o saber local

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colocou-se em campos opostos o enfoque forense e o enfoque etnográfico das análises jurídicas. Ao invés de termos uma penetração da sensibilidade jurídica na antropologia ou da etnográfica no direito, o que vemos conjunto limitados de debates estáticos é necessário que se adote uma abordagem mais desagregaste que a atual, não só uma mera tentativa de unir o direito à antropologia, mas sim uma busca de temas específicos de análise, que mesmo que apresentados de forma diferente, que encontram-se no caminho das duas disciplinas. Através de um ir e vir hermenêutico, entre dois campos, a fim de formular as questões morais, políticas e intelectuais que são importantes para ambos. O relacionamento entre fatos e leis. Essa questão é/deve ser um tema clássico, e todas as demais questões menores por ela geradas, na filosofia ocidental e na jurisprudência, sendo o ponto mais crucial de todos. Deve aparecer cotidianamente na linguagem do direito e da antropologia: no primeiro, aparece associado com a relação entre o que ocorreu e o que é legal; na segunda, a relação entre os padrões de comportamento observado que existem na prática, e as convenções sociais que supostamente o governam. Para iniciar o ir e vir na direção jurídica, o lugar dos fatos nos julgamentos passou a ser uma questão central. Vemos a explosão dos fatos diariamente a nossa volta, diariamente. A princípio existem os procedimentos que levam

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Page 1: O Saber Local

colocou-se em campos opostos o enfoque forense e o enfoque etnográfico das

análises jurídicas. Ao invés de termos uma penetração da sensibilidade jurídica

na antropologia ou da etnográfica no direito, o que vemos conjunto limitados de

debates estáticos é necessário que se adote uma abordagem mais

desagregaste que a atual, não só uma mera tentativa de unir o direito à

antropologia, mas sim uma busca de temas específicos de análise, que mesmo

que apresentados de forma diferente, que encontram-se no caminho das duas

disciplinas. Através de um ir e vir hermenêutico, entre dois campos, a fim de

formular as questões morais, políticas e intelectuais que são importantes para

ambos.

O relacionamento entre fatos e leis. Essa questão é/deve ser um tema

clássico, e todas as demais questões menores por ela geradas, na filosofia

ocidental e na jurisprudência, sendo o ponto mais crucial de todos.

Deve aparecer cotidianamente na linguagem do direito e da antropologia:

no primeiro, aparece associado com a relação entre o que ocorreu e o que é

legal; na segunda, a relação entre os padrões de comportamento observado que

existem na prática, e as convenções sociais que supostamente o governam.

Para iniciar o ir e vir na direção jurídica, o lugar dos fatos nos julgamentos

passou a ser uma questão central. Vemos a explosão dos fatos diariamente a

nossa volta, diariamente. A princípio existem os procedimentos que levam à

descoberta, que por sua vez produzem guerreiros jornalísticos despachando

documentos uns para os outros em carrinhos de mão, e tentando obter

declarações de qualquer pessoa capaz de falar em um gravador. Há também

uma tremenda complexidade dos casos comercial em cujo labirinto nem mesmo

um tesoureiro da IBM poderia encontrar uma saída, e o que dizer de algum

pobre juiz ou de um infeliz jurado. Há ainda o aumento inusitado de peritos que

supostamente sabem de tudo o que se precisa saber sobre cemitérios índios,

qualidade de romances eróticos, história da colonização do Cabo Cod, estilo da

linguagem oral nas Filipinas ou os mistérios no comércio de aves. Há o

crescimento da litigação no direito público que obriga os juízes a saberem muito

mais do que realmente lhes interessa saber.

Page 2: O Saber Local

O temor aos fatos que todos esse fatores estimularam no direito é

bastante aparente, sobretudo, na forma de uma certa cautela com os meios de

avaliação de informação nos tribunais, principalmente em sistemas de common

law. Tudo isso revela que as mãos jurídicas estão perdendo o controle do

mundo das ocorrências e das circunstâncias.

A depreciação do júri não é a única expressão desse desejo cada vez

maior de manter os fatos à distância em procedimentos jurídicos. A crescente

popularidade dos conceitos de responsabilidade estrita em delitos de natureza

civil, que reduzem os fatos em conceitos de “nenhuma responsabilidade”, que

praticamente o elimina. A expansão das negociações no direito penal, que

evitam maiores esforços de todos. Uma justiça sem complicações nunca

pareceu tão atraente.

