o romance desmundo, de ana miranda – entre a literatura e a
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Allan Valenza da Silveira
O romance Desmundo, de Ana Miranda – entre a Literatura e a História
Curitiba 2006
Monografia apresentada para a conclusão da graduação do Curso de História da Universidade Federal do Paraná, sob a orientação do Prof. Dr. Calos Lima.
Allan Valenza da Silveira
O romance Desmundo, de Ana Miranda – entre a Literatura e a História
Curitiba 2006
Agradecimentos
Agradeço ao professor Carlos Lima pelos vários anos de convivência e de orientação.
Agradeço aos meus colegas pelas imensamente produtivas conversas e discussões.
Agradeço ao Instituto do Patrimônio Histórico por não ter me tombado como
patrimônio histórico do Curso de História da UFPR.
i
Dedicatória
Dedico esse trabalho a todos que, envolvidos direta ou indiretamente, foram parte
importante do meu desenvolvimento enquanto acadêmico.
Dedico esse trabalho especialmente aos meus pais, Lucia e Eraldo, por insistirem
muito para a sua conclusão.
ii
Epígrafe
Apenas em sua consciência, o que em todo caso devia ser logo aniquilado. E se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido – se todos os anais dissessem a mesma coisa –, então a mentira se transformava em história, em verdade. “Quem controla do passado”, dizia o lema do Partido, “controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”. E no entanto o passado, conquanto de natureza alterável, nunca fora alterado. O que agora era verdade era verdade do sempre ao sempre. Era bem simples. Bastava apenas uma série infinda de vitórias sobre a memória. (Orwell, 2004, 36)
iii
Resumo A presente monografia se propõe a estudar a forma como a Literatura, dentro do gênero do romance, em especial, sob a forma do romance histórico, incorpora o discurso histórico e, dentro da peculiaridade da linguagem literária, refigura o passado. Para tanto, será feito um estudo histórico sobre as teorias que ligam a Literatura à História, iniciando esse estudo na linguagem literária do século XIX, quando surge o romance histórico propriamente dito. O estudo de Georg Lukács será tomado como ponto de partida para o estudo da linguagem e da forma de incorporação da história no discurso literário, em especial salientando qual o conceito de História que está presente nesses textos oitocentistas. O trajeto teórico desta monografia segue em direção das abordagens contemporâneas sobre a relação história-literatura, culminando nos estudos de Seymour Menton, sobre o novo romance histórico latino-americano, e de Linda Hutcheon, sobre a metaficção historiográfica, caminho marcado pela forma como Walter Benjamin aproxima a história da narração e como Hayden White radicaliza essa aproximação ao diluir as fronteiras entre as duas formas de narrar. O estudo desta monografia culminará com a análise do romance Desmundo, de Ana Miranda, buscando identificar nele como se dá o processo de refiguração do passado ao incorporar o discurso histórico sobre o início da colonização do território brasileiro, trabalhando com elementos canônicos de nosso imaginário sobre o passado, retirados de estudos clássicos e de documentos de época, ao mesmo tempo em que esses elementos são subvertidos no discurso literário. Palavras-Chave: Romance histórico; Desmundo; Ana Miranda.
iv
Sumário Introdução............................................................................................................... 1
Capítulo I O romance histórico tradicional e a ruptura da linguagem histórica............................ 4
Capítulo II O novo romance histórico e a metaficção historiográfica.......................................... 11 Capítulo III Entre ficção e história: Desmundo de Ana Miranda.................................................. 23 Conclusão................................................................................................................ 37
Referências Bibliográficas...................................................................................... 40
v
Introdução
A necessidade de diálogo com a história, para qualquer dos campos das
ciências humanas se faz como uma necessidade que, de um momento de tomada de
consciência sobre as suas limitações em relação à possibilidade de compreender
efetivamente a realidade do mundo. É pela história que se pode ser o movimento em
direção da construção de padrões de conhecimento, somente pelos quais, construídos
através de métodos específicos, que somos capazes de compreender e construir,
sistematicamente, a realidade humana (e, de forma mais ampla, toda a realidade, se
considerada sempre permeada pela visão humana). É somente através da história que
as realidades arbitrárias das condições de pensamento se explicitam.
A história forma, pois, para as ciências humanas, uma esfera de acolhimento ao mesmo tempo privilegiada e perigosa. A cada ciência do homem ela dá um fundo básico que a estabelece, lhe fixa um solo e como que uma pátria: ela determina a área cultural (...) em que se pode reconhecer, para esse saber, sua validade; cerca-as, porém, com uma fronteira que as limita e, logo de início, arruína sua pretensão de valerem no elemento da universalidade. (Foucault, 1999, 514) O romance histórico tem seu apogeu no século XIX , transformando-se em um
gênero difundido, servindo bem a certos propósitos da escola romântica.
A construção de um passado histórico e heróico encontrou na literatura um
meio de estruturação e divulgação de seus mitos. Não foi por acaso que grande parte
dos romancistas românticos ou eram membros efetivos dos quadros dos nascentes
institutos históricos, ou eram freqüentadores e colaboradores assíduos deles.
Num país sem tradições [Brasil após a independência], é compreensível que se tenha desenvolvido a ânsia de ter raízes, de aprofundar no passado a própria realidade, a fim de demonstrar a mesma dignidade histórica dos velhos países. Neste afã, os românticos de certo modo compuseram uma literatura para o passado brasileiro, estabelecendo troncos a que se pudessem filiar e, com isso, parecer herdeiros de uma tradição respeitável, embora mais nova em relação à européia. (Candido, 2000, 155)
Desta forma, o romance romântico, em especial o da vertente histórica é um
dos alicerces da formação da nacionalidade no século XIX, momento em que os
Estados nacionais estão sendo consolidados. Não nos cabe aqui estudar a fundo o
processo que deu origem ao romance histórico tradicional, pois nosso objeto de estudo
é o romance histórico contemporâneo, ou “novo romance histórico”, nas palavras de
Seymour Menton (s/d), como veremos a seguir, ou a “metaficção historiográfica”,
como a define Linda Hutcheon (1991), trabalhada ao final deste capítulo.
