o sagrado e o profano na temática do amor cortês

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Página | 442 Revista História e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. O CRUZAMENTO ENTRE O SAGRADO E O PROFANO NA TEMÁTICA DO AMOR CORTÊS THE INTERSECTION BETWEEN THE SACRED AND THE PROFANE IN THE THEME OF COURTLY LOVE Ligia Cristina CARVALHO Resumo: Por ter sido elaborado dentro de uma sociedade religiosa cristã medieval, que tem a Bíblia como paradigma e a Igreja como norteadora espiritual e comportamental, pelo menos desde o século V, o amor cortês caracteriza-se pela tensão dos contrários que marca tão singularmente o perfil histórico e cultural da Idade Média. Para Santo Agostinho, o amor eleva o indivíduo à verdade, ao conhecimento unitivo de Deus. Em conformidade com a ideia de Santo Agostinho, o amor cortês era tido como fonte de todo o bem. Entretanto, na literatura cortês, não era o conhecimento de uma verdade transcendente que se consegue com o amor, mas um enobrecimento do próprio ser em sua realidade terrena e, além disto, este amor não se dirige a Deus, mas ao próximo de sexo oposto. Dito isto, neste artigo discutiremos o cruzamento entre o sagrado e o profano na temática do amor cortês. Palavras-chave: Idade Média Central Literatura cavaleiresca Amor cortês. Abstract: Because of drawning into a medieval Christian religious society, which has the Bible as a paradigm and the Church as a spiritual and behavioral guiding, at least since the fifth century, courtly love is characterized by the tension of opposites that mark the historical and cultural profile of the Middle Ages so singularly. For St. Augustine, love elevates the individual to the truth, to the unitive knowledge of God. In accordance with the idea of St. Augustine, courtly love was taken as the source of all good. However, in courtly literature, the knowledge of a transcendent truth was not achieved by love, but an ennoblement of the self in its earthly reality and, moreover, this love is not addressed to God but to others of the opposite sex. Said that, this article will discuss the intersection between the sacred and the profane in the theme of courtly love. Keywords: Central Middle Ages Chivalric literature Courtly love. Considerações iniciais Este artigo tem como objetivo apresentar os resultados da pesquisa realizada no mestrado intitulada “O amor cortês e os Lais de Maria de França: um olhar historiográfico”. Esse trabalho foi desenvolvido vinculado ao Núcleo de Estudos Antigos e Medievais Mestre em História Doutoranda em História Programa de Pós-graduação em História Faculdade de Ciências e Letras UNESP Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Por ter sido elaborado dentro de uma sociedade religiosa cristã medieval, que tem a Bíbliacomo paradigma e a Igreja como norteadora espiritual e comportamental, pelo menos desde oséculo V, o amor cortês caracteriza-se pela tensão dos contrários que marca tão singularmente operfil histórico e cultural da Idade Média. Para Santo Agostinho, o amor eleva o indivíduo àverdade, ao conhecimento unitivo de Deus. Em conformidade com a ideia de Santo Agostinho, oamor cortês era tido como fonte de todo o bem. Entretanto, na literatura cortês, não era oconhecimento de uma verdade transcendente que se consegue com o amor, mas um enobrecimentodo próprio ser em sua realidade terrena e, além disto, este amor não se dirige a Deus, mas aopróximo de sexo oposto. Dito isto, neste artigo discutiremos o cruzamento entre o sagrado e oprofano na temática do amor cortês.

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Pgina | 442 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. O CRUZAMENTO ENTRE O SAGRADO E O PROFANO NA TEMTICA DO AMOR CORTS THE INTERSECTION BETWEEN THE SACRED AND THE PROFANE IN THE THEME OF COURTLY LOVE Ligia Cristina CARVALHO Resumo: Por ter sido elaborado dentro de uma sociedade religiosa crist medieval, que tem a Bblia comoparadigmaeaIgrejacomonorteadoraespiritualecomportamental,pelomenosdesdeo sculoV,oamorcortscaracteriza-sepelatensodoscontrriosquemarcatosingularmenteo perfilhistricoeculturaldaIdadeMdia.ParaSantoAgostinho,oamorelevaoindivduo verdade,aoconhecimentounitivodeDeus.EmconformidadecomaideiadeSantoAgostinho,o amorcortseratidocomofontedetodoobem.Entretanto,naliteraturacorts,noerao conhecimento de uma verdade transcendente que se consegue com o amor, mas um enobrecimento doprprioseremsuarealidadeterrenae,almdisto,esteamornosedirigeaDeus,masao prximodesexooposto.Ditoisto,nesteartigodiscutiremosocruzamentoentreosagradoeo profano na temtica do amor corts. Palavras-chave: Idade Mdia Central Literatura cavaleiresca Amor corts. Abstract: Because of drawning into a medieval Christian religious society, which has the Bible as a paradigmandtheChurchasaspiritualandbehavioralguiding,atleastsincethefifthcentury, courtly love is characterized by the tension of opposites that mark the historical and cultural profile of the Middle Ages so singularly. For St. Augustine, love elevates the individual to the truth, to the unitive knowledge of God. In accordance with the idea of St. Augustine, courtly love was taken as the source of all good. However, in courtly literature, the knowledge of a transcendent truth was not achieved by love, but an ennoblement of the self in its earthly reality and, moreover, this love is not addressed to God but to others of the opposite sex. Said that, this article will discuss the intersection between the sacred and the profane in the theme of courtly love. Keywords: Central Middle Ages Chivalric literature Courtly love. Consideraes iniciais Esteartigotemcomoobjetivoapresentarosresultadosdapesquisarealizadano mestrado intitulada O amor corts e os Lais de Maria de Frana: um olhar historiogrfico. EssetrabalhofoidesenvolvidovinculadoaoNcleodeEstudosAntigoseMedievais