A simplificação dos fatos é um processo inevitável e necessário. O

exagero desta simplificação torna os fatos cada vez mais tênues à medida em

que crescem a complexidade empírica e o temor a esta complexidade.

Um fenômeno também preocupante é o número ainda maior de

querelante e de acusados que subitamente começaram a perceber que seja lá o

que for que o direito busque, certamente não é a história real e completa. A

compreensão de que os fatos não nascem espontaneamente e que não feitos ou

construídos (visão e um antropólogo) socialmente sobre a evidência, o

comportamento nos tribunais, suscita questão importantes para uma teoria da

administração da justiça que a considera como “uma séria de emparelhamento

de configurações factuais com normas” ou “ uma norma específica pode ser

sugerida por uma seleção das versões sobre o que aconteceu”.

Trata-se de um fenômeno um pouco mais crucial, o processo de

representação. A descrição de um fato de tal forma que possibilite aos

advogados defende-lo, ao juízos ovi-lo e aos jurados solucioná-lo, nada mais é

que uma representação, apresentando um mundo no qual as próprias

descrições fazem sentido.

A parte jurídica não é simplesmente um conjunto de normas,

regulamentos, princípios e valores limitados que geram tudo que tenha a

Page 3: O Saber Local

verrumo o direito, e sim parte de uma maneira específica de imaginar a

realidade. Trata-se basicamente não do que aconteceu, mas sim do que

aconteceu aos olhos direitos. Ao invés de imaginar que o sistema jurídico está

dividido entre a preocupação com o que é correto e a técnica jurista, a

representação jurídica do fato é normativa por princípio. 

O problema fundamental é descobrir como representar aquela

representação. A resposta a essa pergunta está longe de ser clara, no entanto, é

uma formulação que tem como ponto central a linguagem, considerando a

adjudicação como o movimento de ir e vir entre a linguagem do "se então" das

normas genéricas, seja como forem expressas, e o idioma do "como portanto"

dos casos concretos, seja como forem argumentados.

Essa forma de ver o processo é demasiadamente ocidental para

satisfazer um etnógrafo, mas, ainda assim, tem-se a vantagem de focalizar a

sua atenção no lugar certo: a maneira pela qual as instituições legais traduzem a

linguagem da imaginação para a linguagem da decisão, criando assim um

sentido de justiça determinado.

O problema entre leis e fatos adquire, então, uma nova formulação: ao

invés de tentar descobrir como juntar esses dois elementos, busca-se saber

como diferencia-los. O julgamento, desta forma, consiste de determinadas

regras que separam o certo do errado, utilizando de métodos para diferenciar o

real do irreal, que dá origem ao fenômeno das provas. Desta forma, poderíamos

dizer que a defesa de um caso passa a ser mais que organizar evidências para

provar um argumento: terá que descrever uma série de eventos e uma

concepção geral do mundo de tal maneira que a credibilidade de um reforce a

credibilidade do outro. 

Nesse caso, para que um sistema jurídico seja viável, terá que ser capaz

de unir a estrutura "se-então" da existência, em sua visão local, com os eventos

que compõem o "como-portanto" da experiência, também segundo a percepção

local, dando a impressão de que essas duas descrições são apenas versões

diferentes da mesma coisa, uma mais profunda, a outra mais superficial.

Page 4: O Saber Local

O direito pode não ser uma onipresença que paira no céu, mas

tampouco é um mero conjunto de artifícios engenhosos para evitar

disputas, promover interesses, e fazer acertos em casos problemáticos.

Seria mais apropriado imagina-lo como um vigia.

O primeiro fator que merece a atenção daqueles cujo objetivo é falar de

uma forma comparativa sobre as bases culturais do direito. Pois essas

sensibilidades variam, e não só em graus de definição; também no poder que

exercem sobre os processos da vida social, frente a outras formas de pensar e

sentir.

O que é de relevância mais imediata, no entanto, é que temos aqui uma

série de eventos, regulamentos, políticas, costumes, crenças, sentimentos,

símbolos, procedimentos e con- ceitos metafísicos agrupados de uma maneira

tão estranha e engenhosa que faz com que qualquer contraste menos

sofisticado entre aquilo que "é" e aquilo que "deve ser" pareça - como diremos?

— primitivo

Aqui, a ocorrência e o julgamento fluem conjuntamente em uma mistura

fácil, que não encoraja nem uma investigação extensa dos detalhes factuais

nem uma análise sistemática dos princípios legais. Ao contrário, o que parece

permear todo o caso, é uma visão geral de que as coisas deste mundo, e entre

elas os seres humanos, estão dispostas em categorias todas claramente

distintas, e qualquer assunto que não esteja incluído nessas categorias perturba

toda a estrutura e, portanto, tem que ser corrigido ou destruído.

