qual se encontra o indivíduo. Sem contar que o espírito pode
também interferir na vida de quem tentar atrapalhá-lo. Ele pode
até mesmo se irar contra a terceira pessoa. Nunca tente fazer um
acordo com um espírito. Isso nunca funciona e o obsessor pode
passar a obsediar a quem lhe faz o acordo também.
É muito fácil saber quando uma pessoa está sofrendo de
obsessão, pois se tornam visíveis as alterações de
comportamento físico, mental e emocional. Tais como: olhar
fixo, esgazeado ou fugidio, sem encarar ninguém; tiques e
cacoetes nervosos; desalinho ou desleixo na aparência pessoal;
excentricidade comportamental; agitação; inquietude;
intranquilidade; medo e desconfiança injustificáveis; apatia;
sonolência; mente dispersa; ideias fixas; excessos no falar; no
rir; mutismo ou tristeza; agressividade gratuita, difícil de conter;
ataques que levam ao desmaio; rigidez; inconsciência;
contorções; pranto incontrolável e sem motivo; orgulho;
Adriana Matheus
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vaidade; ambição ou sexualidade exacerbados e exagerados.
Quando a pessoa volta ao normal, após uma crise, geralmente
queixa-se do domínio sofrido e lamenta atos infelizes que
praticou. Na fascinação, os demais notam a fantasia, o
fanatismo, a fixidez, o absurdo das ideias. Só a pessoa obsediada
não nota.
Fiquei ali por horas, tentando achar uma qualificação
para aquele espírito cuja forma mal se podia ver. Aquele
inquisidor não sabia, mas, se houvesse um julgamento divino,
ele seria o primeiro a morrer queimado. Pois aquele obsessor era
o seu algoz espiritual e seria o primeiro a condená-lo.
Todos estavam dentro daquele tribunal havia horas. Até
os espíritos malignos ocupavam seus lugares de destaque.
Enquanto eu, reles bruxa, permanecia sentada em um banco
duro, isolada de todos, no escuro, amarrada com as mãos para
trás e sendo atormentada pelo obsessor de um monsenhor, que
se sentia no direito de me julgar e condenar. O que eu havia me
tornado para aquelas pessoas, um animal? O que de tão grave eu
havia cometido? Será que ter uma ideia própria e formada fazia
de mim ou de alguém uma pessoa endemoniada? Comecei sem
querer a deixar que a revolta tomasse conta de mim. Afinal,
quem sabe com tantos demônios sobre o meu corpo eu poderia
sair e engolir alguém? Com tantas criancinhas deliciosas à solta,
imagina o que eu não poderia fazer! Isso, por certo, eu não faria
- é lógico. E eles nem desconfiavam que o demônio-mor tivesse
acabado de entrar e estava lá dentro, no meio deles. Sacudi a
cabeça com indignação. Ingênuos, pensei em voz alta.
Pedi ao guarda que estava parado à minha frente, em
posição de estátua, que me desse um copo d’água, mas ele
permaneceu em posição ereta. Exclamei várias vezes,
implorando-o, mas o homem nada fez. Acho que ele era mesmo
uma estátua. Mas juro: não fui eu quem o transformou. Era
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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como se eu fosse translúcida para aquele soldado. Não fazia a
menor diferença se eu morresse ou não. Meus braços
começaram a doer novamente. Toda aquela situação estava me
deixando completamente louca. Estava tendo alucinações e
devaneios. Já não conseguia distinguir o certo do errado, a
verdade da mentira. Houve hora em que eu acreditava que eram
verdadeiras aquelas acusações contra mim. A falta de
comunicação e o silêncio absoluto, causado pelo desprezo
daquele guarda à minha frente, já estavam realmente começando
a afetar os meus nervos.
Estava cansada e precisava dormir um pouco para
descansar a mente. Fiquei me lembrando de como era bom
poder cochilar dentro de uma tina com água quente. Fui criada
por Maria e, devido aos seus costumes e à tradição, ela me
ensinou a tomar banho todos os dias. Muitas vezes fazia isso às
escondidas de todos, em meus aposentos, pois não era o costume
europeu. Na verdade, as pessoas não eram apenas imundas de
pensamentos, mas também seus corpos tinham um cheiro fétido.
A senhorita D’Lú contou-me, certa vez, sobre os estranhos
costumes da corte europeia, onde a maioria das pessoas casava-
se no mês de junho, início do verão, porque, como tomavam o
primeiro banho do ano em maio, o cheiro delas ainda estava
mais ou menos tolerável. Entretanto, como já começavam a
exalar certos odores, as noivas passaram a ter o costume de
carregar buquês de flores junto ao corpo, para disfarçar, assim, o
mau cheiro. Os banhos eram tomados numa única tina, enorme,
cheia de água quente. O chefe da família, o rei ou monarca,
tinha o privilégio do primeiro banho na água limpa. Depois, sem
trocar a água - reparem que lindo!-, vinham os outros homens da
casa, por ordem de idade, as mulheres, também por idade e, por
fim, as crianças. Os bebês eram os últimos a tomar banho.
Portanto, quando chegava a vez deles, a água da tina já estava
Adriana Matheus
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tão suja que era possível perder um bebê lá dentro. Ainda bem
que meu pai havia sido doutrinado por minha mãe e mantinha
quatro tinas em nossa casa. Meu pai nunca fora um homem de
tomar muitos banhos, mas também não se preocupava se
tomássemos com frequência. Em compensação, sua adorada
esposa só tomava banho quando precisava ir a uma festividade.
Confesso que seu odor era fétido e, misturado às caras
fragrâncias francesas, dava-me náuseas. E isso piorava no verão.
Comecei a achar graça daqueles pensamentos tolos e
sem lógica. Estava à beira de uma condenação e ainda conseguia
ver graça naquelas pessoas. Estava ficando tonta; precisava
comer alguma coisa. A falta de alimento, principalmente pela
manhã, causava-me tonturas e certos devaneios. Não podia pedir
socorro naquele local, pois poderiam achar que o demônio já
estava se manifestando. Tive de me manter calma, fria e
controlar os devaneios causados pela falta de algo doce,
principalmente. Por isso, Maria sempre se preocupava em me
fazer comer pela manhã e forçava-me a comer algo nos
intervalos das refeições. As vertigens começavam a me causar
devaneios. Estava sentindo a visão turva. Comecei a cochilar,
quando uma voz suave me chamou:
– Anna, precisa manter-se lúcida. Não poderemos ajudá-
la se não estiver consciente. Anna, acorde! Só poderemos ajudá-
la com a sua mente em total estado de lucidez.
Abri os olhos lentamente e vi um homem belíssimo,
vestindo uma túnica muito branca de um fino linho. Seus
cabelos eram cacheados e loiros e caíam sobre os ombros largos.
Seus olhos eram de um azul inigualável. Tinha as faces rosadas
e os lábios grossos. A pele mais parecia uma fina porcelana. Sua
luz deixou-me quase cega. Quando eu já estava totalmente
despertada, ele abriu-me um largo sorriso e falou-me:
– Sabe por que estou aqui, não?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 490 -
– Sim, Heixe. Faço uma ideia.
Ele abaixou e segurou o meu rosto com a mão, que mais
parecia um pedaço de seda. Era a primeira vez que me tocava.
Foi bom sentir um pouco de carinho, pois estava totalmente
indefesa e carente. Depois de afagar meu rosto e meus cabelos,
o espírito falou:
– Vim auxiliá-la, mas preciso que tente reagir. Sei o
quanto é difícil para você estar passando por tudo isso. Mas esse
foi o caminho que escolheu. Não fraqueje agora. Ainda tem
muito chão pela frente.
– Eu sei, mas meu corpo dói tanto! Estou fraca e com
fome. Talvez tivesse sido melhor se eu tivesse escolhido o
destino que queriam impor a mim. Talvez seja melhor eu negar
tudo e dizer que estava sob influência maligna. Estou cansada...
Não quero mais lutar, por Deus. Faça-os parar, por favor!
– Anna, sabe muito bem que não posso voltar o tempo.
Mesmo que negue quem é, não mudará o seu jeito de ser.
Liberte-se de todos esses pensamentos e alimente-se com
orações. Seu espírito está fraco e, por isso, seu aparelho
apresenta fraqueza. Só o amor do Pai Maior pode sustentá-la
nesta hora de dor. Anna, minha doce Anna... Como pode
esquecer tudo o que aprendeu?
Naquele momento, uma estranha força penetrou meu
corpo e entrei em total sintonia com Heixe. Juntos, fizemos uma
oração mental. Meu espírito foi levitando, até que saí do meu
aparelho e me vi fora do chão. Uma imensa luz cercou todo o
corredor escuro e frio. Uma paz tomou conta de mim. Meu
corpo já não sentia dor ou frio, muito menos fome. Suas mãos
alimentaram-me e curaram-me. Havia uma harmonia no ar e
uma doce melodia que imitava os sons das harpas dos anjos.
Naquele estado, pude ver meu aparelho em repouso. Parecia ter
envelhecido uns três anos naquelas últimas horas. Olhei,
Adriana Matheus
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também, para o guarda que vigiava o meu aparelho. Pude
perceber uma áurea de tristeza em torno dele - o que justificava
aquela forma inerte e sem reação aparente. Olhei para Heixe. Ele
parecia ter percebido o que eu estava vendo. Então, emanou
vibrações de entusiasmo para aquele homem, que estava
também precisando de misericórdia. Depois, Heixe pegou-me
pela mão e guiou-me por entre as paredes, seguindo até a sala de
audiência. Por instantes, cheguei a pensar que havia morrido,
mas Heixe explicou-me que eu estava viva e presa pelo cordão
de luz que me segurava ao meu aparelho.
Dentro da sala de audiência, havia um comitê formado
por muitos Lorde, pelo bispo, o prior, entre outros que estavam
discutindo o meu caso. O murmúrio no local era muito grande, o
que me deixou tão confusa, quase não conseguindo entender o
que realmente estavam falando. Passei por todas aquelas
pessoas, mas não puderam me ver. Olhei para o bispo e lá
estava a sombra negra, pairando sobre ele. Na verdade, a
maioria das pessoas que estavam naquele recinto tinha um
obsessor como companheiro. Sabia que aqueles espíritos já
haviam sido seres humanos um dia. Mas, agora, pareciam estar
em decomposição, chorosos, agonizantes... Pareciam terem se
levantado das catacumbas. A maioria era obsessora. Outros,
parentes que só queriam orações. E outros imploravam para que
os ouvissem. Aquilo, sim, era o purgatório. Por isso, todos eram
tão desnorteados daquele jeito. Com tantas pessoas falando em
suas cabeças ao mesmo tempo, como poderiam ter ideias
próprias?
Meu corpo levitava sobre aquelas pessoas e seus
espíritos atordoados. Estava confusa. Na verdade, ainda não
havia me dado conta de minha atual condição. Esse é um estado
em que o espírito não deve permanecer por muito tempo fora de
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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seu aparelho. Isso é muito perigoso e inconsequente, mas confiei
em meu mentor espiritual, pois ele sabia de minhas limitações.
Pude ouvir o que o inquisidor estava falando e, com isso,
sabia com exatidão qual resposta teria que dar. Na verdade, eles
estavam mais assustados do que eu, como se isso fosse possível.
Eu teria que ter muito tato ao lidar com aquelas pessoas, pois,
por serem completamente leigas no assunto da espiritualidade,
poderiam colocar todos os meus planos a perder. Escolhi aquela
sentença e, daquele momento em diante, teria que ter liderança
sobre minhas palavras, pois qualquer deslize poderia condenar-
me à fogueira.
Precisava encontrar o meu monge. Sabia que ele estava
me esperando. Mesmo que todo o sofrimento que eu tenha
passado tenha sido pesado demais, nunca me arrependi do que
fiz, pois cada momento que vivi ao lado do meu amor valeu a
pena. Mesmo que ele tenha me traído... Aquela necessidade dar-
me-ia forças de prosseguir com a minha decisão. Podia senti-lo.
Sabia da sua infelicidade. Sabia como ele estava sozinho e sem
vontade de viver. Meu sofrimento estava ligado à solidão na
qual ele se encontrava. Éramos um só ser. Estava muito perto
para desistir agora. Dei prosseguimento ao aprendizado de
Heixe e deixei que ele me mostrasse o que me esperava. A
senhora gorducha que estava em minha casa, essa sim, era um
grande problema: a cada discussão, ela colocava mais lenha na
fogueira. Ela só estava ali por ser filha de um falecido e rico
proprietário de muitas terras. Por ser uma dizimista aplicada e
mão aberta, tinha o direito de permanecer entre os poderosos,
enquanto isso lhes fosse conveniente. Nunca havia se casado ou
namorado em toda a vida. Só se dedicou à Igreja e aos preceitos
religiosos. Sua língua felina era bastante útil nestes casos de
acusações. Principalmente porque ela julgava saber da vida de
todos do condado. Na verdade, ela queria algo para comentar
Adriana Matheus
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durante sua quinta geração. Em um povoado tão pequeno como
aquele, não se tinha muitas coisas para se contar.
Heixe segurou minha mão e continuamos a ver o quanto
as pessoas cochichavam entre si. Os olhos da condessa pareciam
mortos, visando o nada. Era como se ela estivesse em êxtase.
Por trás de tanta soberania e arrogância, pude perceber a mulher
infeliz e sem vida que ela era. Seu espírito tinha uma cor cinza e
parecia muito solitário. O conde não se desgrudava de meu pai.
Ambos pareciam estar tramando o tempo todo. Algo estranho
naquela amizade começava a me intrigar. Não era só um simples
interesse em me casar com aquele homem. Existia uma espécie
de trama política e financeira. Meu pai fingia não saber que a
esposa era cortejada por outros homens e pelo conde - isso era
conveniente demais. Comecei a ver as coisas como realmente
eram. Aproximamo-nos deles, tentando ouvir o que diziam, mas
o alarido de vozes não nos deixou entender. Por fim, Heixe
achou que já era hora de retornar para o meu aparelho. E foi
bem a tempo, pois o magistrado havia pedido para que me
buscassem para o interrogatório. Como em um flash, meu
espírito passou rapidamente por todas aquelas pessoas,
atravessando as paredes e jogando-se em meu aparelho
inconsciente. Senti como se um raio atravessasse meu corpo.
Acordei de supetão, já com dois guardas ao meu lado,
sacudindo-me e entreolhando-se, parecendo achar que eu estava
possuída.
– Levante-se! - disse um guarda ainda muito jovem,
chutando as minhas canelas.
Levantei-me com a ajuda do outro, que segurou meu
cotovelo, dando-me certo apoio. Segui-os corredor afora.
Entramos por uma enorme porta, quase negra, talhada à mão.
Ao abrirem a porta pesada, fez-se total silêncio no recinto.
Todos se viraram para trás, levantando-se. O júri já estava
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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formado e o magistrado estava usando uma enorme peruca
cacheada. Tanto garbo e, por certo, era careca. A peruca estava
lotada de piolhos. Não conseguia parar de achar defeitos nos
santos que me acusavam de megera. Deu-me vontade de rir,
porque não conseguia ver como pessoas tão imorais e cheias de
defeito conseguiam achar em alguém como eu um defeito. E o
que é pior: inventavam mentiras atrás de mentiras para
satisfazerem os egos cheios de blasfêmias. Meus pensamentos
eram esdrúxulos e levianos. Mas não poderia falar. Então,
pensava. Sacudi a cabeça, prometendo não pensar mais
sandices. Embora já estivesse ciente do que me aguardava, senti
um frio na espinha! O que mais me doeu foi ver meu pai ali,
olhando-me tão friamente, como que desejando a minha morte.
Não me importava o que aquelas pessoas pensavam de mim,
mas o que realmente me doía era saber que alguém do meu
próprio sangue rejeitava-me não por dúvida sobre o meu caráter
pessoal, mas por saber que eu era um risco à sua reputação
como homem e por eu não ter baixado a cabeça às suas ordens
inescrupulosas. O conde olhou-me de cima abaixo, com um
desdém e desejo abomináveis. Os demais presentes esquivavam-
se, com medo de me tocarem e virarem pedra ou algo assim.
Talvez uma pessoa contaminada pela peste não fosse tão
repulsiva aos olhos deles como eu estava sendo naquele
momento. Baixei a cabeça, pois sabia que quanto mais humilde
eu fosse, melhor para mim seria. Sentaram-me em uma
cadeirinha em frente ao magistrado. O alarido de vozes começou
novamente, assim que me sentei. O povo estava muito agitado
do lado de fora, mas o magistrado e os demais queriam
interrogar-me primeiro.
– Levante-se, por favor! A senhorita tem noção do
porquê de estar aqui? – perguntou-me o magistrado.
– Não, excelência!
Adriana Matheus
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Houve um alarido de exclamação, como se eu estivesse
mentindo. Por fim, prossegui:
– Não tenho certeza, excelência. Estou muito confusa
quanto às acusações.
– Então, nega ser uma bruxa?
– Não, excelência.
Houve um alarido ainda maior.
– Nego apenas ter cometido tais crimes contra a Igreja.
Sempre frequentei as missas aos domingos. Nunca faltei com a
eucaristia e sempre comunguei. Mas não nego que sou uma
bruxa.
– Blasfêmia! - gritou o advogado de defesa da Igreja.
– Protesto! Esta mulher frequentava a igreja quando
ainda não estava possuída pelo demônio.
– Protesto aceito. A senhorita deve ser mais explícita
quanto às suas palavras. Como pode não negar que é uma bruxa,
mas negar estar praticando a bruxaria?
– Só conheci os caminhos da magia há pouco tempo,
excelência. Mas confesso que tudo o que aprendi já estava
dentro da minha alma. Lembro-me de cada símbolo. Mas nunca
cometi nenhuma das atrocidades das quais estão me acusando.
– Acredito neste lado de sua história. Mas o que me
intriga é como foi que conheceu o caminho que a levou a
praticar coisas contra a Igreja, sendo que não tinha outra
companhia além da sua governanta, como mesmo disse - já que,
logicamente, é pouco provável que sua madrasta tenha se
envolvido com tais coisas ilícitas aos olhos da Igreja e de Deus.
Diga-me, senhorita Anna, é esse o seu nome, creio, ou o
demônio também usa outro nome quando a possui?
Os demais que estavam no recinto riram, formando um
coro, enquanto o advogado de acusação olhava-me
zombeteiramente por debaixo dos óculos. Ele era um homem
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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gordo e de meia idade, com bochechas de cachorro. Por fim,
depois daquela pequena pausa para servir de deboche, respondi
de cabeça baixa, tentando demonstrar humildade:
– Sim, este é meu nome, excelência. E não, o demônio
jamais esteve em meu corpo. Isso é um equívoco, excelência.
– Então afirma que sua governanta impunha-lhe cometer
tais crimes?
– Não, nunca disse isso! Maria era uma santa. Ela
sempre me ajudou em tudo e foi a pessoa que me criou. - fiquei
nervosa.
Estalando os dedos, ele disse:
– Mas tenho aqui relatos de que esta senhora – Maria,
como a chamavam - vem de origem cigana, e fazia chá para a
senhorita tomar durante a noite. Isso está certo?
– Sim. Eu perdia o sono à noite e Maria dava-me chás,
para que eu conseguisse dormir.
– E esses chás ou poções eram feitos do quê?
– Não sei. As receitas são sempre secretas. Maria trazia-
as guardadas sob sete chaves.
– Não tenho mais perguntas, excelência. – virou-se para
os demais.
O magistrado tornou-me a interrogar:
– Então, essa mulher, Maria, entorpecia sua mente com
suas poções? Fazendo-a ficar sobre o poder do demônio, em
estado de sonambulismo, a senhorita saía durante a noite e
atacava os aldeões, não é isso?
– Não, nunca houve tamanha barbárie. Quando eu
tomava os chás de Maria, dormia profundamente.
– Como a senhorita pode ter certeza, se diz dormir
profundamente? Mande entrar o agricultor Antônio de La Paz.
Trouxeram um homem magro e muito humilde diante do
tribunal. O advogado levantou-se e fez-lhe inúmeras perguntas.
Adriana Matheus
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Esse homem fazia pequenos serviços para os fazendeiros locais.
Não poderia entender o que ele poderia ter com o meu
julgamento, pois mal o conhecia e nem nunca na vida trocara
uma palavra sequer com ele.
– O senhor é o agricultor Antônio de La Paz?
– Sim, senhor. Sou eu mesmo.
– Conhece essa mulher aí, na sua frente?
– Sim, senhor. Conheço sim.
– De onde o senhor a conhece? Poderia dizer a todos os
demais presentes? Devo lembrá-lo de que está sob jura.
– Vi-a pela noite, no meio das plantações, em trajes
íntimos. - ele disse isso com a voz trêmula e a cabeça baixa,
pelo medo de que alguma coisa que dissesse não fosse o que lhe
haviam mandado.
– Não ouvi. Poderia responder um pouco mais alto dessa
vez?
– Via-a frequentemente a perambular pelos campos, à
noite, quando a Lua estava alta no céu. Ela estava quase
desnuda. Eu até sentia vergonha por ela. Tentei várias vezes
pedir a ela que fosse para casa, porque não era certo uma
senhorita ficar daquele jeito no meio as hortaliças.
– E ela o ouvia?
– Não, senhor. Parecia estar em transe. Depois é que fui
saber que era uma bruxa e que estava amaldiçoando as
plantações.
Todos murmuraram... Ele prosseguiu:
– É verdade, sim. Logo depois, a plantação do senhor
Leônidas secou por completo. Pode perguntar vós micês para
ele. - ele se agitava e apontava o indicador na direção de todos.
– Então, o senhor quer dizer que esta mulher foi a
responsável pela colheita do fazendeiro Leônidas não ter dado
certo?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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– Sim, senhor. Foi ela sim.
– Por que o senhor nunca contou tal fato às autoridades?
– Porque tive medo de que ela fizesse algo ruim contra
minha família, senhor.
Tive mesmo vontade de fazer algo mais naquele
momento. Tive vontade de estrangular aquele estúpido, por
mentir tanto e vender-se por tão pouco. Ele é quem foi
negligente em seu trabalho e deixou que a plantação do homem
morresse. Aproveitou-se daquela situação para que o fazendeiro
não o punisse por sua falta de atenção ao trabalho. O cheiro da
bebida em seus lábios era insuportável. Ele era um mau caráter e
estava se fazendo de vítima.
Meu acusador mandou chamar uma senhora de nome
Samanta Castro. As mesmas perguntas de início foram feitas à
mulher. Depois, prosseguiu-se:
– É verdade que a senhora estava grávida de uma
criança? Uma menina, por assim dizer?
– Sim, é verdade.
– O que houve com a sua criança?
– Morreu. Isso foi logo depois que essa mulher apareceu
perto de minha casa, à noite.
– Como assim? Poderia explicar-se melhor?
– Eu já tinha ouvido o boato de que a plantação do
fazendeiro Leônidas tinha sido destruída por uma bruxa. Mas
sou muito devota do sagrado coração. Então, não dei
importância aos boatos. Mas, numa noite linda de Lua, eu estava
colhendo minhas roupas no varal e meu bebê, que estava com
dois meses, estava em uma cestinha bem perto de mim, para o
caso de, se chorasse, eu o ouvisse.
– E o que houve? Conte logo, mulher. - disse o
advogado, exasperado.
Adriana Matheus
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– Então, acabei de colher toda a roupa e percebi que algo
errado tinha acontecido ao meu bebê.
– Explique-se, mulher! Pare de rodeios teatrais e vá
direto ao assunto.
– Fui até o cestinho e meu bebê já não estava mais lá.
Havia desaparecido como que por encanto. Gritei meu marido
Jésus e fomos os dois procurá-lo.
– E o encontraram?
– Sim. - a mulher desabou em prantos e não conseguiu
mais falar uma só palavra.
O magistrado pediu para que chamassem o marido dela.
– Que entre o senhor Jésus, o agricultor, para que dê
continuidade aos acontecimentos seguintes.
Fez as mesmas perguntas iniciais ao homem, que mais
parecia um pobre carvoeiro de tão mal vestido e sujo que estava.
– Essa mulher chamada de Samanta Castro é sua esposa?
– Sim, senhor; é sim.
– O senhor e esta mulher tiveram uma criança?
– Sim, senhor, tivemos sim. - o homem respondia com a
cabeça e com a boca.
– E o que houve com a criança, afinal?
– Está morta, senhor. - o homem baixou a cabeça, num
gesto de respeito e tristeza.
– E o senhor, Jésus Justos, é assim que lhe chamam,
certo?
– Sim, senhor; é sim.
– Então, senhor Jésus Justos, de que morreu a criança?
– Não sei como morreu, senhor... Mas a achamos sem a
cabecinha.
– Meu Deus! Que horror! - exclamaram todos os demais.
– E como, senhor Jésus Justos, acha que aconteceu essa
barbárie, essa monstruosidade?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Apontando para mim, sem pestanejar, ele respondeu:
– Isso não sei dizer, senhor. Mas minha esposa, aquela
noite, jura que viu essa mulher que está sentada ali rondando lá
pros nossos lados naquele dia. Até fui atrás dela com uma foice,
mas não achei a famigerada, não. Acho que usou alguma magia
para evaporar-se daquele jeito.
– O senhor tem certeza de ser a senhorita Anna?
– Disso eu tenho sim, senhor. Porque somos pobres, mas
nunca haveríamos de falar mentira. Minha mulher nunca me deu
motivos para eu desacreditar dela, não, senhor. E se o senhor
quiser, pode perguntar por aí que vai ver que sou uma pessoa
que honra as calças que veste.
Todos caíram na gargalhada da maneira simplória como
falava o pobre homem. Ele até poderia ser uma boa pessoa e ter
uma honestidade acima do normal. Mas a esposa dele estava
mentindo. Ela deixou o bebê ao relento enquanto catava as
vestes do varal e, por certo, um animal pegou o bebezinho. Ela
ficou tão aterrorizada com o que vira que criou essa fantástica
história em sua mente. Também ficou com medo da represália
do marido. E é lógico que a bruxa tinha que ser eu, quem mais?
Eles supunham que tinha uma bruxa local. Mas, quando se
espalharam os boatos a meu respeito, juntaram tudo e fizeram
uma história. Eram muito fáceis de manipular. Caso não
fossem, jamais estariam testemunhando. O julgamento
prosseguiu:
– Por que não denunciaram às autoridades locais?
– Tivemos muito medo por causa que ela é uma bruxa.
Ficamos com medo de que minha mulher nunca mais
engravidasse, caso ela jogasse uma praga.
- Será que algum de vocês, aqui presentes, tem ainda
dúvidas de que essa mulher é uma bruxa, que cometia atos
satânicos? Não me importa se estava ou não inconsciente. O fato
Adriana Matheus
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é que essa mulher admitiu e existem vários fatos que
comprovam a veracidade das informações. Se não estiverem
satisfeitos e quiserem mais testemunhas, peço permissão para
que o senhor magistrado aqui presente – logicamente, com a
permissão do senhor excelentíssimo Dom Helvécio Hernandes,
inquisidor de alto valor e escolhido por nosso querido rei Filipe
– mostre, a caráter decisivo, as testemunhas impostas a este júri.
O inquisidor olhou para o magistrado, assinalando
positivamente com a cabeça, como que dando permissão para
que as outras testemunhas de acusação entrassem. O magistrado
mandou que uma porta lateral fosse aberta. Entraram umas cem
pessoas que já estavam aguardando do lado de fora.
Logicamente, a plebe não poderia faltar, pois quem seria melhor
para encenar aquele teatro de horror? Logicamente, os ingênuos,
os analfabetos e, enfim, todos aqueles que sempre foram
rejeitados, mas que representavam a força final da palavra. Pois
essas pessoas julgavam pela aparência e pelos mexericos. Eram
pessoas altamente autossugestionadas e de fácil manipulação.
Cordeiros medrosos e vulneráveis, pessoas que muito tinham a
perder. Como a voz do povo é a voz de Deus, eu seria cozida
viva, por assim dizer.
Quando toda aquela gente acomodou-se, como previsto,
o alarido ficou maior ainda. Então, o magistrado deu um grito,
batendo com seu malhete em cima da mesa, pedindo silêncio. A
voz do magistrado ressoou pelo recinto como o ronco de um
trovão. Todos pareciam estar bastante nervosos e apreensivos.
Aquele alarido só fazia deixar todos ainda mais agitados.
Sempre existem pessoas capazes de tornarem as coisas ainda
muito piores do que elas realmente são. Podia ouvir os rumores
horrorosos a meu respeito. Podia ouvir algumas pessoas
chamando-me de devoradora de bebês! Havia malícia, maldade
e muito interesse político naquilo tudo.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 502 -
Eu era só uma desculpa para encobrir o que realmente
estava acontecendo - ou seja, esconder o triângulo amoroso que
existia entre meu pai, o conde e a condessa. Também, enquanto
todos estivessem prestando atenção em mim, não investigariam
o conde como suspeito de um assassinato.
O inquisidor, após ler publicamente a carta enviada pelo
rei, tomou cuidado para não declarar em sua sentença absolvição
alguma, ou que eu - a acusada - pudesse parecer inocente ou
isenta. Sua intenção era esclarecer bastante que tudo foi
legitimamente provado contra mim. Desta forma, se eu fosse
trazida mais tarde novamente diante do tribunal do júri,
indiciada por causa de qualquer outro crime, poderia, assim, ser
ordenada sem problemas, apesar de a sentença de absolvição já
ter-me sido negada. O magistrado, antes de passar a palavra
final ao inquisidor, perguntou-me uma última vez - não porque
estivesse interessado em saber a real verdade, mas porque na
sala havia muitas pessoas influentes e ele não poderia parecer
injusto:
– Tem mais alguma coisa a declarar? Saiba que a
senhorita está entre amigos e parentes, pessoas que a amam e
que realmente se importam com a sua saúde e seu bem estar.
Creio que agora é a hora de dizer algo que possa ajudá-la em sua
sentença. Saiba que não poderá nunca mais comentar sobre os
fatos ocorridos nesta sala. Portanto, esta é a hora.
Levantei-me, meio cambaleando por causa das muitas
horas que já estava sem me alimentar, olhei ao redor e voltei em
direção ao magistrado, fitando-o nos olhos. Ergui minha cabeça
e disse:
– Não tenho mais nada a dizer ou declarar. Não tenho
nenhum amigo, já que todos vivem o perjúrio de um suposto
purgatório. Não confio em ninguém, já que me lançam sobre a
desgraça humana. Não tenho nenhum laço familiar ou
Adriana Matheus
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consaguinidade comprovada com alguém neste tribunal. Sou
apenas um corpo no mundo. Que se cumpra o meu destino.
Quero ressaltar, apenas, que nunca comi criançinhas, nunca me
prostituí, nunca tentei induzir ninguém a nenhuma seita ou
religião, quaisquer que fossem.
Depois de eu ter falado isso, o magistrado ainda
ressaltou:
– Senhorita Anna Goldin Señra, ressalto mais uma vez
que essa é a sua última chance de dizer alguma coisa em sua
defesa. Caso contrário, será declarada como bruxa e sentenciada
a viver nos calabouços de um convento em San Francisco.
Portanto, olhei para o conde, que estava de olhos
arregalados prestando atenção, e disse:
– Não será necessário que sua excelência declare-me
como bruxa, porque eu mesma me declaro. Não tenho vergonha
de ser quem sou e de seguir um caminho que eu mesma escolhi.
Mas sua excelência deveria prestar mais atenção a certas
pessoas neste tribunal.
O bispo, porém, tomou a palavra, indagando-me:
– O que a senhorita quer dizer com isso?
– Quero dizer que neste tribunal tem um usurpador e
assassino sentado aqui, bem em minha frente. - disse isso
apontando para o conde
Ele, de um salto, gritou, apontando o diário da minha
mãe em suas mãos:
– Blasfêmia, excelência! Essa mulher tentou seduzir-me
em seu próprio leito. Tenho provas aqui comigo de que ela,
além de bruxa, praticava, sim, os rituais da magia. Há também
indícios de que ela tinha o seu próprio local escondido dentro da
casa de seu pai, onde ela, a governanta e o jardineiro praticavam
rituais de magia negra, cozinhando e comendo os filhos dos
escravos.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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O alarido de espanto foi geral. O bispo, porém,
interrogou-o:
– E como o senhor ficou sabendo de tais fatos?
– Sei disso porque a senhora condessa aqui presente
também a flagrou fazendo seus feitiços em um lugar escondido,
atrás da adega de vinhos do senhor Juan. Essa mulher está
tentando enfeitiçar todos aqui, transferindo a sua culpa para nós.
Mas posso provar o que eu disse. - disse isso entregando o diário
de minha mãe ao inquisidor.
Depois de folheá-lo rapidamente, o inquisidor entregou-o
ao bispo, que, depois de uma breve análise, disse:
– É irrevogável a questão de que esta mulher seja uma
bruxa. É também irrelevante que ela acuse qualquer membro
que esteja presente dentro deste recinto, sendo que ela está
tentando distorcer os fatos para enganar a todos nós. Essa bruxa
está tentando usar seus feitiços para nos manipular. Mediante a
tais provas postas em minhas mãos, e mediante tão ilustres
testemunhas que comprovam sua culpa, declaro-a culpada.
Passo o caso ao senhor magistrado.