MestreemHistriaDoutorandaemHistriaProgramadePs-graduaoemHistriaFaculdadede Cincias e Letras UNESP Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis, CEP: 19806-900, Assis, So Paulo Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] Pgina | 443 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. (NEAM)daUNESPdeAssis,quedespertounossaatenoquantopotencialidadedos estudos medievais. Postoisto,paraencaminharmosadiscusso,necessrio,primeiramente,fornecer umbrevepanoramaacercadatemticadoamorcorts,para,emseguida,analisarmoso cruzamentoentreosagradoeoprofanonestetema.Utilizandoexemplosextradosdo Tratado do Amor Corts, escrito no sculo XII por Andr Capelo, daverso de Tristo e Isolda de Gottfried von Strassburg, escrita em meados do sculo XIII,e dos Lais de Maria de Frana, uma compilao de doze contos compostos no sculo XII1, demonstraremos que o amorcorts,apesar de seu aspecto profano, possui uma faceta espiritualizada, o quefaz com que esta nova representao do amor no se distancie de todo do sagrado. Percebe-sequeasfontesescolhidasditamcertoslimitestemporaiseespaciais, assimoncleotemporaldapesquisaosculoXIIeXIII,tantoporseroperodode literalizao dos documentos quanto por ser o momento da formao da literatura ou ainda da cultura cavaleiresca. No que diz respeito ao espao, a anlise foi limitada regio Norte eSuldaFranaeInglaterra.DuranteaIdadeMdiaCentral,aliteraturaeacultura francesaserviramdemodeloparaorestantedaEuropaOcidental.Entretanto,ascortes principescasinglesasdestacam-senoincentivoaonovogneroe,asdisputasliterrias destas regies eram reflexos de rivalidades polticas. O amor dito corts O objeto de nossa pesquisa o novo conceito de amor que surgiu no sculo XII. Os termosusadosnapocapelostrovadoresetrouvres2paradesigna-loerafinamourou vraiamour.Considera-seque,em1883,surgepelaprimeiravezaexpressoamor corteso com Gaston Paris, em um artigo que escrevera sobre Le chevalier de la charrette (OCavaleirodacharrete),deChrtiendeTroyes(PARIS,1883)3.Nopresentetrabalho usaremosotermoamorcorts,jconsagradopelahistoriografiaejustificadopelofato destanovaconcepoamorosaserenquadradaemmaneirascortesesetersurgidono ambiente da corte, que tambm um dos cenrios recorrentes dos romances. Vale destacar que esta corte no era, a princpio, real ou imperial, centro de cultura empocasanterioresetambmposteriores,masadosprncipeseadossenhoresfeudais. Pgina | 444 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. Istoporque,naIdadeMdiaCentral(XI-XIII),ofeudalismojdeitavasuasrazes, favorecidopelaperdadecontrole,nofinaldosculoIX,dosreiscarolngiossobrea nobrezanasregiesqueformaramaFrana,ocasionandoafragmentaodopoder.Essas cortes de pequena escala rivalizavam entre si e para aumentar o brilho de sua corte a ponto deofuscaroutras,osprncipesemagnataspreocupavam-seemtorn-lasumlugar agradvel,fatoquejustificaomecenatoprincipescoqueprocuravamanterosmelhores poetas em sua casa, a exemplo da corte de Henrique Plantageneta. considerveladificuldadedoshistoriadoresparadefinir,empoucaspalavras,o queeraacortenaIdadeMdiadevidoasuacomplexidadeinterna,assimcomosua variedade temporal e espacial, apesar dos traos permanentes; problema talvez presente no prprioperodoselevarmosemcontaafrasedeGautierMapdofinaldosculoXII:In curiasumetdecurialoquor,etquidipsasitnomintelligo(Estouna corteefalosobre ela e no sei o que ela ) (apud GUENE, 2002, p. 269). A ambiguidade maior reside no fatodecortedesignartantooconjuntodepessoasqueacompanhaorei,oimperador,o prncipeouosenhorfeudal,quantoolugarqueestesvivem.Entretanto,existiamdois termoslatinosquefaziamestadistino:curiaecurtisrespectivamente.Apresenada corte como cenrio dava aos contos tonalidades de realidade e verossimilhana.Apesardapertinnciadetaisobservaes,nodevemosdesprezarofatodequea culturacavaleiresca/cortestevecomocentrodeformao,enriquecimentoe, principalmente,difusoacorte,naqualfoiforjada,nodecorrerdosculoXIeXII,a cortesiacourtoisie,derivadadapalavracourtois,emfrancs,quesurgiuporvoltade finsdosculoXI,apartirdapalavracour,court,quedesignacorte.Acortesiaditavaas maneirasdeviver,devestir,defalar,ouseja,oprpriomododeserdoindivduoquese queria corteso. Para isto foram criados manuais de comportamentos corteses. Esteidealdecomportamento,quedurantesculosfoipropostosociedade ocidentalemdiferenteslugares,foialimentadoporumaatmosferaparticulardacorte,na qual havia cavaleiros, clrigos e damas, os trs sustentculos desta cultura cortes e de sua forma de expresso que aqui nos interessa: a literatura. Osclrigoseramresponsveispelaedificaodasdamasedossenhores,assim escreviampredominantementeemlatimhagiografias,obrashistricas,Espelhos.Mas vivendo neste ambiente, alguns clrigos, sobretudo os que coabitaram na corte de Henrique Pgina | 445 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. IIPlantageneta,amaldioavamtantoacortecomosuacultura,sendoJoodeSalisburye Gautier Map seus grandes exemplos. Para eles, a corte era um lugar de desordem, onde os clrigosdeixavamdeserclrigos,oscavaleirosnoerammaiscavaleiros,oshomens tambm deixavam de serem homens, j que incitados pela corte a usarem cabelos longos e anelados, vestes de seda e sapatos de bico levantado, tornavam-se milites effeminati em vez demiliteslitteratique,paraestesclrigos,eraoideal4.Almdisto,acorteeraumlugar marcado pela inveja, pelo dio, pela ambio e pela bajulao. Uma das explicaes desta hostilidadeestnofatodestesclrigosseremformadossegundoosrigorosospreceitos introduzidos pela reforma gregoriana (GUENE, 2002).Entretanto,muitosclrigosnoficaramindiferentesnovacultura5ecompuseram obras referentes a ela e a sua inveno capital: o amor corts; o principal exemplo disto a obra de Andr Capelo, De amore, Do amor, ou De honeste amandi, Do amor honesto, terminadaporvoltadoano1186,emParis,emumambientedemecenatobenvolo produoliterria,ocrculodeMariadeChampagne,filhadeEleonoradeAquitnia. SegundoMosheLazar(1954,p.268)noimpossvelqueMariadeChampagnetenha sido inspiradora dessa obra, ideia expressamente refutada por Duby (2001), o qual tambm rejeitaottuloTractatusdeamore,Tratadodoamorcorts,dadopeloeditoretradutor francsClaudeBuridant,pornoconsiderarestaobraumtratadovalecolocarquena filosofia medieval tractare era um termo tcnico que significa tratar