A questão é de que maneira as representações construcionais do

"se/então" são traduzidas em representações diretivas do "como/portanto" e

vice-versa. Ou seja, dadas nossas crenças, como devemos agir; ou, dados

nossos atos, em que devemos acreditar.

A contextualização cultural do incidente é um aspecto crítico da análise

jurídica, e também da análise política, estética, histórica ou sociológica, em Bali,

aqui, ou em qualquer outro lugar. Se existem elementos comuns nessas várias

contextualizações, é na maneira como ela é feita quando o objetivo é

Page 5: O Saber Local

especificamente a adjudicação e não, digamos, uma explicação causal, uma

reflexão filosófica, uma expressão emocional ou um julgamento moral.

Um processo jurídico realmente é: uma forma de conseguir que nossas

concepções do mundo e nossos veredictos se ratifiquem mutuamente, ou,

utilizando uma expressão menos cotidiana, fazer com que essas concepções e

esses veredictos sejam respectivamente o lado abstrato e o lado prático da

mesma razão constitutiva.

Comparando nossa própria versão da visão do membro do conselho com

outras formas de saber local, não só torna aquela visão mais consciente de

outras formas de sensibilidade jurídica que não a sua, como também a faz mais

consciente da qualidade precisa de sua própria sensibilidade. Sem dúvida, este

é o tipo de relativismo pelo qual a antropologia é famosa. é um relativismo que

funde os processos de autoconhecimento, autopercepção e auto-entendimento

com os processos de conhecimento, percepção e entendimento do outro, que

identifica organizando o que somos e entre quem estamos. Dessa forma,

consegue contribuir para que nos libertemos de representações errôneas de

nossa maneira de apresentar assuntos judicatórios (a dissociação radical entre

fato e leis, por exemplo) e obrigar que nossas consciências relutantes

aceitem visões discordantes de como essas representações devem ser feitas

( como a visão dos malineses), visões essas que não são menos dogmáticas

que as nossas, e tampouco menos lógicas.

O homem não foi criado sendo governado, tornou-se governável

envolvendo-se em uma série de forma significativas, “ teias de significação que

ele próprio teceu”. A adjudicação, portanto, deve ser considerada semelhante a

um tipo de hermenêutica cultural, a uma semântica da ação e não um tipo de

mecânica social ou uma física do julgamento.

Os sistemas simbólicos não fazem o mundo sair de foco, pelo contrário,

torna-o mais visível, ou, melhor dito, tornam os mundos mais visíveis. De tal

sorte, o presente estudo busca esboçar três variantes bastantes distintas de

sensibilidade jurídica, a islâmica, a índica e o direito costumeiro que existe na

parte malaia da Malásia-Polinésia e estabelecer a conexão entre essas

Page 6: O Saber Local

sensibilidades e as visões sobre o que é a realidade, desdobrando três

conceitos cenrais para essas visões do mundo: “haqq”, que signigica “verdade” e

muitas outras coisas mais para os islâmicos; “dharma”, que significa “dever” ” e

muitas outras coisas mais para os índicos; e “adat” que significa “prática” ” e

muitas outras coisas mais para os malaios.

É justamente o “e muitas outras coisas mais” que será absorvido. A

intenção é evocar as perspectivas e nnao anatomiar códigos; é esboçar algo dos

se/então no quais os como/portanto estão situados em cada um desses cados

específicos e através dissto ter uma noção do que significa a questão fato/lei

nesses caso, em oposição ao que ela significa para nós. Restarão somente as

questões relacionadas com a forma como essas visões irão se relacionar umas

com as outras e como todas elas estão cada vez mis envolvidas na vida das

outras, como o saber loca e objetivos cosmopolitas podem ser comportar, ou na,

na desordem mundal emergente.

II

O direito em qualquer lugar do mundo é parte de uma forma específica de

imaginar a realidade. Se considerarmos o direito sob essa perspectiva, como

uma forma de ver o mundo, semelhante, então toda a questão fato/leis passa a

ser vista sob uma luz diferente. Pois, descobre-se, então, que a dialética que

parecia existir entre o fao cru e o julgamento ponderado, isto é, entre aquilo que

simplesmente é, e aquilo que é correto, é uma dialética entre uma linguagem de

coerência coletiva e uma outra de consequência específica.