Sabia que não poderia ter dito nada, mas tinha que
arriscar e tentar salvar-me. Depois das palavras do bispo, não
pude dizer mais nada. Fiquei ouvindo a sentença que o
magistrado me impôs. Ele se levantou e começou a sentenciar-
me com as seguintes palavras:
– Que a mulher comumente chamada de Anna Goldin
Señra seja denunciada e declarada feiticeira, adivinha,
pseudoprofeta, invocadora de maus espíritos, conspiradora,
supersticiosa, implicada na prática de magia feita a ela, teimosa
quanto à fé católica, cismática quanto ao artigo Unam Sanctam e
em diversos outros artigos de nossa fé, cética e extraviada,
sacrílega, idólatra, apóstata, execrável e maligna, blasfema em
Adriana Matheus
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relação a Deus e seus santos, escandalosa, sediciosa, mentirosa e
caluniosa.
Dito isso, o magistrado bateu o malhete sobre a mesa,
dizendo:
– Levem essa mulher daqui e que fique trancada na
prisão até que seja levada para o local onde será trancada e
enclausurada para o resto de seus dias. Ressalto, ainda, que ela
deve ser mantida sob vigilância constante, para que não tente
fugir ou usar seus poderes malignos.
Todos que estavam no tribunal foram se retirando. Fui
levada para uma sala até que o recinto tivesse sido esvaziado.
Logo depois, fui levada para a prisão. Atravessamos a praça
com um cortejo de agourentos atrás de nós. Onde passávamos,
juntava-se mais e mais gente. Logo depois de andarmos uns
vinte minutos, chegamos à prisão. Era um lugar muito
desleixado e sujo. Subimos os degraus e passamos por várias
salas. Por fim, começamos a descer sem parar, até chegarmos a
um lugar cheio de portas trancadas até em cima, uma de frente
para a outra. Devia ter umas quinze ao todo. Andamos uns dez
metros. Minha cela era a última do corredor. Dois homens foram
precisos para abrir a porta. Havia uma cama muito suja e de
palha, forrada com um tecido encardido e mal cheiroso. Parecia
que tinha manchas de sangue nele. O lugar era sombrio. O único
ar que se tinha vinha de uma fenda de trinta centímetros ou
pouco mais. O orifício era revestido por grades. Mal dava para
se ver se era dia ou noite, porque o orifício na parede era
pequeno demais para poder passar a luz do sol. As paredes eram
cheias de teias de aranhas. Senti um terrível cheiro de urina por
toda parte. Na verdade, havia vários excrementos humanos, mas
não dava para identificá-los por causa do tempo. O guarda
empurrou-me porta adentro e disse:
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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– Seja bem vinda aos seus novos aposentos, rainha das
bruxas.
Em seguida saiu, batendo a porta e dando uma
gargalhada que mais parecia ter vindo do além. Fiquei ali,
parada, olhando aquele lugar que não tinha mais que uns dez
metros de largura.
Os dias foram passando como noites. Agarrei-me em
orações para tentar ficar forte. O desespero do claustro é
indescritível. A solidão é uma companhia que não desejamos a
ninguém. Ela nos faz ver coisas no escuro e, se não tivermos
muito autocontrole, enlouquecemos. Comecei a fazer traços na
parede para não me perder de que dia era. Comecei a falar
sozinha, mas os guardas sempre me insultavam, perguntando se
o diabo estava lá comigo. Eu só tinha a companhia do guarda
carcerário nas duas vezes em que ele me trazia alimento. Às
vezes, o guarda da noite jogava em meu rosto a água que
serviria para eu tomar. Ele também, várias vezes, pisou no
pedaço de pão duro que me era oferecido como alimento. Várias
vezes, oferecia-me urina ou escarrava dentro da minha caneca
com água. A fome era tamanha que eu comeria a mim mesma.
Diziam que o inferno era algo abominável, mas quem
passou pelas torturas da Inquisição desejaria ir rapidamente para
lá. Diziam, também, que nos finais dos tempos os vivos
desejariam estarem com seus mortos - por causa do fim, que
seria duro e cruel. Para mim, ali era o fim do mundo. Todos os
meus pecados já estavam mais que pagos. Não existe inferno ou
demônio. Existem, sim, pessoas com mentes diabólicas, capazes
de extrema crueldade e covardia para conseguir seus objetivos a
qualquer preço. Deixamos que a vida passe por nós e
esquecemos de observar o quanto aqueles pequenos detalhes são
importantes. Só nos damos conta disso quando temos que
enfrentar uma situação muito difícil. Não damos conta quando
Adriana Matheus
- 507 -
passamos por cima dos menos favorecidos. Não damos conta
que um dia vem logo após o outro, com uma noite no meio para
nos fazer lembrar. Nunca pisei em alguém, mas pagava esse
preço por causa da ambição de terceiros. Deveria ter prestado
mais atenção aos sinais. Deveria ter fugido com Maria e Joseph.
O pecado é capaz de se aliar à desgraça da maldade. Aprendi
muitas coisas: uma era me manter em silêncio; a outra era nunca
brincar com a vaidade masculina, pois um homem sabe mesmo
ser cruel nessas horas de impulsividade. Eram nós, as mulheres,
quem os seduziam, que tínhamos mais propensão a ser induzidas
e fascinadas pelo mal. A mulher não podia se cuidar ou ter
vaidade; jamais podia sentir prazer com seu marido - pois ele
poderia chicotá-la em praça pública, acusando-a de induzi-lo às
luxúrias da carne.
Certa manhã, acordei toda suja: estava nos meus dias de
mulher. Não soube o que fazer, pois comecei a sangrar muito. A
vergonha tomara conta de meu ser. Como eu poderia dizer
àqueles guardas o que estava se passando comigo? Rasguei um
pedaço de minha anágua, tentando compor-me. Implorei ao
guarda do turno da manhã para que me desse uma tina com
água, para que eu pudesse me lavar. Ele fingiu nem ouvir.
Sentia-me mal e humilhada. Minhas forças estavam se esvaindo.
A cada dia que passava, ficava mais fraca. Até que Heixe
apareceu e aliviou-me um pouco daquele martírio. Ficou por
horas a fio conversando comigo. De vez em quando, o guarda
abria a portinhola e gritava, mandando-me calar a boca.
– Cale essa boca, bruxa infeliz! Anda a falar com satã?
Se me fizer entrar aí, juro que amordaço essa boca.
Heixe, naquele dia, despediu-se de mim com um ar
pesaroso. Mas era preciso, pois o guarda estava a ponto de me
espancar.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 508 -
Todos os dias, os outros prisioneiros que ficaram
sabendo que na última cela tinha uma mulher, gritavam meu
nome e insultavam-me com palavras odiosas. Alguns gritavam
meu nome como se eu fosse uma mundana. Em atitudes
suspeitas, gemiam a chamar por mim. Eram homens de caráter
muito duvidoso e que já estavam na prisão por anos a fio, sem
sequer ouvir a voz de uma mulher. A minha presença, mesmo
que do outro lado de uma parede e no fim de um corredor, fazia-
os ficarem como animais. Outros haviam passado por
tratamentos com médicos e haviam se esquecido de tudo. Esse
tratamento, bastante suspeito, deixava-os como vegetais.
Geralmente, esse tipo de tratamento era aplicado em pessoas que
cometiam algum delito contra algum Lorde ou até contra a
política, ou também em casos de homens sodomitas.
Estava rezando para que o convento enviasse o seu
emissário para eu sair dali. Os gritos de agonia vindos do
calabouço estavam me deixando completamente louca e
desesperada. Alguém estava sendo torturado incessantemente
todos os dias. Meu Deus! Estavam acabando com ele aos
poucos. Tinha que haver alguém para fazer parar o sofrimento
daquele pobre homem. Comecei a esquecer minha agonia e
sofrimento. Passei a orar para que aquele ser humano tivesse um
fim bem rápido. Logo depois, escutei quando abriu a porta da
cela ao lado e jogaram alguém cela adentro. Ouvia os choros e
gemidos de dor do pobre. Precisava fazer alguma coisa para
acalmá-lo. Então, comecei a cantar uma velha canção espanhola.
De repente, escutei mais dois presos acompanhando-me. Em
seguida, todo o cárcere estava ali comigo, cantando aquela
canção que falava de amor e liberdade. Um guarda passou no
corredor exasperando, batendo a baioneta na porta das celas.
– Calem-se! Ou levo todos para as masmorras.
Adriana Matheus
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Fizemos um silêncio mortal e o medo tomou conta de
todo aquele local macabro. Passaram-se algumas horas. O
homem que estava do outro lado da parede começou a fazer uns
barulhos com uma espécie de objeto cilíndrico. Ele perguntou:
– Olá! Como se chama?
– Anna. E como se chama?
Seu sotaque era muito carregado.
– Meu nome é Ramon Bernard D’ La Mendonça. Qual
crime cometeu a senhorita?
– Não cometi crime algum, mas estou sendo acusada de
bruxaria, traição e tantas outras coisas que até me perco.
Acusam-me até de devoradora de criancinhas. Mas, se fosse
carnívora, creio que teria me autodevorado, pois ando a morrer
de fome. Por isso, enclausuraram-me aqui, até que alguém
venha me buscar para levar-me ao Convento e Mosteiro de San
Francisco.
– Oh! Compreendo. E com todo o respeito: qual a sua
idade?
– Vinte. Fiz há poucos dias.
– É muito jovem. Não acredito que uma senhorita com
tão pouca idade e de tão bom coração tenha cometido tais
barbáries. A senhorita deve ter irritado alguém em demasia. E a
pessoa, por certo, é de muito poder aquisitivo.
Dizendo isso, deu uma sonora gargalhada. Em seguida,
um gemido de dor.
– Acho que sim. - baixei a cabeça, lembrando-me do que
o conde me disse quando eu saíra do tribunal.
– Não quis aceitar um casamento de conveniências e fui
contra as ordens de meu pai. Na verdade, fui perdida em um
dívida de jogo. - respondi a ele, com voz meio trêmula.
– Então foi isso? Lamento, senhorita! Seu pai é um
homem desonrado. Nunca vi apostar a própria filha nas cartas.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 510 -
– Ele é uma pessoa doente e está consumido por esse
vício maldito. Ele bebe praticamente noite e dia, sem parar.
Enterrou-se até os cabelos em dívidas com esse conde.
– Desculpe-me, senhorita! Não estou duvidando de sua
palavra. Muito pelo contrário, estou achando demasiadamente
ingênua.
– E o que o senhor acha que realmente deve ser?
– Não sei, senhorita. Mas o senhor seu pai e o restante
devem ter outros bons motivos. A senhorita nunca desconfiou de
nada?
– De que eu poderia desconfiar? Ou de quem? Nunca
saíra de casa, a não ser acompanhada por minha governanta. Na
verdade, meus dotes foram confiscados. Também não era
nenhuma soma tão exuberante assim. Era o suficiente para me
manter depois da maior idade, ou a ser entregue ao meu futuro
marido, caso eu viesse a me casar um dia. Mas não creio que eu
valesse tanto a pena. Estranho o senhor dizer tais coisas...
– Estranho é a senhorita estar aqui por tão pouco! Tem
certeza de que não comeu nenhuma criancinha mesmo? -
dizendo isso, soltou outra de suas gargalhadas.
Esbocei um pequeno sorriso.
– Ora, o senhor ofende-me desta forma! É tão simpático
e como sabe acalmar uma mulher com palavras tão gentis! - fui
sarcástica.
– Só estava a caçoar da senhorita para passar o tempo.
Perdoe-me. Quem seria o seu futuro noivo, mal lhe pergunte?
– Era para ter sido o senhor filho do duque Celso D’
Louchoa, o conde Albert D’ Louchoa.
– Eu deveria ter suspeitado, senhorita. Sinto-lhe dizer
que esse homem não vale um doblón sequer. – riu em alto tom.
Antes que eu pudesse perguntar-lhe por que estava rindo,
ele prosseguiu:
Adriana Matheus
- 511 -
– Acha mesmo que esse peste irá deixá-la em paz?
– Creio que sim, pois agora estou aqui, presa, e ele esta
lá fora.
– Presa porque tem o dedo desse peste no meio. Com
certeza, ele irá atrás da senhorita, no convento. Ele nunca a
deixará em paz, acredite. Sempre terá olhos dele em toda parte.
Ele é o espião do rei, senhorita. Mercenário, trambiqueiro, entre
outras coisas mais. Seu pai deve ter falado da senhorita
enquanto jogava. Como disse que ele bebe, o conde por certo
trapaceou no jogo para ganhar a aposta. Agora as coisas estão se
encaixando. O que mais a senhorita sabe?
– Não sei mais nada; juro.
– Antes de vir para as masmorras, ouvi comentários de
que esse conde está aqui para investigar o convento para o qual
está sendo enviada.
– E por quê?
– Suspeitam que os cavaleiros da ordem andem se
escondendo por lá, à noite.
– Sério? E por que andam a perseguir os cavaleiros da
ordem?
– Por que dizem que enriqueceram muito e não estão
dando a parte da Santa Sé como havia sido combinado.
– E o senhor, por que está aqui?
– Porque sou escritor e escrevo sobre a verdade
encoberta por trás dessa podridão monárquica. A burguesia fede,
senhorita.
Depois de dar uma risadinha zombeteira, ele prosseguiu:
– Andei publicando uns exemplares sobre os monarcas.
Acho que não agradei muito.
– Imagino...
– Estou aqui, agora, às suas ordens! Um anarquista e
visionário, e um amigo ateu. Mas um amigo fiel, devo ressaltar.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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– É um enorme prazer, Ramon.
Os dias ao lado do meu novo amigo foram bastante
agradáveis. Ramon era um homem muito inteligente e aprendi
muito com ele. Embora a maior parte do dia ele passasse sob
tortura, sempre conseguia falar alguma coisa útil. Houve dias
em que, de tanto ser espancado, ficou desmaiado por horas a fio.
Ele era um homem de cinquenta e poucos anos, mas de uma
força fora do comum. Admirava-o, mesmo sem nunca tê-lo
conhecido cara a cara em vida.
Finalmente o dia chegou. As portas do meu cárcere
abriram-se. Dei um pulo da cama. A primeira pessoa que vi foi o
chefe da guarda, que logo veio pôr-me algemas, seguido dos
guardas e de uma freira com uma cara nada agradável. Ela
entrou, tampando o nariz com um lencinho. Olhou-me de cima
abaixo e disse ao chefe da guarda:
– Tirem-na logo daqui.
Fui retirada aos socos para fora do cárcere. Mas, quando
passei pela cela de Ramon, disse bem alto para que ele ouvisse:
– Fique em paz, meu amigo. Que Deus lhe acompanhe
sempre. Nunca o esquecerei, acredite.
O guarda deu uma risada e falou, sarcasticamente:
– Por certo, vai encontrar com ele no quintos dos
infernos, porque morreu ontem à noite de hemorragia. Não
resistiu às torturas da manhã anterior. - continuou rindo.
Chorei e senti pena de Ramon. Ele havia mesmo se
queixado de que lhe haviam feito um corte profundo em seu
abdômen. Mas ele sempre levava tudo na brincadeira para que
eu não ficasse preocupada com ele. Meu bom amigo agora
estava descansando. Nunca mais haveria de passar por toda
aquela dor. Que seu espírito descanse em paz, pensei comigo. A
maioria dos presos estava em silêncio. Deveriam estar mortos
Adriana Matheus
- 513 -
também, pois não me importunavam havia dias. Os barulhos
que eu conseguia ouvir eram gemidos de dor, mas muito fracos.
Fomos saindo daquele lugar dos infernos. Desta vez, não
saímos pela porta principal. Saímos pelos fundos, onde não
haveria tumulto. A carruagem esperava-me do lado de fora. Meu
Deus, quando vi o sol de novo, foi como se um milagre tivesse
acontecido! De princípio, fiquei totalmente cega, mas depois
pude ver o esplendor do dia que estava à minha frente. O ar no
meu rosto...
Fechei os olhos e lentamente fui abrindo... Vi meu amigo
Ramon ao lado de Heixe. Ele estava lindo... Todo curado de
suas chagas. Usava uma túnica muito branca. Por certo, estava
sendo levado para um hospital... Acenaram-me com as mãos e
desapareceram, no meio dos raios do sol. Eu agora estava em
paz, porque meu amigo estava em paz. Havia se livrado das
mazelas daquela fatídica vida terrena.
Havia outra freira esperando-nos na carruagem. Ela era
um pouco mais jovem e menos carrancuda. Ajudou-me a subir.
Fiquei sentada, de frente às duas mulheres. A mais nova olhou-
me com piedade. A mais velha ficou com seu lenço ao nariz o
tempo inteiro. Sentia-me muito mal com aquela situação. Um
padre usando uma túnica marrom comprida e um chapéu
enorme pegou uma carta das mãos do chefe da guarda. Ele ficou
na parte de cima da carruagem, com o cocheiro. Dois guardas
acompanharam a carruagem a cavalo. Eu estava algemada, mas
as freiras não deixaram que me prendessem os braços à porta
dessa vez. A carruagem começou a andar e eu só queria olhar
pela janela.
Passamos por quase toda a cidade. Fui me lembrando de
tudo o que havia passado. A carruagem praticamente deu a
volta na província de Salamanca. Ao passarmos pela igreja de
padre Ignácio, ele fez a carruagem parar. Pediu ao padre que
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 514 -
estava conduzindo aquela escolta para deixar que ele falasse
comigo. O padre permitiu. Ele chegou brevemente à janela da
carruagem e pegou nas minhas duas mãos, dizendo:
– Minha menina! Minha filha... Não fui ao seu
julgamento, não me permitiram. Meu Deus, o que fizeram a
você, minha criança?
Ele passou um pequeno bilhete para minhas mãos, que
eu leria mais tarde.
– Tenho rezado pela sua vida, filha. Nunca desista,
nunca abandone sua fé na divina senhora. Estarei aqui, torcendo
por você. - beijou minhas mãos e afastou-se.
Não falei nada, apenas chorei. A carruagem seguiu e
pegou a estrada. Fiquei com as mãos bem juntas para que as
freiras não vissem meu bilhete. A mais velha cochilava e
arregalava os olhos de acordo com o movimento da carruagem.
Lembrei-me de Maria em nossa viagem.
Ao meio dia, as freiras pararam para se refrescar e comer
alguma coisa. Tiraram-me da carruagem com elas. O sol estava
alto no céu. Elas me deram um pouco d’água para eu me
refrescar também. Depois, arrumaram uma toalha no chão e
colocaram a ceia. Fiquei de longe, olhando-as. Mas a mais velha
chamou-me para junto delas.
– Pegue pão e chá fresco. Temos frutas e queijo. Coma,
vá.
Peguei um pedaço de pão com queijo e um copo de chá.
Afastei-me das duas, fui para perto da carruagem. A mais jovem
buscou-me para ficar junto a elas e sentar-me.
– A casa de Deus não faz restrição aos arrependidos. -
disse a mais velha.
Agradeci e beijei suas mãos.
– Não faça isso. Coma e fique quieta.
Adriana Matheus
- 515 -
Obedeci sem pestanejar. Descansamos debaixo de um
salgueiro e depois seguimos viagem novamente.
A tarde caiu bem rapidamente. A freira mais velha caiu
em sono profundo; e a mais jovem, logo em seguida. Aproveitei
para ler meu bilhete. Era de Maria. Ela dizia que ficou sabendo
de tudo que eu havia feito e que estava bem. Que as irmãs
estavam em oração por mim e que daria um jeito de me visitar
quando eu estivesse no convento. Minha Maria... Coloquei o
bilhete na boca e engoli. Era muito perigoso se alguém pegasse.
Fiquei acordada, olhando pela janela. Era alta noite quando a
freira mais jovem acordou e perguntou-me:
– Você não dorme, senhorita Anna?
– Fiquei tanto tempo em uma cela escura que só quero
aproveitar cada minuto e cada detalhe da minha liberdade
temporária.
– Então, fique à vontade, querida. Mas descanse um
pouco também.
– Prometo repousar assim que o sono chegar.
Os quatro dias restantes passaram-se sem nenhuma
novidade. As freiras eram pessoas abençoadas. Observava-as
sem dizer muita coisa. Elas me passavam muita seriedade e
calma. Abençoavam o dia, a tarde, a noite, os alimentos, e a
tudo agradeciam e louvavam. Não eram muito diferentes das
bruxas da tradição. Às vezes, cantavam em vez de orar. Suas
vozes pareciam ter saído de uma harpa celestial. Não me
desprezavam ou me interrogavam. Pelo contrário, faziam-me
fazer parte de tudo o que conversavam. Era muito bom sentir-
me como gente de novo. Mas eu sabia que, dentro do convento,
não seria tudo maravilhoso como ali, naquele momento de
trégua, por assim dizer.
Certa manhã, acordei e dei uma espreguiçadela. Foi
quando avistei o mosteiro, ao longe. Coloquei bem a minha
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 516 -
cabeça do lado de fora, para ver melhor. Comuniquei às minhas
companheiras, que ainda estavam dormindo. Elas agradeceram a
Deus, com sempre faziam a cada ato conseguido. Dessa vez, foi
pela ótima viagem que tivemos.
Ele era majestoso. Imponente, todo feito de pedras, com
duas torres a cada lateral. Era lindo! De longe, pude ouvir um
coro gregoriano que saía de uma capela ao lado. Era composto
por voz feminina e masculina. Foi a música mais linda que já
tinha ouvido em toda a minha vida. Meus sonhos misturavam-se
àqueles sons como magia se mistura à realidade. Senti-me leve e
feminina. Havia um campo de girassóis. Era a coisa mais
fantástica de se ver! O mosteiro ficava ao fundo, harmonizando
ainda mais aquele cenário de conto de fadas. Algumas ovelhas e
cabritos pastavam ao redor. Havia, também, porcos, galinhas e
um celeiro. Todos pastoreados por monges. Todos pareciam tão
ocupados em seus afazeres. Mas, quando a carruagem foi
passando, um a um ia acenando cordialmente.
A carruagem parou na frente do mosteiro e seis pessoas
esperavam-nos do lado de fora. Uma freira muito idosa, uma
madre de meia idade, dois monges aguardavam-nos logo na
entrada do convento. Minha surpresa foi ao ver as outras duas
figuras ao lado da madre superiora: a condessa e meu pai. Desci
da carruagem e minhas pernas começaram a tremer. Já tinha
visto aquela cena antes. Mas onde? Alguma coisa não iria
acabar bem. Meu queixo, de repente, parecia bater como se um
frio tivesse tomado conta de mim. E não estava frio, pois o dia
estava demasiadamente quente. Aproximei-me deles e a madre
superiora foi logo falando:
– Tragam-na para dentro, imediatamente.
A condessa olhou-me com desdém. Meu pai fingiu não
me conhecer. Nem sequer olhou em minha direção. Os guardas
quiseram algemar-me, mas a madre disse não ser necessário.
Adriana Matheus
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– Aqui não usamos força bruta, a não ser quando
necessário. Ela não sairá deste lugar. Não tem para onde ir. Ela
sabe muito bem disso.
Olhei para trás, tentando despedir-me de minhas
companheiras de viagem, mas elas haviam evaporado. Segui as
demais pessoas convento adentro. Deixaram-me em um corredor
comprido a esperar. Onde já tinha vivido aquela cena? De
repente, entrei em transe. Quando dei por mim, já estava
exatamente no lugar que sonhei durante minha viagem com
Maria. Foi em uma fração de segundos. Voltei no dia exato
quando tive o sonho com o mosteiro. Lembrei-me do meu
sonho!, disse em voz alta, com um largo sorriso nos lábios. Ao
abrir os olhos, vi-o ali, parado na minha frente. Era como se
fosse um sonho. Mal pude acreditar no que estava vendo. Fiquei
quase catatônica. Se alguém tivesse me beliscado, com certeza
não sentiria. Parece que ele percebeu o meu estado, pois falou...
“Todo pedido de perdão é um grande começo. Felizes
aqueles que encontrarem a paz no bem comum que fazem ao seu
próximo. Se plantarmos espinhos, colheremos espinhos. Se
plantarmos amor, colheremos amizade. Quando magoamos
alguém, seja por qual motivo for, recebemos uma paga muito
maior. Talvez não estejamos preparados para pagar tal preço.
Devemos nos lembrar de uma coisa chamada lei do retorno.
Viva bem e em comunidade. Seja feliz, faça feliz a quem está ao
seu lado. Ame o próximo, mesmo que ele esteja longe de você.
Reze para que os que na distância estiverem encontrem-se em
harmonia total. Pense, também, que por um orgulho ele deve
estar tão mal quanto você está agora. Reze para os seus
inimigos, se é que eles existem! Muitas vezes você criou esse
inimigo e, na maioria das vezes, ele nem sequer sabe que você
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 518 -
existe. Para que vingar-se? Para que procurar uma ferida que
você poderia já ter sanado? Siga em frente, ame ao seu próximo
como a si mesmo. Pense nisso. Muita paz e muita luz.”
Adriana Matheus
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VII – O SEGREDO DOS GIRASSÓIS
senhorita está bem? Quer que eu chame alguém
para ajudá-la?
Sua voz parecia com aquela durante
toda a minha vida, aquela que o vento trazia-
me aos ouvidos... Meu Deus! Mal podia ver seu rosto por causa
daquele capuz e da luz do sol que invadia todo o corredor por
trás dele. Mas isso era o que menos estava importando naquele
instante. O amor da minha vida estava ali, parado bem na minha
frente, e eu não sabia o que dizer! Aproximou-se de mim e meus
joelhos começaram a tremer. Arregalei os olhos e fiquei como
uma estátua. Até prendi a respiração. Agora vou morrer!,
pensei. Que coisa estranha! Eu era uma bruxa capaz de enfrentar
a Inquisição, mas não sabia como proceder diante daquela
situação absurda e tola. Agachou-se à minha frente, puxando o
capuz para trás. Tocando meu rosto, disse:
– Senhorita, se não está se sentindo bem, diga-me que
irei chamar agora mesmo por socorro.
Sorri meio sem graça e fitei-o nos olhos, tentando
demonstrar segurança ao lhe responder. Porém, a ansiedade
causada pela emoção fez-me cometer um pequeno deslize:
pronunciei seu nome, expondo meus poderes adivinhatórios.
– Eu... Estou bem, Wallejo, não se preocupe comigo!
–A
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 520 -
Ele arregalou os olhos e perguntou-me:
– Como sabe meu nome? - sorriu largamente, mais
parecia um anjo.
Sua pele era alva, com pequenas sardas nas faces. Seus
cabelos eram castanhos da cor de mel. Ele era muito alto e,
embora estivesse por trás daquele hábito tão austero, sabia
perfeitamente como era aquele corpo. Enrubesci com meus
próprios pensamentos. E seus olhos? Ah! Aqueles olhos!... Tão
azuis como o mar da minha Espanha. Dentro deles, pude ver um
lindo céu, cheio de estrelas.
– Como a senhorita sabe o meu nome? Será que as
freiras já andaram caluniando-me assim, tão cedo?
– E por que haveriam de caluniá-lo? Teriam motivo? -
senti ciúmes e apreensão por imaginar aquelas freiras tão
próximas do meu amor.
Ele, porém, justificou-se imediatamente:
– Não, senhorita, por certo que não. Só estava tentando
fazê-la se distrair um pouco, pois há pouco estava com o
semblante empalidecido e tremendo como vara de bambu ao
vento.
Se ele soubesse o motivo..., pensei. Ele prosseguiu:
– Bom, agora vejo que já está melhor. Por certo deve ter
sentido um mal-estar passageiro, causado pelo calor. Posso
saber o seu nome, já que tão misteriosamente sabe o meu?
Devo admitir que poucas pessoas chamaram-me durante toda a
minha vida como a senhorita chamou-me há pouco. Lembro-me
de somente a minha mãe me chamar assim.
Sorriu novamente. Meu coração quase saltou pela boca.
Por fim, meio gaguejando, respondi o meu nome a ele.
– Anna. Chamo-me Anna Goldin.
– É um prazer, senhorita Anna, embora tenhamos que
nos despedir tão cedo. Agora tenho que voltar aos meus
Adriana Matheus
- 521 -
afazeres. Vim falar com a madre superiora. Mas, pelo que vejo,
ela ainda está ocupada, atendendo os visitantes.
Tive vergonha e medo de contar a ele. Medo por não
saber qual seria sua reação. Um monge afoito veio correndo e
interrompeu a nossa conversa, dizendo:
– Padre Ângelo! Por favor, o senhor tem que vir
depressa!
– O que há, padre Alfredo? - disse Wallejo, com ar de
preocupação.
– Uma de nossas ovelhas está tendo problemas no parto.
Por favor, o senhor tem que vir rápido, pois a pobrezinha irá
morrer se o senhor não a acudir de imediato!
Aquele homem desesperado salvou-me de uma resposta
fora de hora. Ufa!, suspirei aliviada. Salva pelo bendito parto de
uma ovelha. Ele, porém, ficou meio confuso, parecendo não
querer ir embora. Mas, por fim, virou-se em minha direção
novamente e disse:
– Senhorita Anna, o dever chama-me. Espero que a
senhorita tenha escolhido este caminho por livre e espontânea
vontade. Se não… espero que acabe encontrando em Deus o
caminho para suas respostas.
Em seguida, saiu em disparada. Meus olhos teimosos
acompanharam-no até que sumisse, virando o corredor.
Eu estava sonhando, só podia ser isso! Naquele mesmo
instante, a porta abriu-se e a madre mandou que eu entrasse.
Levantei-me devagar, porque não podia demonstrar nenhuma
emoção de felicidade ou qualquer outro tipo de excitação que
contradissesse os preceitos normais e morais da Santa Madre
Igreja.
Pediu para que me sentasse ao lado da condessa, mas
preferi ficar de pé, ao lado da mesa. A madre observou a cena
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 522 -
em silêncio. Sem mencionar nenhuma palavra a respeito, apenas
prosseguiu com o assunto.
– Senhorita Anna, sabe muito bem porque foi trazida sob
meus cuidados. Portanto, não vou fazer-lhe muitas perguntas.
Primeiramente, porque não gosto de hipocrisias.
Concordei com um aceno de cabeça. A madre
prosseguiu:
– A senhorita foi trazida a esse convento sob a
penalidade de viver aqui em total vigilância e clausulo. Deverá
cumprir quaisquer ordens minhas ou de qualquer outra superior
à senhorita. Não terá nenhuma regalia, como vestes bonitas,
joias, entre outras coisas. - disse isso olhando para o anel que o
conde havia me dado e que ainda estava em meu dedo por um
milagre.
Naquela mesma hora, tirei o anel do dedo, entregando-a
em seguida. Depois de avaliá-lo e devolvê-lo ao meu pai, ela
prosseguiu:
– Nunca poderá sair dos arredores deste convento e
jamais deverá ser pega em atos suspeitos. Ou seja, não deve
manter nenhum contato físico com os monges. Aqui somos
obrigadas a conviver com a presença deles por motivos que não
lhe dizem respeito, é claro. Sempre nos mantemos distantes
deles, porque sabemos o quanto nós, mulheres, somos usadas
por satã para tentar o sexo oposto. Seus trabalhos serão
forçados. Dia e noite terá que trabalhar. Não poderá reclamar ou
questionar quaisquer ordens impostas. Quero-a presente no
santuário de acordo com as regras deste convento. Deverá
acordar às quatro horas da manhã e só poderá deitar-se após
terminar seus afazeres completamente. Jamais poderá dirigir
palavra alguma a nenhuma das irmãs da ordem, a não ser que
uma delas lhe dirija a palavra. Três vezes ao dia, deverá manter
jejum e oração. Temos uma sala de claustro somente para isso.
Adriana Matheus
- 523 -
Deverá tomar banho uma vez na semana. Sugiro-lhe que deva
fazê-lo o quanto antes, porque está cheirando muito mal,
menina! Sua cama deve ser mantida limpa e em ordem. Sua
cela deve estar sempre trancada. Irá trabalhar na lavanderia e
também na cozinha. Três vezes na semana, deve lavar todos os
corredores e escadarias deste convento. Receberá água e comida
o suficiente para manter-se viva. Suas refeições deverão ser
feitas na cozinha, e não com as outras irmãs no refeitório.
Deverá cortar os cabelos e andará descalça. Todo sábado, irá
para a colheita de algodão. Aos domingos, para o campo de
girassóis. Não terá nenhum dia de descanso. Ressalto, ainda, que
terá alguns minutos do seu tempo livre pela manhã para ir à
igreja, que também fica dentro do convento, para se confessar.
Isso deve ser feito todos os dias antes de iniciar cada trabalho. O
abade estará à disposição à uma e meia, na capela. Nem um
minuto antes e nem um minuto depois. Lembre-se de que deve
se apresentar ao trabalho antes das três e meia. O mais
importante: no período em que a mulher fica mais propensa às
tentações do demônio, deve permanecer trancada dentro da sua
cela, incomunicável, e em jejum de pão e água.
Ela estava se referindo ao ciclo menstrual. Eu havia
morrido e não sabia, pensei comigo. Aquilo, sim, era o
verdadeiro inferno. Fiquei ali, parada, ouvindo-a e imaginando
onde é que eu encontraria tempo para tantas tarefas ao mesmo
tempo. Pelo menos, deixar-me-iam tomar banho uma vez por
semana. Isso já era alguma coisa. A madre deu um grito
repentino, tirando-me daquele transe causado pelo pânico que
invadia a minha alma. Eu sabia que aquelas regras seriam
apenas o começo do meu purgatório.