filosoficamente. Dequalquermaneira,AndrCapeloescrevenalnguadasescolas,olatim,uma obraquenodefico,masnormativa,moldadapelaretricaepeladialticaamorosa caracterizadapelaarsdisputandi,naqual,pormeiodeumajustadepalavras,um argumentoeseucontrriosodefendidoscomamesmapersistncia,assemelhando-se assim ao torneio. Alm disto, o autor quecodificaa ideologiaamorosa presente nas cortese fornece preceitos de uma moral sexual, organiza a obra de uma maneira contraditria, contrapondo alouvaodoamorapresentadanolivroIcondenaodestenolivroIII,proferidapor meiodejulgamentosquedepreciamoamorditocortseenobrecemonicoamor verdadeiro:oamoraDeus.Mas,apesardisto,seutrabalhopassouaserconsideradoo primeiro e nico tratado srio sobre este tema, ganhando fama e respeito em toda a Europa Pgina | 446 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. (HEER,1968),atqueem7demarode1277,suaspolmicasteoriasforamcondenadas pelo bispo de Paris, Estevo Tempier6.AobradeAndrCapelodegrandevaliaporterrecolhidoecodificadode maneira metdica as regras do amor corts, que apesar de parecer inspirado nas obras de Ovdio, baseava-se, sobretudo no modo de vida corts, considerando-as como um arqutipo apesar de suas prprias inclinaes. Amor corts: uma inveno do sculo XII ComocolocaFrancoJr(2000,p.26),jsechegouaproporqueoamorfoiuma invenodoOcidente,mas,oqueocorreu,foiapropostadequepoderiahaverentreos dois sexos relaes diferentes das do instinto, da fora, do interesse e do conformismo (LE GOFF,1983,p.117).Essarepresentaomentaldoamorentreohomemeamulher,que fundedesejo,amizade,fidelidade,cumplicidade,foiconsideradaumanovidadedosculo XII,proporcionadopelosurgimentodaculturacavaleiresca,noqueestaotenha inventado,maslheoutorgouumsignificadodiferente,comumsentidoespiritualeao mesmo tempo carnal. SegundoHauser(1972),oamorsexualjhaviasidotratadonaidadeclssicaou pr-clssicapelalricagrega,masnotinhaumpapelprimordialcomoassumiunaIdade Mdia Central. exceo da poca helenstica, o amor no era uma temtica at o apogeu dacavalaria.Comocolocaesteautor,osmotivosdeamor,principalmentedepoisdo perodoclssico,passamatercadavezmaisimportncia,entretantonadacomparado relevnciaqueganhamnaliteraturacortsmedieval.NaIlada,apesardoenredogirar voltadeduasmulheres,HelenaeBriseis,noexisteumahistriadeamor,tantoquese colocarmosemvezdestasmulheresoutroobjetodedisputaoessencialdopoemanose alterar.TambmnaOdissia,existecertovaloremocionalnoepisdiodeNausica,mas temos que levar em conta que este no passa de um simples episdio. E as relaes do heri comPenlopereforamaideiadamulhercomoobjetodeposse.MascomEurpedes,o amorganhamaiorespaoesetransformaemmotorbasilardeumasriedesituaes, motivoqueacabasendoutilizadopelavelhaepelanovacomdia,comeandoaganhar certascaractersticasromnticasesentimentais,nosmaissexuais,naliteratura Pgina | 447 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. helenstica,especialmentenaArgonuticadeAplio.Entretanto,diferentedaliteratura cavaleiresca,oamorcolocadocomoumaternaemooouaindaumapaixoviolentae no como um agente educacional, fomentador das mais profundas experincias de vida. Emsuma,aespecialfascinaodashistriasdeamorforamdescobertaspelos helenistasereutilizadascomocentrodanarrativasomentenoperododeadventoda cavalaria, j que na poca clssica o interesse estava antes nos contos de heris e nos mitos e na Alta Idade Mdia nas histrias de heris e de santos. No desconsideramos a presena de motivos amorosos, mas estes apareciam na maioria das vezes de forma pejorativa, visto queospoetasqueseocupavamdoamorpartilhavamdasconcepesdeOvdiopresentes na obra Os Remdios do Amor, na qual o amor aparece como uma doena que enfraquece a intelignciadoshomens,tornando-osdesprezveisemerecedoresdelstima,jque portandoestesentimento,perdemaliberdadeescravizandoocorao.Somando-seaisso, como veremos a seguir, na poca clssica e na Alta Idade Mdia, o amor era visto tambm comoumprincpiofilosfico,comoodemonstraPlato,osneoplatnicoseSanto Agostinho. O sincretismo entre o profano e o sagrado Schoepflin(2004),aotratarcomoosfilsofosconceberamoamor,nostraz importantesesclarecimentosacercadotemaemPlato,nosneoplatnicoseemSanto Agostinho, conforme relataremos nas consideraes que se seguem.AcomearporPlato(427?-347a.C.),nodilogoentreScrateseDiotima, sacerdotisa de Mantinia, este filsofo coloca que o amor, Eros7, filho da pobreza, Penia, edorecurso,Poros,fatoquejustificaasuaposiointermediriaentreasabedoriaea ignorncia, sendo filsofo, visto que, se Eros amor ao belo, uma das coisas mais belas que existe a sabedoria. Desta maneira, para Plato o amor impulsiona o ser humano, sensvel a seusefeitospositivos,nabuscadoconhecimento,elevando-oparaalmdomundofsico, em direo s alturas do mundo ideal, onde se encontram a Beleza, a Verdade e a Bondade.Como um dos principais representantes do neoplatonismo, o filsofo egpcio Plotino (205-270)tevecomopreocupaoprimordialoprogressoespiritualdohomemparao Uno,oBemdePlato.Assimsendo,esteautorcolocaqueoamor,comoaliado Pgina | 448 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. poderosonoprocessodeautopurificao,abreocaminho-pormeiodacontemplaoda Beleza - daconverso edo retorno da almaao Uno, uma realidade transcendente de onde tudo tem origem. Vale destacar que Plotino, assim como Plato, reconhece a existncia de um tipo de amor que no eleva o indivduo, pelo fato deste no s no reconhecer a Beleza superior do outro, ficando ligado apenas sua beleza terrena, o que no por si s culpvel, mas culpa a degradao no prazer sexual, que perverte o amor ao torn-lo apenas atrao fsica. PlotinoficouconhecidonaIdadeMdiaapenasdemaneiraindiretapormeio daquelesaquemtinhainfluenciado,dentreosquaisseencontraSantoAgostinho(354-430), que procurou fundir conceitos neoplatnicos e cristos. Assim como Plato e Plotino, SantoAgostinhoacreditaqueoamorelevaoindivduoverdade,mas,paraobispode Hipona,estaelevaoocorrenosentidodoconhecimentounitivodeDeus,dasverdades ocultas nas Escrituras. Assim como em Corntios 13, o amor para Santo Agostinho tudo e deve estar acima de todas as coisas, entretanto, este amor, chamado pelo autor de