Faze-se necessário o trabalho com os elementos que compoem esse romance
hstórico tradicional, mas tendo sempre em vista que ele será utilziado como ponto de
diferenciação em relação aos trabalhos ficcionais contemporâneos. Para tanto, o
priemiro capítulo desta monografia comportará uma breve exploração do longo estudo
de Georg Lukács, La novela historica, no qual o autor aponta quais como se deu o
desenvolvimento do romance histórico no século XIX e quais eram os seus padrões
estruturais de trabalho. Em seguida, ainda neste capítulo, se fará uma abordagem das
modificações do pensamento histórico em relação ao seu objeto de estudo e em
relação à sua escrita, usando para isso o pensamento de Walter Benjamin (1994) e de
Hayden White (1995).
No segundo capítulo, a abordagem se dará em relação a uma abordagem teórica
sobre o romance histórico contemporâneo, a partir do texto de Menton (s/d), no qual
apresenta seis parâmetros para o trabalho com o novo romance histórico e o livro
Poética da pós-modernidade, de Linda Hutcheon, para quem, a aplicação das
categorias de paródia, intertextualidade, anacronismo e ........... são os pontos
fundadores desse novo texto ficcional de caráter historiográfico.
Ao final do estudo, no terceiro capítulo, será estudado um caso do novo
romance histórico, Desmundo, de Ana Miranda, publicado pela primeira vez no ano
de 1996. Nele se buscará explicitar como a literatura, enquanto construção de um
ambiente ficcional, utiliza os documentos históricos, apropriando-se de seus discurso,
e, ambiguamente, confirmando-o e subvertendo-o.
Capítulo I
O romance histórico tradicional e a ruptura da linguagem histórica
O estudo de Georg Lukács, La novela histórica (1971), publicado inicialmente
em alemão em 1955, procura definir os padrões de trabalho do romance histórico d
século XIX, buscando as suas gêneses nos romances de Walter Scott. A partir desse
estudo do romancista inglês, Lukács define quais seriam os elementos centrais da
estrutura de apropriação histórica realizada pela ficção do século XIX, em especial a
ficção romântica, mas chegando a abordar as questões referentes aos romances
históricos naturalistas (dentro da possibilidade de pensá-los como históricos, uma vez
que o tempo interno das obras quase sempre coincide com o texto presente
contemporâneo da escrita do romance) e os textos de caráter decadente. De acordo
com Lukács, esse romance que se desenvolve durante o século XIX trás para o século
XX os padrões de comportamento da literatura em face da história, sendo que seu
trabalho destina-se a esclarecer quais são as ações recíprocas “entre el espíritu
histórico y esa literatura que se afana por exponer la sociedad en su totalidad”
(Lukács, 1971, p. 10).
Há a necessidade, de acordo com Lukács, de que o romance, para poder ser
considerado como histórico, precisa apresentar uma característica especificamente
histórica: “el derivar de la singularidad históricade su época la excepcionalidad en la
actuación de cada personaje” (Lukács, 1971, p. 15). Desta forma, os escritores, a
exemplo de Fielding, se consideram, enquanto escritores, como historiadores da
sociedade burguesa (Lukács, 1971, p. 16).
Na parte destinada a Walter Scott, Lukács salienta alguns elementos que deram
o tom de seus escritos históricos, e que se tornaram padrões para o trabalho histórico
dentro do romance: a descrição aprofundada dos costumes e circunstâncias que
rodeiam os acontecimentos, a ação com caráter dramático e o papel central do diálogo.
Os heróis de Scott são sempre tipos-médios ingleses, com uma certa inteligência e
firmeza moral e dispostos, algumas vezes, ao autosacrifício (p. 32).
A apresentação de personalidades históricas centrais nunca se dá através de um
processo de construção. Ao utilizar uma figura já delimitada historicamente, Scott
nunca a constrói em seu texto; ele já a apresenta pronta. Esse é um dos pontos centrais
do romance histórico tradicional: as personalidades históricas não são construídas no
texto, é o texto que se passa ao redor delas.
A esto se debe que Scott nunca nos muestra cómo surge uma personalidad de importancia histórica. Siempre nos l apresenta ya conclusa. Conclusa, sí, pero no sin haberla preparado con todo cuidado. Mas preparación no es psicológica y personal, sino objetiva, histórico-social. Es decir: revelando las condiciones de vida reales, la creciete crisis vital y real del pueblo, Scott expone todos los problemas de la vida popular que desembocaron en la crisis histórica plasmada por él. (Lukács, 1971, p. 39)
Desta forma, o que podemos perceber é não é ficcionalizada a vida
(especialmente a vida interna, psicológica) de uma personagem historicamente já
conhecida. O romance histórico tradicional não coloca em cheque as convenções
aceitas sobre o passado, apenas as utiliza para ambientar suas histórias. Não há uma
crítica sobre o papel desempenhado por alguém em um dado momento, apenas a
construção de um ambiente ficcional que reproduza os parâmetros aceitos pela história
oficial. Não há um questionamento, também, do discurso utilizado para construir esse
passado. Utiliza-se, para o aparecimento das personalidades históricas dentro de um
romance, o mesmo método da história: a necessidade de comprovação. Não há uma
busca de preenchimento dos vazios das vidas das personalidades históricas, mas
somente a utilização do que lhes é atribuído consensualmente.
Las personas de una novela se ven forzadas a ser más racionales que las personas históricas. Aquéllas deben despertar a la vida, éstas han vivido. La existencia de éstas no requiere pruebas, por curiosos que hayan sido sus actos, mientras que la existencia de aquéllas necesita de un general consenso. (Lukács, 1971, p. 44) Desta forma, pouco importa, para o romance histórico, os grandes
acontecimentos históricos, pois ele deve, primordialmente, recriar, poeticamente, os
seres humanos que estiveram presentes nesses eventos, pois os eventos históricos,
assim como as personalidades históricas, já são dados consensualmente. E, como a
reconstrução é fiel e procura explorar cada detalhe do passado a partir de uma verdade
histórica reconstruída, o texto não tende ao paródico, mas a uma recriação poética do
passado. Disto, o que se retira é que as grandes personagens históricas ficam sempre
em segundo plano.
Lo importante es procurar la viencia de los móviles sociais e individuais por que los hombres pasaron, sintieron y actuaron precisamente del modo en que ocurrió en la realidad histórica. Y si bien a primera vista pueda parecer paradójico, depués de un examen más detenido es evidente que una de las leyes de la plasmación poética consiste en que para hacer patentes tales móviles humanos y sociales de la actuación, son más apropiados los sucesos aparentemente insignficantes que los grandes dramas monumentales de la historia universal. (Lukács, 1971, p. 44) Está é a diferença entre o romance histórico e a epopéia: enquanto nesta usa a
figura mais significativa como central, aquela relega a posições secundárias as
personagens centrais da história (Lukács, 1971, p. 49). Cria-se, no romance histórico
um “indivíduo histórico-universal”, representante geral de sua época e resultado das
forças sociais representadas na reconstrução ficcional, buscando a vida cotidiana das
personagens construídas.