– A senhorita compreendeu bem o que acabei de lhe
dizer?
– Sim, senhora madre superiora. Entendi.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 524 -
– Ainda tem mais uma coisinha... Se não cumprir com as
tarefas, saiba que será castigada impiedosamente. Estas foram as
ordens repassadas a mim pelo próprio bispo.
Deu-me um aperto no coração... Não pelas severidades
de meus castigos, mas porque senti que tinha alguma coisa
errada no ar. Era como se algo pior estivesse por vir. Então, ela
se virou para o padre que estava conosco na carruagem e falou:
– Mandem que preparem minha carruagem
imediatamente. Estou indo a Roma. O papa mandou chamar-me
a pedido do inquisidor. Recebi ordens específicas para que
viajasse assim que o senhor me entregasse esta carta em mãos.
– E quem ficará em seu lugar até que retorne, madre? -
perguntou o padre, parecendo preocupado com a tal notícia.
– A irmã Vicenta. Ela está ciente de tudo o que falamos
aqui e poderá perfeitamente, junto com o abade, encarregar-se
das tarefas até meu retorno. Agora, levem daqui esta senhorita e
façam-na tomar um banho, pois esta mulher cheira a chiqueiro.
Depois, cortem os seus cabelos, que devem estar repletos de
piolhos. Mantenham-na sob cárcere até amanhã. Logo cedo,
certifiquem-se de que ela fez tudo conforme lhe foi ordenado
nesta sala. Não quero ter problemas com a Santa Madre Igreja
por causa de uma jovem que teve um surto inconsequente de
rebeldia.
A condessa resolveu tagarelar:
– Madre, desculpe-me, não quero ser inconveniente. Mas
esta criatura, devo-lhe ressaltar, está aqui porque cometeu
crimes contra a Santa Madre Igreja, e também contra o povo de
Salamanca. A senhorita Anna, minha tão estimada enteada - por
quem abdiquei toda a minha juventude por amor a meu marido,
cuidando dela - nunca foi uma criança muito normal. Ela sempre
teve um comportamento totalmente inadequado para uma
criança. Várias vezes, vi-a perambulando pelos corredores da
Adriana Matheus
- 525 -
mansão durante a noite. Parecia estar morta. Ela não dormia,
estava sempre a andar com criados e escravos. Todos sabem
muito bem que os escravos são criaturas extremamente
suspeitas. Envolvem-se com o oculto e com vodu. Ela tinha
comportamento de uma pessoa louca. Várias vezes a flagrei
falando sozinha nos corredores. Ela lia livros impróprios para
uma jovem. Estava sempre de conchavo com a nossa
governanta, que é uma feiticeira poderosa - ficamos cientes
disso há pouco tempo. Não creio, portanto, que minha enteada
deva ficar solta pelos corredores deste convento. Deveria ser
trancada e, se possível, amordaçada pelo resto de sua vida, pois
poderá praticar feitiços contra as pobres irmãs que vivem aqui.
Sem contar que, com a boca, ela pode usar palavras para
amaldiçoá-las...
Tentei conter-me, mas não deu para resistir. Por mais
prejudicial que fosse para mim, tinha que falar alguma coisa em
minha defesa. Então, dei um pulo à frente e disse:
– Sua peste! Cheguei a ter pena de sua miserável vida.
Agora vejo que cada um tem o que merece e que lhe foi
permitido por Deus. Eu andava com os criados e com os
escravos porque não tinha companhia dentro de casa. Caso não
se lembre, era uma senhora muito ocupada e não podia dar a
devida atenção a mim, que ainda merecia todos os cuidados de
uma criança indefesa. Eu não falava sozinha: falava com minhas
bonecas, como fazem todas as crianças de sete e dez anos. Não
dormia, por certo, porque minha cabeça preocupava-se com os
problemas da minha casa. Não era fútil, como a senhora sempre
foi. Quando for se referir à Maria, lave sua boca imunda. Sabe
muito bem que Maria nunca foi uma feiticeira. Ela era apenas
uma senhora conhecedora da cura pelas ervas. Será que terei que
lembrá-la da vez em que ela lhe curou certa mazela íntima?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 526 -
Disse isso porque a condessa foi vítima de sífilis.
Prossegui:
– E teria morrido se não fossem as ervas de Maria. Será
que já não é satisfatório que eu já esteja sofrendo o suficiente
por causa das suas acusações levianas e por causa da covardia
de ambos? O que mais querem de mim? Sabem muito bem que
só estou aqui neste convento porque não quis ceder à vontade do
meu pai de me casar por interesse para saldar suas dívidas e,
com isso, manter seus caprichos. Sabe muito bem que é por isso
que fui condenada a viver neste convento. Muito me admira a
senhora condessa estar fazendo tudo isso comigo. Agradeça a
Deus por ninguém querer ter me ouvido naquela sala de júri.
Caso contrário, estaria a senhora aqui, junto comigo, ou quem
sabe já teria sido queimada em uma fogueira? E a senhora sabe
muito bem que estou falando do seu comportamento leviano. Eu
poderia, mesmo que ninguém acreditasse em mim, ter citado o
que e como a senhora faz para manter o seu casamento perfeito
com meu pai. Mas fiquei quieta. Então, por que a senhora não
me deixa em paz e segue a sua miserável vida?
A condessa tentou balbuciar alguma coisa, mas meu pai
a impediu. Por fim, a madre superiora, depois de ouvir
atentamente o que eu dizia, falou:
– Senhorita Anna, teve uma pena muito dura, por certo.
Por hora, acho que deverá ficar como está. Mas acredito no
arrependimento e em milagres. Sei que aqui dentro a senhorita
irá se arrepender de seus atos e comportamentos através dos
sacrifícios, das punições, das penitências e das orações que lhe
serão impostos. Não acredito em pessoas endemoniadas.
Acredito em Deus e em nada mais. Sei que o Seu poder é
infinito e Ele irá curá-la de suas feridas. Portanto, senhorita
Anna, irá imediatamente para sua cela, onde terá todo o tempo
do mundo para refletir sobre seus atos. Se realmente o demônio
Adriana Matheus
- 527 -
está agindo nesta jovem, aqui por certo ela irá encontrar a cura
para a sua alma. Não sou ninguém para julgar nenhum de vocês.
Mas, seja qual for a verdade, um dia ela virá à tona. Então,
espero que este assunto seja encerrado por hora, para que
nenhum outro sofrimento desnecessário caia sobre nossas almas.
Dizendo isso, pediu para chamar duas freiras, que quase
imediatamente vieram. Percebi sensatez naquela mulher e, por
certo, ela era verdadeiramente uma discípula de Deus. Então,
assim que as duas freiras se posicionaram, ela prosseguiu,
dirigindo-se a mim:
– Espero, sinceramente, que eu não tenha que lhe aplicar
nenhum castigo severo. Acredito, como já disse, somente em
Deus e sei que Ele é capaz de recuperar até o mais perigoso
criminoso. Mas não poderei segurar a mão de meus superiores
se eles acharem que a senhorita não está de acordo com as
normas da Santa Madre Igreja.
Novamente, a condessa interferiu:
– Madre! Ela é uma bruxa confessa. A senhora irá se
arrepender de tê-la deixado solta.
– Caríssima senhora condessa, creio que todos têm o
direito a uma segunda chance, não acha? Além do mais, só
acredito em confissões quando feitas a Deus sinceramente, e não
sob imposições. Bruxa ou não, aqui ela será punida e tratada
como me foram passadas as ordens recebidas. Creio que a
senhorita Anna já entendeu o que lhe foi dito nesta sala. – disse,
olhando-me nos olhos e procurando uma resposta positiva da
minha parte.
Mediante tal atitude, só fiz abaixar a cabeça e, com um
aceno, concordei. Em seguida, a madre superiora ordenou às
suas subalternas:
– Irmã Adelaide, oriente as outras irmãs para que, assim
que a senhorita Anna termine seus afazeres, seja encaminhada à
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 528 -
lavanderia. E que se cumpram, assim, minhas ordens. Não
estarei aqui a partir de amanhã, mas quero um relatório de tudo
em minhas mãos quando voltar de Roma.
– Por que a senhora está indo para Roma, madre? -
perguntou a irmã Carmencita.
– Isso só saberei quando lá estiver. Só sei que foi um
pedido e indicação do inquisidor ao nosso Santíssimo Papa. Por
certo, serão reconhecidos os meus méritos como a tutora deste
convento. Creio não me demorar tanto por lá. Logo estarei de
volta. Fique tranquila: tudo correrá bem. A irmã Imaculada e a
irmã Vicenta cuidarão de todas vocês e do convento em minha
ausência. Sei que também manterão a fé acesa aqui enquanto eu
estiver fora. Confio em Deus, Ele as protegerá. Não se esqueça,
minha querida filha, de que também contamos com o auxílio e a
proteção de nossos irmãos os monges, o abade e também de
padre Ângelo, que nos têm sido de tanta valia nos últimos anos.
Os monges defendê-las-ão dos invasores e salteadores.
Algo naquelas palavras soou como uma despedida. Eu
poderia até estar enganada, mas não estava: a madre não
retornaria a nós. Mais tarde, chegou-nos a notícia de que nossa
madre sofreu um acidente gravíssimo que a levou a óbito.
A condessa e meu pai não se despediram de mim
naquele dia. Embora já soubesse que isso iria acontecer, senti-
me muito depressiva e triste, mas me mantive indiferente. A
madre pediu às freirinhas que me levassem para a minha cela.
Acompanhei-as em silêncio corredor afora, tentando não parecer
insubordinada.
Estátuas de mármore e bronze enfeitavam aqueles
corredores escuros, iluminados apenas por tochas nas laterais.
Fui observando a decoração interna do convento. Nas paredes,
havia azulejos trazidos da China. Eram todos pintados à mão.
Suas gravuras contavam a história da crucificação de Cristo -
Adriana Matheus
- 529 -
uma obra de arte inigualável e sem preço que ficaria naquele
lugar, perpetuando sua história. O chão era todo de mármore
marrom e bege. Pelo tamanho dos corredores, percebi que
demoraria uma semana ou mais para limpar aquilo tudo. De
repente, ouvi o canto gregoriano ecoando de novo, só que mais
forte. Senti-me levitar naquele lugar devido à música que me
parecia tão familiar aos ouvidos. Descemos várias escadas que
nos levaram ao pátio central. No meio dele, havia uma enorme e
exuberante fonte com um anjo segurando um peixe, expelindo
água pela boca. Pequenos arbustos cercavam o redor da fonte e
iam aumentando, fazendo um círculo, como se fosse um caracol.
Conforme nos afastávamos, o caracol transformava-se em um
pequeno labirinto rasteiro.
Ao sairmos do pátio, entramos por uma enorme porta de
madeira maciça e deparamo-nos com um corredor iluminado por
tochas gigantescas. Seus pilares eram enormes. Davam-nos a
impressão de estarmos seguindo para dentro de um portal para o
paraíso. Havia pinturas maravilhosas no teto, com detalhes em
ouro e marfim. O ambiente, porém, era luxuoso demais para um
lugar onde deveríamos manter o voto de pobreza. Isso só me
mostrou, mais uma vez, a máscara por trás da aparente
humildade. Enquanto os pobres passavam fome nas ruas, as
igrejas construíam verdadeiros palácios ornamentais. Embora
aquele fosse considerado um lugar santo, eu tinha que observar
a verdade por trás da santidade e a falsa modéstia pregada atrás
daquelas paredes.
De repente, as irmãs começaram a rir uma com a outra.
Toda vez que se entreolhavam, riam mais. Por fim, interroguei-
as:
– Ora, irmãs... Por que estão rindo de mim? Sei que não
estou limpa e que estou toda maltrapilha, mas não creio que o
deboche por uma pessoa estar numa situação de desvantagem
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 530 -
seja uma coisa de Deus. Sabiam que eu estava em um cárcere,
onde ninguém me dava água sequer? Isso não é justo comigo.
Sei que tenho que respeitá-las, mas não deviam caçoar de mim.
– Não! Não, senhorita Anna, interpretou-nos muito mal.
Não faça tal juízo de nós. Só estamos contentes porque a madre
superiora irá a Roma: as irmãs que ficaram responsáveis pelo
convento não são muito exigentes. Isso significa que
trabalharemos bem menos. Ah, senhorita Anna! Nem imagina o
quanto temos que trabalhar... Viemos para cá porque já
estávamos dando despesas às nossas famílias e não conseguimos
arrumar um marido. Já passamos da idade de casar e não temos
mais atrativos aos olhos dos homens.
– Sempre quis uma vida diferente. Gostava de ler. Os
romances eram os meus favoritos. Mas meus pais diziam que eu
estava seguindo o caminho da luxúria - disse uma das freiras,
com um olhar triste e sem vida.
– Mas a senhorita vai gostar daqui, logo se acostuma.
Embora a madre nos coloque sob trabalhos forçados, nunca nos
castiga. Ela é generosa, vai ver. Por trás daquele hábito e
daquele ar severo, ela é uma excelente pessoa. Aqui vivemos
todas em comunidade. - disse a outra.
Fiquei ouvindo-as falar enquanto atravessávamos todo
aquele corredor que parecia não ter fim. Pareceu-me que havia
uma grande necessidade de falarem. Deveria ser muito difícil
ficar o tempo todo sem poder balbuciar uma palavra sequer.
Além do mais, elas não me importunavam. Sentia vontade de
ouvir vozes e de fazer amigos. Contaram-me coisas de suas
vidas e cheguei a uma conclusão: pobres mulheres! Nunca
viveram e agora se dedicavam a uma vida de sacrifícios,
penitências e escravidão. Nunca iriam ver além daqueles muros.
Jamais saberiam o que poderiam ter vivido se não lhes tivessem
roubado toda a liberdade. Eram tão jovens e a mais velha só
Adriana Matheus
- 531 -
tinha vinte e sete anos. Mas, para aquela sociedade, era
considerada uma mulher muito madura. Elas eram consideradas
muito velhas para arrumarem maridos e tornaram-se
dispendiosas para as suas famílias. Pois, em caso de falecimento
do patriarca da casa, seus bens ficariam para um parente
masculino mais próximo - como um primo, por exemplo. Isso
queria dizer que a viúva não teria como se sustentar com as
filhas mulheres encalhadas. No caso daquelas duas jovens, que
eram de origem muito humilde e não tinham, portanto, um dote
que chamasse a atenção de algum pretendente, foram levadas
para o convento para que ali vivessem o resto de suas vidas. O
restante de seus poucos pertences, como suas roupas, foram
doados à Santa Madre Igreja. Havia muitas como elas em igual
situação. Jovens que não tiveram nenhuma chance de serem
felizes.
O tempo naquele lugar era lento. Elas nem percebiam se
era sábado ou segunda-feira. Não fazia diferença, já que todos
os dias eram dias de trabalhos e de orações. Depois de andarmos
muito e subirmos várias escadas, felizmente chegamos ao lugar
onde eu permaneceria em clausulo. Elas abriram a porta e, pelo
que podia perceber, mais uma vez eu ficaria trancada. A
primeira freira entrou na frente. Em seguida, eu, acompanhada
da segunda.
– Esta é a sua cela, senhorita Anna. Espero que goste. -
disse a irmã Adelaide.
Não era muito espaçosa, mas muito limpa. Tinha uma
cama estreita, um colchão de palha, lençóis muito alvos e um
baú, onde eu poderia guardar os meus pertences - se os tivesse, é
claro! Também havia uma mesinha com uma cadeira. Sobre ela,
uma ânfora e uma bacia para eu lavar meu rosto. Uma
cantoneira com um oratório e um enorme crucifixo na parede.
Pareceu-me um lugar tranquilo. Não vi nenhum mau espírito a
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 532 -
rondar ali. A janela era espaçosa, de madeira, mas com grades
pelo lado de fora. Mesmo assim, dava-me a visão da plantação
de girassóis, a estrada, o mosteiro ao lado e o restante ao redor,
como as montanhas ao longe. Pelo menos não podiam me tirar a
visão das coisas perfeitas de Deus.
As duas freiras saíram, mas voltaram algumas horas
depois com água, sabão e uma tina. Despi-me para me lavar.
Enquanto uma arrumava minhas roupas, a outra amolava a
tesoura. Ajudaram-me a lavar os cabelos, que mantive presos
em um coque. Depois de vestida e seca, a irmã Carmencita
disse:
– É mesmo uma pena termos que cortar os seus cabelos...
São tão lindos!
Após eu tomar banho, elas me ajudaram a secá-los e o
pentearam com carinho. Então, começaram a cortá-los. Não os
colocaram rente à cabeça, como pensei. Ficaram nos ombros,
descendo em cascata, formando vários bicos. Como eram
cacheados nas pontas, não deu para ver as falhas deixadas pelas
artistas. Mas meus cachos foram-se embora, no meio da poeira
que elas varreram do chão. Quase chorei, porque cada pedaço de
cabelo era uma boa lembrança de Maria e de tudo que eu havia
vivido com ela no meu passado. Era como se a minha alma
estivesse em chamas, e meus restos mortais estivessem
esvaindo-se com o tempo. Fiquei na frente do espelho, olhando
aquela pessoa. Não me reconheci, trajando vestes de linho
branco, sem nenhum enfeite. O rosto pálido e sofrido. Meus
olhos não tinham cor ou brilho. As irmãs pareciam ter percebido
aquilo em mim, pois começaram a limpar tudo e, quando já iam
se recolher, perguntei-lhes:
– São felizes aqui?
A irmã Carmencita respondeu:
Adriana Matheus
- 533 -
– Não temos tempo de nos lembrar como é a felicidade.
Mas, na medida do possível, quando podemos parar nossos
afazeres, oramos e pedimos a Deus e aos anjos para que nos
deem forças para seguir nosso caminho com paciência. Sei que
agora está um pouco apreensiva quanto a toda essa mudança,
mas fique tranquila: Deus está com você. Verá que aqui tudo
passa despercebido.
Esse era o meu medo: perder a noção do tempo. Não
saber mais quem eu era, morrer sem ser enterrada! A pior morte
não é a do corpo, e sim a do espírito, quando nos esquecemos de
quem realmente somos e apagamos nossa memória. Precisava
do meu diário. Precisava pôr tudo sobre um pedaço de papel.
Não queria tornar-me uma morta viva, como a maioria ali dentro
era. Precisava lembrar-me de quem fui. Precisava das minhas
lembranças. Não poderia deixar minha história morrer. Já me
bastavam os meses que havia passado em uma prisão escura,
que quase me deixou louca.
Logo que elas saíram, trancando a porta da cela, olhei ao
redor. Não vendo nada para fazer, fui à janela e fiquei olhando
pelas grades o mosteiro ao longe, no meio daquela vasta
vegetação e plantações. Onde eu olhasse, tinha um monge
trabalhando. As freiras ficavam dentro do convento e faziam
todos os tipos de serviços domésticos, como cozinhar, bordar,
passar e tingir. Eram infinitas as tarefas ali dentro. Mas eu não
poderia deixar que a minha verdadeira essência morresse.
Precisava de mim mesma. Queria fugir não dali, mas das prisões
mentais.
Os monges tinham seu espaço, mas ficavam em um
mosteiro a certa distância do convento. Eles se ocupavam
diariamente com tarefas e afazeres domésticos e agrícolas para
não se lembrarem de quem eram. A cada dia, a vida lhes passava
despercebida e mais um morto vivo nascia. Eu era uma bruxa.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 534 -
Não poderia deixar que me anulassem isso. Minha alma gritava
por socorro. Abri os braços e girei, tentando capturar o pouco de
vida que o vento me trazia naquele momento: o cheiro das
plantações, dos campos dos girassóis.
Voltei à janela e olhei para baixo. Lá estava ele,
olhando-me. Acenou com um gesto simpático e caloroso, pois
não poderia demonstrar nada que desabonasse nossa conduta
naquele lugar. Dei-lhe um sorriso largo e baixei a cabeça. Na
verdade, queria voar para seus braços. Pela primeira vez em
minha vida, quis que tudo o que falavam sobre as bruxas fosse
verdade, principalmente a parte em que voavam em vassouras –
porque, assim, eu o levaria para bem longe comigo. Quando
levantei a cabeça, ele havia desaparecido. Foi tão rápido que
pensei estar sonhando ou algo assim.
Procurei algo para fazer naquele quarto, mas não achei
nada. Abri o baú e encontrei uns retalhos e umas agulhas. Então,
comecei a emendar os retalhos para fazer uma colcha. Passei o
resto da tarde fazendo aquilo. Aprendi muitas coisas com Maria.
Bordar e costurar eram duas delas. De repente, a porta abriu-se e
por ela entrou uma irmã pequenina e rechonchuda, com uma
carinha muito simpática, que veio logo dizendo:
– Olá! Deve ser a senhorita Anna. Sou a irmã Narzira.
Vim apresentar-me à senhorita. Disseram-me que era muito
bonita. Mas vejo que tais elogios não fazem jus à sua real
beleza. Não se assuste comigo: sou muito tagarela. E não
respeito nada das leis que regem este convento - falou isso
dando uma risadinha, levando a mão à boca.
– É um grande prazer, irmã Narzira! Mas estou aqui há
tão pouco e já sabe de coisas a meu respeito?
Fiquei admirada de saber como as notícias corriam em
qualquer lugar, mesmo naqueles onde o silêncio predominava.
Ela respondeu, sorrindo:
Adriana Matheus
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– Oh, não há muitas novidades aqui! Qualquer fato
diferente para nós é uma bênção. Não vou me demorar e
também não vou perturbar o seu momento de silêncio, pois sei o
quanto deve estar precisando ficar só.
Ela não sabia, mas o que eu menos queria era ficar
sozinha de novo. Prosseguiu:
– Só vim trazer-lhe esses biscoitinhos com chá. É um
presente de boas vindas de todas nós. Mas, antes que eu saia,
diga-me uma coisa.
– Sim, claro.
– Como é estar lá fora?
– Como assim? A senhora deve ter suas lembranças.
Ela sorriu novamente e continuou:
– Oh! Não, senhorita. Fui deixada aqui quando era um
bebê. Nunca tive contato com o mundo exterior. Não sei o que
se passa por trás dos portões e nem dos muros.
– Quer dizer que a senhora jamais viu atrás dos muros?
– Nunca estive lá fora.
– Santo Deus! Como conseguiu viver sem memória?
– Ah, mas tenho memória! Lembro-me de tudo desde
que era criança. As irmãs sempre me deram de tudo. Se hoje
estou viva, agradeço a elas por terem me acolhido aqui com
carinho.
– Mas por que foi abandonada aqui, à própria sorte?
– Porque nasci defeituosa. Sabe como é... Pessoas como
eu são muito mais propensas a terem ímpios demoníacos.
Dizendo isso, ela levantou a saia e mostrou-me os pés.
Faltava-lhe o dedinho mindinho em um deles. Sacudi a cabeça,
pois nem conseguia acreditar naquilo. Para mim, não fazia a
menor diferença. Mas, para aqueles loucos, era um sinal do mal
e, por certo, quem se casasse com aquela mulher teria azar para
o resto da vida. Se os pais tivessem ficado com ela, não teriam
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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paz, porque, no mínimo, a parteira já deveria ter espalhado por
toda a vizinhança que certa senhora teve uma filha marcada pelo
diabo.
– Não há nada demais lá fora. Acredite: está muito
melhor aqui, dentro do convento.
– Mas me responda, por favor! Como é o mundo lá fora,
por trás desses muros? Preciso saber, senhorita Anna.
– Também não tenho muito a contar. Não sou tão viajada
como pensa. Conheci muito pouco do mundo.
Mas, percebendo o quanto era importante para ela me
ouvir, mesmo que eu quase não tivesse muito a falar, contei-lhe
como era a minha cidade em detalhes.
– A cidade de Salamanca, de onde venho, é maravilhosa!
Há muitos bailes e festas em dias de santos, e pessoas elegantes.
Príncipes, Lorde e duques visitam muito minha cidade, por ser
uma cidade anfitriã e festeira. Ela é tão linda!
Fui detalhando-a. Ela ia se maravilhando com as coisas
que lhe contava. Contei-lhe todas as histórias que ouvira de
Maria, todas que li no diário de minha mãe - principalmente
sobre sua viagem à Índia. Quando acabei, ela me abraçou com
os olhos cheios de lágrimas. Em seguida, saiu sem falar uma
palavra sequer. Fiquei pensando, ao vê-la partir, que nunca
estamos no lugar errado. O lugar errado é que não deveria
existir.
Voltei à janela e fiquei olhando aquela paisagem, que
misturava o rústico das plantações com a harmonia e a
simplicidade divina. O entardecer era perfeito. O sol escondia-se
por trás das montanhas no majestoso horizonte! De repente, uma
leve brisa do mar veio ao meu rosto. Seria possível? Cheguei a
fechar os olhos para me aproximar mentalmente e ver as ondas
quebrando as pedras. Deus! Como é fantástico comungar com o
universo! Se dermos asas à imaginação, podemos ir aonde bem
Adriana Matheus
- 537 -
quisermos. A natureza é fantástica. Nunca desistiria de ser quem
eu era. Ela me levou ali e agora me recompensava pela
paciência e pela devoção. Nunca devemos desistir de nossos
objetivos, mesmo que os caminhos sejam tortuosos e a
esperança já esteja por um fio. Eu estava ali, comungando com
as forças da magia. Tudo é magia, até a gota de um orvalho
sobre uma folha é magia. Tudo tem algo a nos dizer, mas é
preciso prestar atenção nos detalhes. Observei cada detalhe do
mosteiro e, mentalmente, fiz o seu mapa interno em minha
cabeça. Comecei a viajar pelo mosteiro e detalhar cada
pedacinho de sua história.
Nos mosteiros de toda a Europa medieval, os monges
eram arrancados do minguado conforto dos seus colchões de
palha e ásperos cobertores pelos sineiros, que os despertavam às
duas horas da madrugada. Momentos depois, dirigiam-se
apressadamente, ao longo dos frios corredores de pedra, para o
primeiro dos seis serviços diários na enorme igreja. Sempre
havia uma em cada mosteiro, cujo altar, esplendoroso na sua
ornamentação de ouro e prata, resplandecia sob a luz de
centenas de velas. Seus dias eram iguais a todos os outros, com
uma rotina invariável de quatro horas de serviços religiosos,
outras quatro de meditação individual e seis de trabalhos braçais
nos campos ou nas oficinas. As horas de oração e de trabalho
eram entremeadas com períodos de meditação. Os monges
deitavam-se, geralmente, pelas seis e trinta da noite durante o
verão. Era servida apenas uma refeição diária e sem carne. No
inverno, havia uma segunda refeição para ajudá-los a resistir ao
frio. Era esta a vida segundo a Regra de São Bento, estabelecida
no século VI por Bento de Núrsia, o italiano fundador da Ordem
dos Beneditinos. Canonizado mais tarde, São Bento prescrevia
para os monges uma vida de pobreza, castidade e obediência,
sob a orientação monástica de um abade, cuja palavra era lei.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Luís, o Piedoso, imperador carolíngio entre 814 e 840,
encorajou os monges a adotarem a Regra de São Bento. Por
volta de 1000, a regra seguida praticamente em todos os
mosteiros da Europa ocidental inspirava-se na dos Beneditinos,
tal como muitos dos edifícios baseavam-se no modelo delineado
para o Mosteiro de Santa Gallen, na Suíça, no ano de 820. Tanta
ostentação e regras... Os monges nem podiam respirar.
Pelo que consegui observar, tinha alguma coisa de
secreto naquele mosteiro. Embora o silêncio entre eles fosse
unânime e visível, tinha algo diferente até na maneira de
gesticularem e de procederem uns com os outros. Era como se
fosse um código secreto. Já eram sete horas da noite quando
uma carroça parou em frente à plantação de girassóis. Dez
monges desceram e outros dez, parecendo feridos, subiram na
carroça. Os que subiram seguiram viagem apressadamente. Se
não fosse muita distância e a Lua não estivesse ainda muito alta,
diria que vi uma espada na bainha da orla da túnica de um deles,
pois o brilho de algo metálico reluziu com a luz da Lua. Desviei
essas ideias e continuei com meus pensamentos no mosteiro.
Por que um convento uniu-se a um mosteiro? Essa
pergunta estava dentro de mim desde o momento em que vi a
união daquelas duas abadias. Por isso, ficava tão intrigada. Sabia
que ali era uma espécie de junção convento-mosteiro, mas sabia
que esse tipo de junção era muito raro. Precisava descobrir o que
estava acontecendo naquele lugar. Precisava tirar aqueles
pensamentos da minha cabeça. Pois, se bem me conhecia, não
teria sossego até que descobrisse tudo. Os monges dedicavam-se
aos estudos. Mas aqueles, em si, pareciam ser cultos demais.
Suas maneiras de se portarem eram de nobres cavalheiros. Não
eram homens frágeis e pequenos, mas esguios e bem fortes. Não
pareciam trabalhadores braçais ou homens comuns. Muito
menos pareciam monges.
Adriana Matheus
- 539 -
Anna, disse a mim mesma, pare com isso! Santo Deus,
quando eu começava a pensar, não conseguia parar. Olhei à
volta e comecei a desviar meus pensamentos para a plantação.
Fechei os olhos de novo. Nas plantações muradas, os monges
também cultivavam ervas medicinais. Num dado momento -
ninguém sabe quando-, ocorreu-lhes a ideia de adicionar
algumas ervas à aguardente, inventando, assim, o licor. A
alquimia era permitida para eles. Mas para nós, bruxas, não.
Eram verdadeiros magos alquimistas e julgavam-nos por sermos
individuais e não lhes contar certos segredos. Ora, que tinham
eles contra sermos individualistas? Pode parecer estranha esta
associação da vida monástica com o luxo das bebidas alcoólicas
- e era mesmo. Mas isso também seria necessário no duro e frio
inverno. O vinho era uma bebida permitida aos monges. No
entanto, os banhos, exceto para os doentes, eram
desaconselhados, pois era considerado um luxo exagerado. Isso
era realmente uma incoerência. Quer dizer: beber podia; mas
tomar banho, não.
De acordo com a sua imutável rotina, os monges, em
geral, viviam e trabalhavam em obediência absoluta ao seu
abade. Eram eles que o elegiam. Mas, a partir de então, sua
autoridade era total e vitalícia. Era o abade quem deliberava
sobre a faceta privilegiada do mosteiro, se este deveria primar
pela santidade austera, pela cozinha ou pela erudição. No
interior das suas paredes maciças, que nenhum cristão ousaria
atacar, os mosteiros possuíam bibliotecas nas quais se
conservaram intactas grandes partes das heranças literárias das
antiguidades durante os séculos em que a Europa foi assolada
por invasões e guerras. Na realidade, a segurança, tanto
econômica como física, que os mosteiros ofereciam às
respectivas irmandades deve ter constituído um dos seus
principais atrativos. Séculos após séculos, tanto os Beneditinos
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 540 -
quanto os Franciscanos e monges de outras ordens religiosas
viveram sem temer a fome, a guerra ou o desamparo.
Reconfortava-os sempre a ideia de que, no fim, tinham maiores
probabilidades de salvação do que os camponeses ou os
cavaleiros, que viviam apegados às coisas mundanas. Bom, era
um pensamento ingênuo - creio. Porque sabia que a Inquisição
não perdoou ninguém, nem monges, nem cavalheiros, ninguém
mesmo.
Corri meus olhos pelos campos sob a luz da Lua, que
magistralmente brilhava no céu estrelado. As estrelas eram
como gotas de orvalho em uma fina folha de manhã de inverno.
A brisa longínqua do mar embriagava-me as narinas. Era como
se eu pudesse sentir até o cheiro das conchinhas. Sabia que
estava presa, mas precisava arrumar um jeito de encontrar o
caminho até o mar. Era quase meia-noite quando resolvi deitar-
me. Adormeci de imediato. Meu corpo estava muito cansado.
Sabia que teria um longo dia pela frente.
– Bom dia, senhorita Anna!
Acordei com uma mão suave e agitada a me sacudir.
– Hã? O que houve?
– Sou a irmã Manuelita, encarregada de lhe mostrar seus
afazeres. Já são três horas. Deve se levantar para ir ao oratório e
ao confessionário. Tem muitas tarefas, senhorita. E o dia passa a
voar.
Não acreditei naquilo. Era um pesadelo - só podia ser!
– Vamos, senhorita! Pegue o seu hábito e vista-se. -
disse, batendo palmas.
Vesti-me muito rápido. Lavei o rosto e saí da cela,
seguindo a freira, que mais parecia correr pelos corredores. Fui
levada à sala de orações, onde fiquei por vinte minutos. Depois,
Adriana Matheus
- 541 -
seguimos para o confessionário, que ficava dentro da igreja,
dentro do convento. O abade não estava presente e, por isso, a
irmã deixou-me sozinha enquanto ela mesma foi procurá-lo.
Nunca havia rezado tanto em minha vida. E ainda tinha que
confessar. Não sabia o que teria realmente que dizer, mas estaria
ali, pronta para o que fosse. Será que teria que contar para o
abade tudo o que havia ocorrido comigo até aquele determinado
ponto? Tomara que suas penitências não fossem tão severas.
Santo Deus!
Meus olhos ainda pesavam de tanto sono. Fiquei em
frente ao altar, de joelhos, enquanto a irmã procurava o abade.