caridade8, o amor a Deus, que deve estar acima do amor ao pai, me, esposa e aos filhos (Quem ama seu pai ou sua me mais do que a mim, no digno de mim. Quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim, no digno de mim Mt 10: 37,38). Mas com a variedade desuasbelezasomundonosatraiparaoamorilcito,vistoqueabelezadoCriadors visvelquelequecr.Emsuma,paraserhabitantedaCidadedeDeus,oindivduodeve amar a Deus acima de tudo, respeitando a ordem hierrquica correta, que no menospreza o amoraoprximo.Contudo,seligadoaosprazeresdomundo,aodesejodesordenadodas coisas, o indivduo habitar sempre a cidade terrena. Emcontrastecomestasconcepes,oamorcorts,sebemqueespiritualizado, contmumfeitiosensualeertico.Ejnooconhecimentodeumaverdade transcendental que se consegue com o amor, mas um enobrecimento do prprio ser em sua realidadeterrena.Assemelhando-seideiadeSantoAgostinho,oamorcortstambm vistocomofontedetodoobem,araizdetodasasvirtudes.Entretanto,esteamornose dirigeaDeus,masaoprximodesexooposto,surgindoassimumcultodoamorque,tal como na mitologia clssica, acaba sendo personificado em um deus caprichoso, tornando-se tambm uma das figuras favoritas da alegoria medieval- visto que, a Idade Mdia recorria alegoria para melhor realizar a sua humanizao do divino. Pgina | 449 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. Assim,AndrCapeloilustraaonipotnciadoamornoquintodilogo,noqual coloca o nobre argumentando a uma mulher da nobreza que o deus do Amor que comanda todo o Universo, e semele ningum pode realizar nada de bom na Terra e, quem no age conformeavontadedoAmorsofrerospiorestormentos,casocontrrio,ser recompensado (ANDR CAPELO, 2002, p.919). Nos Lais, o Amor aparece como aquele que convoca seus seguidores: O Amor fez dele um dos seus (Equitan, v.58), Amor lana sua mensagem,/ que a convocava para o amar (Eliduc, vv. 304-305), contudo, os amantes recorrem constantemente ao Deus cristo nos Lais; Guigemar, por exemplo, Pede a Deus que o proteja,/ que seu poder o conduza a um porto / e o defenda da morte (Guigemar, vv. 200-203) e em outro momento, pedia a Deus onipotente que o fizesse morrer logo e que no o deixasse chegar a um porto, se ele no pudesse rever sua amiga, que ele desejava mais que sua vida (Guigemar, vv. 624-628). Outro trecho que devemos destacar encontra-se no lai de Yonec, no qual a Dama coloca que s aceitar o cavaleiro como amante com a condio que este creia em Deus: respondeu ao cavaleiro e disse que far dele seu amante, contanto que ele creia em Deus e se assim for seu amor ser possvel. (Yonec, vv.141-144). Assim sendo, o cavaleiro afirma: Eu creio firmemente no Criador, que nos libertou da tristeza em que nos colocou Ado, nosso pai, pela mordida da ma amarga; Ele , ser e foi sempre vida e luz para os pecadores (Yonec, vv. 153-158). EmalgunstrechosdaversodeTristoeIsoldadeGottfriedvonStrassburg tambmficaevidenteaconfianaqueIsoldadepositavaemDeus,queporsuaveza protegeria no momento do ordlio, costume que podia, ao mesmo tempo, libertar ou acusar umapessoa:Estandonestasituao,Isoldahaviaprojetadoumaargciaconfiandona Pgina | 450 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. mentalidadecortesdeDeus(GOTTFRIEDVONSTRASSBURG,1982,p.298),oautor prossegue: Isolda havia confiado sua honra e sua vida por inteiro misericrdia de Deus. Seu corao e sua mo os ofereceu temerosa, como era prprio, relquia e ao juramento. A mo e o corao os encomendava piedade divina para proteo e tutela (GOTTFRIED VON STRASSBURG, 1982, p.300). Percebe-se que Deus comparece ao cenrio e perante Ele a humildade dos amantes; estestornamDeusumpersonagematuante,sendoaquelequejulgae,aomesmotempo, protegeeintercedeemfavordeles.Ajustiadivinacontrastacomajustiahumana, apresentada como limitada diante das questes do amor (CARVALHO, 2003). Assim, alm do deus do Amor, os amantes depositavam confiana no Deus cristo, existindoumamisturadosagradoedoprofanoqueengendraumDeuscortesoou,at mesmo,umafusodeambos:DeusdoAmor.Istoseexplicatantopelamudanade perceporeligiosadapocaquepassaaenalteceroDeusFilho,humilhado,piedosoem detrimentodoDeusPai,rgido,exigente,quantopelofatodoamorcortssercolocado como um sentimento divinizado, enaltecido espiritualmente, e no simplesmente um amor carnal.composto,sobretudodeafetoenosdedesejo(CARVALHO,2005):Elese deitou ao lado dela no leito;/ mas ele no quis toc-la/ nem abra-la nem beij-la (Yonec, vv.170-173). Como Tristo e Isolda, os amantes nos Lais no se sentem culpados diante de Deus que,acreditam,osentendemeosajudam,jqueningumresponsvelpelafora misteriosaedevastadoraqueessesentimentocomportaeque,MariadeFranafurta-se, muitas vezes, dizer que alegre: Amor uma chaga dentro do corao que nunca aparece por fora; um mal que dura muito porque vem da natureza (Guigemar, vv. 483-486). O amor fez dele um dos seus. Atirou contra ele uma flecha, que muito grande ferimento o fez: fixando-se em seu corao (Equitan, vv.58-61). Os outros h muito que esto mortos e com sua vida esgotaram a grande pena que sofriam pelo amor que vos tinham (O infortunado, vv.211-214). Pgina | 451 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. A metfora da flecha que, lanada ao corao, causa grande ferimento nos amantes e os fazem queimar no fogo do amor, aparece de maneira latente nos Lais, assim como em grandepartedosescritosdaliteraturacortsincluindooTratadodoAmorCorts.No entanto, este tema nos remete Antiguidade. No sc. V a.C. Eurpides introduz o arco e a flecha com que Eros fere os coraes quando no os incendeia com tochas, como se pode ver em outras representaes (LVY, 1998, p.321).Encontramosnestepontoaprimeiracontradiodoamorcortsque,apesardeser consideradofontedetodobem,lanaaquelequeamarumoaosofrimentoeatamorte. SegundoBarros(2002)arelaoentreoamoreamorteumdosparadoxosmais intrigantesdoamorcorts,quetemocasionadointerpretaesque,emcertoscasos, parecem afirmar reflexes feitas pela psicanlise no sentido de entender a especial relao queoerotismoeamorteparecemreterentresi.Almdisto,segundoomesmoautor,a morte como soluo final ao amor extremado, [...] tambm