El gran objetivo poético de Walter Scott en la plasmación de las crisis históricas en la vida del pueblo consiste en mostrar la grandeza humana que, sobre la base de una conmoción de toda la vida popular, se libera en sus representantes más significativos. Es indiscutible que sta tendencia en la literatura se debe, consciente o inconscientemente, a la experíencia de la Revolución francesa. (Lukács, 1971, p. 55) Entretanto, ao mesmo tempo que Lukács aponte para a necessidade de
recriação do passado, ele não descarta as necessidade de por que contar o passado. Há
uma motivação no presente para a reconstrução do passado. Então, esse passado do
romance histórico tradicional é uma “pré-história” do presente. Esse processo, aponta
Lukács, é também o processo da escrita da história. Se for escrita uma narrativa
(ficcional ou histórica), ela necessita ser identificável pelo presente, e, de alguma
forma, criar uma relação com ele, pois, caso contrário, a sua leitura estará
comprometida.
[Scott] es un patriota, y se muestra orgulloso de la evolución de su pueblo. Y esta acatitudes mprescindible para crear una novala histórica auténtica que haga vivir al lector el pasado en toda su verdad e realidad. Sin una relación vivida con el presente, la plasmación de la historia resulta imposible. (...) También ella [a realidade histórica] debe presentársenos con claridad y accesible sin gran erudición, a nosotros que pertenecemos a nuestro tiempo y a nuestro pueblo, de modo que nos podamos familiarizar con ella y no permacezcamos forzasamente frente a ella como frente a un mundo extraño e incomprensible. (Lukács, 1971, p. 58)
Entretanto, essa noção de que o passado é uma “pré-história” do presente, e precisa
com ele dialogar não compromete a fidelidade histórica da narrativa. A fidelidade
histórica está no grande panorama criado e que se impõe pela atuação dos indivíduos e
pelas bases socio-econômicas reais da vida do povo apresentadas no texto. E, neste
grande painel das condições de fidelidade histórica “poco importa que algunos hechos
o detalles particulares no correspondan a la verdad histórica” (Lukács, 1971, p. 66)
O que Lukács aponta para o romance histórico tradicional é uma forma de
pensar a própria história que está se manifestando nos textos literários. Um passado
que poderia ser apropriado pelo presente e reconstruído em sua verdade indiscutível.
Nas teses sobre o conceito de história (1994), Benjamin aponta para a história como
um jogo de ilusões que faz com que a visão que temos do passado nunca seja a
verdadeira, mas uma construção dentro de um jogo. Entretanto, a abordagem de
Benjamin dá à história (em especial ao materialismo histórico) uma função messiânica
de libertação.
Conhecemos a história de um autômato construído de tal forma que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado “materialismo histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se. (Benjamin, 1994, p. 222) Sobre a escrita da história, Benjamin aponta uma indiferenciação entre a escrita
ficcional e a escrita da história (Gagnebin, 1994). Isso se dá por uma capacidade
narrativa que vem se perdendo na sociedade burguesa, pela nossa perda discursiva
sobre o passado, que estava ficando restrito em esferas especializadas da história
metódica. Benjamin aponta que a construção lógica e articulada do passado não
significa conhecer o passado. Significa usar o passado para justificar um estado de
coisas. E esse estado das coisas é usado, de acordo com Benjamin, pela classe
dominante que é herdeira de todos os que venceram antes e que, pela tomada de
consciência disso, a classe oprimida poderá se desvincular dessa tradição de
comodismo de deixar a libertação para o futuro. Novamente a visão messiânica da
história.
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. (Benjamin, 1994, p. 224) A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento de barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (Benjamin, 1994, p. 225) Essa abordagem de Benjamin está em sintonia com a forma de pensar a história
proposta pela Escola dos Analles, que vê a história não mais pela abordagem
metódica, mas por um texto mais narrativo (Burde, 1983). Entretanto, essa abordagem
não significa uma ficcionalização da história, mas uma incorporação, pela história,
dos métodos narrativos da literatura. A necessidade de veracidade continua sendo o
alicerce central do discurso histórico, ainda que o seu método discurso tenha mudado.
Uma radicalização dessa abordagem se dá na obra de Hayden White (1995).
Nela, o fazer histórico não só é aproximado ao fazer literário em questão de estratégia
discursivas, mas o próprio resultado da composição do texto histórico passa a ter um
valor ficcional. A história passa a ser encarada como uma estrutura de linguagem, que
aponta para um questionamento do valor real do estudo histórico tendo em vista quais
são os resultados científicos que mais se assemelham a obras artísticas.
Nessa teoria trato o trabalho histórico como o que ele manifestamente é: uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa. (...) Eles comportam um conteúdo estrutural profundo que é em geral poético e, especificamente, lingüístico em sua natureza, e que faz as vezes do paradigma pré-criticamente aceito daquilo que deve ser uma explicação eminentemente “histórica”. (White, 1995, p. 11)
Pensadores da Europa continental – de Valéry e Heidegger a Sartre, Lévi-Strauss e Michel Foucault – expressaram sérias dúvidas sobre o valor de uma consciência especificamente “histórica”, sublinharam o caráter fictício das reconstruções históricas e contestaram as pretensões da história a um lugar entre as ciências. Ao mesmo tempo, filósofos anglo-americanos produziram uma alentada bibliografia sobre a posição epistemológica e a função cultural da reflexão histórica, bibliografia que, tomada em conjunto, justifica intensas dúvidas acerca do estatuto da história como ciência rigorosa ou arte genuína. (...) Em suma,é possível conceber a consciência histórica como um viés especificamente ocidental capaz de fundamentar retroativamente a presumida superioridade da moderna sociedade industrial. (White, 1995, p. 17-18)
Para White, a consistência do discurso histórico não está nos dados utilizados,
mesmo que fruto de uma pesquisa rigorosa. Assim como não se encontra no método
de trabalho com esses dados. A consistência se dá pela estruturação interna do texto,
pela coerência discursiva.