Nossas três palavras têm mais semelhança com a noção ocidental de

“direito” do que com que a noção de “lei”, ou seja, o ponto central comum as 3 é

menos relacionado com algum tipo de noção de regulamento e mais próximo ao

conceito entr aquilo que é “próprio” e “correto”. Essa articulação dos dois

significados é verdadeira no caso da palavra haqq.

Haqq é um conceito que una uma teoria do dever como um conjunto de

meras afirmações a uma visão da realidade que a considera imperaiva em sua

essência, uma estrutura de vontades e não de objetos.

Page 7: O Saber Local

O “real” nesse caso é um real profundamente moralizado, ativo, exigente,

e não um “ser” neutro, metafísico e inerte em algum lugar, à espera de

observação e reflexão. É um real dos profetas e não de filósofos.

Haqq refere-se ao que é real internamente e por si mesmo. É por

execlencia um termo de Deus. Significa realidade em primeiro lugar, e significa

Deus somente para aqueles muçulmanos que além disso O igualam à realidade.

O importante é a relação do significado do R maiúsculo e do r minúsculo.

A concepção de uma identidade entre o correto e o real é constante em

todos os níveis da utilização do termo, no nível religioso, no metafísico, na moral

e no nível jurídico, onde se transforma em uma reivindicação passível de ser

atendida, um título válido, um direito assegurado e a própria justiça ou o próprio

direito.

Essa identidade do correto e do real permeia a sensibilidade jurídica

islâmica concretamente. A adjudicação muçulmana não se envolve

simplesmente a conexão de uma situação empírica a um princípio jurídico;

esses dois elementos já surgem juntos. Determinar um deles é determinar o

outro. Os fatos são normativos, há menos probabilidade de que eles possam

divergir do Bem, do que de que Deus possa mentir.

A análise jurídica é considerada como uma questão de expressar versões

coloquiais das verdades sobre a vontade divina e não de tentar equilibrar valores

conflitantes. O equilíbrio de valores só surge no caso de relatos de incidenes

situações. E é o temor a isso que conduz àquela que é uma das características

mais admiráveis da administração islâmica da justiça, a enorme preocupação

com aquilo que poderia ser chamado de testemunho normativo.

Qualquer evidência apresentada diante de um tribunal muçulmano é

considerada como sendo oral, mesmo que inclua documentos escritos os

elementos materiais de prova. Só o testemunho falado tem valor, e qualquer

prova material não é considerada como uma prova legal e sim como meras

inscrições daquilo que alguém disse a alguém na presença de testemunhas

moralmente confiáveis. Essa negação da validade legal de um ato escrito

propriamente dito data dos períodos mais antigos do islã e nas fases formativas

Page 8: O Saber Local

do direio islâmico a evidência escrita e material, eram, com bastante frequência

rotalmente rejeitadas. A palavra pessoal de muçulmano conhecido era mais

valiosa do que um pedaço de papel abstrato ou uma informação sujeita a

dúvidas e falsificações. Hoje em dia, quando uma evidência escrita é aceita, a

sua validade ainda é grandemente dependente do caráter moral do indivíduo(s)

que emprestaram-lhe a sua própria autencidade. Não é um documento que torna

o homem confiável, e sim o homem que dá autenticidade ao documento.

Em épocas clássicas essa obsessão com a confiabilidade moral do

depoimento oral deu origem à instituição de testemunhas acreditadas, homens

considerados como firmes, honestos, honrados, decentes, morais e, alem disso,

que possuíssem uma certa proeminência na sociedade local e um suposto

conhecimento das particularidades dos assuntos locais. Uma vez escolhidos

pela qãdi, estes homens eram escolhidos para sempre, testemunhando

repetidamente em todos os cados levados ao tribunais como indivíduos “cujo

testemunho não poderia estar sujeito a dúvidas”. A sua escolha e validação

chegavam a estabelecer um constume ainda mais estranho, que era de criar-se

um grupo de testemunhas secundárias semelhante ao primeiro, ou seja,

testemunhas secundárias que confirmavam a probidade das primárias, na razão

de duas secundárias para cada uma das primárias.

No direito islâmico, o perjúrido não é considerado crime, punível pelas

sanções humanas, pois, assim como violar o jejum, não rezar ou entregar

parceiros a Deus, ele é apenas um sacrilégio, punível com a perdição eterna.

Nos dias de hoje, esse instituição de uma comunidade de pessoas qe

falam a verdade ofcialmente é rara já há bastante tempo. Em épocas mais

recentes esses notários se tornaram tão essenciais para o funcionamento dos

rtibunais qãdi, como o próprio qãdi. Na verdade, como são mediadores no

processo pelo qual as disputas sociais. Os notários fazem a evidência legal e,

assim, os depoimentos, também fazem a maior parte do julgamento.