aproximao amor corts deoutrossistemas deentregadesi, como o Amor Mstico que em ltima instncia aspira a uma fuso com o Criador ou a um mergulho no reino indiferenciado onde os sofrimentos da vidamundanajnomaisexistem.AMorte,emtodosestescasos,o caminhopossvelparasuperardefinitivamenteoslimitesqueaprisionam o homem, e que no caso do Amor Corts impedem ao amante a interao definitiva com a amada (BARROS, 2002, p.21). Destamaneira,tantoMariadeFranaquantoAndrCapeloeGottfriedvon Strassburgcolocamqueaquelequeamaseexpemorteque,emtodocaso,desejada quando a posse do outro negada, posto que a ausncia do outro um castigo, uma espcie de suicdio voluntrioe,na linha que estamos percorrendo da intercessodo sagrado e do profano, essa ausncia do outro parece simular a perda do paraso, devido tristeza na qual o amante emerge e a ausncia total de prazer, alegria e consolo: depois disse-lhe: Belo, doce amigo, meu corao me diz que vos perco; seremos vistos e descobertos. Se voc morre, eu quero morrer (Guigemar, vv.546-549). Por Deus, disse ele, minha doce amiga, permita um pouco que eu vos diga: Pgina | 452 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. voc minha vida e minha morte, em vs est todo meu consolo (Eliduc, vv.669-672). Com voc, disse ela, levai-me, j que ficar no quereis! Se no, eu me matarei, jamais nem alegria nem bem terei (Eliduc, vv. 679-682). E,noTratado doAmorCorts,nosextodilogo,porexemplo,umgrandesenhor diz a uma plebeia: a esperana de ser amado por vs que me mantm vivo, e, se perder essaesperana,smerestaramorte(ANDRCAPELO,2002,p.102).Nadade surpreendente, j que morrer de amor um lugar-comum, um clich literrio. Entretanto, o autor utiliza este tema como um dos motivos para a condenao do amor: [...]sentiramorporalgumcometergraveofensacontraDeuse,para muitos,expor-seaoriscodemorrer.Ademais,parecequeoamorleva osqueosentemasofrerinmerostormentos,reservando-lhestorturas dirias e incessantes. Que bem poderamos encontrar na ofensa ao esposo celeste e ao prximo, sabendo-se que aqueles que assim agem expem-se aoriscodemorreresoatormentadosportorturasininterruptas? (ANDR CAPELO, 2002, p.142). Ser ento que o amor deve dirigir-se somente aDeus? Como coloca Duby,certas razes imperiosas deveriam levar-nos a falar do amor a Deus, visto que: [...]senaevoluodaculturaeuropiaexisteumainflexo,eudiria mesmo uma curva, e decisiva, no que diz respeito idia que os homens fizeramdosentimentoquechamamosamor,nostextosdospensadores da Igreja que ns, os historiadores, podemos discerni-la em primeiro lugar (DUBY, 1989, p.28). Destamaneira,pormeiodosescritosdesteautor,retomaremossumariamente algumasreflexesfeitasporimportantesmembrosdaIgreja,comeandocomopolmico Pedro Abelardo (1079-1142), condenado duas vezes por heresia, respectivamente em 1121, noConcliodeSoissons,eem1140,noConcliodeSens,sendoproibidopelopapatanto de escrever como de ensinar.Na sua introduo Teologia, retomando Ccero, para quem a amizade (amicitia) vontade, a do bem do amigo, Abelardo define o amor como uma vontade boa em relao ao outro, e por ele, que nos faz desejar que se conduza bem, e isto s o desejamos antes por Pgina | 453 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. causadeledoquepornossacausae,comentandoaEpstoladePauloaosRomanos, afirma: No se podefalar de amor a Deus se seama para si, no por ele, e se pomos em ns, no nele, o fim de nossa inteno (apud DUBY, 2001, p. 124-125).DentreseuscrticosestavamBernardodeClaraval(1090-1154),Guilhermede Saint-Thierry(1085-1148)eHugodeSaint-Victor(1096-1141).Osclrigosdaabadiade Saint-Victorapresentavamaosalunosasviasagostinianasdacontemplaoe,sem condenarexpressamenteoinstrumentodialtico,afirmavamquesepelarazopodemos aproximar-nosdeDeus,somentepeloimpulsodoamorchegaremosaograusupremode conhecimento,plenitudedailuminao.Assim,HugodeSaint-Victor,comoSanto AgostinhoecomoSugercujopensamentodeviamuitoaosensinosdosmestresde Chartres que, com suas concepes de inspirao platnica, convidavam mais s efuses do coraodoquesreflexeslgicas-,colocaqueaalmadescobrirquecadaimagem sensvelsacramentodascoisasinvisveisquandosetiverlibertadodoseuinvlucro corporal,pormeiodeumaprogressivaascensoespiritual.Cisterretomasuadoutrinae, juntamente com a Escola de Saint-Victor, durante o sculo XII, torna-se o principal centro de misticismo (DUBY, 1979; LOYN, 1997). Tambm de ascenso espiritual fala Guilherme de Saint-Thierry ao celebrar o amor mediador.SeupensamentofoienriquecidoeconsolidadopelaleituradotratadoDa Amizade, de Ccero, e da obra Arte de amar, de Ovdio, isto , afirma Duby (1979, p. 124), os mesmos textos que usavam ento os clrigos das escolas do Loire e os trovadores com quem se cruzavam nas cortes principescas, para afinar a teoria duma outra eleio amorosa, esta profana: o amor corts. Assim,domesmomodoqueocavaleirolevado,pormeiodefaanhasepela sublimaododesejo,aconquistarpoucoapoucooamordadama,GuilhermedeSaint-Thierry [...]levaosseusdiscpulosmsticospor umaprocissoporgrausquedo corpo,sededavidaanimal,seelevaalma,sededarazo,depoisao espritoqueoscoroa,sededoxtaseamoroso.Pelofogodoamor, verdadeiraintelignciadeDeus,aalmapassadomundodassombrase dasfigurasparaaluzdoplenomeio-dia,naluzdagraaedaverdade (DUBY, 1979, p. 124-125). Pgina | 454 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. BernardodeClaraval,abadecistercienseconsideradoograndedefensordo pensamentoortodoxonoOcidente,partidriodestaconcepo,descreve,em1126,noseu tratado teolgico Do amor por Deus, a progressiva sublimao do desejo. Primeiramente, o homemestimaasiprprio,tendooapetiteseoriginadodomaisprofundodocarnal. Subindoumdegrau,ohomempassaaamaraDeus,mas,aprincpio,demodoegosta, para si prprio. Amar Deus por Deus a etapa seguinte que se mostra decisiva para que, o homem, elevando-se mais, alcance a etapa final, na qual o homem esquece-se totalmente e une-se ao objeto de seu desejo. Neste momento, o homem ascende ao amor verdadeiro, aoamorpuro,oqual,semcausaedistantedetodacobia,noesperarecompensa (DUBY, 2001, p.125).Percebe-se que, para estes homens, inspirados no modelo ciceroniano