No exame de tais pensadores [Michelet, Ranke, Tocqueville, Burckhardt, Hegel, Marx, Nietzsche, Croce] discutirei a questão do que representa o enfoque mais correto do estudo histórico. A situação deles como possíveis modelos de representação ou conceptualização histórica não depende da natureza dos “dados” que utilizavam para escorar suas generalizações nem das teorias que invocavam para explicá-las; depende, isto sim, da consistência, da coerência e do poder iluminador de suas respectivas visões do campo histórico. (p. 19)
Então, White trabalha a história como um texto que mais do que veracidade,
precisa ter verossimilhança, ao exemplo da literatura. Aqui, o foco se inverte: não é
mais a literatura que está sendo pensada a partir dos padrões da história, como ocorreu
em relação ao romance histórico tradicional; aqui a história é que assume os
pressupostos da literatura, o que retira o valor dos resultados da história enquanto uma
ciência.
Capítulo II O novo romance histórico e a metaficção historiográfica
O passado realmente existiu, mas hoje só podemos “conhecer” esse passado por meio de seus textos, e aí se situa seu vínculo com o literário.
Linda Hutcheon
Menton (s/d) aborda em seu texto uma diferenciação entre os romances
históricos tradicionais e o novo romance histórico na América Latina. Para tanto,
aponta como suporte para o romance histórico tradicional especialmente o texto de
Georg Lukács. Em relação a esse estudo e Lukács, Menton apresente características
diferneciadoras entre os romances históricos tradicionais (produzidos principalmente
no século XIX) e a nova cara que esse gênero assume na América Latina durante a
segunda metade do século XX, em especial a partir do final da década de 1970. De
uma forma geral, qualquer romance pode ser considerado histórico, uma vez que
todos, de uma forma ou de outra, apontam para questões do ambiente social em que a
narrativa se passa. “En el sentido más amplio, toda novela es histórica, puesto que, en
mayor o menor grado, capta elambientesocial de sus personajes, hasta de los más
introspectivos.” (Menton, s/d, p. 31-32)
Em uma longa retomada, Menton faz um apanhado do passado do conceito de
romance histórico, iniciando no ensaio de Lukács (1971) e vendo como a definição do
que vem a ser romance histórico modifica-se com o avançar dos estudos sobre esse
gênero. As definições acabam por usar critérios arbitrários, como, por exemplo, a
separação entre o período de vida do autor e o fato narrado ou critérios muito amplos,
como considerar romance histórico textos em que o passado figure com muita
importância. Mesmo encontrando definições que poderiam ser aplicadas, elas sempre
apresentam problemas quando submetidas a verificações práticas.
La definición de Avrom Fleishman (...) es aún más arbitraria en el sentido de excluir todas las novelas cuya acción no esté ubicada en un pasado separado del autor por dos generaciones. En cambio, David Cowart propone una definición excesivamente amplia: “ficción en que el pasado figura con cierta importancia” (...). Joseph W. Turner propone todavía otro acercamiento al problema abogando por una definición tripartita: la novela histórica documentada, la disfrazada y la inventada. También sugiere la posibilidad de una cuarta categoría, la cómica (...). A definición más apropriada es la de Anderson Imbert, que data de 1951: “Llamamos ‘novelas históricas’ a las que cuentan una acción ocurrida en un época anterior a del novelista”. (...) Más difícil es justificar la exclusión de la categoría de novela histórica de aquellas novelas cuyos narradores o personajes están anclados en el presente o en el pasado reciente pero cuyo tema principal es la re-creación de la vida y los tiempos de un personaje histórico lejano. (...) Sería purismo exagerado negarles la clasificación de novela histórica. (Menton, s/d, p. 32-34)
Enquanto que o romance histórico romântico europeu foi influenciado
principalmente por Walter Scott, como aponta Lukács de acordo com Menton, na
América Latina, ao mesmo tempo que o Romantismo recebia essa influência do
romancista inglês, um outro conjunto de textos influenciava a escrita do passado
dessas nações: as crônicas coloniais. A criação ficcional que usou esse conjunto
durante o século XIX tinham um objetivo em sua escrita: a apropriação do passado era
usada para a criação de uma identidade nacional e a incorporação, no imaginário da
população das idéias novas e revolucionárias trazidas com o espírito da burguesia.
La novela histórica tradicional se remonta al siglo XIX y se identifica principalmente con el romanticismo, aunque evolucionó en el siglo XX dentro de la estética del modernismo (...). La novela histórica romántica el la América Latina, inspirada no sólo por Walter Scott sino también por las crónicas coloniales y en algunos casos por el teatro del Siglo de Oro. (…) Además de divertir a varias generaciones de lectores con sus episodios espeluznantes y la rivalidad entre los protagonistas heroicos y angelicales y sus enemigos diabólicos, la finalidad de la mayoría de estos novelistas fue contribuir a la creación de una conciencia nacional familiarizando a sus lectores con los personajes y los sucesos del pasado; y a respaldar la causa política de los liberales contra los conservadores, quienes se identificaban con las instituciones políticas, económicas y religiosas del periodo colonial. (Menton, s/d, p. 35-36)
Enquanto realização, esses romances históricos do século XIX acabaram por
gerar textos em que se acreditavam ter encontrado uma reprodução do passado tal qual
ele havia sido. Mesmo durante o período do modernismo, a busca da identidade
nacional volta a ser uma preocupação central, mas o enfoque sobre o que significa a
realidade social da nação muda de figura. De acordo com Menton, a ênfase recai sobre
as questões da oposição entre campo e cidade, no racismo, e na exploração sócio-
econômica. Entretanto, como essas questões, mesmo que possuam fundo histórico, são
abordadas quase que exclusivamente pelo tempo presente, o que faria com que,
mesmo que a questão histórica estivesse presente, ela não fosse o foco central para a
realização da estruturação narrativa.