Aproveitei para admirar todo o esplendor e a magnitude daquele
templo. A igreja e convento de San Francisco foram fundados
pelos padres franciscanos, em 1645. Possuía duas fachadas e
uma torre única de canteira, de estilo espanhol. No interior do
convento, destacava-se uma tela monumental, na qual o artista
retratava a genealogia da família franciscana. Além disso,
encontravam-se obras pictóricas de artistas importantes e
memoráveis. Era um santuário, mas sua arquitetura era de tirar o
fôlego. O teto era coberto por anjos e nuvens. Senti como se o
céu estivesse sobre mim. Parecia que o chão estava rodando aos
meus pés, ou melhor, aos meus joelhos, que já estavam
adormecidos de ficar ali, como uma criança ajoelhada no milho.
Senti vontade de rir. Era uma felicidade ingênua. Como esses
santuários transformam pessoas em seres angelicais? Estava
cansada e, mesmo assim, ainda tinha que confessar. Era muita
penitência para uma pessoa apenas. Mas, ao mesmo tempo, era
maravilhoso estar ali, pois parecia que o canto gregoriano nunca
parava, mesmo quando ninguém o estava cantando. O som ainda
ecoava pelas paredes como uma flauta.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 542 -
À minha frente, observava todos aqueles santos e
lembrava-me de tudo que aprendi em minhas aulas de
catecismos. Bem na minha lateral esquerda, vi mais uma santa
linda - uma bruxa, em minha opinião: Santa Inês. Sua história,
cheia de controvérsias, foi muito triste. Entre todas as heroínas
da Igreja primitiva que derramaram o sangue em testemunho da
Santa Sé, Santa Inês é aquela a que os Santos Doutores da Igreja
tecem os maiores elogios. São Jerônimo, em referência a esta
santa, escreveu: todos os povos são unânimes em louvar Santa
Inês porque, vencendo a fraqueza da idade e o tirano, coroou a
virgindade da morte como martírio. De modo semelhante,
exprimem-se Santo Ambrósio e Santo Agostinho. Como Maria
Santíssima, Santa Inês era invocada para se obter a virtude da
pureza. Fiquei ainda alguns minutos admirando a imagem da
santa, até que uma voz rouca e, ao mesmo tempo, familiar falou
quase ao meu ouvido. Senti meu corpo todo se arrepiar e virei-
me para trás, para fitá-lo melhor.
– Ou assusto a senhorita, o que já está se tornando um
hábito, ou a senhorita vive com a consciência pesada?
Ficamos nos olhando ali, parados, por uns três minutos,
sem nada conseguir dizer. Não conseguia falar nada, e ele
também não conseguia tirar os olhos de mim. No entanto, deu-
me o sorriso mais lindo que eu já tinha visto. Por fim,
prosseguiu:
– Espero que a primeira hipótese seja a mais correta.
Porém, gaguejei, tentando responder:
– Eu!? Estou esperando o abade. Tenho que me
confessar, embora não saiba de que ainda!
Ele sorriu novamente, respondendo-me:
Adriana Matheus
- 543 -
– Sou mesmo um homem de muita sorte: no meu
primeiro dia como substituto do abade, não terei que ouvir as
confissões de uma freira velha e ranzinza. Deus, ao contrário,
abençoou-me com uma jovem e bela noviça. Estarei no lugar do
abade por duas semanas. Mas me diga: qual seria o pecado tão
grave que uma jovenzinha como a senhorita teria para ter que
vir a este templo tão cedo para se confessar?
Antes de responder, pensei comigo Como é estranha a
maneira como este monge fala! E sorte só se fosse a dele, pois o
destino estava era caçoando de mim: como eu poderia contar
toda a minha vida àquele homem? Se ele soubesse que eu era
uma bruxa, por certo nunca mais falaria comigo. Mas, por outro
lado, por uma questão de ética e moral, não poderia mentir a ele.
Com certeza, não era a minha intenção. Eu estava entre a panela
e a caldeira. Ser uma bruxa é demasiadamente difícil. Naquele
momento, não sabia como dizer com palavras o que eu era. Se o
antepassado dele, Edward, havia me condenado à fogueira, o
que não faria aquele monge? Por que ele não escolhera vir como
alguém comum? Como era difícil o meu destino! Amar alguém
que poderia ser o meu algoz novamente... O monge, porém,
depois de muito me fitar e parecendo perceber que eu estava
desorientada, disse, tentando tirar-me daquele devaneio mental:
– Desculpe-me, senhorita Anna, ter que interromper seus
pensamentos. Mas, por favor, podemos seguir para o
confessionário? - ele parecia meio irritado com o meu
comportamento distraído.
– Sim, claro, padre!
Eu estava tão atordoada com aquela presença que fiquei
sem saber o que fazer. O que era pior: nem sabia o que dizer a
ele. Por fim, fomos para o confessionário. Ele se sentou de um
lado e eu do outro. Assim, não podíamos nos ver - e talvez fosse
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 544 -
mais fácil. Ele se benzeu com o sinal da cruz, fiz o mesmo. Ao
entrarmos, cada um por um lado do confessionário, prosseguiu:
– Rezemos... A senhorita aceita o Senhor como seu
único salvador?
– Sim, aceito.
– Tem a consciência de que não pode mentir durante
uma confissão, e que deve ser inteiramente honesta em tudo o
que lhe for perguntado?
– Sim, padre, tenho.
– Ótimo. Então, podemos prosseguir, pois não tenho o
dia todo para ficar ouvindo as histórias de uma jovem noviça
rebelde.
Suas maneiras de falar eram tão estranhas... Nunca havia
conhecido um padre que falasse assim. Geralmente, eles eram
mais polidos ao falar. Este era informal demais.
– O que trouxe a senhorita a este convento?
– Minha família, padre. Eles não me queriam mais por
perto. - baixei a cabeça.
– Não perguntei quem a trouxe para este convento.
Perguntei o que a trouxe aqui. Ou seja, o que a fez sentir
vontade de seguir os caminhos do Cristo? Já que a senhorita
antecipou a segunda pergunta, poderia, então, desde já
responder-me os motivos pelos quais os seus familiares não a
quiseram por perto, minha filha?
Ele parecia mesmo curioso quanto a isso. Então, tentei
ser polida e sincera na resposta.
– Fui acusada de feitiçaria, padre, e de tantas outras
coisas abomináveis que nem sei por onde começar. Minha
Adriana Matheus
- 545 -
família trouxe-me para este convento porque me recusei a casar
sem amor. Creio que isso responde a outra pergunta.
– Sim, creio que sim. Mas pode começar do princípio e
com calma. Resolvi ouvi-la com mais atenção. Portanto,
ficaremos aqui o quanto for necessário. Antes, apenas me
responda algumas perguntas. Por que não sentenciaram a
senhorita à morte? Por que a trouxeram para um lugar como
esse, sabendo eles que, se estiver realmente endemoniada,
poderá contaminar todas as outras irmãs com seus pensamentos
e ideias pecaminosas? Desculpe-me, senhorita, mas algo não
está se encaixando. Não está me escondendo nada, não é?
Aquelas palavras cortaram meu coração como lâminas
afiada. Ele não me achava digna de um julgamento. Achava-me
suja demais, capaz de sujar até mesmo o lugar que eu pisasse.
Mas, por outro lado, aquelas hipóteses começaram a fazer
sentido para mim. Por fim, respondi-lhe:
– Não acharam culpa verdadeira em mim, padre. Não
tenho ideias pecaminosas. Sou apenas uma pessoa que acredita
na liberdade de expressão e de religião. Acho que qualquer
pessoa merece obter o direito de ir e vir e de escolher qual
caminho seguir. Se eu tivesse mais tempo de vida, juro ao
senhor que lutaria pela igualdade das raças e, principalmente,
pelo direito que acho que as mulheres têm de serem livres. Não
cometi nenhum crime, padre. Mesmo assim, fui considerada
uma criminosa. Se o senhor quiser acreditar em mim, fico feliz.
Mas, se não quiser, não me fará diferença, pois já vivo sob o
julgo de muitas pessoas. Um julgamento a mais ou a menos não
vai aliviar minha sentença.
– Por que se julga no direito de achar que seu tempo de
vida é curto? Acaso se sente superior às vontades de Deus?
Menina... Tenha mais cuidado com as suas palavras.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 546 -
Dependendo de quem as ouvir, poderá pensar que está sendo
insubordinada. Ainda não tomei conhecimento do fato real pelo
qual sentenciaram a senhorita a vir para este convento, tão
distante do seu povoado. Por hora, quero que se mantenha
afastada de todas as outras irmãs, principalmente dos monges.
Não quero que induza ninguém ao mal que supostamente a
acompanha. Sentencio-a a duzentas Ave Maria e a trezentos Pai
Nosso por dia. Saiba que vou saber se rezou ou não. Por hora, é
só. Amanhã, aguardo a senhorita neste mesmo horário.
Porém, não fiquei calada. Mediante tal afronta, respondi:
– Não quero e não posso admitir que o senhor fique
sabendo quem sou pela boca de outras pessoas. Sei que elas
falarão o que bem quiserem a meu respeito. Portanto, padre
Ângelo, quero que o senhor saiba de minha própria boca que fui
considerada pela Inquisição uma traidora das ordens da Santa
Madre Igreja, e que só não me lançaram à fogueira porque sou
filha de um nobre, e ele ainda tem esperança de que eu volte
atrás e aceite me casar com um inescrupuloso conde para que,
com essa união, eu possa saldar as dívidas da família.
Percebendo que ele teve uma reação de espanto por trás
do confessionário, prossegui:
– Mas sou mesmo uma bruxa, como irão lhe dizer. Não
importa o que há de acontecer comigo. Daqui por diante, saiba
que nunca mudarei meu jeito ou deixarei de ser quem sou. Sigo
o caminho que escolhi. E se o senhor for me castigar, que faça,
então, desde já. Ser diferente e seguir um caminho diferente não
significa que isso nos faça seguidores de satã. Amo a Jesus e
nunca neguei Deus como meu único Salvador. Está dito. Se o
senhor não tem mais nada a me dizer, também não tenho mais
nada a lhe confessar por hora. Não se preocupe: não tenho a
menor intenção de fugir deste convento.
Adriana Matheus
- 547 -
Dizendo isso, saí, sem nada mais a dizer. Percebi quando
ele saiu atrás de mim, no confessionário. Ficou em pé,
indignado. Porém, não precisei olhar para trás para me certificar
daquela reação. Não acreditava que teria que sofrer por amor
outra vez. Meu Deus! Ele era totalmente cego, egoísta e, por
certo, já me odiava. Pensei comigo O servo de Cristo e uma
bruxa... não é justo. Ele nunca iria me aceitar como eu era, e eu
nunca mudaria o meu jeito de ser. Nunca. Não daria certo. Por
que me escolheu, Senhor, para tal martírio? – perguntei,
virando meus olhos para o céu. Seria um suplício eterno ter que
conviver ao lado de um homem que só me daria o desprezo. A
fogueira estava acesa e a caldeirinha me esperando! Seria uma
luta difícil, pois ambas esperavam para ver quem seria a
primeira a me tostar.
Do lado de fora da igreja, vi a pobre irmã Manuelita
esperando-me impaciente. Ela não disse uma palavra sequer
comigo. Quando saiu andando, tive que adivinhar que era para
segui-la. Aquela história de silêncio estava me dando nos
nervos. Nunca fiquei tanto tempo assim, calada e taciturna.
Fui levada à cozinha do mosteiro, onde fui recebida pela
irmã Maria Perpétua e a irmã Vicenta, uma das responsáveis
pelo convento na ausência da madre superiora. Elas me
mostraram todos os serviços. Depois, serviram-me uma tigela de
mingau de aveia e um pedaço de pão de milho. Comi com boca
boa, pois sabia que só voltaria a comer muito mais tarde.
Quando terminei meu desjejum, tive uma pilha de canecas e
pratos para lavar. Ainda ajudei a sovar a massa dos pães da
tarde, sem contar os tachos de cobre que tive que mexer no
fogão de lenha.
Quando terminei na cozinha, levaram-me para a
lavanderia, onde tive que lavar pilhas e pilhas de roupas sujas.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 548 -
Percebi, entre elas, hábitos dos monges. O que mais me intrigou
foi que estavam sujos de sangue. O que será que estava havendo
naquele convento? Algo não ia bem! Durante todo este serviço,
não abri a boca, mas observei o comportamento de todos ali
dentro. O silêncio pode, às vezes, parecer-nos uma tortura, mas
é um grande professor e aliado. Não sabia o que havia de errado
naquele lugar, mas estava disposta a investigar minuciosamente.
Minha curiosidade estava aguçada.
Terminado aquele serviço árduo, levaram-me para o
tingimento, onde tive que tingir toda a roupagem suja de sangue.
As túnicas, alvas, tornaram-se marrom - o que explicava o
porquê de alguns monges trajarem vestimentas brancas e outros
trajarem vestimentas marrons. A lavanderia era muito quente.
Minhas mãos ficaram com bolhas por causa da água fervente.
Depois, fui para a sala de costura, onde bordei e remendei por
duas horas. Novamente fui levada à cozinha, onde lavei duas
pilhas de copos e pratos outra vez. Eram três da tarde e eu ainda
não havia comido nada. Depois de lavar toda a louça, serviram-
me um prato de sopa de arroz e mais um pedaço de pão. Senti
minhas pernas bambearem de fraqueza. Depois de ter que lavar
toda a louça suja, fui levada aos corredores do convento. Lá,
deram-me água e um esfregão para começar a lavar tudo. De
joelhos no chão, lavei sessenta e dois degraus e seis pavimentos.
Por fim, quando terminei, era meia noite. Ainda bem que duas
vezes por semana era o suficiente para aquele serviço.
Depois de secar todo o chão e escadarias e guardar os
utensílios, subi para minha cela. Levei comigo água para me
refrescar. Troquei a roupa e fiquei olhando minhas mãos:
estavam vermelhas e inchadas. Meus joelhos estavam esfolados
e doíam muito. Olhei para a janela e a Lua ainda estava alta no
céu. Estava tão cansada que nem me atrevi a levantar e dar uma
Adriana Matheus
- 549 -
olhada. Ouvi quando alguém veio fechar a porta com chave por
fora. Sacudi a cabeça. Como uma pessoa que não tinha para
onde ir e estava cansada em demasia poderia querer fugir?
Esbocei um sorriso e deixei meu corpo cair sobre a cama.
Adormeci profundamente em seguida. Nem pensei em rezar ou
balbuciar qualquer coisa aos céus. Por certo, Deus não me
castigaria por não rezar só por aquela noite!
Não sei por quanto tempo adormeci, mas logo pude
escutar uma vozinha doce e torturante ao fundo, chamando-me:
– Acorde, senhorita Anna! Está vinte minutos atrasada.
Irmã Manuelita era como um tremor de terra
sacolejando-me. Nem conseguia identificar o que ela dizia
direito, porque o badalar do sino da igreja também gritava aos
meus ouvidos. Aquilo era o purgatório, só podia ser! - pensei
comigo. Não estava mais viva - estava morta e se esqueceram de
me avisar! Já deveria estar queimando no mármore do inferno.
Levantei meio tonta e ela já foi logo me dizendo, impaciente:
– Ande, irmã. Tem que ser rápida: o padre Ângelo já a
está esperando.
Nossa, que notícia romântica! Encontrar-me-ia com
aquele rabugento de novo, pensei!
– Que horas são, pelo amor de Deus, irmã!?
– São duas e vinte. Teria que ter se levantado quinze
minutos antes.
Santo Deus, o atraso era mesmo enorme... Imaginei o
que fariam se fosse um atraso de uma hora! Porém, apenas
respondi:
– Está bem. Já estou indo.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 550 -
Levantei, cambaleando, lavei o rosto e vesti meus trajes.
Enrolei os que estavam sujos nas mãos e os levei comigo. Santo
Deus, pensei, só poderia ser brincadeira. O destino e Deus
estavam unidos para brincarem comigo em uma peça teatral e
dramática. Não deu tempo para eu tomar o meu desjejum.
Então, fui direto para o confessionário. Só tinha um pedido em
mente: não deixe que Wallejo pense mal de mim, Deus. Eu
poderia suportar tudo, menos o desprezo daquele homem. Fui
mentalmente fazendo minhas preces. Quando coloquei meus pés
dentro da igreja, ele apareceu como um fantasma vindo sabe
Deus de onde! Não me fez as mesmas perguntas do dia anterior,
mas falou num tom severo e irônico ao mesmo tempo.
– Descobri coisas sobre o seu passado, senhorita. Coisas
que me deixaram muito preocupado.
– O que foi que o senhor descobriu? – perguntei,
tentando fazer-me de desentendida, usando com ele o mesmo
tom de voz.
– Que a senhorita não merecia estar aqui, mas em uma
masmorra. Cometeu crimes contra uma comunidade inteira,
senhorita Anna. É uma pessoa monstruosa, de uma maldade
infinita. Confesso-lhe que pensei dezenas de vezes em vir aqui e
ouvir sua confissão.
– Já lhe disse, padre Ângelo, não fiz nada daquilo de que
me acusam.
Contei a ele toda a história verdadeira. Depois de me
ouvir, fazendo ares de incrédulo, disse-me:
– Acha que vou acreditar em uma vírgula do que me
conta? Sou imune a feitiços e seduções de bruxas como a
senhorita. Sou um cavaleiro....
Ele pausou esta frase e prosseguiu.
Adriana Matheus
- 551 -
– Sou um servo do Senhor. Nenhuma bruxa poderá me
seduzir. Nenhum mal pode entrar no meu corpo e pensamento.
Se estou neste monastério é porque o senhor quis. Tenho certeza
de que ele nunca me incumbiria de uma missão tão árdua como
esta se não soubesse que sou capaz.
Aquilo começou a me irritar. Levantei-me, saindo da
sacristia. Ele, porém, saiu atrás de mim, dizendo em alto tom:
– A senhorita não pode fazer isso! - olhando-me com
indignação.
– É mesmo? Sei que não posso. Afinal, o senhor pode
me condenar a mais mil penitências e até me mandar para as
masmorras. Ou quem sabe me excomungar ao inferno!? Pois
fique sabendo que já vivo em uma prisão silenciosa e este
mundo em que estamos, para mim, já é o verdadeiro inferno.
Minha vida já é uma penitência. Já fui excomungada pelo meu
pai, já perdi tudo o que tinha, e estou aqui como o Cristo: de
braços abertos e coração limpo, dizendo-lhe a mais pura
verdade. Não cometi os crimes dos quais me acusam, padre
Ângelo. Mas o senhor, embora tenha ouvido ainda em confissão
e eu lhe tenha dito que sou inocente, mesmo assim prefere
acreditar no que os outros lhe disseram a me dar um voto de sua
confiança. Mas o que não vou permitir, de forma alguma nesta
minha curta vida neste mosteiro, é que um homem comum como
o senhor, só porque está trajando uma vestimenta santa e
fazendo-se de bom samaritano, venha insultar-me com qualquer
tipo de palavra que seja. Prefiro a morte a ter que me submeter a
tal humilhação. Agora, se não quer acreditar, o problema é seu
unicamente. E se está se sentindo tentado com a minha presença,
padre Ângelo, não tenho culpa nenhuma se também é um
homem por trás da sua batina. Tenho certeza de que não sou o
tipo de senhora que faz por onde esses tipos de desejos fluam na
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 552 -
mente de uma pessoa respeitável ou de qualquer outra. Acho
que o senhor deveria é procurar o abade assim que ele voltar e
confessar-se também. Agora, se não tem nada mais a dizer,
tenho muito serviço a fazer. Caso não saiba, fui colocada aqui
para cumprir a pena dos pecados e crimes que nunca cometi.
Disse aquilo tudo porque vi claramente o que se passava
na mente dele enquanto eu ficava atrás do confessionário.
Afinal, sou uma bruxa e, como tal, entre meus dons, o da
clarividência era um deles. Saí em seguida, sem olhar para trás.
Ele, porém, ainda me chamou:
– Espere um minuto aí, mocinha. Ainda não terminei.
Está passando por cima de ordens superiores. Não vou me
comprometer por causa de uma insubordinada como a senhorita.
Levarei o seu caso aos meus superiores, acredite.
– Tenho certeza de que o fará. Faz parte da índole dos
padres também serem delatores e perversos, pois não sabem
como resolverem seus próprios problemas. Não se preocupe:
coloco mais mil ladainhas em minha penitência.
Respondi de costas e de costas continuei. Ai, como ele
me deixava louca! Eu o queria longe de mim, mas nem tão
longe. Corrigi aquele pensamento. Que estúpido! Como podia
ser tão cego? Fui para a cozinha e arrumei tudo muito rápido.
Estava soltando fogo pelas ventas. Fui à lavanderia e terminei o
serviço às pressas. O mesmo aconteceu com as costuras. As
irmãs, se perceberam alguma coisa, não se manifestaram em
nada. Naquele mesmo dia, fui levada à colheita de girassóis.
Enchi vários balaios em poucas horas. Parecia que a raiva estava
me dando forças, pois em minutos terminei aqueles afazeres. Às
três horas, almocei na cozinha, como da última vez. Depois de
lavar toda a louça, fui levada à colheita de algodão. Parecia
fácil. Mas, no final do dia, minhas mãos sangravam por causa
Adriana Matheus
- 553 -
dos espinhos. Uma das freiras ajudou-me a preparar um bálsamo
para as feridas que estavam abertas. Chorei de tanta dor que
senti. Era água de sal, vinagre e aguardente. Às sete horas da
noite, subi para minha cela. Minhas mãos estavam enfaixadas
com tiras de trapo. Chorei a noite toda, de tanta dor. Tive febre.
Não conseguia dormir. Por mais que clamasse a Deus par aliviar
minha dor, parecia que ela só piorava.
Na manhã seguinte, quando a Irmã Manuelita veio me
chamar, já estava de pé e batendo o queixo de febre. Muito
admirada, falou:
– Santo Deus, senhorita Anna, o que houve?
– Minhas mãos! Acho que infeccionaram. - disse isso
mostrando o estado em que se encontravam.
– A senhorita colheu algodão, isso é normal! Não se
preocupe: logo isso passa. É só nos primeiro dias. Depois, a
senhorita se habitua. Vamos, tenho que levá-la para o desjejum
e, depois, ao confessionário.
Ela pareceu fazer pouco caso de mim e nem ligou para
minha febre. Rezei para que o padre Ângelo não estivesse por
lá. Não queria que ele me visse naquele estado. Mas, por mal
dos meus pecados, ele estava de pé, na frente do confessionário,
e foi logo dizendo:
– Bom dia!
A irmã Manuelita deixou-nos e saiu em seguida, como
sempre fizera. Ele entrou no confessionário, mas fiquei parada,
no meio da igreja, em frente ao altar. Minhas pernas começaram
a tremer. Estava sem forças. Ele saiu do confessionário e parecia
estar furioso comigo.
– Está me desafiando, mocinha? Quer que faça um
relatório sobre essa sua insubordinação? Não me custaria nada.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 554 -
Minha cabeça estava rodando... Queria responder, mas
não conseguia.
– Senhorita Anna! O que há? Está se sentindo bem?- ele
pareceu, por fim, entender que havia algo de errado comigo.
Apenas mostrei as mãos envolvidas nas bandagens a ele,
que sagravam e estavam com indício de infecção purulenta.
– Senhorita!...
Não consegui ver mais nada. Caí por terra. Acordei e já
era alta hora da noite. Meu corpo estava tão cansado e fraco...
Minha boca estava seca e ressecada. Havia uma irmã ao meu
lado que nunca tinha visto antes. Ela era tão simpática! Passava
sobre minha testa um pano embevecido em água fria para baixar
a minha febre. Pedi um pouco de água e ela pingou umas gotas
em minha boca para que eu não vomitasse.
– Vou buscar um caldo para que não fique muito
debilitada, e também pedir ao padre Ângelo que entre, pois ficou
a tarde toda sentado em um banquinho do lado de fora. Pareceu-
me muito preocupado com a senhorita. Ele nem foi para os seus
afazeres hoje. Ficou em oração pela senhorita. Tem muita sorte.
Ele é um homem maravilhoso e um sacerdote exemplar.
Aguarde. Volto já, não me demoro.
– Como se chama, irmã? - perguntei, curiosa.
– Juanita. - deu um largo sorriso e saiu porta afora.
Fiquei pensando... No mínimo ele estava preocupado
comigo porque pesava sua consciência. Virei a cabeça para o
lado, onde estava a janela, tentando achar a Lua. Não dava para
ver devido à posição em que se encontrava o meu leito. Quanto
voltei o rosto para o lado da porta, ele estava ali, parado, com
um pequeno girassol nas mãos.
– O que senhor veio fazer aqui? Certificar-se de que não
enfeiticei suas freiras? Vê? Também sangro. Não sou demônio.
Adriana Matheus
- 555 -
Sou de carne e osso, como o senhor. – disse isso levantando as
mãos para ele, mostrando o estado em que estavam.
Ele baixou a cabeça e disse:
– Desculpe-me. Fui um tolo. Não quis ofendê-la. Olhe,
colhi este girassol para a senhorita! Pensei que gostaria. Aceite,
é um pedido de desculpas, por favor! Sabe, não sei explicar...
Mas, enquanto estava desmaiada, fiquei sentado ali fora, pois
queria saber como estava passando. Por fim, adormeci sentado.
Então, sonhei com a senhorita. No sonho, pedia-me um girassol.
Foi tão real que, quando acordei, fui à plantação de girassóis e
colhi este – ainda pequenino no tamanho, mas grandioso na
qualidade e beleza. Senhorita, por favor, aceite este mimo. É a
forma que encontrei de lhe pedir perdão. Já estou aqui, na sua
frente, sentindo-me um tolo. Não tenho ouro nem joias caras,
como a senhorita deve estar acostumada, mas tenho a certeza de
que irá fazê-la bem olhar para a flor. A mim sempre acalma.
Esta flor é como uma fada: sempre traz boas novas. Se aceitar,
conto-lhe a lenda dela.
Ele parecia Maria, tentando acalmar-me com histórias
sem pé nem cabeça. Os homens... Parecem meninos quando
querem se desculpar depois de cometerem algo errado! Sorri
largamente e peguei o girassol, pois era irresistível ver aquele
homem adulto virando-se do avesso para se desculpar comigo.
Nossas mãos tocaram-se e ele ficou fitando-me, como se só eu
existisse. Seus olhos eram mel e pareciam ter uma luz divina
que saía deles. Aquele toque quase sem querer teve um efeito
mágico e fez meu sangue correr mais acelerado. Os anjos
novamente tocaram suas harpas para nós... Mas ele se afastou de
mim e passou as mãos pelos cabelos. Sorri, porque vi que estava
envergonhado e confuso. Se ele soubesse que era o meu amor
por quem eu estava esperando havia tanto tempo, não teria se
afastado de mim. Embora eu respeitasse a sua condição de
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 556 -
padre, pensei Meu grande amor! Queria poder falar isso a ele,
mas tinha que esperar o momento certo, pois éramos de mundos
e crenças muito diferentes. O amor é a mistura de uma série de
coisas. Mas, entre elas, o respeito tem que falar mais alto. Caso
isso não aconteça, as diferenças tornam-se insuportáveis. Temos
a obrigação de sermos sempre sinceros, mas tem que usar a
sinceridade com cautela, porque ofensa nunca foi sinceridade.
Ele ficou ali, contando-me como funcionavam as regras
dentro do convento. Falava com tanto entusiasmo que não quis
interrompê-lo. Seus olhos brilhavam como estrelas. Acho que,
no fundo, ele também tinha necessidade de falar, pois o silêncio
ali dentro era sufocante e insuportável.
Juanita entrou, trazendo-me um caldo de galinha e um
copo de suco de uva. Aquele caldo quente e forte fez-me suar
frio, pois eu estava fraca e sem me alimentar havia muitas horas.
Observando a minha aflição ao comer, a irmã falou calmamente:
– Coma devagar, menina! Se necessário for, trar-lhe-ei
mais um pouco.
Mas a fome era tanta que nem me importei se estavam
me olhando ou reparando os meus modos. Ao terminar, percebi
que a irmã Juanita estava fitando o padre Ângelo, como se o
tivesse interrogando por ele estar me olhando daquela maneira.
Porém, como ele não parava de me fitar, por fim a irmã fez-lhe
uma pergunta na tentativa de tentar tirá-lo daquele transe de
fascinação repentina.
– E então, padre, como andam as ovelhas? Padre, o
senhor está me ouvindo!?
– Hã? Sim, irmã. Estão ótimas. Creio que este ano
teremos muitas crias de primeira linhagem. Fizemos um bom
negócio com aquele fazendeiro quando trocamos aquela ovelha
no ano passado.
Adriana Matheus
- 557 -
Ele falava, mas com o olhar grudado em mim. Essa
maneira indiscreta já estava me deixando sem graça e poderia
nos comprometer. O que era pior: nada havíamos feito de
errado. A irmã, parecendo ter percebido que eu estava
constrangida, argumentou:
– Padre, ficamos muito agradecidas pela sua companhia,
mas a jovenzinha precisa descansar. Não quero que o senhor me
interprete mal, mas está ficando muito tarde e o senhor precisa
ir.
– Sim, sim... Claro, irmã, a senhora está certa. As horas
passaram e nem percebi. É o claustro. Ficamos tanto tempo sem
poder falar aqui dentro que, quando encontramos uma boa
companhia para conversar e que queira nos ouvir, esquecemo-
nos das horas. Perdoe-me, senhorita Anna, retirar-me-ei.
Amanhã passarei aqui para dar-lhe a comunhão e ouvir sua
confissão. Espero que a senhorita durma bem.
A irmã Juanita, porém, tomou a frente nas palavras:
– Padre Ângelo, se preferir, o senhor pode deixar que,
assim que ela estiver melhor, poderá ir com as próprias
perninhas. Não creio que haja necessidade de o senhor vir aqui
amanhã para vê-la.
Ele ficou muito sem graça com os dizeres da irmã
Juanita, pois percebeu que ela havia notado suas intenções
verdadeiras. Ele, então, tentou se retratar, dizendo:
– Imagina! A pobre noviça está acamada e não é bom
que fique sem receber a eucaristia. Também é minha obrigação
como sacerdote levar a comunhão e as bênçãos do Senhor aos
arrependidos e doentes enfermos. Além do mais, esta jovem está
neste convento sob a pena de ter que se confessar todos os dias
para se redimir dos seus crimes através de confissões e orações.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 558 -
– Está bem, padre Ângelo. Faça como o senhor desejar,
então. - disse a irmã, percebendo que não havia argumentos que
o fariam mudar de ideia.
Ele, porém, estava tão encabulado que saiu, sem mais
nada a dizer. Olhamo-nos uma para a outra e arregalamos os
olhos. Irmã Juanita falou, parecendo muito preocupada:
– Parece que temos um sério problema aqui.
– Como assim, irmã? - tentei disfarçar, fingindo não
estar entendendo.
– Olha, senhorita Anna, destas coisas do coração entendo
muito bem. Acredite-me: já passei por isso antes de vir para cá.
Conheço um homem quando está apaixonado. Isso até não seria
mal se ele não fosse o que ele é e...
– E?... Continue, por favor!
– Se a senhorita não fosse uma noviça, ora!
Ela parecia que não sabia totalmente da minha história.
Então, resolvi contar-lhe, pois senti que podia confiar nela.
Quando acabei, deparei-me com uma mulher branca como cera,
que só teve duas reações. Caiu sentada boquiaberta em uma
cadeira e disse, em seguida:
– Santo Deus misericordioso, que história! Eu, que
sempre achei a minha história a mais triste deste convento...
Senhorita Anna, sinto dizer-lhe que está encrencada. Não sei
como e em que posso ajudá-la. As acusações feitas contra a
senhorita são muito sérias.
– Acredita que sou tudo o que falaram de mim? Sei que
mal me conhece, mas acha que eu seria capaz de fazer tamanhas
barbáries? Se fosse tudo isso, acha que eu contaria em confissão
minha história ao padre Ângelo, sabendo que ele pode a
qualquer momento quebrar o sigilo de confessionário para me
entregar ao inquisidor? Ou acha, irmã, que contaria algo tão
pessoal sobre mim, sendo que pode me delatar? Estou correndo
Adriana Matheus
- 559 -
risco, irmã. Sabe muito bem disso. Por favor, pense um pouco.
Se já amou de verdade, deixe que essa essência que ainda está
no seu coração lhe mostre a verdade.
– Deixe-me pensar sobre o assunto. Amanhã lhe
responderei o que acho disso tudo. Nunca passei por tal situação
antes. Tudo isso é muito novo para mim. Envolver-me com uma
bruxa de verdade... Saiba que posso perder a minha vida por
causa da senhorita. Não creio que devesse ter me contado tais
fatos da sua vida. Mas não vou tomar nenhuma decisão
precipitada. Prometo consultar meu coração e pedir a Deus que
não me dê sabedoria e discernimento para saber o que fazer em
relação a esta situação tão delicada. Até lá, fique quieta e não
comente sobre isso a mais ninguém. Porque, se mantiveram
segredo sobre sua história até agora, é porque estão observando-
a ou tem algo a mais envolvido.
– O que acha que pode ser, irmã? - lembrei do meu
amigo Ramon, que me disse exatamente aquilo enquanto
estávamos na prisão, e também das suposições do padre Ângelo.
– Não sei, mas tem alguma coisa errada no meio disso
tudo.