Nos dias de hoje, a jurisdição dos notários se limita principalmente a

assuntos relacionados com matrimônios e herança, e seu poder para

transformar queixas em evidências é exercido, sobretudo, com respeito a

Page 9: O Saber Local

contratos matrmoniais, acordos de divórcio, reivindicaçnoes de partilhas de bens

e escrituras de um modo geral.

O saber ocidental distingue leis e fatos e possui procedimentos

destinsdos a evitar que um contamine o outro. No mundo islâmico uniu-se esses

dois conceitos para elaborar procedimentos que aprofundem essa conexão. O

testemunho normativo é crucial para a administração da justiça no mundo

muçulmano porque representa, dentro do possível, o “aquilestamos-e-ali-

estamos”, nos termos estabelecidos da verdade mais ampla, Haqq com Ha’

maiúsculo.

Quando nos voltamos para o direito índico e a ideia que lhe dá vida, o

dharma, os problemas de resumir todas uma sensibilidade são ainda maiores. O

direito índico no próprio ato de se universalizar se tornou singular naquilo que

descobria, segmentando-o em mútiplas manifestações hiperparticulares e

concretas de forma hipergeral e abstrata, um mundo de avatares. Sendo uma

coleção gigantesca e desorganizada de regulamentos obsessivamente

específicos por um conjunto de concepções irritantemente universais, de textos

irregulares, com objetivos diferentes, origens diferentes e de autoridade

desigual.

Em todas a localidades e em todos os grupos sociais de cada localidade,

o direito desenvolveu uma variante determinada e distinta. O direio era apenas

uma das muitas expressões do mundo índico.

A medida em que ia sendo divulgada a alta cultura índica, de forma

assimetrica, o direito índico era disseminado primeiro pela índia, depois pelo

Ceilão, Birmânia, Sião, Cambodja, Sumatra, Java e Bali, esses iam absorvendo

uma pluralidade imensa de costumes, símbolos, crenças e instituições locais.

No nível formativo de decisões, no como/portanto, via-se em toda parte

um catálogo desordenado de fórmulas individuais ou decretos que se

adaptavam ao lugar e modificavam-se de acordo com a necessidade. No nível

do fazer sentido, da coerência do se/então, estava por todas as partes a doutrina

védica ou do pipal, o ficus religiosa: uma doutrina cósmica do dever, na qual

Page 10: O Saber Local

cada espécie no universo, tem, por virtude de seu destino, uma tarefa ética a

cumprir e uma natureza a expressar, e as duas se confundem na mesma coisa.

“As cobras mordem, os demônios enganam, os deuses condecem, os sábios

controlam seus instintos, os ladrões roubam, os guerreiros matam, os

sacerdotes fazem sacrifícios, os filho obedecem suas mães”. É este o seu

dharma.

Traduzir dharma (e o seu oposto adharma) em inglês é uma tarefa ainda

mais difícil que traduzir haqq, pois o maior problema é a imprecisão do

significado. Dharma é intraduzível, pois não existe nenhum outro termo da

terminologia budista que seja tão amplo como dharma. As noções mais

relevantes de dharma para o direito é o dharmottama, o código de justiça mais

adequado para cada classe social. Pois o que mais distingue a sensibilidade

jurídica índica das outras é que o direito e a obrigação são considerados como

relativoas à posição na ordem social. Se o haqq negocia com o “é” e o “dever

ser” transformando a lei e uma espécie de fato, o dharma o faz transformando o

em fato em uma espécie de lei.

O direito se encontra no mundo como o sol ou o gado, a obrigação de

seus guardiões é protegê-lo, para que ele também os proteja. E o mais

importante desses guardiões era o rei. Ou seja, o dharma do rei é defender o

dharma.

O lugar que o rei ocupa na adjudicação índica é tão característico e

decisivo como o papel do testemunho normativo da adjudicação islâmica, pois é

ele que faz a conexão entre os paradigmas do se/então, que dão coerências às

coisas, que são relacionados com o dharma geral, e as determinações do

como/portanto de um governo, que produzem determinadas consequências.

Uma sociedade sem rei, é uma sociedade sem leis, adharma.