de amizade, o amorumimpulsovoluntrioparaforadesi,esquecidodesi,desinteressado,e conduzindo,porumaevoluo,umadepuraogradativa,atafusonooutro(DUBY, 1989, p.28). Bernardo de Claraval, inspirado por Santo Agostinho, leva esta concepo de amor mstico ao mais sublime desenvolvimento na sua sequncia de sermes construdos sobre o CnticodosCnticosque,louvaoamorconjugal,afebreamorosaeatmesmooamor fsico.Ocisterciense,sematenuaremnadaoardorqueinflamaestecanto,aocontrrio, intensificando sua carga ertica, procura exacerbar o desejo at que ele se esvaia no prazer das bodas. InteressantenotarqueduranteosculoXII,oCnticodosCnticosfoimais frequentementecomentado,sendoolivrodoAntigoTestamentoquetevemaiorsucesso, umavezque,nosculoXI,tinhasidooApocalipse.Estefatodenotatantoomaior interesse pela relao amorosa entre os intelectuais quanto, segundoLe Goff (2003, p.66), umacertatransformaodeestadodeesprito,relacionadoaodesenvolvimentodoideal corts.EstesucessodoCnticoevidentementeafligiuaIgreja,preocupadacomas proposiesperigosasdotexto,levandotelogosortodoxos,aexemplodeBernardode Claraval,asedefenderemcriandoumainterpretaoalegrica,tomandodosescritossua linguagem figurada. EstascolocaesapresentadasdevemserinseridasnocontextodoRenascimento do sculo XII que acarretou uma srie de mudanas na Europa Ocidental. Os comentrios Pgina | 455 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. dos autores latinos ganhavam cada vez mais espao e, a aproximao cada vez maiorcom os modelos antigos comunicava uma concepo distinta do homem, de suas relaes com o sobrenaturalecomanatureza.Nointeriordocristianismotambmhouvemudanas.O NovoTestamentopassouaserlidomaisatentamente,ostelogos,osmoralistas, formulandoumadoutrinadapenitncia,ouseja,daresponsabilidade,inclinavam-sea admitir que [...]acarnecontatantoquantooespritonoserhumano[...]eos espetculo do progresso material incitava a pensar que a marcha do tempo no leva inexoravelmente todas as coisas a se corromperem, que o homem capazdeelevar-sededegrauemdegrauparaamelhor, equeno curso desuaascensoapartedecarnequeexistenelepodeser,tambmela, engrandecida pela alegria. (DUBY, 2001, p.123-124). Assim,houveumatentativadostelogosdeconduzirestaideiadeascensodo homememdireoaomisticismo10,aoamoraDeus,oCriador.Entretanto,responsveis pelacondutadosleigos,esteshomensnopoderiamprivar-sedefalardoamordeuma criatura por outra criatura. NaviaabertaporBernardodeClaraval,osmongescisterciences,principalmente, foramestimuladosapensarsobreafaculdadedeamornohomem,formulandonovas interpretaeseumanovaadmissodosentimentodeamoraoprximo.SegundoPereira (2006),surgeentonocristianismoodilemadesabercomoamaroprximomas, particularmente,comoamarumdosseusprximos,seminfringiromandamentoda Caridade - caritas, compreendido como amor universal.Ostelogos,adotandoagoraumaposturamoralista,propunham,noque denominamosamor,distinguirquatrocategoriasradicalmentediferentes(DUBY,2001)11. Partindodastrscategoriasque,segundoeles,estorelacionadasdiretamenteao sentimentoamoroso,situa-senomaisaltograuoamorpurodeBernardodeClaraval,ou seja, o amor verdadeiro dirigido a Deus. Em seguida, est a amizade amorosa, [...]oamorentreosmachos,fortalecidopelosvaloresdefidelidadeede servioextradosdamoraldevassalagem,queaordemeapaz supostamenterepousam,efoiaelequeosmoralistasnaturalmente remeteram o fervor novo de que o pensamento dos telogos impregnara a palavra amor (DUBY, 2001, p. 128).12 Pgina | 456 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. Naterceiracategoriaestadilectio,aafeiosensata,comedida,morna, adequada entre os esposos. parte destas deveria ser colocada a fornicao, tida como um simples alvio fsico, contudo um grave pecado se realizado com uma religiosa ou dentro do quadro conjugal.Emcontrastecomofervorutilizadonadescriodoamorpuroedaamizade amorosa, est a reserva ao se falar do sentimento conjugal proposto. Diferente da amizade amorosa,auniodoscnjugesnodeveocorrernumquadrodeparidade.Pormaisquea Igrejapermitissemulherexprimirpublicamentesuavontadenomomentodaunio, possibilitandoporumnicoinstanteaigualdadeentreosesposais,emconformidadecom asrelaesdepodervigentesnestasociedademarcadamentemisgina,seusensinamentos morais estabeleciam que a relao entreesposos no deveria ser de amizade e pressupor a igualdadededireitos.Numbomcasamento,ohomemcomandavaeamulherobedecia incondicionalmente, de acordo com a frase do Novo Testamento (OPITZ, 1990, p.366): SejamsubmissosunsaosoutrosnotemoraCristo.Mulheres,sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor. De fato, o marido a cabea dasuaesposa,assimcomoCristo,salvadordoCorpo,acabeada Igreja.EassimcomoaIgrejaestsubmissaaCristo,assimtambmas mulheres sejam submissas em tudo a seus maridos (Efsios, 5:21-24). Tambm diferente do amor puro descrito por So Bernardo, a relao entre os casais devia predispor obrigaes e constrangimentos e no uma entrega total de si na gratuidade eraacontinnciaquedeviaprevalecer.Osespososdevempagarsuadvida-debitum, entretanto, de maneira fria, j que no gozo jaz a falta.Apesardeproclamarocelibatointroduzido,sobGregrioVII(sculoXI),ao clero -, a Igreja sabia da necessidade de relaes sexuais para a procriao e, devido a isto, aceitava-asdentrodoquadroconjugal,exclusivamenteparaareproduo.Logo,para disciplinarasexualidadeecomedirosarroubossexuaisdoshomensedasmulheres,para uni-losdeformaaconstituremumafamliasegundoosmandamentoscristos,esta instituiodifundeaprticadocasamentoque,nosculoXII,torna-seumdossete sacramentos, tendo que ser indissolvel, exogmico e monogmico - numerosos trechos do Antigo Testamento probem veementemente o adultrio, a ttulo de exemplo xodo 20:14, Pgina | 457 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. asmesmasproscriessorenovadasnoNovoTestamento,comoporexemploMateus 19:18. Ora, exigindo dos leigos a unio exogmica, a Igreja proibia o incesto que, por sua vez, ganhou uma definio extremamente ampla, chegando ao stimo grau nas relaes de consanguinidadereduzidoparaquartograu,em1215,noquartoConcliodeLatro, devidospressesdestasociedadebaseadaemumsistemacognticotradicionaleao