Durante las tres décadas del predominio criollista (1915-1945), la búsqueda de la identidad nacional volvió a ser una preocupación importante, pero con énfasis en los problemas contemporáneos: la lucha entre la civilización urbana y la barbarie rural, la exploración socioeconómica y el racismo. Durante este periodo el número de novelas históricas es muy reducido, pero las pocas que se publican siguen el camino mimético de re-crear el ambiente histórico como trasfondo para los protagonistas de ficción. (Menton, s/d, p. 37)
De acordo com Menton, o primeiro novo romance histórico latino-americano é
O reino deste mundo, de Alejo Carpentier. Este livro foi publicado em 1949,
apresentando um aspecto desmistificador da história oficial. O apogeu desse modo de
abordagem se dará somente 30 anos mais tarde, a partir do ano de 1979, quando, cada
vez mais, romances começam a incorporar uma nova visão de trabalho com a história
(“La primera verdadera NNH, El reino de este mundo de Alejo Carpentier, se publicó
en 1949, el mismo año que O continente y 30 años antes de que empezara el auge de
la NNH.” (38-39)). A formação de uma nova forma narrativa que passa a utilizar a
história de uma outra maneira foi sintetizada por Menton em seis pontos, e que,
segundo o próprio pesquisados não estão todos presentes em todos os textos desse
novo romance histórico, mas que a presença de alguns deles em narrativas
contemporâneas apontam para essa nova visão sobre a história dentro do romance.
O primeiro ponto (p. 42) é, usando as idéias de Jorge Luis Borges, a
impossibilidade de se conhecer a verdade histórica ou até mesmo a realidade. Isso
gera um efeito de imprevisibilidade que o texto do novo romance histórico, mesmo
tendo um caráter normalmente cíclico acaba por dar à história (seja ao resultado do
estudo do passado, seja no desenrolar do fio narrativo).
Em segundo lugar (p. 43), no processo de recontar o passado, ocorrem
distorções conscientes, marcadas por omissões, exageros e anacronismos. O foco
tomado como base para ser distorcido é o discurso histórico oficial.
A utilização não somente dos cidadãos comuns nas narrativas históricas, mas
ficcionalização das personagens mais importantes e centrais nos discursos oficiais da
história é a terceira marca (p. 43) do novo romance histórico. Essa vertente opõe-se ao
caminho percorrido pelos historiadores, que, do século XIX (quando o foco central de
suas análises eram os grandes nomes de cada período) e que, seguindo uma linha mais
sociológica, acabam por incorporar no discurso histórico grupos considerados
anteriormente como insignificantes.
O quarto ponto (p. 44) do novo romance histórico são as intervenções que o
narrador faz no decorrer da narrativa e que abrem um especo no discurso para
questionamentos sobre a própria narrativa ou sobre o processo de narração. Essa é
uma características que, por mais que Menton aponto como sendo ligada a ficção
histórica, poderíamos afirmar que é uma tendência da literatura contemporânea como
um todo, como afirma Barthes (2003):
Durante séculos nossos escritores não imaginavam que fosse possível considerar a literatura (a própria palavra é recente) como uma linguagem, submetida, como qualquer outra linguagem, à distinção lógica: a literatura nunca refletia sobre si mesma (às vezes sobre suas figuras, mas nunca sobre seu ser), nunca se dividia em objeto ao mesmo tempo olhante e olhado; em suma,ela falava mas não se falava. Mais tarde, provavelmente com os primeiros abalos da boa consciência burguesa, a literatura começou a sentir-se dupla: ao mesmo tempo objeto e olhar sobre esse objeto, fala e fala dessa fala, literatura-objeto e metaliteratura. (p. 27-28) O quinto ponto é a intertextualidade existente no novo romance histórico. Todo
texto, segundo Menton, usando as palavras de Júlia Kisteva, “se arma como un
mosaico de citas: todo texto es la absorción y la transformación de otro. El concepto
de la intertextualidad reemplaza a aquel de entresujetividad, y el lenguage poético
tiene por menos dos maneras de leerse”. (p. 44) Esta característica, podemos,
novamente, aponta não necessariamente para uma questão específica do texto de
ficção histórica, mas para uma consciência geral na literatura contemporânea.
Entretanto, vale ressaltar que esse quinto aspecto cria a possibilidade para que o texto
da ficção historiográfica contemporânea não dialogue somente com os textos
formadores do discurso tradicional da história, mas também com outros textos que
formaram a visão sobre o passado e criaram a consciência do presente sobre o
passado, como os textos das diversas manifestações artísticas, em especial, o texto
literário.
E, o sexto e último aspecto é formado pelos conceitos bakhtinianos de
dialógico, carnavalesco, paródia e heteroglosia:
De acuerdo con la idea borgeana de que la realidad y la verdad histórica son inconocibles, varias de las NNH proyectan visiones dialógicas al estilo de Dostoievski (tal como lo interpreta Bajtín), es decir, que proyectan dos interpretaciones o más de los sucesos, los personajes y la visión del mundo.
El concepto de lo carnavalesco que desarrolló Bajtín en sus estudios sobre Rabelais prevalece en varias de las NNH: las exageraciones humorísticas y el énfasis en las funciones del cuerpo desde el sexo hasta la eliminación. (...)
Los aspectos humorísticos de lo carnavalesco también se reflejan en la parodia, uno de los rasgos más frecuentes de la NNH y que Bajtín considera “una de las formas más antiguas y más difundidas por representar directamente las palabras ajenas”.
El cuarto de los conceptos bajtinianos que aparece en la NNH es la heteroglosia, o sea la multiplicidad de discursos, es decir, el uso consciente de distintos niveles o tipos de lenguaje. (Menton, s/d, p. 44-45)
Ampliando a abordagem para diversas outras áreas além da literatura (trabalha,
também, com a arquitetura, pintura, vídeo, cinema, dança, música, urbanismo), Linda
Hutcheon (1991) aborda a forma de incorporação do discurso histórico e as novas
percepções sobre o conceito de história nas diversas áreas da arte contemporânea,
definidas sob a alcunha de pós-modernistas. O seu estudo busca encontrar o que há de
comum na forma de construção do discurso artístico pós-moderno definindo duas de
suas principais características: uma é uso ambíguo da história; a segunda é a auto-
reflexão.
“Pós-modernismo” na arte atual – seja no vídeo,na dança, na literatura, na pintura, na música, na arquitetura ou em qualquer outra forma de expressão – parece ser a arte paradoxalmente caracterizada pela história e também por uma investigação internalizada e auto-reflexiva sobre a natureza, os limites e as possibilidades do discurso da arte. (Hutcheon, 1991, p. 42)
Estas características estão presentes em toda a arte que poderia ser considerada
pós-moderna, apesar de poderem ser encontradas em obras anteriores ao pós-
modernismo. O que definiria a especificidade do texto pós-modernista seria a forma
de trabalho formal interno que, além de levar a marca da auto-reflexão, constrói uma
abordagem paradoxal da tradição, tanto artística como histórica, e que, ao mesmo
tempo em que usa e reafirma o passado, o distorce e subverte.