– A única coisa errada que percebi até agora, desde o
primeiro dia em que cheguei aqui, é que os monges comportam-
se como Lorde. Posso jurar ter visto uma espada na bainha de
um deles durante a noite, enquanto descarregava uma carroça
com abóboras. Mas as abóboras que trouxeram não eram
suficientes para o almoço de um dia aqui neste convento.
Percebi, então, que havia monges sendo substituídos. Desciam
dez e ficavam dez. Também reparei que alguns pareciam estar
doentes, pois foram amparados pelos irmãos da ordem.
– É muito perspicaz, senhorita Anna... Está há tão pouco
tempo aqui e já observou tantas coisas. Confesso-lhe que já
ando a bisbilhotar há alguns anos. Tudo começou depois que
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 560 -
um dos abades faleceu, há três anos. Ele era um verdadeiro
carrasco. Houve muitas mortes neste convento, senhorita.
Muitas coisas lastimáveis. Estas paredes choram sangue
inocente.
– Sério? Meu Deus! Que absurdo... Até neste lugar santo
houve torturas?
– Conta-se, às escondidas, a história de um monge que
parece ter traído a Santa Madre Igreja e foi torturado até a
morte.
– Que tipo de traição ele cometeu?
– Não sei dizer ao certo, mas acho que foi porque ele fez
alguma coisa que não condizia com as normas morais da Santa
Madre Igreja. Até o próprio padre Ângelo, dizem, está aqui por
motivos obscuros. Dizem que está se escondendo de algum tipo
de crime.
– Mas o que pode ter sido? Ele me parece uma pessoa
tão sensata!
– Sim, por certo é. Mas a Igreja não perdoa nenhum
deslize de seus seguidores. Sabe muito bem disso, senhorita
Anna. Ainda mais ele, sendo um sacerdote.
– E que tipo de tortura usaram com o monge que foi
assassinado aqui, no passado?
– A roda do despedaçamento.
– Santo Deus misericordioso! Que crueldade...
– Sim. Dizem que houve uma grande multidão
assistindo, e que o infeliz custou a morrer.
– Que gente mais sádica. E depois quem são os maus?
São os bruxos, os ciganos, os judeus, os sodomitas e tantos
outros. Todas acusações levianas para esconder seus próprios
crimes. Acha que algum de nós seria capaz de cometer um
pecado deste? Isso é não só um crime contra a humanidade, mas
Adriana Matheus
- 561 -
também contra o nosso Deus. Vocês, cristãos, pregam uma
coisa, mas procedem de maneira totalmente diferente.
A roda do despedaçamento foi um dos maiores
instrumentos de tortura da santa Inquisição. Era, depois da forca,
a forma mais comum de execução na Europa germânica, desde a
baixa Idade Média até princípios do século XVIII. Na Europa
latina e gálica, o despedaçamento era feito por meio de barras
maciças de ferro e maças, em lugar da roda. A vítima, nua, era
esticada de barriga para cima na roda, no chão ou no patíbulo,
com os membros estendidos ao máximo e atados a estacas ou
anilhas de ferro. Por baixo dos pulsos, cotovelos, joelhos e
quadris, colocavam-se suportes de madeira atravessados. O
verdugo aplicava violentos golpes com a barra, destroçando
todas as articulações e partindo os ossos, evitando dar golpes
que pudessem ser mortais. Isso provava como é fácil imaginar-
se um verdadeiro paroxismo de dor, o que muito divertia a
plateia. Depois do despedaçamento, desatavam o condenado e
entrelaçavam-lhe os membros com os raios da grande roda,
deixando-o ali até a morte, ao cabo de algumas horas ou até
dias. Os corvos, outros sim, arrancavam pedaços de carne e
vazavam os olhos até a chegada do último momento. Esta era a
mais atroz e longa agonia prevista dentre todos os
procedimentos de execução judicial. Assim como a fogueira, o
despedaçamento ou desmembramento era um dos espetáculos
mais populares que tinham lugar nas praças da Europa.
Multidões de plebeus e nobres deleitavam-se ao contemplar um
bom despedaçamento. Na verdade, a desgraça alheia sempre foi
e será uma diversão para a sociedade sádica e hipócrita.
Ninguém que vê o outro caído nas ruas é capaz de juntar-se para
ajudá-lo, mas sim para terem o que falar. Enquanto se divertem
às custas das desgraças alheias, elas se esquecem da própria
desgraça. Falar dos outros era um sinal de poder; rir de alguém
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 562 -
era sinal de soberania - na cabeça deles, é claro. Porque, na
verdade, são fracos e doentes. Pessoas sem instrução, sem nível,
submissas e levianas, escondendo-se por trás da flagelação
alheia.
Juanita, porém, prosseguiu, tirando-me daquele devaneio
de pensamentos:
– Mas isso foi muito antes da madre superiora vir para
cá. Naquela época, quem regia este convento com punhos de aço
era um inquisidor que, segundo me contaram, foi o próprio
diabo encarnado. - ela se benzeu ao pronunciar o nome diabo.
Vendo aquela atitude tão religiosa e infantil, resolvi
perguntar-lhe:
– Por favor, irmã, diga-me: há quanto tempo a senhora
está aqui, enclausurada neste convento? Pelo que percebo, está
há um século neste lugar. A senhora parece saber de tudo o que
aconteceu e, pelo jeito, passou pelos piores momentos de sua
vida aqui dentro.
– Sim, confesso que sim. Vim para cá aos dezesseis anos
de idade, porque meus pais descobriram meu romance com o
filho de um fazendeiro rival à nossa família, cujo nome era José
Navarro. Deste dia adiante, fui obrigada a ficar neste convento.
A princípio, contra as minhas vontades. Mas, depois, acabei me
conformando. Estávamos muito apaixonados, senhorita Anna.
Ele tinha dezoito anos; era só um menino também.
Encontrávamos às escondidas na divisa de nossas fazendas. Ele
era tão especial... Éramos apenas duas crianças descobrindo o
mundo.
Os olhos de Juanita pareciam estar cheios de estrelas, de
tanto que brilhavam. Este amor nunca haveria de morrer e podia
apostar que se encontrariam em outra encarnação. Ela começou
a contar toda a história. Resolvi ficar quieta, ouvindo-a.
Adriana Matheus
- 563 -
– Conhecemo-nos no dia em que minha mãe estava
dando à luz meu irmão caçula, o Pedro Manuel Borges. Minha
casa era construída no alto de uma colina. Tínhamos as ovelhas
mais produtivas de toda aquela região. Naquele dia, não pude
ficar no quarto com as parteiras. Então, saí para caminhar um
pouco. De repente, vi-o pulando a nossa cerca. Corri até ele,
tentando impedi-lo de ultrapassar nossos limites. Mas, quando
olhei em seus olhos, nada pude dizer, pois me vi rendida por
uma força muito maior. Deste dia adiante, passamos a nos
encontrar às escondidas. Mas a história era muito mais antiga
por causa de uma rixa entre nossas famílias - coisa de nossos
avós e bisavós... Éramos uma família livre, senhorita Anna.
Andávamos por todos os lados. Não existiam limites para as
nossas criações pastarem. Mas a família Navarro mudou-se para
a parte mais baixa da colina. Desde então, nossas ovelhas
começaram a desaparecer misteriosamente. De igual modo, o
pasto dos Navarro crescia de um dia a outro. Isso começou a
gerar certa desconfiança por parte da minha família. Meu bisavô
e meu avô tentaram dialogar com os Navarro, que os
expulsaram a balas de suas terras. Minha família não gostava de
confusão. Acharam melhor deixar para lá esta questão.
Cercaram a fazenda e colocaram um capataz com vários
escravos protegendo os arredores, para evitar outras perdas e
danos. Minha família proibiu qualquer contato nosso com os
parentes dos Navarro. Crescemos assim, por várias gerações,
odiando uns aos outros, sem saber como agir e, ignorantemente,
alimentando esse sentimento que nem era nosso, mas sim de
nossos bisavôs. Certo dia, eu e José estávamos deitados e
esticados ao solo, olhando para o céu e conversando. Não
fazíamos nada, senhorita, apenas conversávamos. Foi neste
momento que ouvimos o capataz gritando para que capturassem
José. Pedi a ele que corresse o mais rápido que pudesse, mas foi
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 564 -
atingido pelas costas por uma bala. Corri e tentei acudi-lo, mas
foi inútil. José faleceu em meus braços, deixando-me apenas a
lembrança de um jovem cheio de sonhos e planos. Meus pais,
então, trouxeram-me para este convento. Diziam que a família
dos Navarro havia me enfeitiçado porque eu não queria mais
comer. Mas eu não poderia. Só quis morrer e encontrar o meu
grande amor.
Ela parecia ter uma grande necessidade de pôr para fora
tudo o que estava dentro do peito aqueles anos todos. Depois de
muito fitar o espaço vazio à sua frente, pôs as mãos no rosto,
baixou a cabeça e chorou profundamente. Queria consolá-la,
mas Juanita precisava daquele desabafo. Depois, olhou-me nos
olhos e disse:
– Não tem ideia, senhorita Anna, do que é perder um
amigo, um amor, uma pessoa que a compreendia e, só de olhar
para você, já sabia o seu estado interior. Tiraram-me tudo,
senhorita... Aqui é só o túnel escuro para um caminho sem volta.
Na verdade, sei que sou uma pessoa esquecida pelos meus
parentes. A única que vinha aqui me ver era a minha avó
Teodórcia, mas faleceu há alguns anos. A senhorita vai acabar
se acostumando à solidão e ao silêncio. Tudo na vida é uma
questão de costume.
Ela sorriu tristemente. Prosseguiu:
– O ser humano tem a capacidade de se adequar a várias
situações. A senhorita vai acabar se esquecendo de que tem um
passado, uma história...
– Nunca vou esquecer-me de quem sou. Nunca vou
esquecer-me das pessoas ou das coisas que fizeram parte do meu
passado, por pior que tenha sido. Quero sempre lembrar-me da
minha história. Não quero perder a minha essência no vácuo do
esquecimento, fazendo que, assim, morra a minha alma. Mesmo
que sejam histórias tristes, elas fazem parte da nossa memória. –
Adriana Matheus
- 565 -
respondi, agoniada só de pensar que poderia virar um vegetal
sem memória e estático.
– Viver do passado, senhorita Anna, não é bom. O
passado pertence aos mortos. Deixe que eles fiquem incumbidos
de levarem para o túmulo esta história triste.
– Não vivo do meu passado, irmã. Apenas acho que a
memória não deve ser apagada. Não sou um vegetal. Sou um ser
humano. Quero que meus vestígios fiquem aqui, gravados e
escritos, para que meus descendentes, ou até estudiosos, possam
ver o outro lado da moeda. Nunca cometi tais crimes, irmã, e sei
que minhas outras irmãs também nunca cometeram. A verdade
não pode ser calada. Temos que dar um basta a esse silêncio e
ao medo de ser livre.
Juanita colocou uma caneca de água para mim e saiu,
sem nenhuma palavra dizer. Mas pude ver em seus olhos que
havia uma semente plantada naquele coração. Fiquei olhando os
raios de luar que entravam no quarto. Pareciam formar figuras
como uma sacristia. Sabia que podia ser um sinal: tudo nos fala
na magia, mesmo que silenciosamente. O sono veio e adormeci
quase que de imediato.
Quando o dia amanheceu, dei uma espreguiçada ainda de
olhos fechados. Meu corpo estava bem descansado. Mas, de
repente, abri os olhos e dei um pulo na cama quando me lembrei
de onde estava. Já estava colocando os pés no chão quando senti
uma mão tocar meus ombros... Imaginei que já era a irmã
Manuelita a me chamar para o trabalho. Então, quando olhei
para trás, tive uma grande surpresa.
– Olá, senhorita Anna! Como passou a noite?
Sorri espontaneamente. Era Wallejo, que estava atrás de
mim, olhando-me com os olhos que mais pareciam duas pedras
preciosas de tão brilhantes que estavam.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 566 -
– Dormi muitíssimo bem, padre Ângelo. E o senhor,
como passou a noite?
– Não tão bem como a senhorita.
– Sério? Por quê? Houve algo de inesperado no decorrer
da noite que o fez ficar assim, tão apreensivo e com insônia?
– Não, nada disso. Não dormi bem porque a senhorita
não me saiu do pensamento a noite toda. Passei a noite pensando
nas coisas que me contou. Não sabia qual decisão tomar. Não
posso sequer lhe dizer que passei a noite a rolar na cama, porque
nem mesmo sobre ela deitei-me.
– Como assim? Está pensando em me denunciar? Saiba
que nunca neguei que sou uma bruxa. E tão pouco vou deixar de
sê-lo.
Levantei-me da cama e fui para frente dele. Seus olhos
estavam grudados nos meus e brilhavam. Apontei o dedo bem
em seu nariz e prossegui:
– Acha que por que o senhor é um padre pode me
intimidar? Sou uma mulher forte. Nem que me cozinhe viva vou
negar quem sou. Escolhi este caminho, padre Ângelo, e nem o
senhor e nenhum outro ser humano sobre esta terra vai mudar o
meu jeito de ser e a religião que escolhi só porque pensam
diferente de mim. Saiba que isso não quer dizer que esteja
errada.
Ele me olhou com um ar surpreso e respondeu:
– Não é nada disso, senhorita Anna. Não tenho a
intenção de mudar a sua maneira de ser. Não estou aqui para
questionar a sua crença. Mas, se a senhorita me der um minuto
para eu poder falar, poderei explicar-me melhor.
Fiquei curiosa e sem graça. Nunca procedi daquela
maneira com ninguém. Principalmente sendo Wallejo um padre,
eu poderia pôr tudo a perder. Ele poderia considerar uma ofensa
insubordinável. Tentei retratar-me, respondendo:
Adriana Matheus
- 567 -
– Desculpe-me, padre Ângelo. Não sei porque procedi
desta maneira. Mas, agora que me deixou curiosa, poderia me
dizer o porquê de não ter conseguido dormir à noite?
Ele enrolou as mãos umas nas outras, respirou e, por fim,
pareceu que ia sair um som daquela boca. Wallejo estava
tremendo. Disse-me:
– Eu... Não sei o que está acontecendo comigo, senhorita
Anna. Não quero levar para o lado da fé, pois vou achar que a
senhorita me enfeitiçou. Estou me sentindo perdido.
– Acha realmente isso de mim, padre Ângelo? Saiba que
não estou entendendo aonde o senhor quer chegar. Nunca faria
um sortilégio, mesmo porque não teria como fazê-lo neste lugar,
sendo que nem tempo para as refeições me sobra.
– Senhorita Anna, por favor, deixe-me terminar... Já me
está sendo difícil demais prosseguir. Nunca em toda a minha
vida senti algo assim por alguém. Até anteontem, quando foi ao
confessionário, ainda achava que o amor era apenas uma ilusão
na cabeça dos tolos e dos poetas. Mas, depois que me confessou
toda a sua história, fiquei com uma espécie de ódio e tristeza no
peito... Ódio porque sigo severamente os passos de Cristo e sei
que uma bruxa, como você diz ser, não amaria Cristo com
sinceridade.
– Quem disse tal absurdo ao senhor?
– Por favor, senhorita, deixe-me prosseguir... E também
tristeza porque sei que os nossos caminhos nunca poderiam ter
sido cruzados, principalmente aqui, em um convento, onde as
normas são totalmente rígidas. Tentei lutar contra mim mesmo e
contra todos os meus princípios. Depois, quando a senhorita saiu
pisando duro, quis matá-la, mas caí foi na gargalhada. Nunca
havia conhecido uma pessoa tão impetuosa e corajosa ao mesmo
tempo. E quando voltou ontem, pela manhã, ao confessionário,
tinha tanto a lhe dizer... Mas meu coração morreu quando a vi
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 568 -
cair ao chão. Pensei tê-la perdido para sempre. Por isso, fiquei
como um cão, sentado ali, do lado de fora, esperando que
acordasse para falar-lhe dos meus sentimentos.
Gelei. Estava prestes a ouvir a maior confissão da minha
vida, e só queria desmaiar de novo. Ele prosseguiu:
– A cada minuto, minha agonia aumentava. Tenho a
necessidade de falar-lhe do meu sentimento. Caso não o faça,
morrerei a cada instante de minha vida.
– Padre... Não prossiga, não faça isso. Conheço os seus
sentimentos e acredite: os meus são de igual tamanho. Mas
temos caminhos diferentes a seguir. Não quero prejudicá-lo de
forma alguma. O risco para um sentimento como o nosso é
perigoso demais, mesmo porque não vamos conseguir ficar sem
nos tocar.
– Senhorita...
Ele se aproximou e segurou-me pelos ombros, puxando-
me para junto de si. Olhando fixamente nos olhos, disse-me:
– Eu... Não sou quem pensa... Eu... Sou um cavaleiro e...
Ele ia me beijar antes de prosseguir, mas... Naquele
momento, que parecia único, Juanita entrou e, aos nos ver tão
próximos, disse:
– Espero não estar interrompendo nada!
Wallejo levou um susto! Com isso, empurrou-me
abruptamente e, em seguida, saiu sem se despedir de ninguém.
A irmã Juanita arregalou os olhos, sem entender aquela atitude,
e perguntou:
– O que aconteceu neste quarto? Espero que a senhorita
não tenha extrapolado ao ponto no qual estou a pensar.
– Não aconteceu absolutamente nada, irmã. Mesmo
porque a senhora irmã entrou no exato momento.
Contei-lhe tudo nos mínimos detalhes. Ela respirou
profundamente e sacudiu a cabeça. Disse-me:
Adriana Matheus
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– Não sei quem dos dois é o mais louco: a senhorita ou
ele. E o que é pior: sei que sobrará para mim. Sou cúmplice de
um romance proibido entre uma bruxa e um monge. Deus tenha
misericórdia de minha alma.
– Desculpe-me, irmã. Não queria envolvê-la nessa
situação.
– Terão que ter mais cuidado com as outras irmãs. Aqui
dentro, as paredes têm olhos e ouvidos. Desculpe minha
indiscrição, senhorita, mas quando entrei pude ouvir o que o
padre Ângelo dizia. Estou me referindo a quando ele lhe disse
que era um cavaleiro. Isso ressalta a minha desconfiança sobre o
que conversamos ontem.
– O quê? Como assim?
– Estou falando sobre o padre Ângelo estar envolvido em
alguma coisa ilícita. Ele mesmo disse à senhorita Não sou quem
a senhorita pensa... Sou um cavaleiro. Se ele não é um monge,
então é um usurpador e está aqui disfarçado. Santo Deus, será
que ele é um criminoso? Isso aguça ainda mais as minhas
suspeitas.
– Como assim? Ainda não a compreendi.
– Ora, mulher, está muito claro: ele acabou de dizer-lhe
que não é quem você estava pensando. E se este homem for um
criminoso?
– É verdade... Definitivamente, irmã, há algo muito
estranho acontecendo neste convento. E por que será que a
madre superiora tem sido conivente com esses fatos?
Sinceramente, não consigo pensar que o padre Ângelo possa ser
um criminoso. Deus não iria me colocar em uma situação tão
difícil como essa. Mas prometo que vou investigar isso
minuciosamente.
– Também eu. Imagina! Se tem algo acontecendo neste
convento, quero saber o que é. Definitivamente, senhorita Anna,
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 570 -
depois que a senhorita veio para este convento, minha vida ficou
muito mais emocionante. E a senhorita só está aqui há alguns
dias. Minha nossa! A vida ao seu lado é definitivamente muito
intensa.
– Isso quer dizer que a senhora aceita a minha amizade?
– Não sei, mas confesso que nunca tive em minha vida
tantas emoções intensas assim. Definitivamente, a senhorita
sabe transformar as rotinas em algo muito excitante.
Não falamos mais sobre o assunto. Juanita levou-me para
a sala de coser. Passei toda a tarde ali, e até gostei de fazer os
bordados. Mas minha cabeça não parava de pensar em Wallejo.
A cada instante, mais intrigada eu ficava. O que poderia aquele
homem estar escondendo? Conhecia-me muito bem e sabia que,
enquanto não descobrisse, minha vida seria um inferno. Fui para
o refeitório às duas da tarde. Não me colocaram para lavar a
louça, porque minha mão ainda estava enfaixada. Eu estava
tomando minha sopa de legumes quando aquela voz perguntou-
me, em um tom que mais parecia um sussurro:
– Posso sentar-me aqui?
Levantei meus olhos e senti minhas pernas tremerem.
Dava para ouvir os barulhos que faziam meus joelhos batendo
um no outro.
– Hã? Sim, claro, padre Ângelo.
Fiquei ali, parada, com a colher de sopa que não entrava
nem saía da boca. Por fim, resolvi falar para quebrar aquele
clima de constrangimento.
– Diga-me, padre Ângelo, o que o traz aqui?
– Precisamos terminar a nossa conversa desta manhã.
– Quando o senhor quiser, estarei disponível.
– Então, amanhã a espero no confessionário.
– Acho que pode ser arriscado, padre. Afinal, sabemos
qual será o rumo que esta conversa tomará.
Adriana Matheus
- 571 -
– Acha que não consigo controlar meus impulsos?
– Não quis ofendê-lo. Só acho que o senhor, por ser um
padre, não deveria querer falar com uma mulher a sós. E logo
eu, que sou uma... O senhor sabe bem o que quero dizer.
– Quero falar-lhe também sobre isso.
Ele estava quase debruçado em cima da mesa. A irmã
Imaculada estava prestando atenção a tudo, embora não pudesse
ouvir-nos. Por fim, tive que dizer-lhe:
– Padre, por favor, controle-se! O senhor está fora de si?
Ele sorriu e respondeu:
– A senhorita enfeitiça-me. Está enlouquecendo minha
alma! Estou a perder a razão por você.
Senti meu rosto corar e queimar como brasas de fogo.
Como é complicado ser uma bruxa e ainda estar apaixonada
por um padre!, pensei comigo. Estava me vendo sem saída
mediante aquela atitude inesperada. O amor havia se aliado ao
destino, e ambos estavam caçoando de mim - só poderia ser
isso! Precisava ter muito autocontrole por nós dois, pois Wallejo
estava totalmente guiado pelos impulsos carnais. Estava como
um lobo na época de acasalamento. Os homens são assim: não
agem racionalmente, mas por impulsos. Isso serve em qualquer
situação, tanto emocional quanto financeira. Eles tomam a
primeira decisão que lhes vem à mente. E são orgulhosos
demais para admitirem quando erram. Poderia dizer que estava
muito feliz, não precisava de mais nada. Mas não era bem assim.
Se alguém percebesse quais eram as intenções de Wallejo,
poderíamos ser acusados de fornicação. Por fim, Wallejo
percebeu que a irmã Imaculada estava atenta a tudo o que
conversávamos. Então, retirou-se da cozinha, afirmando que
estaria me esperando na sacristia, no dia seguinte.
O restante da tarde passou rapidamente. O amor havia
invadido o meu ser. Era como se eu pudesse voar sem sair do
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 572 -
chão. Minha alma estava comungando com o universo. Se o
mundo acabasse, morreria feliz. Meu eu estava amando, e sabia
que era correspondida. Daria a vida por ele. O ar que eu
respirava vinha dele. Queria gritar para todos saberem como
estava o meu coração.
Fui para a minha cela sozinha. Desta vez, ninguém me
acompanhou. Também pude observar que não trancaram minha
porta pelo lado de fora, como de costume. Parecia que as freiras
estavam confiando um pouco mais em mim. A primeira coisa
que notei de diferente quando entrei foi que havia um pedaço de
pão de milho e um girassol sobre a mesinha. Quando peguei o
pão para comer, notei que dentro dele tinha um bilhete. De
imediato, peguei-o e um delicioso cheiro de sândalo invadiu o
ar. Fez-me lembrar de Edward, trazendo o meu passado todo à
tona, como uma realidade presente. Incrível como um simples
aroma podia trazer lembranças tão remotas à tona! A mente é
fantástica, capaz de criar imagens e lembranças através de um
simples aroma... Isso é o poder da magia. Ela está em tudo. É só
prestar atenção aos pequeninos detalhes.
Abri aquele bilhete. Foi como se o mundo estivesse aos
meus pés. Senti-me tão feliz, tão forte... tão grande! Meu peito
parecia que iria explodir de tanta felicidade. Senti meu coração
bater dentro do peito de maneira descompensada. Esse era o
mais puro sentimento de felicidade que alguém poderia sentir. O
bilhete estava escrito em papel amarelo. A caligrafia era
perfeita, parecia ter sido desenhada nos mínimos detalhes. As
palavras contidas eram:
Espanha, vinte e dois de julho de 1819.
Senhorita Anna,
Adriana Matheus
- 573 -
Acredito que deva estar confusa, tanto como eu. Sinto como se meu coração fosse explodir se não lhe falasse tudo isso que está dentro de mim antes de amanhã - sendo que amanhã poderemos não ter muito tempo para falarmos, pois sempre estamos sob a mira de olhos que vivem a nos vigiar... Estou em prantos e não é de tristeza, mas de pura felicidade: estou me sentindo como um menino tolo e irracional. Tolo porque acabei de ganhar um presente há tanto esperado pelo meu coração. Irracional porque não sei mais como proceder mediante tal situação, que me impulsiona a cada momento para os seus braços.
Hoje estava no campo de girassóis e o cheiro deles lembrou-me o cheiro dos seus cabelos no primeiro dia em que a vi sentada, cabisbaixa, no banco frente à sala da madre superiora. A senhorita parecia uma miragem no deserto. Quase pensei que estivesse sonhando ao vê-la. De imediato quis tocá-la, senti-la. Mas, naquele momento, só pude me contentar com a sua doce presença. Depois disso, venho lutando contra os meus princípios e contra tudo o que aprendi neste convento. Mas, infelizmente, não pude mais me conter: esse sentimento, aqui dentro do meu peito, gritou muito mais forte do que pude resistir. Perdoe-me pela ousadia das palavras em lhe falar dos meus sentimentos assim, tão inesperadamente...! Durante toda minha vida, busquei um caminho através da religiosidade. Mas só encontrei minha luz e esperança agora, no brilho dos seus olhos.
Anna, minha doce Anna! Meu peito grita, minha alma grita! Sinto que posso voar sem asas... Sinto-me menino, inconsequente, inexperiente. É como se eu tivesse que voltar a aprender a andar. É tudo muito novo. Nunca senti
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 574 -
nada assim antes. Juro. Mas estou tão feliz que poderia perder o ar! Não quero saber das consequências. Enfrentaria o mundo pela senhorita. Acredite.
Quando olhar este girassol, lembre-se de mim, mesmo que um dia o destino venha a nos separar... Esta flor sempre será o elo entre mim e a senhorita.
Amo-a loucamente, desesperadamente. É a minha vida, o ar que respiro. Desde o primeiro instante em que a vi, senti que não mais poderia viver sem a senhorita. Não sei se o que sente por mim é o mesmo... Mas sei que, se não confessasse este sentimento, não poderia mais ter um dia de sossego. Aguardo-a amanhã na sacristia, minha flor.
Amo-a, amo-a, amo-a...
A.W.M.
Não sabia o que pensar. Fiquei surpresa, apreensiva e
maravilhada ao mesmo tempo. Todos os sentimentos do mundo
estavam dentro de mim. Um nó formava-se dentro do meu
estômago. Temia por ele. Sabia que, se fôssemos pegos, seria
duro o castigo que nos seria imposto. Mas ele, como um
sacerdote, poderia sofrer ainda mais. Meu amor... Tudo o que eu
queria era ser feliz ao lado dele, mas os nossos universos eram
completamente diferentes. Oh! Destino cruel... Era como se uma
espada transpassasse minha alma. Estava feliz como nunca, mas
também estava insegura - não pelo seu sentimento em relação a
mim, mas pelo futuro que nos esperava. Sabia que, quando
estamos apaixonados, comportamo-nos inconsequentemente.
Caí por terra, de joelhos. Naquela noite, orei como nunca havia
feito em toda a minha vida. Pedi a Deus que me desse
discernimento e sensatez para tomar uma decisão sábia e
Adriana Matheus
- 575 -
correta. Nem me dei conta que, de tanto orar, acabei
adormecendo em um cantinho da parede, debaixo da janela.
Quando acordei no dia seguinte, estava com o corpo em
frangalhos e cheia de dores. Arrumei-me rapidamente, pois
precisava estar na sacristia antes que o galo cantasse. Ainda era
alta madrugada, mas queria estar na sacristia o quanto antes.
Embora ansiosa e apreensiva com toda aquela situação, saí da
cela calmamente, caminhando pelo corredor, que parecia não ter
fim. Das outras vezes, saíra tão apressada que nem me dei conta
do quanto brilhava aquele chão. E ao pensar que no sábado teria
que lavá-lo novamente... Mãe de Deus! Estava sendo irracional.
Estava tentando tirar da minha mente o que estava para
acontecer... Ia encontrar com o meu amor e comecei a pensar
no chão, para ver se parava de tremer tanto! Às vezes, quando
uma mulher está ansiosa demais, sua cabeça fica confusa e cheia
de pensamentos desconexos.
Desci as escadas apressadamente. Atravessei o patíbulo,
alcançando rapidamente o trajeto que dava para a igreja. Subi
aqueles degraus tão rapidamente! A igreja estava vazia, para
meu espanto. Fiquei imaginando que ele tinha desistido.
Engraçado: quando estamos amando, damos visão a detalhes
que nunca pensaríamos em observar. Até o meu respirar estava
diferente: era profundo e, ao mesmo tempo, leve. Minha boca
estava cheia d’água. Era a sensação mais estranha que já havia
sentido em toda a minha vida terrena. Havia uma espécie de
vazio no meu estômago, e não era de fome. Era bom e
estranho... Uma mistura do real e do imaginário. Uma sensação
de tonteira invadia meu corpo.
Fiquei ali, de pé, no meio daquela igreja, olhando o teto
minuciosamente. Era tão simples e harmonioso em detalhes que
mais parecia sonho... Seus anjos pareciam dançar e sorrir para
mim. Estranho ele não estar ali. Será que houve alguma coisa?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 576 -
Comecei a ficar preocupada. Fui até a sacristia e abri a cortina.
Não vi ninguém. Quando virei para trás, dei um grito!
– Padre! Quer me matar? – disse eu, com a mão ao
coração.
– Não desta forma! – sorriu, maliciosamente.
Senti-me corar. Um calor percorreu meu corpo como um
raio. No entanto, ele prosseguiu:
– Entremos no confessionário, por favor! Não é
conveniente que nos vejam a falar aqui fora.
Fiz o que ele sugeriu. Fiquei dentro do confessionário.
Ele foi para a parte onde ficam os padres. Só podíamos nos ver
por entre a tela que nos separava.
– A senhorita leu?
– Sim, li. - falei com voz quase trêmula. A presença dele
entorpecia-me os sentidos.
– Não dormi muito bem esta noite. A senhorita não me
saía do pensamento.
– Sabe que não deveria falar destas coisas comigo, padre
Ângelo.
– Desculpe-me, senhorita Anna, mas hoje sou eu quem
vai confessar os pecados aqui. Por isso, peço-lhe que apenas me
ouça, por favor! Se depois do que eu lhe contar ainda nada
quiser comigo, prometo sair de vez da sua vida.
– Compreendo.
Baixei a cabeça pesarosamente, pois não sabia o que
poderia sair daqueles lábios que, naquele momento, eu só queria
tocar com os meus. Mas, se ele dissesse fuja comigo, não
pensaria duas vezes. Meu coração parecia que ia saltar pela
boca. Ele começou a falar e gaguejava tanto que eu mal podia
entendê-lo. Deus, pensei, não deixe que ele seja um inquisidor.
Não de novo! Wallejo, depois de muito pensar na maneira
correta com que iria me contar o seu segredo, prosseguiu:
Adriana Matheus
- 577 -
– Escolhi o caminho da fé pela espada, e a Igreja traiu-
me pela ambição de seus superiores. Éramos muitos, mas fomos
traídos. São poucos os que nos dão abrigo. Estamos espalhados
pelo mundo. Refugiados, por assim dizer.
– Então, você é um cavaleiro da ordem, é isso o que está
tentando me dizer?
– Sim. Sou sim.
– Então, o que eu vi pela minha janela na noite em que
cheguei aqui faz sentido. Vocês estão refugiados neste convento
por qual motivo?
– Sim, mas não deveria ter visto nada. Os homens que
observou eram soldados da fé, estavam muito feridos.
Diariamente, trazemo-los aqui para curarem as feridas. Quando
se restabelecem, trocamo-los por outros que precisam de igual
tratamento. É assim que voltam para a batalha. Temos um
acordo com a madre superiora. Protegemos o convento dos
invasores. Em troca, elas cuidam de nós, dão-nos abrigo e
alimento, e também curam as feridas dos nossos soldados.
– Mas sobre que tipo de batalha o senhor está falando, se
acabou de me dizer que são desertores?
– A batalha silenciosa contra a Santa Madre Igreja,
senhorita. Descobrimos que estávamos matando muitos
inocentes em nome de Deus.
– Desculpe-me. Não queria parecer uma bisbilhoteira,
mas estava à janela naquela noite.
– Evite, senhorita. Quanto menos souber da ordem e do
que se passa aqui dentro, melhor será para a senhorita.
– Não sei muito sobre a sua ordem. Apenas o que ouço.
– Então, quanto menos souber, melhor.