quartograucanniconasrelaesdeafinidade(BARTHLEMY,1990).Logo, proclamandoocasamentoindissolvel,aprpriaIgrejaconcediaumsubterfgiopara romp-las, como o comprova o casamento de Eleonora de Aquitnia com Lus VI que, por motivosdeconsanguinidade,foidissolvido.PoucotempodepoisEleonoracasava-secom Henrique Plantageneta, que tinha para com ela o mesmo grau de parentesco que o antigo marido (HEER, 1968, p.170). Dito isto, percebemos que no era a preocupao religiosa a razo da separao. Mas,preocupadacomaindissolubilidadedasunies,jqueporvoltade1100 comeahaverumacrisenocasamentoaristocrtico,fatopercebidopelafrequnciadas separaes(BARTHLEMY,1990),aIgreja,emmeadosdosculoXII,procurou implantarnaaltaaristocraciaaideiaqueovnculoconjugaldeveriaocorrerpor consentimentomtuo,mashaviaquestessociais,polticaseeconmicasque impossibilitavam a realizao deste ideal.Entretanto, mesmo afirmando o princpio do livre consentimento com o objetivo de manter a estabilidade da clula conjugal, a Igreja no via o amor conjugal nem como causa docasamentonemcomojustificativaparaseurompimento,jqueconcediamaesteuma importnciaextremamentereduzida:filhoscomunsefidelidadeconjugalconstituamo essencialdosacramentodomatrimnio(OPITZ,1990,p.375),ideiapresenteemSanto Agostinho. Masconvinhaqueexistisseumacordodossentimentosentreosesposos,maseste deveria permanecer no nvel daafeioe no doamor apaixonado quea tudo perturba. A ordemsocialapoia-senocasamentoque,destamaneira,pressupemseriedadee comprometimento.Seriainadequadofixarsuasrazesnosterrenosarenososdoamor-paixo, como o define Andr Capelo no incio do seu tratado. Pgina | 458 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. Alm disso, influenciados pelos Padres da Igreja, no caso So Jernimo (341-420), os moralistas, destacando-se Alain de Lille (11281202), advertiam os esposos que amar-se muitoardentementenocasamentoadultrio,ideiapresentetambmnotratadodeAndr Capelo.Comojcolocamos,ocasaltinhaporobrigaoquitarsuadvida,masdeuma maneiraqueaprocriaofossealmejadaenooprazer,poiscomoafirmaSoPauloaos Corntios(I6:18-19):oseucorpootemplodoEspiritoSanto,sendoassim,fujasda fornicao,poisqualqueroutropecadoqueohomemvenhaacometerexterioraoseu corpo mas, o luxurioso, peca contra seu prprio corpo.Entretanto,segundoLeGoff(1993),naIdadeMdiaCentral,ocorreum mapeamentogeogrficodoalmcomainvenodopurgatrio,quesesituandoentreo paraso e o inferno, torna-se um lugar da esperana. Dentre os que o purgatrio podia salvar estavam os fornicadores. Assim, houve uma salvao da sexualidade, no incluindo aqui as prticasilcitas,comoahomossexualidade(LEGOFF,2003).Logo,apesardestamoral cristdeprocednciamonsticareprimirsobremaneiraasexualidade,percebemosqueo prprio cristianismo, de certo modo, recuperou-a por meio deste lugar que possibilitava os pecadores fugirem do inferno. Isso poderia nos levar a pensar que os amantes corteses no estavam de todo condenados, mas, como veremos, o amor corts no era fornicao, como tambm no era apenas uma afeio morna, no espao destas que iremos encontra-lo. OamorcolocadoemcenaporMariadeFranaparecereunirasquatrocategorias amorosas propostas pelos telogos: mstica, destacada no lai de Eliduc, amical, afetiva e sexual.Aamizade,afidelidadeeaafeiototalentreosamantesnoexcluemas dimenses sexuais, mesmo se no encontramos vestgios da sua realizao. Como observa Flori(1992),nolaideEliduc,aindaqueaautoratenhaaintenodesublinhara moderao de Eliduc ao furta-se de prazeres sexuais com a filha do rei, o desejo de ambos no menos efetivo e, a donzela exprime suas intenes sobre este plano: Se de bom amor me quiser amar/ e seu corpo assegurar,/ eu farei tudo que lhe agradar (Eliduc vv. 343-345). Fundindotodasessasdimensesamorosas,aconcepodeamordaautora apresentatraossubversivos.Diferentedosmoralistaseclesisticos,MariadeFrana defendeaimportnciaessencialdoamorentreascriaturasdesexooposto,emseus aspectos sentimentais, sexuais e, tambm, espirituais. Para Maria de Frana, o amor iguala ohomemeamulher,independentedeseulugarsocial,epropiciaumafelicidadeterrena, Pgina | 459 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270. buscadapormeiodeumaunioquenovisaaprocriao.Estauniopodeocorrertanto dentrocomoforadocasamento,apresentadonosLaiscomoumaconvenosocialsem significaomoral.Ditoisto,percebemosque,demaneiraousada,osvaloresenaltecidos por Maria de Frana nos Lais opem-se aos propostos, ou melhor, impostos pela ideologia eclesistica. Consideraes finais NaIdadeMdiaCentral,emespecialnosculoXII,houveumavastaproduo literria,enquadradanoquechamamosdeRenascimentocultural.Asobrasemlngua vulgar, aexemplo dosLais e de Tristn e Isolda, compostas pelo setor laico da sociedade feudal, constituem documentos histricos relevantes para o pesquisador da poca medieval. Paralela s obras eclesisticas, porm com umavertente diferente,apresentam-nos, muitas vezes, uma imagem mais clara do perodo. Sendo assim, procuramos neste artigo oferecer um breve panorama sobre o amor, tal como era proposto pelos eclesisticos e tal como era colocado pela literatura. Logo, iniciamos discorrendo sobre a corte, lugar no qual o sagrado e o profano coexistiam de maneira singular.Como podemos verificar na obra Tratado do amor corts de Andr Capelo, muitos clrigos escreviam com clareza obras mundanas, visto que, no medievo, o profano emerge no sagrado, de uma forma ou de outra. E, esse amor descoberto, inventado, ou se preferir, reveladopelostrovadoresmedievaisera,utilizandoaspalavrasdeMongelli13,umamor profano em tempos de amor divino. Profano no sentido de no ser dirigido a Deus, porm nosendoapenascarnal,comobemodemonstrouMariadeFranaeGottfriedvon Strassburg. Fontes Impressas ANDR CAPELO. Tratado do Amor corts. Introduo, traduo do latim e notas de Claude Buridant, traduo de Ivone Castilho Benedetti. So Paulo: Martins Fontes, 2002. BIBLIA VULGATA.Ed. de A. Colunga e L. Turrado. Madrid: BAC, 1985. MARIE DE FRANCE. Lais. Traduits, prsents et annots par Laurence Harf-Lancner. Texte dit par Karl Warnke. Paris: Le Livre de Poche, 1990. 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Bauru: EDUSC;So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, v.1, p.47-56. SCHOEPFLIN, Maurizio. O amor segundo os filsofos. Trad. Antonio Angonese. Bauru: EDUSC, 2004. Notas