A problemática que no mundo inslâmico é expressa em termos da

confiabilidade das testemunhas, no direito índico é formulada em termos da

honradez dos reis. Aquilo que a mentira simbolizava em um deles, simbolizava a

desobediência ao direito no outro. Por sua vez, o dharma daqueles que se

dedica, ao conhecimento das leis é o de fazer com que o rei seja cauteloso, de

Page 11: O Saber Local

modo a cumprir o seu próprio dharma, protegendo os dharmas alheios e assim

mantendo toda a sociedade no equilíbrio cósmico que é o dharma própriamente

dito. O relacionamento entre aquele que exerce o poder, o que pune, e os

mestres do aprendizado é talvez o mais delicado e elusivo em toda a civilização

tradicional índica. É na visão dos balineses como a relação entre um estudante e

seu professor, um navio e seu capitão, um irmão mais jovem e um mais velho.

No caso da adjudicação prática, esse relacionamento era o ponto central da

questnao, em todos os níveis, desde o estado, até a aldeia. Logo, se algum

sábio menor persuadisse o rei a frear seus instintos e a seguir altruisticamente o

caminho de seu dharma, estaria ao mesmo tempo dando-lhe a possibilidade de

seguir um princípio estabelecido pela justiça e não um princípio arbitrário de sua

vontade.

Entre as formas de persuadir os monarcas, contra a sua arrogância

natural, dois instrumentos eram certamente os mais importantes, a codificação

do dharma real e a inclusão de conselheiros sábios nos tribunais reais.

A codificação do dever real de manter a ordem no que se refere ao

comportamento social punindo aqueles que perturbassem essa ordem. Tinha

como objetivo justificar o papel adjudicatório do rei, através de uma descrição do

modelo ético a que este estava circunscrito:

“Ele se esforça para estudar o Thammasat e manter

os quatro princípios da justiça, a saber: avaliar o

benefício ou o prejuízo de todos os serviços ou

desserviços que lhe são prestados, defender aqueles

que são honrados e honestos, adquirir riquezas

unicamente por meios lícitos, e manter a

prosperidade do estado também unicamente por

meios justo.”

No Oriente misterioso ou no Ocidente transparente, as contituições, não

são melhores que as instituições nas quais elas são escritas. Foi na composição

dos tribunais que se conseguiu criar algum instrumento jurídico para monitorar a

contade real já expressa em ações.

Page 12: O Saber Local

Os tipos de tribunais existentes em todo mundo índico eram tão diversos

e numerosos como as normas que tentavam aplicar, ou como os grupos a quem

essas normas deveriam ser aplicadas.

Enquanto o tribunal clássico islâmico tentava estabelecer a autenticidade

de um fato através de uma categorização do caráter moral, e tinha obsessão por

depoimentos, o tribunal índico tentava determiná-lo através de uma

categorização do tipo moral e era obcecado por vereditos.

“A essência da justiça indica tradicional não era

a imparcialidade dos procedimentos para

selecionar a evidência de erros específicos, e

sim a adequação dos julgamentos finais ao valor

total de vida de um indivíduo”

Mesmo com a colonização, em relação à índia e ao Sudeste Asiático como um

todo, o sistema jurídico não mudou tão absolutamente, sobretudo, nas formas da

sensibilidade jurídica. O direito pode ter se tornado secular, porém não perdeu

seu relacionamento com a vida local.

Os obstáculos à compreesão do significado de adat são tanto ou quanto

diferentes do haqq ou do dharma, mas não menos terríveis. Seja qual for a

opinião dos estudantes de direito comparativo tivessem sobre os conceitos que

regem a jurisprudência islâmica ou índica, sempre estiveram cientes de que

esses conceitos surgiram de tradições já desenvolvidas do pensamento literário

são difíceis de entender a partir as concepções da adjudicação que existem no

direito civil. O adat, no entendo, que foi encontrado perambulando entre as

rotinas cotidianas da vida nas aldeias, os tranquilizou por ser facilmente

reconhecível e confortavelmente familiar. Um conjunto de normas vernáculas, na

maior parte orais, eram os costumes.

Adat não é um conjunto de costumes e sim uma visão do mundo. É a

forma de vida do povo indonésivo que tem como base seu sentido de decoro. É

traduzir uma concepção de justiça como harmonia espiritual em uma concepção

Page 13: O Saber Local

decisionária. O julgamento é menos relacionado com a sistematização de

direitos e mais associado com à normalização da conduta.