Em seu aspecto exterior, poderia parecer que o principal interesse do pós-modernismo são os processos de sua própria produção e recepção, bem como a sua própria relação paródica com a arte do passado. Mas quero afirmar que é exatamente a paródia – esse formalismo aparentemente introvertido – que provoca, de forma paradoxal, uma confrontação direta com o problema da relação do estético com o mundo de significação exterior a si mesmo, com um mundo discursivo de sistemas semânticos socialmente definidos (o passado e o presente) – em outras palavras, como político e o histórico. (Hutcheon, 1991, p. 42)
A forma da paródia cria, nas obras pós-modernas, uma postura política de
combate, por ao mesmo tempo construírem internamente, pelo reaproveitamento do
discurso histórico canônico, o fato histórico, mas o subvertem de várias formas, em
especial pela inversão de papéis e pelo anacronismo (que dá um dos aspectos mais
fortes da força política dessas obras), buscando definir o passado enquanto realidade,
mas uma realidade discursiva. “O pós-modernismo indica sua dependência com seu
uso do cânone, mas revela sua rebelião com seu irônico abuso desse mesmo cânone.”
(Hutcheon, 1991, 170) Em uma postura diferente da apontada por Hayden White, não
se questiona a validade do método de trabalho histórico, mas defende a incorporação
no discurso histórico dos elementos da narrativa. Isso cria, na narrativa histórica pós-
moderna não mais um desejo de recriar o passado como ele “foi exatamente”, e nem
de reinventá-lo a partir de uma “canabalização estética” ou de reduzi-lo a um pano de
fundo meramente figurativo (Hutcheon, 1991, 45), mas de refigurá-lo dentro de uma
possibilidade de criar um passado possível dentro da impossibilidade de compreendê-
lo como um todo. O discurso pós-moderno se assenta sobre as lacunas abertas do
discurso histórico, sem negá-lo, mas permeando-o, completando vazios por ele
deixado e, desta forma, forçando-o a se rever, seja dentro do discurso da arte, seja no
próprio discurso histórico que repensa seus próprios limites.
O que o pós-modernismo faz é contestar a própria possibilidade de uma (sic) dia conseguirmos conhecer os “objetos fundamentais” do passado. Ele ensina e aplica na prática o reconhecimento do fato de que a “realidade” social, histórica e existencial do passado é uma realidade discursiva quando é utilizada como o referente da arte, e, assim sendo, a única ‘historicidade autêntica’ passa a ser aquela que reconheceria abertamente sua própria identidade discursiva e contingente. O passado como referente não é enquadrado nem apagado, (...) ele é incorporado e modificado, recebendo uma vida e um sentido novos e diferentes. (Hutcheon, 1991, p. 45)
Cabe, agora, definir o que Hutcheon entende por ambigüidade, em especial a
gerada pelo uso da paródia. Para ela, a paródia é uma prática subversiva – longe da
imitação ridicularizadora – que tem por função redefinir, refigurar um objeto. Ao
mesmo tempo em que a paródia leva, necessariamente, a uma identificação do objeto
inicial – desta forma, reafirmando-o – ela o refigura de uma nova forma, apontando
para o seu não fechamento. Ela é, antes de tudo, uma prática social para se repensar.
Aqui – como em todos os pontos do presente estudo –, quando falo em “paródia”, não estou me referindo à imitação ridicularizadora das teorias e das definições padronizadas que se originam das teorias de humor do século XVIII. A importância coletiva da prática paródica sugere uma redefinição da paródia como uma repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança. Na metaficção historiográfica, no cinema, na pintura, na música e na arquitetura, essa paródia realiza paradoxalmente tanto a mudança como a continuidade cultural: o prefixo grego para- pode tanto significar “contra” como “perto” ou “ao lado”. (Hutcheon, 1991, p. 47)
O que será buscado na pós-modernidade é o que une a literatura com a história,
não a ponto de diluir as suas fronteiras, mas no intuito de estabelecer as duas formas
de expressão sobre o mundo como construtos de linguagem. Só é possível falar sobre
o passado através de uma linguagem. A diferença entre elas está nas convenções
aceitas por cada uma delas. Enquanto convenções, suas formas narrativas não são
acessíveis a qualquer usuário da língua, mas aos iniciados que tem condição de
perceber a tradição anterior ao texto do presente, encaixando-o dentro de um habittus
(Bourdieu, 2005). Desta forma, necessita-se, tanto para a história, quanto para a
literatura, leitores preparados a perceber mais do que meramente o conteúdo dos
textos, mas que sejam capazes de reconhecer as teorias e os diálogos implícitos em
suas estruturas. Elas, a história e a literatura contemporâneas, buscam um revisitar da
história oficial e canônica que, ao mesmo tempo, reconhece o texto canônico como
uma possibilidade, mas o nega enquanto totalidade. Elas buscam os vazios dessa
história (“Nas tradicionais histórias do século XVIII, onde estão as mulheres?”
(Hutcheon, 1991, 143)) e, neles, desenvolvem abordagens sustentáveis, que podem até
reafirmar o passado canônico, mas que necessariamente exigem que ele se refigure,
incorporando novos elementos ao campo discursivo por ele configurado (“Atualmente,
a história e a ficção compartilham uma necessidade de contestar esses [construir e
proporcionar auto-suficiência e fechamento a um mundo narrativo] mesmos
pressupostos” (Hutcheon, 1991, 146)). Essa busca por não fechamento retira o sentido
que a história, por exemplo, possuía no século XIX: retira dela a capacidade de
justificar o presente por um processo teleológico, pois aponta que o presente não é
resultado de uma linearidade da história, mas de um jogo de lembranças e
esquecimentos, de afirmações e lacunas, todos inseridos em um universo discursivo
sobre o passado cada qual definindo os seus próprios padrões de sustentação.