1Utilizamosnesteartigoasedies:ANDRCAPELO,2002;MARIEDEFRANCE.Lais.Traduits, prsentsetannotsparLaurenceHarf-Lancner.TexteditparKarlWarnke.Paris:LeLivredePoche, 1990.GOTTFRIEDVONSTRASSBURG.TristneIsolda.EdicionprepardaporBerndDietz.Madrid: Editora Nacional, 1982. Os trechos da obra Tristn e Isolda de Gottfried von Strassburg e dos Lais de Marie de France citados em lngua portuguesa, neste trabalho, so tradues nossas. 2AFranaencontrava-sedividida,emtermosculturais,emNorteeSul,separadasprincipalmenteporuma linguagem distinta, respectivamente langue doil e langue doc. Troubadour, trovador, o poeta lrico que vivianascortesdoSuldaFrana,trouvreseucorrespondentedoNorte,quenotememportugusum vocbulo especfico para design-lo. (N.T.) (RGNIER-BOHLER, 2002, Nota 2). 3 Fernandes (2007) refuta aideia que Gaston Paris foi o criador do conceito ao afirmar que o trovador Peire dAlvernh j empregava a expresso cortez amors em seus poemas. 4Valecolocarqueapropagaodamodafoiestimuladatantopelamelhoradacomunicaoquantopelas transformaeseconmicasdossculosXIeXIIquetornaramosbensdeluxomaisdisponveis.Assima inveno e adoo decertasmodas peloshomensforam alvo decrticas dos cronistasmonsticos do sculo XII que encontravam sinais de declnio moral no nas roupas alongadas e justas das mulheres, mas antes nos laosapertadosenascaudasexageradasdoshomens,cujascabeleirascadaseandarafectadocompletavam uma ameaa travestida aos modelos de um passado marcial e, s no sculo seguinte o olhar destes moralistas vira-se para as mulheres e para seu interesse pela moda, ainda que, prescries de como se vestir permeiem a literaturadidticaepastoraldesdeosfinaisdosculoXII.Interessanteofatodacrticaaoshomenspor adotaremasmodafeminastercedidoespaocriticadasmulheresporusaremvesturiomasculino (HUGHES, 1990, p.186-187). 5Emsuainvestigao,naFranadelnguadoil,Duby(2001)observaqueoscriadoresdaliteraturacorts foram homens de Igreja que, alm de responsveis pelos servios divinos, ajudaram na edificao da cultura de corte. O autor ainda acrescenta que foi atravs dos clrigos domsticos que as cortes principescas tiveram acessosdescobertas,nodomniodaafetividade,queosdoutoresfaziamemClairvaux,emChartes,em Paris, nos mosteiros, nas comunidades de cnegos regulares, no claustro das catedrais.6AsupostaincongrunciadaobradeAndrCapelofoiobjeto devriasinterpretaesdistintas,masfoia tesedeZumthor(1943)querelacionouaorganizaodoTratadoque,aprimeiravista,surgecomo incoerente,comaquestodaheresia.Esteautor,tomandoporbaseasituaopessoaldeAndrCapelo, colocaqueesteteriapercebidoosexcessosqueconduziriasuateoriadoamoraumestatutodeheresia: Como sacerdote, Andr Capelo sentia o perigo que constitua tal doutrina. Mas, enleado em seus princpios Pgina | 462 Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.442-462, 2013. ISSN: 2238-6270.

e tambm porque, segundo toda probabilidade, ele s estava codificando o que era uma situao de fato no meioemquevivia-,elespodiaescaparassumindoumpapelduploecontraditrio:dondeoDe Reprobatione Amoris aps os dois primeiros livros da obra. (ZUMTHOR apud BURIDANT, C. Introduo, p.LXIX-LXX.In:ANDRCAPELO,2002,p.LXIX-LXX).Contudo,mesmousandoestaartimanha, AndrCapelotevesuaobracondenadacomoheresiaporumdecretodobispoEstevoTempier,que incrimina todas as obras que amparem a existncia de duas verdades, uma segundo a filosofia e uma segundo af.NoTratadoh,defato,umamoraldanaturezaeumamoralcristqueoautorparecedefendercomo verdadeirasaomesmotempo.(BURIDANT,C.Introduo.Nota178.In:ANDRCAPELO.Op.Cit.p. IX-LXXVII) 7 A Teogonia de Hesodo (sc VII a. C.) o primeiro texto grego em que o deus aparece, j que Homero no o menciona enquanto divindade do amor. Vale destacar tambm que Eros uma das divindades mais literrias do panteo grego. Os pintores, sem dvida, muito contriburam para transmitir-nos sua representao, mas ela elaborada,sobretudo,pelospoetas.Essarepresentaomostraumasingularduplicidade:naverdade,a imagem que nos familiar do jovem deus do amor sucedeu a um aspecto mais antigo, que em conformidade com o sentido do substantivoeros representa afora abstrata dodesejo: tal o Eros primordial evocado em certos mitos da criao do mundo ( LVY, 1998, p. 319). 8 Agape era o termo utilizado pelos gregos para designar amor divino. Pela ausncia de um termo latino que o substituisse, utilizou-se ento caritas. 9 Conforme a nota 56 presente nesta pgina, j em Ovdio, Fedra diz a Hiplito: Quidquid Amor iussit, non est contemneretutum(Nosegurodesdenharoqueoamorordena).Valetambmaduziraautoridadede Virglio:Omniavincitamor;etnoscedamusamori(Amortudovence;ensdevemoscederaoAmor) (apudCURTIUS, 1957, p.174) 10Referimo-nosaquiaomisticismoortodoxo.Entretantoreconhecemosaexistnciadevriasvertentes msticas na Idade Mdia, ver, por exemplo, a doutrina do anarquismo mstico em Cohn ([1980?], p. 146- 153). 11evidente,queentreosclrigos,haviaosmaisradicais,aexemplodocluniacenseBernardodeMorlas que, por volta de 1140, comps seu expressivo poemaDe contemptu mundi (Do desprezo do mundo). Seu esprito monstico percebe com grande aflio a depravao da poca e, nesse sentido, amaldioa o amor e a mulher (CURTIUS, 1957, p. 170). 12 Sobre a questo da amizade, foi criado no sculo XII o conceito monstico de amizade espiritual,presente nostratadosdeAelreddeRievaulx(1110-1167):oSpeculumCaritatiseoDeSpiritualiAmicitia.Vale destacar que, este autor, integra a amizade no plano do divino e no esquema da salvao e, ao refletir sobre a excelncia da amizade no seio da vida comunitria cisterciense, abre o caminho para a difuso do conceito de amizade espiritual para alm do quadro monstico (PEREIRA, 2006). 13NaconfernciaAmor profano em tempos deamor divino: burlando interdies apresentadano II Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais e VIII Ciclo de Estudos Antigos e Medievais, em Assis, em 04 de maio de 2006. Artigo recebido em 28/10/2013. Aprovado em 30/11/2013.