A vida ritual popular é pontuada com símbolos prosaicos da profunda

interfusão das coisas: casamentos com arroz, limpezas da aldeia, refeições em

comunidade. O dever ser nesse caso é aquela visão se/então da coerência

coletiva é a perfeição silenciosa de um acordo coletivo. A importância do adat no

sentido de julgamento está na tarefa prática pelo menos buscar aproximar-se da

harmonia social e do decoro individual, e não abandoná-los em benefício da

dissonância e da vertigem social. Tem como elemento principal os mecanismos

utilizados nas tomadas de decisão procedimentos mais comportamentais e não

técnicas para identificar o que realmente aconteceu ou métodos para

estabelecer limites aos desejos dos magistrados ou do rei. A adjudicação do

adat relaciona-se com aquilo que nós ocidentais poderíamos chamar de

etiqueta. Essa unanimidade mental se manifesta não tanto no próprio veredito,

que é apenas um desenlance, e sim nos processos públicos nos quais é gerada.

Para que o decoro seja preservado, é preciso que sua preservação seja visível a

todos.

Os processos referido são sobretudo processos de discussão, um decoro

principalmente discursivo. Os ambientes onde esse tipo de processo acontece

são múltiplos, mas em todos eles se chegam à unanimidade publicamente

demonstrada, uma assembléia correta, de mentes corretas. Existe também uma

conexão com imagens de desastres naturais e espirituais que acontecerão se as

condições estabelecidas pela reunião final forem menosprezadas ou suas

conclusões ignoradas

Os vários processos de resolução de conflito nas diferentes sociedades - em

minha opinião, parecem não ter entendido bem qual é a questão: o primeiro

devido a uma visão demasiado autônoma do direito que o vê como um "sistema

jurídico" isolado e auto-suficiente, lutando para defender sua integridade

analítica frente ao desleixo moral e conceptual da vida cotidiana; e o segundo,

Page 14: O Saber Local

devido a uma visão demasiado política do direito, que o vê como um conjunto

pragmaticamente organizado de artifícios sociais para promover certos

interesses e gerenciar conflitos de poder.

Se os estilos de adjudicação projetados pelo haqq, dharma e pelo adat

podem ou não ser corretamente chamados de direito não tem grande

importância, embora o autor prefira chamá-los assim. O que importa é não

encobrir seu poder imaginativo, pois eles não só regulamentam o

comportamento, eles o constroem.

É a esse poder imaginativo, construtivo ou interpretativo, um poder que

tem suas raízes nos recursos coletivos da cultura e não da capacidade isolada

de indivíduos, que os estudos comparativos do direito, da justiça, de processos

dorenses ouu da adjudicação deveriam dar mais atenção. É neles que se

encontram os contrastes mais informativos.

Na conclusão deste ensaio, e em conexão com a questão mais ampla

sobre o “amálgama” jurídico no mundo moderno, é o complexo de

caracterizações e suposições, apresentadas através de imagens relacionadas a

princípios abstratos, que venho dando ome de sensibilidade jurídica.

O estudo comparativo do direito não pode ser uma questão de

transformar diferenças concretas em semelhanças abstratas. Não pode ser uma

questão de localizar fenômenos idênticos disfarçados sob nomes diferentes. E

quais forem as conclusões, estas devem ter como referência o gerenciamento

da diferença e não sua eliminação. Aconteça o que acontecer no futuro distante,

não apresentará uma curva ascendente de uma uniformdade jurídica que se

sobreponha às tradições ou que as torne internamente iguais, e sim uma maior

particularização dessas tradições. O universo jurídico não está sendo

comprimido em uma nola, e sim, expandindo-e e multiplicando-se.

O direito em vez de ser um simples apêndice técnico acrescentado a uma

sociedade moralmente pronta, é um conjunto imenso de outras realidades

culturais, uma parte ativa dessa comunidade. Haqq, dharma e adat ... e

direito ... dão vida às comunidades ondem existem, isto é, as sensibilidades que

Page 15: O Saber Local

eles representam o fazem, e as transformam naquilo que essas comunidades

são tanto juriicamente ou humanamente.

O direito é construtivo, constitutivo e formacional. Seja qual for a sua

origem, contribui para uma definição de um estilo de vida social. O direito é

saber local e não um princípio abstrato e que ele constrói a vida social em vez

de refleti-la, ou, melhor dito, de meramente refleti-la, levanos a uma visão pouco

ortodoxa sobre a metodogolia de um estudo comparativo: a tradução cultural. O

enfoque no estudo do direito comparativo passa a ser uma tentativa de formular

carcterísticas de um tipo de sensibilidade jurídica, em termos das

pressuposições, preocupações e estruturas de ação características de outra

sensibilidade jurídica.