É essa mesma separação entre o literário e o histórico que hoje se contesta na teoria e na arte pós-modernas, e as recentes leituras críticas da história e da ficção têm se concentrado mais naquilo que as duas formas de escrita têm em comum do que em suas diferenças. Considera-se que as duas obtêm suas forças a partir da verossimilhança, mais do que a partir de qualquer verdade objetiva; as duas são identificadas como construtos lingüísticos, altamente convencionalizadas em suas formas narrativas, e nada transparentes em termos de linguagem ou de estrutura; e parecem ser igualmente intertextuais, desenvolvendo os textos do passado com sua própria textualidade complexa. (Hutcheon, 1991, p. 141)
A ficção pós-moderna sugere que reecrever (sic) ou reapresentar o passado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e teleológico. (...) Mas isso não quer dizer que a história e a ficção façam parte da “mesma ordem do discurso. (Hutcheon, 1991, p. 147-148)
Especificamente sobre as personagens utilizadas no romance histórico,
Hutcheon (1991) aponta algumas diferenças entre a metaficção historiográfica e o
romance histórico tradicional, abordado por Lukács (1971). Este apresenta a
possibilidade do romance histórico apresentar um microcosmo que, ao ser
generalizado, daria conta de explicar toda a realidade. As personagens seriam uma
síntese entre um indivíduo particularizado e uma postura social mais ampla, que seria
o reflexo de sua época. Na metaficção historiográfica, seguindo a postura de buscar as
lacunas, os espaços vazios do discurso, as personagens “são ex-cêntricos, os
marginalizados, as figuras periféricas da história ficcional. (...) Até os personagens
históricos assumem um status diferente, particularizado e, em última hipótese, ex-
cêntrico” (Hutcheon, 1991, 151).
Duas outras questões são fundamentais para a definição da metaficção
historiográfica: em primeiro lugar, ela utiliza, com o mesmo peso, no processo de
construção ficcional, a verdade e a mentira do registro histórico. A segunda questão é
trabalhar com os detalhes, com os fatos históricos tomados como referenciais dentro
da ficção, o que hipoteticamente permite ao leitor um processo de verificação do texto
ficcional e, desta forma, ampliando a força verossimilhante do texto pós-moderno.
Em primeiro lugar, a metaficção historiográfica se aproveita das verdades e das mentiras do registro histórico. (...) A segunda diferença está na forma como a ficção pós-moderna realmente utiliza os detalhes ou os fatos históricos. A ficção (...) costuma incorporar e assimilar esses dados a fim de proporcionar uma sensação de verificabilidade (...) ao mundo ficcional. (Hutcheon, 1991, 152)
Nesse processo de trazer para o texto ficcional os dados da história tidos como
parâmetros não ocorre, necessariamente, uma submissão da narrativa ficcional ao
dado histórico. A história canônica é freqüentemente subvertida quando se dá esse
processo de incorporação. Muitas vezes, diferentemente do que ocorria no romance
histórico tradicional, as personagens centrais da ficção são as grandes personalidades
históricas. Podem-se manter as datas, os eventos, os marcos, e subverter-se
diretamente a personalidade da figura histórica. Esse processo aponta para a auto-
refexividade da criação ficcional pós-moderna: ele questiona a própria noção de
história e indaga sobre qual o processo que utiliza-se para compreender o passado.
Isso faz com que a narrativa ficcional, ao mesmo tempo não aborde a histórica de
forma inocente, mas que a própria ficção não perca a sua autonomia, a sua
necessidade de ser auto-sustentável. O que ela faz é apontar para um universo maior
intertextual e interdisciplinar que caminham paralelamente com a imaginação no
processo de estruturação narrativa e, se localizados, modificam a própria leitura.
Em muitos romances históricos, as figuras reais do passado são desenvolvidas com o objetivo de legitimar ou autenticar o mundo ficcional com sua presença, como se para ocultar as ligações entre a ficção e a história com um passe de mágica ontológico e formal. A auto-reflexividade metaficcional dos romances pós-modernos impede todo subterfúgio desse tipo, e coloca essa ligação ontológica como um problema: como é que conhecemos o passado? (Hutcheon, 1991, 152)
A denúncia da metaficção historiográfica recai sobre uma abordagem realista
ingênua da representação do passado, apontando para o caráter discursivo tanto da
literatura como da história, cada qual com seus repertórios delimitados e
intercambiáveis. A metaficção historiográfica, ao trabalhar com o arquivo de cada
uma das formas de refigurar o passado, o parodia (uma vez que esse repertório é tanto
histórico como literário), como já foi apontado anteriormente, sempre com a ressalva
de que “a paródia não é a destruição do passado; na verdade, parodiar é sacralizar o
passado e questioná-lo ao mesmo tempo.” (Hutcheon, 1991, 165). Essas paródias
apresentam e questionam os limites que costuma-se usar para separar as duas
abordagens.
Embora o pós-modernismo, conforme o estou definindo aqui, seja talvez um pouco menos indiscriminadamente abrangente, a noção de paródia como abertura do texto, e não como seu
fechamento, é importante: entre as muitas coisas contestadas pela intertextualidade pós-moderna estão o fechamento e o sentido único e centralizado. Grande parte de sua provisoridade voluntária e deliberada baseia-se em sua aceitação da inevitável infiltração textual de práticas discursivas anteriores. A intertextualidade tipicamente contraditória da arte pós-moderna fornece e ataca o contexto. (Hutcheon, 1991, 166)
Para finalizar essa abordagem sobre a metaficção historiográfica e o novo
romance histórico, Marilene Weihardt aponta, em dois artigos (um apresentado para o
congresso da ABRALIC em 2005, Uma leitura de La nueva novela histórica de la
América Latina: 1979-1992 e outro Ficção histórica contemporânea no Brasil: uma
proposta de sistematização1), uma possibilidade de estudo sobre a postura do
historiador e do ficcionalista em relação ao seu compromisso com a verdade. O
primeiro tem a compromisso da verificação e da comprovação do seu discurso, uma
vez que a voz aplicada ao texto não é independente do seu ser, mas é a sua própria
voz; enquanto que o segundo não se liga com a necessidade de verdade em seu
discurso2.
Discute (em especial no segundo artigo apontado acima), também, uma
possibilidade de operacionalizar o estudo das obras brasileiras que se podem se
enquadrar na categoria de novo romance histórico, dividindo as obras ficcionais em
dez categorias, sendo que a primeira obra a fazer parte dessa seleção é Em liberdade,
de Silviano Santiago, publicada em 1981. As dez categorias são: Grandes painéis;
Lutas armadas; Momento histórico; Personagens históricas; Cotidiano; Anônimos no
registro histórico; Imigração; Olhar além das fronteiras; Personagens da história
literária; Diálogo com a história literária.