– E quem são os cavaleiros, afinal? O que fazem de tão
secreto?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 578 -
– Posso apenas resumir a história, mas nunca confiá-la a
você, entende? Somos uma ordem secreta e devemos sigilo e
fidelidade uns aos outros. Fizemos um juramento de lealdade e
silêncio. Prometa-me que nunca irá me trair, mesmo que eu lhe
fale muito pouco sobre a ordem! Prometa-me que esse assunto
será esquecido pela senhorita para todo o sempre assim que eu
lhe contar o que acho necessário para que me conheça melhor.
– Sim, prometo, lógico que prometo.
– Então, escute com atenção: a Ordem dos Pobres
Cavaleiros de Cristo do Templo de Salomão é também
conhecida como Ordem dos Cavaleiros Templários. Existimos
já há 200 anos. Tudo começou quando um grupo de nove
cavaleiros decidiu defender a Terra Santa dos Sarracenos e
transformou-se, mais tarde, na maior e mais poderosa
organização secreta da nossa história. Estes monges guerreiros
que a senhorita viu possuem muitos tesouros religiosos,
incluindo, assim por dizer, a coroa de espinhos de Jesus Cristo.
Há um pensamento errôneo sobre nós, o de que somos também
os guardiões daquele que, para a maioria, seria a maior relíquia
Cristã: o Santo Graal.
– E vocês não são?
– Não, nem nunca o vimos. Deixe-me continuar, por
favor! Os Templários possuem uma riqueza incomensurável. Os
reis da Europa vivem negociando-nos empréstimos, pois
criamos muitos aspectos fundamentais do sistema financeiro.
Contudo, por sermos fiéis, fizemos votos solenes jurando
pobreza. Os membros individuais desta sociedade secreta são
paupérrimos, acredite-me. Andam a tentar destituir-nos e há um
boato sobre as reais intenções de Filipe, rei da França, o Belo.
Por isso, refugiamo-nos em conventos. Assim, ainda não
desconfiaram de nada. Filipe tem uma enorme frota atracada em
La Rochelle. E há alguns anos, os membros da ordem
Adriana Matheus
- 579 -
simplesmente vêm desaparecendo. Creio que, enquanto não for
declarada uma guerra real contra nós, também não nos
manifestaremos em nossas reais intenções. Mas estamos sob
alerta, caso haja uma traição ou emboscada repentina. Nunca
sequer vimos o Santo Graal, mas isso é o que nos protege e
mantém a ordem viva, por enquanto. Nossos inimigos não
sabem disso. Há boatos de que existimos secretamente, mas isso
não está fundamentado pelos poderosos, pois eles acham que
somos uma lenda e nada mais. O fim da nossa ordem Templária
foi anunciada com a execução do nosso último Grão mestre,
Jacques de Molay, que foi queimado vivo em Paris, em 1314.
Esse fato fez com que muitos acreditassem na nossa extinção.
Mas, pessoalmente, acredito que seja apenas um boato
infundável. Acredito que ele mudou simplesmente seu nome e
continuou vivo anonimamente. Possivelmente, ainda existem
herdeiros dele espalhados pelo mundo afora.
– Acha mesmo que ele pode estar vivo, então?
– É quase uma certeza, senhorita, assim como estou aqui,
contando-lhe tudo isso. Há citada evidência que liga figuras
famosas da história mais recente com a Ordem centenas de anos
após ela ter cessado oficialmente. Embora todos pensem que
somos uma lenda e já não existimos mais, há provas - como o
senhor Isaac Newton, que foi nomeado como sendo um de nós.
O grande explorador português Vasco da Gama viajou com as
insígnias transversais dos Templários nas suas velas, como
Cristóvão Colombo também. Há evidência de que nós, os
Templários, descobrimos a América oitenta anos antes de
Cristóvão Colombo. Mas, como Cristóvão Colombo foi quem
fincou a bandeira naquelas terras – confirmando, assim, seu
descobrimento-, conseguiu ser, então, com isso, o intitulado
descobridor. Mas, senhorita, houve tantos outros... Deveria
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 580 -
saber essas coisas, pois percebo que é uma mulher muito
instruída. Basta que observe pelo menos os sinais.
– Sim. Agora, ouvindo o senhor contar, percebo com
clareza que, na verdade, nunca deixaram de existir.
– Estaremos sempre no mundo. Nunca nos exterminarão.
Talvez, com o passar dos anos, até tenhamos que mudar o nome
da ordem. A senhorita não sabe a honra que é para nós ser um
Templário.
Percebi, pelo tom de voz, o quanto Wallejo falava com
real sentimento pela ordem que ele seguia não só com destreza,
mas também com o coração.
– Quando a notícia do nosso sucesso por parte das
cruzadas chegava à Europa, houve uma grande exaltação. Dos
locais mais remotos do continente, peregrinos punham-se em
marcha rumo à Terra Santa, esperando ver a cidade onde tantos
episódios da vida de Jesus Cristo haviam desenrolado. Mas estas
peregrinações começavam a criar consideráveis problemas para
os governadores de Outremer, o nome francês para terras do
ultramar ou além-mar. Um reino cristão foi rapidamente
estabelecido para delinear os territórios conquistados durante a
nossa primeira Cruzada. Mas não nos trouxe paz para a região.
Os cristãos continuavam cercados por estados islâmicos hostis.
Os turcos e os muçulmanos, que perderam muitas das suas terras
para os cristãos, não estavam dispostos a simplesmente desistir.
Em cinquenta anos, os turcos sarracenos tinham feito severas
investidas no Novo Reino. Havia ataques contínuos e assaltos às
habitações cristãs. Os descontraídos peregrinos, viajando por
terra desde a costa até Jerusalém, eram particularmente alvos
fáceis. Em um único incidente em 1119, por exemplo, um grupo
de peregrinos foi cercado por bandidos sarracenos e foram
mortos cerca de 300 homens. Em 1120, guerras entre sarracenos
podiam ser observadas na parte exterior das muralhas de
Adriana Matheus
- 581 -
Jerusalém. Mas, nesse tempo, muitos dos cruzados originais
tinham regressado com as suas riquezas saqueadas para a
Europa. A missão do Santo Papa para recapturar a Cidade Santa
estava completada. O nosso trabalho estava feito. Com isso, não
tínhamos mais nenhuma valia. Aí, começaram a nos explorar e
usurpar nossas riquezas. Somos pobres cavaleiros porque
também somos monges. Fizemos os votos usuais de pobreza,
castidade e obediência para com os nossos superiores. Durante
as cruzadas, éramos frequentemente ilustrados em pares,
cavalgando em um único cavalo. A noção heroica dos nove
destemidos monges guerreiros, valentemente defendendo os
peregrinos em viagem contra as investidas muçulmanas, não
deixou de apreender a imaginação das pessoas. Mas, nesse
tempo, houve uma selvagem campanha dos cruzados para
capturar a Terra Santa, que foi perfeitamente aceitável. A
terrível carnificina infringida aos muçulmanos durante a própria
cruzada tinha sido abençoada pelo Papa em nome de Deus.
Muitos de nós, como eu, não concordávamos com isso, mas
tínhamos que obedecer os nossos superiores. O povo passou a
ter uma ideia errada de nós. Alguns começaram a imaginar os
Templários com uma reverência romântica e ofereciam-se como
novos recrutas. A Ordem crescia lentamente no início. Depois,
mais célere. Para cada cavaleiro no terreno, havia ao lado dele
dois ou três sargentos. Estes eram homens que ainda não tinham
um compromisso definitivamente firmado com os templários.
Poderiam ser guerreiros sargentos-de-armas, ou podiam servir
de uma maneira mais pacífica em certas casas ou Conventos dos
Templários. Mantendo sempre o compromisso de pobreza, os
cavaleiros usavam roupa simples, que contrastava com o
ornamento. Usávamos uma cobertura lisa de cor branca que,
posteriormente, adornamos com a famosa cruz vermelha, que
significa a nossa pureza e dedicação. Em campanha, nós, os
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 582 -
templários, em nossos cavalos de guerra, usamos armaduras de
malha metálica. Nossos sargentos usam armadura mais leve.
Podemos combater em terra, se necessário for. De regresso à
casa, os Cavaleiros Templários receberam o apoio do mais
poderoso professor de moral da Europa. Esse homem era
Bernardo de Clairvaux. E o apoio e evangelização de Bernardo
levaram-nos à que se constitui como uma ordem com benção do
Papa, em 1129. Começaram a nos ver na Europa como novos
heróis em consequência dessa medida. Com a benção oficial do
Papa, nós, Cavaleiros do Templo, podíamos ativamente começar
a recrutar novos membros. Foi assim que a nossa ordem cresceu
em tal proporção. O mais importante: ainda podíamos começar a
ganhar dinheiro. Confesso que isso não foi nada mal. Os
representantes da ordem foram enviados através da Europa
numa campanha para angariar donativos para a causa. Poucos de
nós perceberam o quão fácil isso iria se tornar. A tarefa dos
Templários tornou-se famosa através da Europa. Éramos vistos
como nobres guerreiros, defensores da Terra Santa, contra os
odiosos sarracenos. Estes indivíduos eram ainda humildes e
verdadeiros devotos a Deus. Assim, como outros, usaram as
cruzadas como uma oportunidade para encherem os bolsos. Mas
os outros Cavaleiros peculiares juravam votos de pobreza e
castidade. Era injusto e, por certo, foram esses ambiciosos
homens que traíram a nossa ordem. A nossa lendária bravura era
tipificada num outro voto. Eram expressamente proibidos de se
retirarem do campo de batalha, a não ser que a inferioridade
numérica fosse de três para um. Donzelas jogavam-se a nossos
pés. Muitos de nossos homens traíram pelo desejo de estarem
com uma mulher. Esses foram poucos. Uns foram executados,
outros fugiram com suas amadas pelo mundo afora. Juntamos
fortunas, tanto em ouro como em propriedades. Poucos foram
tão generosos com o rei Afonso I de Aragão, que à sua morte,
Adriana Matheus
- 583 -
em 1134, testamentou que nos fosse concedido um terço de todo
o seu reino no Nordeste da Espanha. As pessoas mais pobres
davam tudo o quanto pudessem. Tomando um exemplo, entre
centenas, em 1141, Conan, duque da Bretanha, deu à Ordem
uma pequena ilha da costa Bretã, e também uma renda anual de
boa parte das suas propriedades na parte Norte da França.
– Por que as pessoas estariam preparadas para dar seu
dinheiro e propriedades em favor da Ordem? – perguntei,
curiosa.
– Sei que lhe passou isso à cabeça. Sem dúvida, ofertas
de caridade com intuitos religiosos eram vistos como uma via
para ganhar a salvação depois da morte. Efetivamente, as
pessoas achavam que estariam comprando o seu lugar no céu.
Mas, também, sob a influência de padres poderosos, como é o
caso de Bernardo, os objetivos limitados da Ordem no Oriente
eram exagerados até que o seu papel foi visto como os
defensores da cristandade num todo. As pessoas colocavam as
mãos bem no fundo dos seus bolsos. No fim do décimo segundo
século, William de Tyre escreveu: não existe, neste momento,
uma região no mundo cristão que não tenha transferido uma
parte das suas riquezas para estes irmãos. Tudo isto contribuiu
para aumentar consideravelmente o número dos Templários.
Não somente precisavam de cavaleiros e de irmãos para tomar
conta das suas casas na Europa, como 300 novos Cavaleiros
tinham partido para o Médio Oriente nos finais de 1120.
Posteriormente, continuou a haver um fluxo contínuo, assim
como a sua posição era vastamente fortalecida em 1139, quando
o Papa Inocêncio os libertou de qualquer superior real. Daí em
diante, éramos apenas questionados pelo próprio Papa. Ninguém
queria proteger o Papa como o seu Mestre. Como muitos
esperavam, com tamanha acumulação de riqueza e poder, a nova
Ordem tinha os seus críticos. Não tendo que prestar contas a
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 584 -
ninguém, era frequentemente acusada de arrogância. E os seus
negócios, conduzidos em segredo, fizeram transpirar profundas
suspeitas acerca das suas atividades. Muitas figuras religiosas
reprovavam o seu desempenho de guerreiros de Cristo. O que
poderia ser menos cristão do que massacrar seres humanos
numa batalha, ou saquear cidades? Rumores persistentes
também se espalharam, dizendo que a nossa atividade principal
era secreta e esotérica. Como Guigo, um famoso monge
europeu, escreveu para a nova Ordem em 1129: é inútil para nós
atacarmos os inimigos exteriores sem que, primeiro, tenhamos
conquistado aqueles que estão no interior. Nós, Templários,
obtivemos uma reputação de sincretismo. Mas os que nos
apoiavam em muito superavam os detratores, tanto em número
como em autoridade. Assim, a ordem prosperou no oriente e no
ocidente. Entretanto, foi somente com a segunda cruzada de
1147 que nós, Cavaleiros Templários, tornamo-nos realmente
proeminentes. Em meados do século XII, o controle cristão na
Terra Santa encontrava-se fragilizado. Em 1147, o rei alemão
Conrad III e Luis VII, da França, apelavam a uma segunda
cruzada para fortalecer o reino cristão no oriente. O Papa
Eugenius III deu a esta campanha a sua benção, e Bernardo de
Clairvaux clamava apoios em seus sermões. Na altura da
segunda cruzada, os Templários da Europa estavam em situação
de enviar várias centenas de cavaleiros para Outremer. A
experiência adquirida a proteger peregrinos ser-lhe-ia de total
importância para proteger a missiva armada europeia na sua
movimentação através da Terra Santa. Os Templários ganharam
a confiança dos líderes reais das cruzadas, com o apoio
financeiro e militar. Mas esta segunda cruzada tornou-se um
desastre. Os franceses e alemães sofreram graves perdas nas
suas batalhas com os turcos. Em fins de janeiro de 1148, os
cruzados estavam severamente enfraquecidos e praticamente
Adriana Matheus
- 585 -
sem cavalos. Luis VII regressou à sua casa, assumindo a grande
responsabilidade pela campanha dos Templários. Mas, depois
dos desastres que ocorreram durante a segunda cruzada, os
europeus sobreviveram intactos. E, é claro, os Templários
estavam ali para ficar. Estes eram ricos em propriedades, e
ganharam grande parte de território pela conquista. Nos terrenos
desertos do Médio Oriente, estabeleceram uma cadeia de
fortificações. Por volta de 1180, nós, Cavaleiros do Templo,
tínhamos uma rede de castelos para nos defender contra
invasões e podíamos agir como depósitos de mercadorias e
pontos de passagem. Estes castelos eram construídos de maneira
pessoal, e eram os mais fortes do mundo. Novos recrutas
chegavam da Europa para orientar essas fortificações. Eram,
também, a armada mais disciplinada e organizada daquele
tempo. Não tínhamos dificuldade em recrutar novos homens,
que vinham até do calibre superior para a Ordem. Era mais que
uma guerra: era como se o nosso sangue fervesse. Era excitante,
confesso. Éramos guerreiros dedicados, conduzidos pela mais
severa disciplina monástica. Não tínhamos qualquer medo de
morrer. Amamos ser o que somos. É um prazer ser um soldado
da ordem. É uma honra ser um guerreiro de Cristo. Mas a guerra
estava mudando. No ano de 1170, o grande líder sarraceno
Saladino conseguiu unir os setores rivais do islã numa só força.
À volta do reino cristão de Jerusalém, Saladino governava as
terras do Egito para o sul e efetivamente conduzíamos, também,
a Síria na parte norte. Os anos de tolerância entre os cristãos e
muçulmanos no Médio Oriente tinham chegado ao fim. Agora,
teríamos a guerra aberta. E era uma guerra que Saladino estava
progressivamente a ganhar. A ajuda do ocidente mostrava-se
muito vagarosa na sua chegada. Os habitantes de Outremer
estavam por conta própria. Os próprios muçulmanos
desenvolveram a sua própria seita de monges guerreiros. Os
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Assassinos eram o equivalente muçulmano dos Templários ou
os Hospitalários. Mas os Assassinos eram ainda mais fanáticos.
Assim como tomando lugar em todas as operações militares,
eram especialistas treinados para atingirem pessoas singulares.
A palavra assassino é a forma inglesa de Hashishyun, que quer
dizer comedores de hashish. Era relatado que seu primeiro líder,
conhecido como o Velho das Montanhas, tinha por hábito usar
ervas entorpecentes para escolher objetivos e descrever visões
do paraíso. Isso acontecia antes de enviar os seus homens em
missões sinistras. Os Assassinos eram fanaticamente leais ao seu
mestre. O sobrinho de Ricardo Coração de Leão, Henrique de
Champagne, visitou uma vez uma fortaleza Assassina na Síria,
na tentativa de negociar um tratado de paz com os muçulmanos.
Para impressionar o visitante com a absoluta obediência dos
seus homens, este ordenou a vários assassinos, um por um, a se
atirarem para a morte das muralhas do castelo. Henrique ficou
visivelmente perturbado com esta cena suicida que havia
presenciado. Estas fortificações assassinas estavam implantadas
através das montanhas do atual Líbano e Síria, e constituíam
uma constante ameaça para as fronteiras nordestes do reino
cristão. Mas os assassinos também não eram amigos de setores
rivais islâmicos, os quais eram atacados pelo menos tantas vezes
quantas os cristãos. Em 1173, o rei Amalric I de Jerusalém
recebeu uma mensagem do próprio Velho das Montanhas,
propondo-lhe a paz. Amalric entendeu que tal proposta não só
deixava mais seguras as fronteiras, como também abria fissuras
no próprio Islão, cada vez mais espalhado. Aceitou fazer a paz
com os Assassinos. Os Templários tinham, neste tempo,
assumido papéis adicionais. A sua honestidade e integridade
eram, contudo, inquestionáveis. Éramos os melhores guerreiros
no reino. Tínhamos ambos as qualidades para transportarmos o
dinheiro dentro e fora do reino. Éramos, também, os coletores
Adriana Matheus
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de impostos perfeitos. Ninguém se atrevia a nos enfrentar.
Amalric, no seu tratado com os assassinos, apressadamente disse
aos Templários para pararem de receber seus impostos. Mas os
Templários não gostavam que ninguém fizesse promessas em
seu nome, mesmo sendo o rei. Abdullah, o agente assassino, foi
emboscado no caminho, quando regressava das negociações
com Amalric. Foi morto por um Templário que tinha um só
olho, cujo nome era Walter de Mesnil. Amalric estava furioso.
O seu bem traçado plano de paz com os assassinos tinha sido
sabotado. A desconfiança começou a partir daí e atingiu a
impecável reputação dos Templários. Podíamos agir
independentemente do rei - isto diziam algumas pessoas! Fomos
chamados de arrogantes. Jogaram-nos vagas acusações de
subornos. A inveja cresceu desmedidamente sobre nós.
Passamos a ser altamente suspeitos. Todos queriam saber
exatamente o que os Templários tinham debaixo da sua manta
de sincretismo. Mas Amalric e outros oponentes tinham que
engolir a sua ira e tolerar-nos. Éramos, ainda, sem dúvida
alguma, a força de combate suprema em Outremer. Uma nova
fase começou para os Cavaleiros Templários: o que era para ser
uma sociedade com o objetivo de proteger a Terra Santa acabou
por virar uma desordem. O grande segredo estava despertando a
curiosidade de todos. Por isso, acabamos por nos tornar mal
falados em todos os lugares por onde passávamos. A ilusão de
sermos os guardiões do Graal estava no fim. Começaram a
lançar boatos de que tínhamos o envolvimento com forças
ocultas. Éramos a guerra, e a ordem estava se desmoronando.
Durante os dois dias da batalha, Saladino usou o terreno e o
clima brilhantemente em sua vantagem. Atacamos as forças
cristãs em deserto aberto, no calor flamejante, em terreno sem
água. Ajustamos o ataque a favor do vento, de modo que o fumo
denso, adicionado à sua miséria, serviu de tampa para suas
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 588 -
tropas. As setas choveram severamente para debaixo dos
Europeus prostrados. Duzentos e trinta cavaleiros morreram
nessa batalha, ou foram executados imediatamente após. Estas
execuções eram uma medida do respeito de Saladino para com
os cavaleiros. Indubitavelmente, trariam ricas recompensas ou
mesmo preços elevados nos mercados de escravos por onde
passassem. Saladino, por onde passou, apagou todos os traços
dos Templários, demolindo todos os seus edifícios. Logo, o
único posto cristão principal era o porto de Tyre. A terceira
cruzada 1189-1192 trouxe Ricardo Coração de Leão à Terra
Santa. Mas, quando Saladino morreu, em 1193, as seitas
islâmicas rivais recomeçaram as suas querelas. Os cristãos
lutavam para reconquistar território, e suas fortunas
desvaneceram-se. Havia algumas vitórias, mas havia também
derrotas terríveis. Muitos Templários caíram na batalha de La
Forbie, perto de Ghaza, em 1244. Somente 33 cavaleiros foram
deixados em todo Outremer. O fim estava perto. A moeda
nesses dias era ouro ou prata, e valia simplesmente o seu próprio
peso, quer fossem dinars árabes ou solidi italianos. Os
Templários tinham uma enorme responsabilidade, pois todo o
dinheiro estava em suas mãos. Com isso, a cada dia crescia a
ambição dos monarcas e da igreja - o que acarretou
perseguições.
– Com isso tudo, padre Ângelo, o senhor quer me dizer
que é um fugitivo?
– Sim. Também a maioria aqui dentro deste convento
encontra-se na mesma posição que eu. A Igreja quer nos tirar
tudo o que conquistamos. Não mais nos reconhecem como
heróis. Somos seus inimigos.
– Entendo-o. Deve ser duro ter que viver foragido desta
forma.
Adriana Matheus
- 589 -
– Sim, é um pesar. Não tentamos nos esconder e, por
causa disso, vários milhares foram feitos prisioneiros.
Juridicamente falando, essas prisões eram ilegais. Os
Templários respondiam unicamente ao Papa. Mas o atual Papa,
Clemente V, devolveu essa condição para Filipe, o rei francês
que transferiu o assento papal de Roma para Avignon, na
França. Filipe esteve, também, por trás da morte suspeita do
precedente papa - deixando, assim, o trono papal livre para
Clemente. Inevitavelmente, o atual papa toma o partido de
Filipe. E, com apoio papal, ataques similares foram feitos aos
Templários através da Europa. Foram levados a julgamento
aqueles que não acatavam as acusações levantadas contra eles. E
eram abandonados com uma mísera pensão, deixados na miséria
ou, ainda, como pedintes. Qualquer um que recusasse era
encarcerado para toda a vida. Mais de cento e vinte Templários
foram queimados na fogueira. Após as torturas, confissões e
execuções, Clemente V aboliu oficialmente a Ordem dos
Cavaleiros Templários, a vinte dois de Março de 1312. O
Grande Mestre patriarca, Jacques de Molay, foi um dos que
confessou. Mas a quatorze de março de 1314, enquanto ele era
exibido no exterior da catedral de Notre Dame, em Paris, para
ouvir a sua sentença de prisão perpétua, De Molay discursou
uma dramática declaração: penso verdadeiramente que neste
solene momento eu deva proferir toda a verdade. Ante o céu e a
terra, e com todos vocês aqui como minhas testemunhas, admito
ser culpado da mais grotesca das iniquidades. Mas essas
iniquidades foram eu ter mentido ao ter admitido as grotescas
acusações emitidas contra a Ordem. Declaro que a Ordem é
inocente. A sua pureza e santidade estão acima de qualquer
suspeita. Admiti, de fato, que a Ordem não era culpada. Mas
unicamente assim agi para evitar contra mim as terríveis
torturas. A vida foi-me oferecida, mas pelo preço da infâmia.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 590 -
Por este preço, a vida não vale a pena ser vivida. Depois de ter
retratado publicamente a sua confissão, Jacques de Molay, o
último dos vinte dois grandes mestres da Ordem dos Pobres
Cavaleiros de Cristo e Templo de Salomão, foi queimado vivo,
em Paris. Enquanto expirava, amaldiçoou o rei Francês e o
Papa. Disse que no prazo de um ano seriam chamados a prestar
contas pela perseguição aos Templários. Apenas um mês depois,
o Papa Clemente V faleceu, aparentemente de causas naturais. A
vinte e nove de novembro do mesmo ano, Filipe IV morreu
também num acidente a cavalo, enquanto caçava. Com isso,
associaram as mortes à praga de Molay. Com mais este fato,
passamos a ser temidos e acusados de mais um crime que não
cometemos: o de ocultismo e bruxaria. Como pode ver, não é só
a senhorita que sofreu acusações levianas da Santa Madre Igreja.
Também sofremos tais acusações. Como pode ter percebido,
fomos cavaleiros defensores desta que nos traiu por ambição e
covardia. Acredite: ninguém está livre das punições desta mãe
tão cruel.
– Mas por que tudo isso aconteceu? E o que fizeram os
Templários?
– Não fizemos nada. Mas, nos julgamentos, éramos
acusados de heresia por participar de práticas obscenas, de
cuspir na imagem de Cristo e adorar ídolos, especialmente uma
cabeça chamada Baphomet. Fomos acusados de bruxaria.
Fomos, ainda, acusados de sodomismo. Fomos acusados de
avareza, entre outras tantas coisas que, nem que ficasse aqui lhe
contando por toda a eternidade, chegaria ao fim dessas barbáries
e acusações. Fundamos uma nobre causa, e por ela fomos
traídos, defendendo a Terra Santa. A mesma Igreja que
defendemos jogou o povo contra nós. Não devemos assumir que
muitos ou nenhum Templário era, na realidade, culpado das
muitas acusações contra ele: idolatria, sodomismo, e por aí em
Adriana Matheus
- 591 -
diante. Estas eram as acusações principais que se faziam contra
os heréticos. E eles foram contra elementos específicos nas
regras da Ordem. Mas é possível que muitos dos Templários não
fossem realmente cristãos ortodoxos, embora nunca fora
encontrado nenhum testemunho em relação a este fato. Isso é
uma história contínua e incerta. É dito, frequentemente, que
destruímos os registros para que nunca pudessem ser usados
contra nós. De qualquer modo, não posso afirmar-lhe que é ou
não uma mentira. Mas é possível que estes fatos se tenham
simplesmente perdido, provavelmente em Chipre, alguns anos
mais tarde. Há, ainda, livros e papeis que sejam fáceis de
destruir. O fato é que o nosso tesouro está desaparecendo. Não
sabemos ao certo para onde ele está indo. Temos muitos
informantes por toda a parte, mas está ficando cada vez mais
difícil controlar os espiões entre nós. Estes se vendem para não
morrerem, ou suas famílias são ameaçadas. Há uma teoria de
que nosso tesouro está secretamente sendo transportado pelos
esgotos de Paris. Mas não é um fato consumado.
A complexidade de catacumbas e esgotos que se
encontram por baixo da capital francesa nunca foi mapeada.
Temos mapas detalhados dessas passagens subterrâneas. Mas é
infinitamente complexo afirmar tal hipótese. Uma vez em
segurança, podem ter transportado o tesouro para um destino
desconhecido por uma frota Templária, e posteriormente nunca
mais foi visto.
Wallejo terminou de contar-me sua história e disse:
– Essa é a minha história, senhorita Anna. Como pode
ver, não somos tão diferentes assim. Também sou perseguido
por bruxaria. Tudo por causa da ignorância de um povo - do
mesmo povo que nos colocou no topo de um mundo de
maravilhas e batalhas.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 592 -
– Mas ainda não o entendo. Como e por que o senhor
veio parar aqui?
– Estou sendo acusado de ter matado um homem cujo
assassino está aqui, neste condado. Vim para cá com o pretexto
de que sou um padre. Estou aqui sigilosamente. Ninguém sabe
disso, a não ser a madre superiora. Agora, confesso-lhe que sua
partida para Roma preocupa-me, porque sei que estão para
substituí-la. Espero que acredite em mim. Não estou mentindo
em uma só vírgula. Este homem do qual lhe falo está escondido
e usurpa o lugar de um homem inocente e desaparecido. Ele
assassinou ambos. É um impostor e espião dos mulçumanos.
Sabe Deus o que anda aprontando entre o povo inocente e de
fácil engambelação. Há pouco tempo, obtive informações
precisas de que este mesmo cidadão esteve em Salamanca, a
cidade de onde a senhorita veio. Soube que ele andou a tentar
firmar um compromisso com certa senhorita. Mas, graças a
Deus, parece que seus planos foram frustrados. Ele está tentando
se infiltrar na sociedade a todo custo. É o assassino de uma
família inteira. Sabe Deus de quantos mais! Este homem,
definitivamente, não pode continuar impune assim. Tenho que
fazer alguma coisa.
– Como isso tudo ocorreu? Como ele pode ter tomado o
lugar de uma pessoa? Seus súditos e criados não reconheceram
este herdeiro?
– O duque de certa província, que não vem ao caso
agora, enviuvou cedo demais. Quis viver a vida sob a liberdade
de sua juventude. Como não queria casar-se novamente, enviou
seu filho com somente três anos de idade para um internato, na
Inglaterra. Esta criança, pelo que sei, nunca saiu do internato,
nem mesmo para as festas comemorativas.
– Pobre menino... Que vida solitária e sem amor!
Ninguém merece viver desta forma. Para mim, este tal duque
Adriana Matheus
- 593 -
nada mais era do que um carrasco cruel e sem sentimentos para
com sua própria prole. Imagine, o pobre menino já havia
perdido a mãe e ainda tivera que viver sem o aconchego do seu
lar e o afeto do pai. Que cruel! Que monstruoso este senhor - em
minha opinião, nem merece ser chamado assim. Já o detesto,
mesmo sem conhecê-lo, por esta atitude tão sem crédito.
– Sim, concordo com a senhorita. Tal atitude gerou
muita revolta no jovem conde, que passou a se rebelar dentro do
internato, agindo da pior maneira possível, juntando-se a maus
elementos que usufruíam do dinheiro que o duque lhe enviava
para suas despesas extras. O jovem conde, segundo fui
informado, passou até a fazer uso constante de ópio. Ele tinha
um amigo, um informante meu, e este me escrevia, contando
quais seriam os planos e expectativas do conde ao sair do
internato. Ele queria gastar toda a fortuna de seu pai e viajar
para curtir a juventude supostamente perdida. Esses tais planos
também foram ouvidos por outro jovem de muito mau caráter e
muito ambicioso. Nele, aflorou a inveja. Este jovem havia
conseguido ir para o internato custeado pelos nossos maiores
inimigos, os sarracenos. Estes, mesmo depois de terem perdido
várias guerras, infiltraram espiões em toda a parte da Europa.
Um dia, já em idade muito avançada, o duque resolveu ter a
consciência de manda chamar o rapaz de volta à casa paterna. E
ele trouxe na bagagem este amigo. Este amigo, em meio ao
caminho de Valencia, tramou a morte do jovem conde. Em uma
hospedaria que ele mesmo havia escolhido, juntou-se com mais
dois capangas e deram cabo do jovem monarca. Esconderam o
corpo. Nunca o encontramos. Este jovem de aparência doce é
um gatuno e assassino, um homem capaz de qualquer coisa para
alcançar seus objetivos. Este homem tem uma mente diabólica e
cruel. Ao chegar à casa do duque, tranquilamente se passou
como filho do mesmo, pois sua aparência física era muito
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 594 -
semelhante à do jovem conde assassinado. Isso passaria
despercebido se eu não começasse a desconfiar do
comportamento deste jovem.
– Então, o senhor estava lá? E o que fazia no meio desta
trama toda? Qual era o seu papel?
– Como lhe contei, éramos incumbidos de cuidar dos
bens e da segurança destes fidalgos. Mas, entre mim e o duque,
havia uma amizade fraternal. Ele e eu tornamo-nos muito
amigos. Éramos confidentes, embora eu fosse bem mais jovem
do que ele.
– E o que fez o suposto conde para que chegasse a tal
desconfiança?
– Tínhamos um relatório semanal de tudo o que o
verdadeiro conde fazia dentro do internato. Embora nunca o
tivéssemos visto e nem o próprio pai soubesse como era a
verdadeira face do filho, tínhamos também um informante lá
dentro que nos passava tudo o que ele fazia, inclusive suas
conversas. Por isso, sabíamos qual seria o seu interesse ao sair
do internato. Estávamos preparados para enfrentar um jovem
revoltado e rebelde. Mas ele estava demasiadamente meigo e
submisso. Comecei a observá-lo a fio. Embora ele não desse
motivos aparentes para que ninguém leigo no assunto levantasse
uma suspeita, comecei a controlar cada ato aparentemente
correto dele. Esse usurpador passou a levar o desjejum para o
pai todas as manhãs. Como o duque estava muito debilitado
devido à idade e já não enxergava muito bem, foi fácil para esse
crápula engambelá-lo. Mas, com esse falso carinho e atenção
súbita pelo pai, fez com que o duque começasse a ter sérios
problemas de estômago. Nada parecia parar em seu organismo.
Era visível a sua palidez repentina. A doença começou a se
agravar dia após dia. Os médicos nada encontravam. Então,
comecei a investigar e descobri que o larápio estava colocando
Adriana Matheus
- 595 -
certo veneno dentro do açúcar. Assim, ficou difícil de se
diagnosticar. Só que já era tarde demais: o duque estava muito
debilitado e, nos seus últimos dias de vida, já havia passado toda
a sua fortuna e bens às mãos do falso conde. Mediante esse triste
episódio e com a morte do duque, tentei, ainda, recuperar o
testamento e provar a falcatrua do usurpador. Mas ele foi mais
esperto e já tinha fortes aliados a seu lado. Quando percebeu
nossa intenção de desmascará-lo, logo expulsou meus soldados
da mansão. Ele sabia que eu poderia fazer muito mais contra ele.