Nos dias de hoje convivemos com demasiadas diferenças, que surgiram

rapidamente, no entanto, é no campo internacional que encontraremos essas

diferenças, mas especificamente nas interações entre o terceiro e o primeiro

mundo. Essa desordem atraente tem duas fontes principais: a persistência das

sensibilidade jurídicas formadas em épocas mais auto-suficientes e o confronto

dessas sensibilidades com outras que têm maior sucesso internacional. Em

todos os países do terceiro mundo a tensão entre as noções tradicionais sobre o

que é justiça e sobre as maneiras como ela deve ser exercida e noções

importadas que refletem de forma mais efetiva os modos de ser e as pressões

da vida modern, permeia todos os tipos de processos judiciais. Não é uma fase,

um desajuste transitório, e sim uma condição solidificada.

O autor adotou o termo pluralismo jurídico para apenas se comprometer

com a mera afirmação de que a veridade existe. Esses elementos não são

denominadores comuns no catálogo mundial, nem premissas universais, e sim

projeções de aspectos de nossas próprioa perspetivas do mundo. A questão

central que resulta desse florecimento do pluralismo jurídico no mundo moderno,

é saber como é possível entender a função do direito quando as suas várias

expressão se tornam tão irracionalmente misturadas. O ecletismo jurídico é

comum em todos os países em desenvolvimento.

Page 16: O Saber Local

Por mais difícil que seja incorporar esse ecletismo a categorias

estabelecidas e padrões ideais, não podemos simplesmente desprezá-lo como

um produto sem sentido. Essa dificuldade sugere que a incapacidade que a

polarização da prática do direito e do fato que se faz no mundo ocidental para

descrever o funcionamento da adjudicação em outras culturas.

A preocupação é saber como será o direito em um contexto onde aquele

“consenso sobre as coisas fundamentais”, estiver ausente. Uma hermenêutica

do pluralismo jurídico não significa a construção de algum esperanto milagroso

no qual qualquer coisa que seja diferente possa ser dita de maneira absoluta e

neutra.

Em relação ao caso da Indonésia, que sofreu invasões islâmicas,

chinesas, japoneses, holandesas e afins, que acabou sendo exposta a quase

toas as sensibilidades jurídicas, talvez com excessão da esquimó e africana.

Após a sua independência, as convulsões sociais e políticas que resultaram

dessa sucesão de invasão, reaçã e revolução em uma única década não fizeram

com que as concepções do direito ou sua prática se tornasse periférica ao

desenvolvimento social como um todo. Ao contrário, essas concepções

passaram a ser ainda mais centrais para esse desenvolvimento.

O que está em jogo e o que esses conflitos específicos evocam e

simbolizam, de um modo ou de outro, o tipo de sociedade que essas antigas

índias orientais vão ser daqui por diante. A disputa sobre a forma de conduzir a

adjudicação é mais profunda e ampla. Uma luta para desenvolver uma forma

plausível de viver. No entanto, uma coisa é certa, uma visão instrumental do

dieito que relacione unicamente com os meios e não com os fins, e que o

considere uma simples agência para tornar realidade valores sociais

estabelecidos em algum outro lugar, simplesmente não é válido.

O saber local e a visão do direito; a desagrefaçnao do direito e da

antropologia como disciplinas a fim de estabelecer a conexão entre elas através

de interseções específicas e não de fusões híbridas; a relativização da oposição

de leis/fatos; a concepção do estudo comparativo do direito como um exercício

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de traduçnao intercultural; a noção de que o pensamento jurídico é construtivo

de realidades e não um reflexo dessas realidades; a ênfase na tenacidade

histórica das sensibilidades jurídicas; a rejeição de uma visão segundo a qual o

poder prático do direito resulta do consenso social, a favor de uma que busca

significados; a convicção de que o pluralismo jurídico não é uma aberração

temporária e sim um elemento central no cenário moderno; e o argumento que o

auto-entendimento e o entendimento do outro estão tão internamente

conectados no direito, como o estão nos outros domínios da cultur.

Necessitamos, no final, algo mais que saber local. Precisamos descobrir uma

maneira de fazer com que as várias manifestações desse saber se transformem

em comentários umas das outras, uma iluminando o que a outra escurece.

É através da comparação de incomparáveis que compreendemos seja lá

qual for o coração a que conseguirmos chegar. A questão principal é se os seres

humanos, em Java ou em Connecticut, através do direito ou da antropologia, ou

de qualquer outras coisa, vão ser capazes de continuar imaginando forma de

vida que eles próprios possam viver na prática.