Então, maquinou uma nova trama. Acusou-me de envenenar o
duque e colocou toda a corte atrás de mim. Nada pude fazer,
porque não tinha como provar que este rapaz era um usurpador.
Afinal, nada tinha em minhas mãos, nenhum documento,
nenhuma testemunha. Entende?
– Sim, entendo. Mas que fim levou a única testemunha
que estava também dentro do internato com o verdadeiro conde?
Pois, afinal, ele pode ser uma testemunha. Também deve
considerar a freira que tomava conta do internato. Ela é uma
testemunha. O que fez quanto a isso?
– Quando o falso conde acusou-me levianamente de
assassinato, viajei imediatamente para o internato à procura de
provas, mas a madre tinha sido transferida de seu posto. O
jovem que era nosso espião desapareceu misteriosamente, sem
deixar vestígios. Com isso, supus que ele também tinha sido
assassinado.
– Santo Deus! Para onde foi transferida a madre, então?
– Para este convento, senhorita Anna.
– Quer dizer que a nossa madre superiora é a sua
testemunha? Ela é a sua prova-chave?
– Sim. Mas suponho que não a deixarão voltar de Roma.
– Por que diz isso?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 596 -
– Porque, como citei para a senhorita, o usurpador fez
aliados em muitos lugares. Já interferiu para que ela fosse
transferida.
– Santo Deus misericordioso! Padre Ângelo, temos que
fazer alguma coisa.
– Nós? Nunca a deixarei envolver-se nisso. É perigoso
demais. Essas pessoas são assassinas. Não medirão esforços
para alcançarem seus objetivos.
– Acha que o abandonarei? Já estou envolvida nessa
história até os cabelos. Quando me contou tudo, tornou-me sua
cúmplice. Amo-o e sempre o amarei. Esperei-o por muito
tempo, amor da minha vida, para ter que o abandonar assim, no
meio de uma tempestade. Não vou entrar em detalhes com você
agora, mas quero que acredite apenas em uma coisa: esperei-o
por muitas vidas e estou aqui, nesta, para viver e morrer contigo.
Wallejo saiu da sacristia, abrindo a minha cortina. Então,
saí. Fitando-o nos olhos, percebi que naquela hora sua áurea
iluminou todo o ambiente ao nosso redor. Ele não precisou de
palavras para me dizer o quanto estava feliz. Nossas mãos se
tocaram e nossos lábios se juntaram pela primeira vez. O chão
não estava mais debaixo de nós. Parecíamos ter levitado uma luz
muito superior, e um cheiro de rosas tomou-nos por completo.
Quando duas almas encontram-se, a magia toma sua forma e o
universo se agita. Ele se afastou lentamente e olhou-me nos
olhos. Seus olhos tinham toda a constelação dentro deles.
– É linda. Não só sua aparência física, mas é linda em
todo o seu interior. Agora sei que nunca poderia amar outra
além da senhorita.
Ele chorou e ficamos abraçados por mais alguns
segundos.
Adriana Matheus
- 597 -
– Não podemos nos arriscar, amor. Temos que ter
cuidado de agora em diante. Se formos descobertos, as
consequências serão graves.
– Só não consigo entender uma coisa: como esse tal
conde conseguiu envolver e, ao mesmo tempo, trazer tanta gente
para junto de si?
– Ele mentiu, amor... Disse a todos que eu e os
cavaleiros fizemos tudo de caso pensado, para roubar a fortuna
do duque. Ainda aumentou a maledicência, pois disse que todos
os cavaleiros só queriam roubar os monarcas. Isso gerou muitas
desconfianças e até a Igreja, que já andava ambicionando nossos
tesouros, aproveitou a oportunidade para arquitetar contra nós.
Na verdade, a Igreja pouco se importa com o usurpador. Só quer
é nos tirar de nosso posto. Assim, toma conta de toda a
população e passa, também, a controlar a fortuna dos monarcas
e das cortes.
Olhei para Wallejo e interrompi antes que ele começasse
com o discurso sobre os Templários novamente.
– Desculpe, meu amor. Não quero interromper, mas
temos que ir, antes que dêem falta de mim e comecem a
desconfiar que essa confissão está longa demais.
– Sim. Precisamos ir antes que desconfiem de nós.
Beijou-me na testa e olhava-me como se não quisesse
deixar-me ir. Por fim, despedimo-nos com um beijo longo e saí
da igreja, tentando não ser vista. Nem sabia por quê. Afinal,
todos os dias tinha que me confessar. Engraçado o quanto as
coisas mudam quando estamos com a consciência pesada por
algum motivo... Naquele momento, eu estava pensando no meu
pecadinho: no beijo de Wallejo! Isso, para as freiras, seria um
ato de fornicação! Sorri, sem conseguir controlar-me.
Fiz minhas tarefas do dia rapidamente. Fui para a
lavanderia e até cantei com as freiras, que se admiraram ao ver-
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 598 -
me tão feliz. Quando estamos amando de verdade, vemos luz no
meio das trevas e sol em gotas de chuva. O orvalho das manhãs
são lágrimas de felicidade. A vida, pétalas de flores. Depois de
ter terminado minhas tarefas da tarde, procurei minha amiga
Juanita, que estava lendo um livro perto da fonte, no meio do
patíbulo, em um banquinho em meio a uma refrescante sombra.
Ao colocar a mão em seus ombros, a freira deu um pulo de
susto. Como ri daquela situação!
– Não tem juízo, criatura? O que anda pensando ao sair
por aí, assim, a assustar as pessoas?
– Não tive a intenção de assustá-la, juro! Mas bem que
foi divertido vê-la dar pulos.
Ela tentou segurar o riso, mas não conseguiu. Depois de
rirmos como duas tolas, contei-lhe tudo o que me acontecera
pela manhã.
– Jura? Santo Deus! Que história! - disse ela, com os
olhos que mais pareciam dois pires.
– Quem será este maldito conde?
– Isso é o que eu não sei. Ele não quis me dizer.
– Mas precisamos saber quem é o larápio. E se ele vier
aqui? Precisamos saber para nos defendermos deste peste.
Espere! Santo Deus, e se...
– Diga, irmã! O que está pensando agora? Não gosto
quando faz esta cara... Hum, aí vem coisa, viu!?
– Senhorita Anna, como era o nome do seu conde?
– Por quê? Acha que ele pode ser a mesma pessoa?
– Não acho, tenho certeza. Meu Deus, raciocine comigo:
a senhorita não quis casar-se com este famigerado. Certo?
– Certo.
– Então, seu pai a enviou de imediato para este convento,
certo?
Adriana Matheus
- 599 -
– Certo. Mas ele sempre me ameaçava porque minha
madrasta colocava em sua cabeça estas ideias estapafúrdias. Não
consigo ver em que o conde tem ligação com Wallejo.
– Sim, entendo seu modo de pensar... Mas pare um
minuto só e pense mais um pouco. O senhor seu pai poderia ter
lhe mandado para qualquer convento. Existiam conventos mais
próximos a Salamanca e outros mais longe, se o caso realmente
fosse bani-la da presença familiar… Entende agora, senhorita
Anna? As peças deste jogo estão se encaixando. Seu amigo
Ramon tinha razão: uma dívida era muito pouco para seu pai
entregá-la nas mãos da Inquisição. Ele, com a influência que
tem, por certo poderia ter revertido toda a história. Afinal, não é
uma pessoa qualquer, tem sangue nobre. Essas coisas acontecem
com alguns nobres que não seguem a fio os mandamentos da
Santa Madre Igreja. Mas me desculpe a sinceridade. Sem
ofendê-la, a senhorita é muito modesta, com uma historinha sem
significância para estar incomodado tanto a pessoas tão
importantes. Entende-me agora?
– Sim. Começo a perceber coisas que não percebia antes.
Mas por que meu pai se vendeu desta forma?
– Senhorita Anna, se o seu conde for mesmo que
pensamos, ele por certo é muito poderoso e persuasivo. Com
certeza, a senhorita está correndo risco de vida. Porque este
homem não lhe dará mais sossego em lugar nenhum. Sua
presença aqui é apenas a ponte para que ele se aproxime e
consiga assassinar o padre Ângelo. Sua presença neste convento
nada mais foi que um pretexto para alcançarem o objetivo de
pegarem o padre Ângelo. Mais nada, senhorita Anna. A
senhorita não passa de uma isca. Só que eles não sabem de uma
coisa.
– Do quê?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 600 -
– Que juntariam dois amores de vidas passadas. Deus
que me perdoe por pensar desta forma... Mas o destino tem suas
artimanhas também. Pregou uma peça em todos vocês.
Meu coração deu um nó. Estava feliz, mas também
muito pesarosa. Se o conde fosse a mesma pessoa de quem
falávamos, Wallejo seria capturado assim que o conde fosse me
fazer uma visita - o que já era de se esperar.
– Amanhã bem cedo falarei com padre Ângelo. Tenho
certeza de que chegaremos a um consenso juntos. Vamos
conseguir achar uma solução. Que Deus me ajude! Agora,
perdoe-me. Preciso ir para minha cela. Tenho que refletir um
instante. Tenho que rezar a Deus e pedir forças. Agradeço-a por
me dar esta luz.
Beije-lhe as mãos e saí, sem nada a dizer, porque senti
minhas forças esvaírem-se de dentro de mim. Chegando à minha
cela, só queria chorar sem parar, porque estava sem saber como
ajudar Wallejo. Mas minhas lágrimas secaram-se de imediato ao
ver outro bilhete e outro girassol em cima da mesinha. O bilhete
dizia assim:
Espanha, vinte e três de julho de 1819
Meu amor, meu único amor... Espero que esteja bem.
Quero que saiba que seu sorriso ilumina a escuridão da minha
alma. Que sua presença é a força que me faz seguir, e é só pela
senhorita que entrarei nesta batalha sem medo de perder. Amo-
a, amo-a, amo-a... Seu sempre...
A.W.M.
Depois de tais palavras, não pude mais chorar. Tinha que
tirar forças de dentro do útero, se assim fosse necessário. Meu
amor precisava de mim. Não era hora de bancar a menina tola,
chorona e fraca. Ergui a cabeça e fui à janela observar o luar,
Adriana Matheus
- 601 -
que não estava mais tão cheio. As crianças da noite rondavam à
procura de alimento noturno. Seus apetites eram vorazes.
Chacais famintos procurando alguma presa para devorar.
Engraçado como a vida não para, nem de noite, nem de dia e
nem em lugares secos. Mediante tais observações, percebi que a
natureza estava me dando mais uma lição. Ela estava me
dizendo... Se eles não paravam e tinham que esperar que a noite
caísse para poderem sobreviver, por que eu tinha que me deixar
ser vencida no primeiro obstáculo? Esbocei um sorriso e
agradeci pela lição que tivera naquela noite. Fui me deitar
bastante tarde. Nem vi o sono chegar. Já eram altas horas da
noite quando uma voz torturante chamou-me:
– Senhorita Anna, por favor, acorde! Sou eu, Juanita...
A voz parecia estar vindo de muito longe... Abri apenas
um dos olhos, lentamente, e deparei-me com uma freira ainda de
roupa de dormir, com uma touca de abas largas que mais parecia
dois chifres de boi. Então, mediante aquela lastimável figura
exótica e aterrorizante cena, disse entre dentes:
– Morri, não foi? E agora Satã está me enviando sua
mensageira para me torturar! Não precisa tanto: confesso, fui eu.
– Eu o quê, santa criatura? Para de dizer blasfêmias! Sou
eu, Juanita. Tive um sonho. Quero que me traduza este, por
favor! - respondeu a irmã, parecendo não ter entendido minha
ironia.
– Já disse: confesso, fui eu quem colocou a coroa de
espinhos em Cristo! Agora arrede-se daqui, criatura torturante.
Dizendo isso, virei para o canto da cama e tapei a cabeça
com o travesseiro. Achava que, agindo daquela forma, ela iria
embora. Mas foi uma doce ilusão da minha parte, pois Juanita
puxou o travesseiro abruptamente, dizendo:
– Estou a falar sério. Tive mesmo um sonho ruim. Quero
que a senhorita ajude-me a traduzi-lo.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 602 -
Diante os fatos, só me restava uma coisa: ouvir o que a
aquela santa mulher tinha para me dizer de tão importante!
– Está bem. Já percebi que a senhora hoje não tem a
menor intenção de me deixar dormir. Deixe-me adivinhar:
sonhou que estava no céu e havia virado anjo! Aí, veio aqui
saber se é um bom presságio? Sim, digo sim: todas vocês,
freirinhas, vão virar anjos e vão direto para o céu. Agora posso
dormir? – disse, meio sem paciência.
– Não é nada disso, senhorita Anna! Sonhei que estava
no meio de uma floreta e enormes serpentes enrolavam-se no
meu corpo. Quando conseguia me livrar delas e fugir, deparava-
me com um urso enorme. Ele abraçava o padre Ângelo e, com
isso, tirava todo o ar dele. Mas o estranho é que o urso parecia
sorrir para ele, como se o conhecesse. Aí, corri para buscar
ajuda, mas acabava dentro de uma caverna, fria, suja e escura.
Lá, vi a senhorita, presa em uma teia de aranha gigantesca. E
dizia-me por favor, ajude Wallejo... Ele corre perigo de vida. O
traidor está chegando. Depois disso, acordei toda suada.
Se eu fosse uma pessoa comum, diria a ela que
simplesmente teria ficado impressionada com a nossa conversa
do dia anterior. Fiquei espantada com o sonho de Juanita! Ouvi-
a atentamente. Por fim, disse-lhe:
– As cobras negras é um sinal de traição. Como eram
cobras gigantescas, isso significa que é uma pessoa de muito
poder, que está ou estará bem perto de nós. O abraço do urso
sorridente significa traição de alguém que está muito perto do
padre Ângelo. A caverna escura é uma situação pela qual eu ou
a senhora passaremos. E será, por certo, um lugar frio, escuro e
muito úmido. As teias de aranha significam que não poderemos
nos livrar de tal situação. Quanto à parte de padre Ângelo... quer
dizer que sua morte será causada pelo seu próprio inimigo.
Adriana Matheus
- 603 -
– Nossa! Deus do céu... E não há nada que possamos
fazer para livrá-lo deste destino tão cruel?
Baixei a cabeça e as lágrimas rolaram.
– Não, infelizmente não podemos interferir no destino de
outra pessoa.
Juanita baixou a cabeça e disse:
– Perdoe-me, amiga! Sinto ter sido portadora de tão más
notícias. Não queria ser eu a dizer-lhe coisas tão abomináveis.
Tentei ironizar as coisas, sendo um pouco divertida.
Então, disse:
– Imagina... Agora virei tradutora de sonhos de irmãs
que cismaram em ser bruxas!
Eu ria e chorava, não conseguia me controlar.
– Mereço, viu, senhor!? - disse isso olhando para o teto
do quarto.
Ela começou a chorar e nos abraçamos. Ficamos o resto
da madrugada conversando. A conversa parecia não ter fim,
porque Juanita tinha muitas coisas a perguntar. Quando o galo
cantou a primeira vez, ela foi embora cumprir seus afazeres
cotidianos. Fiquei sentada na cama por uns minutos, sem saber o
que fazer. O galo cantou a segunda vez, o que me fez despertar
daquele transe. Vesti-me rapidamente e fui para a sacristia,
como de costume. Wallejo estava na soleira da igreja à minha
espera. Parecia inquieto.
– Não dormi nada. – disse, com voz rouca.
– Eu também não!
Ele nem me deixou contar-lhe o que havia se passado.
Puxou-me como um louco para dentro da igreja. Entramos na
sacristia e ele beijou-me com a fome de um lobo. E cada vez
mais ficavam quentes aqueles beijos. Quando percebi o seu
frenesi, tive que afastá-lo repentinamente.
– Desculpe, amor! Temos que nos controlar.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 604 -
– Não quero me controlar. Quero-a só minha. Preciso da
senhorita agora.
– Sim, sei. Sinto o seu desejo ao tocar meu corpo.
Acredite, é recíproco o que sinto por você. Mas precisamos ser
cautelosos. Tenho que lhe contar uma coisa que a irmã Juanita e
eu descobrimos ontem à noite. É um detalhe que poderá surtir
efeito em sua história e no seu destino.
Ele ficou estático e falou:
– Meu Deus, mulher. Tanto que lhe pedi que não
contasse minha história a ninguém, por que foi contar tudo que
lhe confiei a uma das irmãs?
– Por favor, perdoe-me, mas confio na irmã Juanita e
peço que me ouça com atenção. Conde Alfred Celso D’
Louchoa. É esse o nome do homem com quem meu pai queria
que eu me casasse. Filho do duque Albert Celso D’ Louchoa.
Na mesma hora, seus ternos olhos tornaram-se
fumegantes de ódio. O semblante daquele anjo transfigurou-se
em uma forma amargurada e com expressões faciais pesadas.
Por fim, meio que trêmulo, balbuciou algumas palavras:
– Sim, faz muito sentido o que acaba de me contar.
Prometa-me uma coisa: nunca mais verá este conde!
– Sim, prometo. Mas creio que ele não me incomodará
aqui neste convento.
– Não o conhece. Ele, por certo, é o único responsável
por estar aqui agora.
– Então crê que falamos da mesma pessoa?
– Sim.
Naquela hora, agarrou-me em seus braços e beijou-me
com loucura. Depois, afastou-me e disse-me com a voz
pesarosa:
– Não quero perdê-la.
Adriana Matheus
- 605 -
– Nunca isso irá acontecer. Estaremos juntos sempre,
enquanto eu tiver forças.
Embora eu soubesse que não poderia afirmar com
certeza aquelas palavras, precisava aquietar o meu próprio
coração que estava aflito e pesaroso. Ficamos juntos, dentro da
mesma sacristia, alguns minutos a mais. Depois, saímos às
pressas e meio tontos por causa do frenesi da nossa paixão.
Fomos cada qual para um local diferente para cumprirmos
nossas tarefas e evitarmos que os demais desconfiassem do
nosso sumiço. Aquele dia custou a passar, porque eu estava
apreensiva com os novos acontecimentos. Senti medo e sabia
que algo ruim estaria por vir.
Ao terminar meus afazeres, fui me refrescar perto do
poço que ficava no pátio. De repente, ouvi meu nome ser
chamado aos gritos! Ainda estava com as mãos sobre o rosto
molhado, mas reconheci aquela voz, que mais parecia uma
arara.
– Senhorita Anna!… Tenho algo para lhe falar.
Ela estava ofegante e parecia ter algo muito importante a
me dizer.
– Onde foi o incêndio? Diga-me, pois quero estar longe.
De problemas, estou até os cabelos!
– Nossa, como você é ingrata! E logo comigo? Pois saiba
que sou portadora de boas notícias.
– Sendo assim, fale logo. Já estou curiosa!
– Agora não, que estou cansada!
– Está a brincar comigo? Não posso ficar ansiosa, pois
sofro dos nervos.
– Então, falo. Mas com uma condição.
– Qual? Já está a me irritar.
– Se não se portar bem, não falo e pronto!
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 606 -
Ela realmente estava me irritando! Quase a joguei dentro
poço, mas a curiosidade foi mais forte. Juanita cruzou os braços
e disse, depois de fazer o maior drama:
– Tenho um bilhete.
– É do padre Ângelo? Se for, dê-me logo.
– Não. Há outras pessoas que também gostam da
senhorita.
– Não consigo imaginar. Quem poderia ser?
– Ah! Claro, não significo nada, não passo de uma pedra
em seu caminho. Por certo, estou em outra dimensão espiritual,
pois nem me enxerga mais. Agora, só o padre Ângelo tem
importância!
Ri muito de Juanita, pois estava com ciúmes de nossa
amizade e estava fazendo pirraça comigo.
– Está bem, é minha única e melhor amiga. Mas, por
favor, pode me dar o bilhete, antes que eu tenha uma síncope!?
– Dou-lho. Só que tenho uma condição!
– Ah, agora sim está abusando de minha paciência!
– Calma! Só quero que leia em voz alta.
– Nossa, que falta de privacidade! Uma pobre prisioneira
não pode sequer ler uma carta de amor a sós.
Logo nas primeiras linhas, soltei um grito de felicidade:
era de Maria. Depois de saltar de um lado para o outro,
perguntei ainda, eufórica:
– Como? Onde está ela? Oh, Deus! Quero vê-la! Que
saudades de Maria!
– Não sei se merece. Você foi muito ingrata comigo.
– Por favor, imploro-lhe: preciso vê-la! - disse isso
juntando as mãos e olhando para ela com olhar de súplica.
– Está bem. - disse ela, cruzando os braços novamente e
fazendo um bico com a boca.
Dei-lhe um sorriso. Ela prosseguiu:
Adriana Matheus
- 607 -
– Escute isso: Maria não pode ser vista por ninguém,
pois não podem saber que eles estão aqui!
– Eles?
– Sim, ela veio com o esposo, Joseph. A Inquisição e os
guardas estão atrás de ambos. Parece que o seu conde e seu pai
agiram juntos novamente. Desta vez, o conde usou todas as
armas para prejudicar todos que poderiam ter interferido em
seus planos diabólicos. Portanto, se Maria e Joseph forem
apanhados aqui, todos nós sairemos perdendo. Pois ele sabe que
Maria não ficará sem vir visitá-la.
Dizendo isso, Juanita saiu seguindo na minha frente,
para não chamar atenção. Encontramo-nos perto do campo de
girassóis. Seguimos dali por uma pequena estradinha de terra,
entrando, em seguida, em uma casinha feita de madeira, onde os
monges guardavam as sacas de sementes de girassóis. Ao
abrirmos a porta, não consegui falar nada: corri direto para os
braços da minha amiga, que estava com os olhos também a
escorrer. Ao me abraçar, ela foi logo dizendo:
– Não chore, minha pequena. Deixe as lágrimas para
mim. Ainda é muito moça. Logo tudo se resolverá. Sou velha e
não me fazem mal algumas rugas a mais.
– Não tem como, minha Maria. Dos meus olhos escorre
o mar da minha alma. Ando a trabalhar como louca e, quando
acabo minhas tarefas, coloco-me em outra. Mas, para mim, esta
é a forma que não me deixa pensar no meu triste e descabido
destino. Sei, Maria, que não vou sobreviver para contar minha
história. Por isso, peço-lhe: traga-me meu diário!
– Acaso achou que eu fosse uma pessoa sem noção? Pois
ele já está aqui! Quando soube da sua prisão, procurei por
Tereza e a pedi umas coisas suas. Escondi, é claro. Tudo o que
ela pode afanar, trouxe para mim.
– Sério? O que ela conseguiu?
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 608 -
– O caldeirão, sua varinha, suas poções, o diário de sua
mãe e outras miudezas. Mas não poderá usar tudo isso aqui.
Dizendo isso, pegou uma maleta de couro marrom e
puxou para fora um livro do qual parecia sair luz.
– Meu diário! Tenho tanto a dizer-lhe... Maria, quero que
fique com as outras coisas. Guarde todos os objetos e conte no
meio da irmandade a história de minha mãe.
– Não estou me despedindo de você! Virei muitas vezes
aqui vê-la. Acredite: não se livrará de mim assim, tão fácil.
– Prometa-me que não virá! É muito arriscado.
Contei-lhe toda a história verdadeira do conde.
– Madre de Diós! Que crápula! Nunca gostei deste
homem. Ele sempre me passou algo de muito ruim. Mas agora,
mais que nunca, não poderei abandoná-la à própria sorte.
Segurei-a pelos ombros e falei seriamente:
– Maria, tenho um destino a cumprir. Você tem o seu,
tem que zelar por seu esposo, seguir com a vida. Cuide para que
esta história seja contada entre muitos povos e muitas gerações.
Não deixe que se apague da terra o que escreverei neste diário.
Dizendo isso, mostrei-lhe meu diário. Abraçamo-nos por
um bom tempo. Deixei que Maria colocasse pra fora tudo o que
estava preso na garganta durante todo aquele tempo que ficamos
separadas. Foi quando, ao fundo, ouvi um pigarrear.
– E eu? Ninguém me enxerga? Sou mesmo
insignificante! Vou-me embora, já que ninguém me vê.
– Joseph!
Ainda com os olhos úmidos, fui à sua direção para
abraçá-lo.
–Onde estava? - segurei suas mãos.
– Escondendo a carroça. Ao entrar, vi uma linda cena.
Então, resolvi ficar bem quietinho em um canto.
Adriana Matheus
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Pegou um lindo ramalhete de flores do campo, que havia
deixado perto da soleira da porta, para me entregar. Abracei-o e
beijei-lhe as mãos, em sinal de respeito.
– Sinto interromper uma cena familiar, mas temo por
todos. Devo dizer-lhes que já é bem tarde e é muito perigoso
seguir caminho à noite pelas estradas em momentos tão difíceis
como estes. - disse Juanita.
Despedi-me tristemente de meus amigos. Quase morri ao
ver Maria distanciando-se. Meu coração ficou pequeno…
Chorei como nunca naquele dia. Eu e Juanita voltamos para o
convento e tentamos não ser vistas por ninguém. Juanita
conhecia uma passagem secreta e fomos por ela. A passagem
era localizada debaixo da torre da igreja, perto da capela de
orações. Entrei em minha cela e lá estava outro bilhete. Não
sabia se sorria ou se chorava, pois meus sentimentos estavam
em desordem. Não li o bilhete naquele dia. O cansaço era muito
e não demorei a adormecer. Meu corpo caiu pesado sobre a
cama e nada mais vi.
O galo cantou e fingi não estar ouvindo. Assim foi até a
terceira vez. De repente, percebi que minha cabeça estava dando
ecos. O sino da igreja tocava incessantemente. Levantei-me aos
pulos, pois algo de errado estava acontecendo. Arrumei-me
como pude e desci as escadarias, voando. Ao chegar ao patíbulo,
todas as irmãs estavam reunidas. Entrei no meio de todas para
ver o que se passava. Foi quando vi uma carruagem muito
alinhada cercada de guardas e escravos. Desceu dela uma freira
de uns sessenta anos de idade, alta, com cara de demônio. Nunca
vi criatura mais sisuda e cheia de íncubos como aquela à minha
frente. Eram tantos os demônios ao seu redor que virei o meu
rosto. Meu corpo arrepiou-se dos pés à cabeça. Um gelo
sobrenatural tomou conta de mim. Ela era mensageira da morte,
com certeza. Um arauto ao lado da carruagem tocou uma
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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trombeta para que prestássemos atenção ao que seria dito.
Então, prosseguiu o homem com chapeuzinho engraçado:
Roma, 17 de julho de 1819.
É de vontade real e da Santa Madre Igreja que a
senhora madre superiora Edwiges Sollantes seja substituída
pela senhora madre superiora Madylene Cotas, cujo cargo
passa a exercer a partir da data de sua chegada ao convento de
San Francisco. Que fiquem todos cientes de que a minha
vontade é soberana e inquestionável. Dado e dito, consumo este
fato a partir da data citada.
Eu, o rei, revogo este caso sem mais a dizer. Que se
cumpra a minha vontade, em nome de Deus Nosso Senhor.
Assina: Don Marquez Castelani, Rei e Regente de Roma.
Vi Wallejo do outro lado do patíbulo. Seus olhos
pareciam preocupados. Com a notícia que recebemos naquele
dia, seria dada a definição para o meu destino e o de Wallejo.
– Santo Deus! O que faremos, senhorita Anna?
– Não sei, irmã Juanita! Fomos todos pegos de surpresa.
– O que acha desta nova madre?
Sorri antes de respondê-la.
– Digo-lhe apenas uma coisa: ela não precisa de
secretário, pois já é o próprio.
Ela se benzeu e arregalou os olhos para mim.
– O que quer dizer?
– Que esta mulher é o próprio demo encarnado.
Juanita quase caiu para trás.
– Por que está afirmando tal coisa?
– Porque posso ver o que mais ninguém neste lugar
pode.
– E o que vê?
– Melhor que nem saiba, para que não lhe tire o sono.
Adriana Matheus
- 611 -
Mudei de assunto para que Juanita não ficasse
impressionada. A madre passou por mim e olhou-me fumegante.
Ela sabia quem eu era. O demônio em seu corpo lhe disse.
Como pode as pessoas aceitarem tais criaturas em seu aparelho?
Alguns demônios passam-se por anjos ou mensageiros divinos.
E estas pessoas acreditam piamente que são iluminadas. Mas
aquela mulher sabia quem falava com ela. E o que era pior:
havia certa cumplicidade entre os dois.
–Quero esta mulher em minha sala imediatamente. Os
demais, voltem aos seus afazeres. Direi quando for a hora do
espetáculo. - disse a um dos guardas ao passar por mim.
O guarda pegou-me pelo braço e conduziu-me junto à
madre. Juanita parecia uma mariposa em volta da fogueira. Não
sabia qual rumo tomar. Todos os demais ficaram olhando
espantados, sem nada entender. Fui colocada do lado de fora da
sala da nova madre superiora. O guarda ficou em pé ao lado,
como se fosse uma estatueta. Fiquei parada, ali, por quase duas
horas, sem poder me mover. Ao término da conversa que teve
com as irmãs responsáveis pelo convento na ausência da madre
Edwiges, fui mandada entrar. E pelos rostos entristecidos das
duas irmãs ao saírem, pude sentir o que me estava esperando.
– Estou a postos, madre Madylene. Em que posso servi-
la?
Entrei e fiquei em pé, no meio da sala. Ela circulou todo
o cômodo com os braços para trás. Quando já estava para dar a
segunda volta em torno de mim, disse:
– Nunca mais mencione o meu nome, filha do demônio.
Sei muito bem quem é. O Senhor disse-me assim que entrei
neste lugar e coloquei os olhos em você. Saiba que a partir de
hoje não terá nenhuma regalia. E lhe será aplicado o castigo do
silício, para puni-la de seus pensamentos impuros. A dor fá-la-á
refletir sobre seus atos pecaminosos e mostrar-lhe-á a verdade.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 612 -
Eu estava de cabeça baixa para demonstrar humildade.
Sabia que não seria bom irritá-la ainda mais. Mas também não
podia me calar diante de tais acusações injustas.
– Senhora, apenas lhe perguntei em que poderia ser útil.
Que mal eu, uma pequena e insignificante criatura, posso vir a
lhe causar?
Ela deu uma risada que mais parecia estar vindo das
profundezas do inferno.
– Realmente, a mim nada pode fazer mesmo. Mas o anjo
de Deus avisou-me, assim que coloquei os pés neste convento
pecaminoso, que eu deveria ser a mão da justiça aqui dentro.
Você será a primeira que deverei punir.
Desta vez, olhei-a nos olhos fixamente e disse-lhe:
– Nós duas sabemos que não é o anjo de Deus quem lhe
fala essas coisas.
O seu rosto transfigurou-se na minha frente. O demônio
estava irado e sentindo-se desafiado. Não me deixei intimidar e
prossegui:
– Nunca, nem sob tortura, nem sob pena de morte, irá me
tirar a essência. Vou morrer porque escolhi este destino. Escolhi
aceitar a minha missão. Pode enganar seus superiores nesta
terra, com sua postura de santa, mas sabe bem que posso vê-lo.
Como mulher e como ser humano, nada posso fazer contra você.
Mas, como mística, posso - e sabe muito bem disso. Tem medo
de que eu possa libertar esta pobre mulher que vem sugando
toda a sua energia vital.
O demônio jogou o corpo da madre ao chão e veio diante
de mim. Era deforme e monstruoso. Sua voz era rouca e
abominável aos ouvidos terrenos. Apertei as mãos uma contra
outra, criando em volta de mim um círculo de proteção. No
mesmo instante, uma luz formou-se ao meu redor e o círculo
fechou-se. O demônio não podia entrar no círculo. O que está
Adriana Matheus
- 613 -
dentro não sai e o que está fora não entra. Esse é o significado
do círculo. O demônio urrava e debatia-se como um louco.
Falou comigo a língua que só Deus e ele poderiam entender.
Respondi-lhe sem demonstrar o menor medo. Ele se espantou ao
ver que eu podia entendê-lo. Apertei mais forte as mãos e, em
oração, chamei por Heixe, que me socorreu de imediato.
Wallejo entrou naquele momento e presenciou a cena.
Tentou entrar no círculo, mas foi impedido pelo campo de luz.
Heixe ordenou que o demônio se fosse e ele mesmo, a
contragosto, teve que se retirar. Na mesma hora, caí por terra.
Wallejo veio socorrer-me e, espantado, olhou para Heixe, que
desapareceu no ar.
– Anna, meu amor, o que houve? – disse, abraçando-me.
– Ela é o nosso destino… - disse, sem forças ainda.
Contei-lhe em pormenores tudo o que se sucedera. Ele
ficou perplexo, olhando a madre caída e desacordada ao chão.
– Sempre ouvi falar em demônios, mas nunca tinha visto
um. Esta foi minha primeira vez.
– E não será a última, meu amor. Ele se afastou por
alguns momentos, mas voltará muito mais irado sobre nós dois,
pois agora ele sabe que você também pode vê-lo.
– Não o temo. O verdadeiro Deus é conosco.
–Disso tenho certeza. Mas este tipo de demônio
influencia a mente das pessoas, principalmente as que têm
algum poder. É assim que ele age. Pode colocar alguém, como
esta pobre mulher, para nos prejudicar.
– Pobre? Ainda tem pena desta peste? Ela quase a matou
e ainda lhe impôs castigos.
– Ela não sabe o que está fazendo. Este tipo de demônio
toma a mente e o coração de suas vítimas, deixando-as
completamente dominadas.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 614 -
– Quero que fuja comigo. Diga que vai fugir, por favor!
Anna, não me importo comigo, mas não quero deixar nada
acontecer com você. A única solução que vejo, depois do que
presenciei há pouco, é a fuga.
– Não deixarei minha amiga Juanita para trás. Ela tem
sido muito boa comigo nas últimas semanas. Não posso fugir
sem ela.
– Apenas diga que irá comigo. Não me importo com
quem queira levar conosco, desde que diga que aceita fugir.
– Sim, meu amor, irei contigo aonde quer que você vá.
Ele beijou-me com doçura e ajudou-me a levantar do
chão, pois nem havíamos percebido quanto tempo ficamos ali,
naquela posição, abraçados. Em seguida, fomos em direção à
madre. Colocamo-la à sua mesa, sentada na cadeira. Wallejo
tentou reanimá-la. Quando a mulher despertou, sem saber de
nada que me aconteceu, demos um caneco d’água a ela. Sua voz
era outra, doce. Seu semblante era sereno, completamente
diferente de quando o demônio estava nela. Era muito provável
que ela teria pouco tempo de vida. Por algum motivo, aquele
demônio não a deixaria nunca mais.
– A senhora está bem, madre? - perguntou Wallejo.
– O que aconteceu? Onde estou?
– Está em sua sala. Parece ter tido uma indisposição.
Pode ter sido causada pela viagem muito longa.
– Entendo. Preciso ficar a sós. Depois falamos
novamente.
Wallejo e eu saímos imediatamente, sem mais nada a
dizer. Avisamos ao guarda que a madre queria ficar sozinha e
que não queria ser incomodada por ninguém, como ela nos
havia ordenado. Seguimos em silêncio pelos corredores, para
não levantar suspeitas. Ao chegar próximo à igreja, ele disse:
Adriana Matheus
- 615 -
– Encontre-me hoje com a irmã Juanita perto do celeiro.
Temos que combinar nossa fuga.
– Sim, falarei com ela imediatamente.
Fui para o refeitório e vi a irmã Imaculada chorando.
Percebi que a madre já havia aprontado das suas! Tomei a tigela
de mingau de aveia, meio a contragosto. Lavei todas as louças
que estavam por lavar. Corri para a lavanderia, dobrei a pilha de
roupas que estava por cima de um móvel. Corri com a costura
do dia, não queria levantar nenhuma suspeita. Havia em todo o
convento um clima de medo e tristeza. Aquela mulher mal havia
chegado e já trouxera na bagagem o terror àquele lugar
harmônico. A paz havia sido quebrada e, com certeza, aquele
lugar nunca mais seria o mesmo.
Quando encontrei Juanita perto do poço, contei-lhe sobre
os planos de Wallejo. Só que ela disse que não iria conosco, pois
estava acima do peso e só iria nos atrapalhar em nossa jornada.
Disse que, ficando por ali, não levantaria suspeitas caso
precisássemos dela futuramente. Concordei com ela. À noite,
logo após todos estarem dormindo, eu e Juanita fomos nos
encontrar com Wallejo. Passamos para ele a decisão de Juanita e
ouvimos, nos mínimos detalhes, os planos para a fuga. Não
demoramos a conversa desta vez, porque o convento estava
repleto de guardas por todos os lados. Iríamos esperar o
momento certo para a fuga.
No dia seguinte, fui acordada aos safanões por várias
pessoas, acompanhadas da madre superiora. Com ela, estavam
duas irmãs de sua confiança, que pediram aos guardas para
saírem da cela e colocaram em minha perna o silício. A dor era
tamanha que as lágrimas escorreram dos meus olhos, sem que
eu fizesse o menor esforço. Em volta do silício, foi colocado um
pequeno cadeado que prendia as partes para que eu não pudesse
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 616 -
soltá-lo. À medida que ela o apertava, o sangue escorria. Ela
disse, por fim:
– Isso é só começo. A cada dia, quero que um nó seja
apertado. O sofrimento ensina aos pecadores a grandiosidade da
fé.
Saiu em seguida, com suas apóstolas seguidoras. Fui
para a sacristia encontrar Wallejo. Tentei disfarçar a dor que
sentia, mas ele percebeu que eu estava estranha com ele.
– O que houve?
– Nada, meu amor. Só acordei indisposta esta manhã.
Ele tentou abraçar-me, mas me afastei, dizendo que não
podíamos arriscar. Minha perna estava latejando. Dei-lhe um
beijo na testa e disse para confiar em mim. Fui saindo, em
seguida. Quando eu estava já perto da porta, ele me puxou pelo
braço.
– Espere. Por que está puxando a perna?
– Acho que torci o pé, não lembro onde!
Ele sacudiu a cabeça negativamente.
– Por que está mentindo para mim? Deixou um rastro de
sangue por toda a igreja.
Ao perceber o sangue escorrendo, desabei em prantos.
– A madre mandou que colocassem silício em minha
perna direita esta manhã. Deve ter perfurado minha carne. Está
doendo demais.
– Então, vamos tirar agora! Não tema, serei cauteloso.
– Você não entende?
– Não fique com vergonha de mim! Casar-nos-emos ao
chegarmos a Londres. Não há mal que eu veja suas pernas. -
dizendo isso, ajoelhou-se e levantou o meu hábito.
– Desgraçada, maldita! Ela colocou cadeado. Temos que
procurar um ferreiro imediatamente para ver o que
conseguiremos fazer.
Adriana Matheus
- 617 -
– Não. Posso aguentar até a fuga. Mas, se tirar agora,
elas irão perceber. Porque a madre deixou bem claro que irá
apertar um nó a cada dia.
Ele desandou a chorar. Ajoelhei-me perto dele.
– Não quero que fique assim por mim. Vamos conseguir.
Mas não podemos fraquejar agora.
– E como quer que eu fique, sabendo que estão matando
você lentamente?
–Passaria por tudo de novo se soubesse que o encontraria
apenas por um segundo. Precisamos ter cuidado. Tenho que
voltar às minhas tarefas. Cuide-se.
Ele não quis me deixar sair. Tive que ser forte. O dia
custou a passar. A semana custou a passar… E, quando percebi,
já haviam se passado três meses. A dor, por causa dos
ferimentos causados pelo silício, estava ficando insuportável. Já
puxava a perna visivelmente. Ela estava ficando escurecida.
Quase não me dava fome, por causa das febres. Havia noites que
nem dormir eu conseguia. Minha perna já não sangrava, mas
tinha muitas infecções. A madre não deixava que ninguém me
ajudasse. Os únicos remédios eram o vinagre e o sal, mas já não
faziam efeitos. As próprias irmãs que acompanhavam a madre
comentavam que não poderiam mais fazer aquilo, porque eu
perderia a perna se continuassem. Ela simplesmente ignorou.
Certa manhã, Juanita veio acordar-me, dizendo que eu
tinha recebido visitas e estavam na sala da madre superiora,
esperando-me. Quando ela viu o meu estado, ficou apavorada.
Minha perna estava muito mal. Eu estava tendo calafrios. Fui
apoiada em Juanita até a sala da madre superiora. Na entrada,
antes de entrar, ela disse:
– Vou falar com o padre Ângelo. Não a abandonarei,
amiga. Acredite: ficarei com você até o fim.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Sorri meio sem força e entrei. Fiquei sem palavras ao ver
quem eram as minhas visitas.
– Minha nossa, você está verde! O que anda comendo?
Muitas folhas, pelo que vejo! - disse a condessa, com um
sarcasmo ridículo.
– Madre, o que fizeram a ela? Sinto informar, minha
querida, mas está péssima.
– O que os dois estão fazendo aqui? Vieram ter certeza
de que eu havia morrido? Pois se é isso, perderam o tempo.
Estou muito bem.
– Não é o que vejo, queridinha! A propósito, viemos
aqui comunicá-la do falecimento de seu pai. Não que mereça.
Mas, por uma questão de ética, achamos melhor comunicá-la.
– Meu pai faleceu? Como isso aconteceu? Sei que estava
com a saúde debilitada, mas não era nada de tão grave. O que
foi que vocês fizeram, seus monstros?
– Ora, senhorita! Que acusações mais levianas! E logo
comigo? Sempre fui fiel ao seu pai! Feriu-me os sentimentos,
quero que saiba disso! - virou-se, fingindo enxugar uma lágrima.
– Senhorita, sei bem como deve estar se sentindo. Espero
poder fazer alguma coisa por você. Usarei todo o poder que
tenho para tirá-la daqui. Ainda a amo. Minha nobreza é tamanha
que me fez perdoá-la. - disse o falso conde.
– Que foi que aconteceu com o meu pai?
– Infelizmente, foi atacado por saltimbancos durante
uma de suas viagens de negócios. Eles assaltaram o pobre
homem, que não teve a menor chance contra os larápios. Sabe o
quanto eu gostava de seu pai! E ele de mim também. Tanto que
me passou a procuração de todos os bens dele em meu nome.
Disse, ainda em vida, que faria muito gosto de nossa união. É
claro que também receberei o seu dote quando nos casarmos.
– Nunca me casarei com o senhor. É um…
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Eu ia acusá-lo quando Wallejo entrou na sala, sem bater.
– Padre Ângelo, que insubordinação é essa? - disse a
madre superiora, espantada.
– Disseram-me que a senhora havia passado mal. Então,
vim correndo ao seu socorro. - ele falava com a madre, mas seu
olhar era fixo em mim.
– Como pode ter comprovado, estou muito bem. - disse a
madre, desconfiada a nos olhar atentamente.
Quando ele viu quem era a figura à sua frente, seus olhos
fumegaram. Ambos não mencionaram uma só palavra. Mas,
pelo duelo de olhares, pude perceber que não era boa a situação.
– Sim, madre! Pelo que pude perceber, está realmente
muito bem... Só sinto quanto à companhia.
– O que o senhor está insinuando, padre Ângelo? Tenho
aqui em minha sala pessoas nobres e que vieram aqui de muito
longe, preocupadas com o bem estar de uma interna. Tenho que
afirmar que o senhor interrompeu uma reunião familiar.
– Espero, realmente, que a senhora saiba o que está
fazendo. Prometo voltar aqui em outro momento mais oportuno
para falarmos sobre este assunto, que ficará pendente por hora.
Ele me olhou com piedade, mas não pôde demonstrar
nenhum sentimento. Quando ele saiu, todos se olharam com
cumplicidade. Pude perceber que algo estava sendo tramado
contra nós. À noite, quando encontrei com Wallejo no celeiro,
como já estava acostumada a fazer quase todas as noites, ele
tentou cerrar o silício. Mas foi inútil: a cada tentativa, cortava a
carne, que já estava muito debilitada.
– Vamos fugir hoje. – disse ele, sem pestanejar.
– Não posso, amor. Vá você. Só servirei para atrasá-lo.
Estou muito doente. Não conseguirei seguir viagem. Meu fim já
é este.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 620 -
– Não vou deixá-la nunca aqui, minha amada. Vai
comigo a qualquer preço. Ajudá-la-ei. Juntos, conseguiremos. É
a minha vida, o ar que respiro. Nunca a abandonarei. Ficaremos
juntos para sempre.
Imediatamente, coloquei a mão sobre sua boca, pois ele
acabara de fazer uma jura eterna.
– Não faça isso, meu amor! Já lhe disse tantas vezes
sobre perigo de uma jura... Poderemos ficar por séculos presos
um ao outro.
– Não me importo. Só quero ficar com você.
– Então, esperemos mais uma semana, por favor!
Prometo que depois irei com você aonde queira.
Juanita discordou da minha ideia. Mas, por fim, consegui
convencê-los. A semana passou tortuosa. Meu quadro clínico
piorava dia após dia. Eu e Wallejo éramos vigiados até durante
as refeições, mas ele não se importava com nada. Não queria
deixar-me nem um segundo. Mal fazia minhas tarefas. A irmã
que ficava na cozinha também havia sido substituída por uma
das irmãs de confiança da madre superiora. Guardas estavam
espalhados por toda a parte. Não parecia um convento, mas uma
prisão. Irmãs e noviças eram punidas diariamente. O medo
espalhou-se de tal forma que algumas enlouqueceram, sendo
levadas a manicômios. Até que, finalmente, aproximou-se o
sábado: o dia escolhido para a nossa fuga. Estávamos dentro da
sacristia, beijando-nos, e fomos flagrados pela madre superiora,
que gritou:
– Filhos de Satã estão maculando a casa de Deus!
Guardas! Levem estes devassos para a prisão imediatamente.
Logo os guardas vieram ao socorro da madre, como
cachorrinhos obedientes. Wallejo pulou à frente e disse:
– A senhora não pode encostar um dedo em nós! Tenho
uma carta do rei da França dando-me imunidade por serviços
Adriana Matheus
- 621 -
prestados e por ser um cavaleiro da ordem. Mereço um
julgamento justo. Exijo que a senhora comunique os fatos
ocorridos a meus superiores imediatamente, para que eles
possam julgar-me dentro das leis.
Os olhos da mulher pareciam ter brasas de fogo. Mas,
com isso, Wallejo estava ganhando tempo.
– Também quero que um médico seja chamado neste
local, pois há vários doentes aqui e acredite, irmã: seus crimes
serão avaliados também.
Fui levada à minha cela, onde permaneci sem poder sair
por duas semanas. Um médico veio olhar-me e tratou-me de
tirar o silício. As feridas estavam cheirando muito mal. Wallejo,
segundo Juanita, não estava sob prisão como eu, por causa da
imunidade dada pelo rei. Todos os dias, mandava-me um
girassol e um bilhete, confortando-me. Finalmente, os superiores
de Wallejo chegaram ao mosteiro. Eram eles: Dom Servano
Gusmano, ministro real; Lorde Jean Perrion, chefe da guarda
real; e Dom Renan Marcovilles, emissário do rei.
O julgamento de Wallejo durou quase um ano a fio. Ele
estava sendo absolvido quando, certa manhã, aconteceu algo de
inesperado. Wallejo entrou na igreja porque havia sido chamado
por um de seus superiores. Ao chegar lá, encontrou um homem
encapuzado apunhalando Dom Renan Marcovilles. Wallejo
ainda conseguiu lutar com o assassino e tomar-lhe o punhal.
Mas este foi mais ágil e conseguiu fugir. Wallejo abaixou-se
perto do amigo e ele ia lhe contar quem era o assassino. Mas, de
repente, viu-se rodeado de soldados e de todos os seus amigos!
Haviam preparado uma emboscada para ele. Ele tentou explicar,
mas ninguém o ouviu. Foi conduzido ao patíbulo e, em seguida,
seria levado à corte. Wallejo, então, correu e apanhou um
cavalo. Conseguiu fugir. Os guardas tentaram alcançá-lo, mas
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
- 622 -
ele era muito ágil em cima de um cavalo. Assim, não foi
apanhado. E eu, mais uma vez, fui abandonada pelo meu amor.
Mediante tais fatos, a madre novamente tomou posse de
seu cargo. Os cavaleiros e os demais seguiram em direção à
Roma para velar o corpo do companheiro assassinado e levar as
notícias ao papa. Wallejo seria excomungado pelo papa e
expulso da ordem. Ele era inocente, mas demonstrou covardia
em todos os sentidos. Fui trancada em um calabouço frio e,
novamente, colocaram o silício em minha perna. Meu diário foi
roubado e trancado a sete chaves na sala da madre superiora,
mas Juanita logo deu um jeito de afaná-lo para mim. Cavei um
buraco ao chão, onde pude escondê-lo. A madre fez vistoria em
minha cela várias vezes, mas nada achou. Minha cela era suja e
úmida, de chão de terra. Havia ratos por todo o lado. Devido ao
mau cheiro e ao estado de putrefação da minha perna, eles
começaram a roer-me à noite. Já não tinha permissão de ter
ninguém para me visitar, pois já estava nas últimas e havia
pedido um padre para a extrema unção. Juanita acompanhou o
padre até o calabouço, onde pude vê-la pela última vez. Juanita,
ao me ver, correu e veio abraçar-me. Porém, afastei-a de junto
de mim e disse, baixinho:
– Ele me abandonou! Jurou amor eterno, mas me deixou
aqui, ao relento. Nunca o teria abandonado. Quero que faça um
último desejo meu.
Ela estava chorando muito, mas não me negou.
– Pare com isso! Não vai morrer nada. Ainda vamos
juntas ouvir os cantos gregorianos na capela.
– Não os ouço mais. São tão bonitos, não são?
– Sim, são.
Ela levantou o lençol e, ao ver como estava minha perna,
imediatamente tapou o rosto com as mãos. Até mesmo o padre,
Adriana Matheus
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presente com mais outras duas freiras, esquivaram. Vi quando
uma vomitou sem querer.
– Estou muito mal, não é? Não sinto mais a perna.
Ela havia granguenado. A carne estava se soltando dos
ossos. Juanita segurou em minhas mãos, tentando confortar-me.
– Não está nada. Está linda e saudável, como da primeira
vez em que a vi.
– Há quanto tempo estou aqui?
– Três anos.
– Fui muito ruim. Por isso mereci tal castigo, não foi?
– Não, amiga. Não foi nada. É a pessoa mais
maravilhosa que já conheci, de uma força e sabedoria sem igual.
Aprendi muito com você e passarei a sua história a todos que
cruzarem o meu caminho.
Queria sorrir, mas não tinha mais os meus dentes. Senti
vergonha.
– Quero que saiba de uma coisa: Wallejo mandou cartas
todos os dias em que esteve aqui nesta prisão. Mas perdoe-me,
amiga: achei que lhe escondendo isso, fá-la-ia suportar os dias.
Falando isso, tirou um monte de cartas de dentro do
hábito.
– Perdoe-me, por favor! Achei que estava a lhe fazer um
bem.
– Quem sou eu para perdoar alguém. Sei que pensou no
meu melhor. Só quero que as leia pra mim agora.
Ela começou a ler, uma a uma. Wallejo dizia que não me
esquecera um só dia. Em algumas cartas, ele reclamava da falta
de respostas. Mesmo sem resposta, ele me escrevia. A dor das
palavras, causada pela distância e pelo suposto desprezo que ele
achava que eu sentia por ele, fez-me chorar compulsivamente.
Ele passou por muitas coisas ruins. Dormiu em ruas escuras e
frias, fugindo da milícia, que estava sempre à sua busca. Viajou
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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clandestinamente em uma caravela, cuja tripulação foi quase
toda morta pela peste. Wallejo sofreu horrores. Naquele
momento, estava de volta à Espanha, refugiado em um farol
abandonado. Ele mencionava em uma de suas últimas cartas
que, às vezes, ia à beira de um precipício e tentava se jogar lá de
cima, mas o vento lhe dizia para não fazê-lo porque eu o amava.
A certeza era tão grande que ele não o fez na esperança de me
encontrar um dia novamente. Fiquei imaginando o lugar em
meus pensamentos. Vi-o em visões. Como era azul o mar da
Espanha! O mar que eu nunca realmente pude conhecer. Do alto
do precipício, viam-se as rochas lá embaixo. O vento trazia o
cheiro do mar. A relva que se formava na beira do precipício era
úmida e macia... Meus cabelos voavam e eu me sentia livre.
Juanita tentou me chamar para eu voltar a mim novamente, pois
estava partindo. Segurei em suas mãos e disse:
– Leve este diário a Wallejo. Deve-nos isso.
Ela concordou com a cabeça. Olhei e vi uma enorme luz
à minha frente: Heixe estava ali. Com mais seis outros que não
conhecia, pegou minha mão e senti paz. Meu corpo levitou e eu
não estava mais suja ou ferida. Eles me sorriram e Heixe disse:
– Seja bem-vinda, minha filha!
Olhei para trás e vi Juanita chorando, muito abraçada ao
meu corpo. Vi o padre jogando água benta em mim, rezando em
latim junto às freiras. Fui levada à enorme luz que surgiu à
minha frente. Chegando do outro lado do lugar - que chamei de
cidade dos anjos-, fui levada a um hospital, onde permaneci
adormecida por dias. Quando acordei, Heixe cumprimentou-me
com um largo sorriso e apresentou-me a um jovem que se
chamava Laionel. Laionel era um rapaz esguio, tranquilo, quase
não dava para ouvi-lo falar. Todos se trajavam de linho branco.
Aquela vestimenta era padrão. Laionel explicou-me várias
coisas, inclusive o fato por eu ter estado dormindo durante tanto
Adriana Matheus
- 625 -
tempo. Era para eu recuperar minhas forças, pois em minha vida
terrena eu havia tido muitas contrariedades. Por isso, precisei
pôr meu espírito em repouso para que, ao acordar, estivesse
mais serena e pudesse compreender a grandeza da minha
missão. Segundo ele, eu já havia falecido havia dois anos no
plano terreno. Laionel passou-me sua sabedoria. Logo depois,
conduziu-me à colônia onde eu ficaria. A colônia de La paz era
maravilhosa. Suas casas eram em estilo colonial, com enormes
jardins ao redor de todas elas. Tudo era tão limpo e organizado!
Conheci meus companheiros, eles dividiram a casa comigo. José
Manuel havia sido um carpinteiro e, em sua vida terrena, foi um
homem muito revoltado, pois não estava satisfeito com sua
condição humilde. Ele estava aguardando ser transferido de
colônia para ser preparado para uma nova encarnação, onde teria
que ser um homem rico, porém escravo de seus bens e da
sociedade à sua volta. Isso o faria valorizar a liberdade que teve
quando era um simples carpinteiro, que tinha uma bela família e
não soube dar valor a este bem tão precioso.
Havia, também, Maria Aparecida, uma mulher
lindíssima. Quando encarnada, foi uma cortesã e levou muitas
jovens a segui-la no caminho da prostituição. Maria tirou muitos
maridos de suas esposas e deixou muito rastro de sofrimento e
revolta por onde passou. Ainda não sabia qual seria seu destino
ao reencarnar, pois estava em estudos para aprender a lidar com
seu remorso. Laionel, por meses, conduziu-me a lugares
diversos, mostrando-me várias colônias e ensinando-me diversas
coisas. Por fim, quando eu estava preparada e já havia se
passado mais alguns anos, ele me disse:
– Tenho permissão de levá-la à Terra para ver sua amiga
Juanita e o padre Ângelo.
Fiquei muito feliz. Já havia aprendido a volitar e era a
primeira vez que eu ia poder passar pelo portal. Descemos à
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Terra, como se fosse fração de segundos. A impressão que dava
é que caíamos. E dava para se ver vários planos terrenos ao
mesmo tempo, e várias épocas. Era como se fosse um túnel do
tempo. Chegamos ao plano terreno, por fim. Laionel mostrou-
me Juanita, que estava em uma taberna, escondida da milícia.
Ela havia fugido do convento e estava por anos à procura de
Wallejo, para entregar o diário que eu havia pedido a ela.
Emocionei-me ao ver sua fidelidade a mim. Minha missão
parecia não ter terminado ainda, pois tive que induzi-la
mentalmente ao local onde Wallejo se encontrava.
Juanita passou por várias etapas difíceis até chegar ali,
onde estava. Foi torturada e perdeu a visão de um dos olhos. Por
fim, conseguiu escapar e estava ajudando os pobres e
miseráveis. Mantinha-se escondida em tabernas e, às vezes, em
celeiros. Ela ensinava pessoas analfabetas a ler e a escrever. Elas
lhe pagavam como podiam. Em uma noite, materializei-me a
ela. Ensinei-lhe o caminho até onde Wallejo estava. Fi-la pensar
estar sonhando, pois não temos o direito de assustar ninguém. Se
um espírito faz isso, por certo não tem luz, é um obsessor. Ao
cantar do primeiro galo daquela manhã, ela se aprontou e saiu
para não ser vista por ninguém. Pagou um cocheiro para lhe
levar ao topo da montanha onde Wallejo se escondia. Ele estava
arando a terra. Ao avistar a pequena charrete, foi correndo ao
encontro para ver quem era. Quando viu de quem se tratava, foi
ao seu encontro, de braços abertos.
– Onde está Anna? Não veio com você?
Juanita abaixou a cabeça, tristemente, dizendo:
– Eis aqui tudo o que sobrou dela. - entregando a ele o
meu diário.
Ele, no entanto, ao vê-lo nas mãos de Juanita, prostrou-
se ao chão como uma ovelha caindo aos prantos. Depois disso,
convidou-a para dentro de sua casa, onde conversaram sobre
Adriana Matheus
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tudo o que havia se passado comigo desde a sua fuga. Juanita
contou-lhe que a madre, ao ver-se destituída de seu cargo,
suicidou-se. E que ela e as irmãs que ficaram no convento iriam
ser transferidas para outro. Foi durante esta transferência que ela
fugiu, fingindo cair em um rio de correnteza forte. Deram-na
como morta. Mas ainda tinha medo de ser encontrada. Por isso,
vivia às escondidas.
– Não a abandonei. Sempre lhe mandei as cartas. Avisei
que, assim que tudo estivesse bem, buscá-la-ia e tirá-la-ia
daquele lugar. Mas ela nunca as respondeu.
– Se que fui culpada. Achei que, entregando suas cartas à
Anna, apenas estaria alimentando seus sonhos. - disse ela, com a
cabeça baixa
– Não podia ter feito isso conosco! Voltei ao convento,
mas ele estava todo incendiado. Não havia nenhum vestígio de
ninguém. Fiquei sem saber onde procurar. Imaginei que Anna
tivesse se casado com aquele crápula para não mais passar os
sofrimentos que a madre lhe impunha.
– Anna jamais faria isso. Ela o amou até o último
momento de sua vida.
– E como conseguiu guardar este diário?
– Fiz um pequeno canteiro de girassóis, próximo ao local
onde Anna foi enterrada. Enterrei-o. Assim, ficou fácil achá-lo
mais tarde. O engraçado é que os girassóis nunca morriam.
Várias vezes a madre superiora arrancou as flores. Mas, no dia
seguinte, lá estavam elas novamente, lindas como nunca.
Ele sorriu, emocionado.
– Obrigado por trazê-la para perto de mim novamente.
– Não faço isso pelo senhor. Faço isso por Anna. Devia
isso a ela. Além do mais, nós é que temos que agradecê-la. Pois
tenho certeza de que ela foi responsável por eu ter encontrado o
caminho até você.
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Juanita, então, contou-lhe de seu sonho, e de como
sempre se desencontrava do caminho a seguir. Eles tomaram chá
juntos e, depois, despediram-se. Seria a última vez que os dois
se veriam. Juanita foi pega em uma emboscada. Depois de ter
sido torturada para dizer onde estava Wallejo, não resistiu e
faleceu. Fomos recebê-la como muito gosto. Estava em
recuperação, no hospital.
Seis semanas passaram-se e Wallejo recebeu uma carta
de Maria, dizendo que iria encontrá-lo e que gostaria de que ele
lhe entregasse o meu diário, para poder passar minha história a
todas as irmãs da irmandade. Imediatamente, ele a respondeu,
dizendo que seria um prazer lhe entregar em mãos tal tesouro.
Só que Wallejo estava sendo vigiado e não sabia. O mensageiro
que lhe levou a carta de Maria foi seguido e não retornou com a
resposta para ela. Certa manhã, Wallejo estava em pé, à beira do
precipício, como tinha o costume de fazer todas as manhãs.
Assim, ele orava e comungava com a natureza. Às vezes,
deixava-lhe sentir meu cheiro ao vento. Nunca abandonei o meu
amor. Sempre que podia, estava perto dele durante os seus
sonhos. Naquela manhã, uma pessoa misteriosa aproximou-se
de Wallejo.
– Então, finalmente o encontrei de novo. - disse o
homem, aproximando-se por trás.
Ele virou e reconheceu o encapuzado, dizendo:
– Ao menos retire esta capa e deixe-me olhar nos olhos
do assassino de meu amigo.
O homem retirou a capa e, para a surpresa de Wallejo,...
– Eu deveria ter suspeitado. Mas por que assassinou
Dom Renan Marcovilles? Ele nada lhe fez. Era um bom homem.
E em que ele poderia estar interferindo em seus planos?
– Sim, concordo com você. Ele era bom demais, e estava
interferindo, sim, em meus planos. Pois, antes de chegarem ao
Adriana Matheus
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convento, procurei-os e tentei-lhes convencer dos benefícios que
poderiam ter se ficassem ao meu lado. Mas Dom Renan foi o
único que não quis sequer me ouvir. E o que é pior: ainda
convenceu os demais de, ao voltarem a Roma, fazerem uma
denúncia formal contra mim. Além do mais, o senhor conseguiu
conquistar o amor da única mulher que eu realmente amei nesta
vida.
– Amou? O senhor chama o que fez à Anna de amor?
Jogou-a naquele lugar ao descaso da miséria! Provavelmente foi
o culpado pelo assassinato do pai dela.
– O senhor não entende, não é? O sucesso tem seu preço.
Além do mais, Anna era muito orgulhosa e precisava de uma
lição. Mas… ela morreu e a vida continua.
– O senhor é um doente! Senhor, deixou que Anna
morresse por capricho e por orgulho ferido. Isso não era amor.
Jamais saberá o que é amar e ser amado. Não poderei deixá-lo
impune de seus crimes. Eu mesmo farei a denúncia contra você.
Aliás, adiei muito tempo isso.
– Sim, adiou. Foi um covarde como eu. O senhor a
deixou para salvar a própria pele. Creio não sermos tão
diferentes assim. Ela foi uma tola de tê-lo escolhido. Bastava um
sim e teria tido uma vida de rainha.
– Sabe muito bem que vivo esta culpa. Fui um covarde,
sim. Estava esperando o momento de resgatá-la. Mas esperei
tempo demais, sei disso! Ela era e sempre será o meu único
amor. Nunca a esquecerei. Se ela estava certa quanto a outras
vidas… procurá-la-ei pela eternidade se assim for preciso.
O falso conde deu uma sonora gargalhada.
– Acredita nestas sandices? Nunca a terá de novo
porque, se isso fosse verdade, eu nunca os deixaria em paz.
Quero que saiba de uma coisa: em breve os guardas e outros
estarão aqui. Eu lhes disse que encontrariam o assassino de Dom
O SEGREDO DOS GIRASSÓIS O diário de Anna Goldin
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Renan aqui, neste local, mas esqueci de dizê-los que o homem,
após confessar-me a culpa, suicidou-se.
Dizendo isso, investiu contra Wallejo e o jogou do
despenhadeiro. Em seguida, jogou o capuz para confirmar o
crime. Ele procurou o meu diário, mencionado na carta de
Wallejo à Maria, mas nada achou. Quando os soldados e os
demais chegaram, ele disse exatamente a versão que tinha já
arquitetado. Todos acreditaram que Wallejo era o assassino de
seu amigo e também do duque. Suicidou-se porque a culpa lhe
pesava os ombros. Alguns dias depois, Maria chegou ao local,
pois havia ficado sabendo da tragédia através dos boatos que se
espalharam no vilarejo próximo à floresta onde ela morava. Ela
tentou achar o diário, mas nunca recebera a carta de Wallejo que
dizia Onde jaz meu amor, deixarei minha alma.
Wallejo voltou ao mosteiro para ver onde eu havia sido
enterrada. Em cima do meu túmulo, plantou novamente
sementes de girassol, deixando enterrado debaixo dos girassóis,
novamente, o meu diário. Embora Maria tenha suspeitado que
Wallejo houvesse escondido o meu diário nas ruínas do
mosteiro, jamais ousou mexer no meu túmulo por achar que
seria um sacrilégio. Voltou, assim, triste e sem esperança para o
meio das irmãs, onde viveu o resto de seus dias. Os girassóis
bailavam com o vento, guardando para sempre o meu segredo.
Ainda hoje o vento silva no alto do despenhadeiro,
clamando por justiça e verdade. Por isso, conto-lhes esta
história. Meu amor precisava que soubessem que ele nunca
assassinou ninguém. E que também não era um suicida. Wallejo
ficou por anos vagando em desespero, sem querer confiar nos
irmãos. Era um espírito revoltado e sem luz. Aceitou reencarnar,
mas não nos encontramos em outra vida tão rapidamente.
Também reencarnei algumas vezes, mas nunca fui feliz no
amor, porque estava presa a uma jura.
Adriana Matheus
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Hoje, Wallejo é um espírito iluminado e ajuda as pessoas
a compreenderem suas divergências. Vocês devem estar se
perguntando E Wallejo e Anna? Encontraram-se? Houve, sim,
um encontro entre nós. Tivemos uma oportunidade de nos
encontrar e de resgatar nossas vidas. Mas isso é outra história...
“Às vezes, cometemos erros dos quais nunca nos
perdoaremos. Não existe uma forma de voltarmos atrás. O
melhor é pensar antes de seguir com as ideias e vontades. O ser
humano é frágil e fraco porque sucumbe às vontades do
aparelho. Não se preocupa com o mal que faz ao espírito. Essas
consequências podem levar a várias encarnações para que este
espírito aprenda a controlar as emoções e cresça - o que pode
atrasar a sua evolução. Pense nisso. Muita paz e muita luz”.
FIM.