1 Ambos artigos foram cedidos pela autora. 2 Como apontamos no estudo de Linda Hutcheon acima, o escritor da metaficção historiográfica, ao mesmo tempo em que utiliza o arquivo de dados da história, não exclui de sua escrita a liberdade da ficção.
Nessas categorias, Weinhardt classifica o romance Desmundo (2005), de Ana
Miranda, como “Anônimos no registro histórico”. É deste romance que nos
ocuparemos no próximo capítulo.
Capítulo III Entre ficção e história: Desmundo, de Ana Miranda
O romance de Ana Miranda, Desmundo, traz, juntamente com a narração da
história de sofrimento de Oribela, personagem principal e narradora da história, um
fundo histórico que não é usado somente como ambientação. A presença da história na
narrativa tem uma função estruturante.
A partir de uma carta do Padre Manuel da Nóbrega ao então rei de Portugal,
El-Rei D. João, pedindo que o rei mandasse para a colônia do Brasil algumas órfãs, no
intuito de que, chegando às terras americanas elas pudessem casar com os colonos e,
desta forma, se colocasse uma maior moralidade nos costumes correntes nas partes
coloniais do império. Os colonos que para o Brasil foram estavam vivendo em luxúria
com as índias que encontravam e com elas viviam em concubinato e libertinagem.
Tendo como mote inspirador essa carta de Nóbrega, Ana Miranda produz o seu
romance sobre a vinda (possível) de mulheres para uma região do Brasil, destinadas a
casar com os colonos mais importantes. De um lado, o que se vê é a idéia
moralizadora que procurava refrear a libertinagem em que esses colonos viviam. De
outro, o interesse dos colonos de se casarem com as órfãs que vêm da Europa, não
pelo seu sentido moralizador, mas pelo endeusamento da pele branca, gerando
prestígio social e satisfazendo um desejo.
No primeiro aspecto, o moralizador, encontramos a sua fundamentação no
discurso histórico, tendo por base a carta de Manuel da Nobreza, inclusive um trecho
dela transcrita como uma das epígrafes do romance.
A’ El-Rei D. João (1552) JESUS Já que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra ha de mulheres, com quem os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos peccados, em que agora vivem, mande Vossa Alteza muitas orphãs, e si não houver muitas, venham de mistura dellas e quaesquer, porque são tão desejadas as mulheres brancas cá, que quaesquer farão cá muito bem à terra, e ellas se ganharão, e os homens de cá apartar-se-hão do peccado. (MIRANDA, s/p.) O texto de Manuel da Nóbrega, ao seu final, reproduz a assinatura de Manuel
da Nóbrega, o que acrescenta aspectos de veracidade sobre a sua existência.
Do outro lado, o dos prazeres e desejos, encontramos a sua fundamentação
sobre o discurso ficcional. A outra epígrafe é assinada por Fernando Pessoa.
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata, Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas, Levado, como a poeira, pelos ventos, pelos vendavais! (MIRANDA, s/p.)
Ambas as epígrafes, em páginas não numeradas do livro, possuem o seu valor,
ao apontar, cada uma para uma lado, a respeito de como está construído o romance. A
primeira epígrafe colocada com a indicação de Fernando Pessoa é escrito pelo seu
heterônimo Álvaro de Campos, e é um trecho de Ode Marítima. É possível que a
indicação “Fernando Pessoa” venha para dar tom central da narrativa: a ficção. E por
isso aparece primeiro. Fernando Pessoa, enquanto escritor, foi criador de uma grande
gama de heterônimos, ou seja, de seres autônomos se tomados pela sua
intelectualidade, desejos, visões de mundo, sensações, presos à pessoa de Fernando
Pessoa somente pelas suas inexistências físicas. Foi, então, um construtor de
personas. Criou, pela ficção, não somente obras ficcionais, mas a existência de
autores. Mais do que ser um autor, foi autor de autores. Colocar Fernando Pessoa
como epígrafe aponta claramente para a construção de obras ficcionais, nas quais,
nada é efetivamente real. Real no sentido de verdadeiro. A realidade não está mais nas
coisas, mas na própria construção que se faz das coisas. A construção de heterônimos
por Fernando Pessoa aponta para a própria falta de razão de pensarmos a necessidade
de uma existência como possuidora de um propósito.
A Ode Marítima usa como material a questão das navegações, as belezas
imaginárias sobre elas, os portos possíveis, assim como também a dor, a solidão, a
crueldade das viagens. Esse trecho, retirado de seu contexto aponta para uma viagem
para o desconhecido, para onde nem a imaginação havia sido capaz de viajar, aonde
tudo ainda é noite e escuridão, mas para onde não há outro remédio senão ir, com a
poeira jogada aos ventos.
A epígrafe seguinte, separada de uma página da anterior, aponta para a
fundamentação dessa ficção. Ela está construída sobre alicerces históricos. A distância
não é mais qualquer distância, é o Brasil. Mas isso só se sabe se o nome de Nóbrega
for um referencial existente no repertório do leitor, pois nesta epígrafe não se diz
nenhuma vez que a região falada é o Brasil. Entretanto, as ligações com a primeira
epígrafe são grandes. Grande é o poder definidor desse pequeno fragmento em relação
ao primeiro. O Longe, o Fora passam a se tornar mais palpáveis. Fala-se de uma
região que está subordinada a um rei (El-Rei D. João, que, se ocorrer a inexistência do
referencial, poderá ser tratado como um rei ficcional, mas que os atributos de rei não
poderão ser negados). Essa terra distante vive em uma atmosfera de pecado e
necessitando encontrar seu caminho para a salvação e para “Nosso Senhor”. A
oposição entre as noites fundas e misteriosas apontadas na primeira epígrafe e a
possibilidade de salvação pela pele branca das mulheres aponta um caminho: vai-se
para um mundo de sombras e lá espera-se pelo que o redima.
Esse processo de incorporar o discurso histórico se dá no decorrer de todo o
romance. A cada momento do romance, as personagens incorporam em seus discursos
fatos da historia do Brasil.
A estratégia de trabalho com esse discurso formador do país é reduzir a
realidade colonial brasileira dos séculos XVI e XVII a um pequeno povoado, no qual
encontra-se toda uma diversidade de habitantes, cada qual representando uma certa
categoria social ou cultural dentro do Império Português, em particular na formação
de sua porção americana. Desta forma, encontram-se a figura de aventureiros,
degredados, religiosos, mouros, judeus, índios e outros estrangeiros que dirigiram-se
para o Brasil, entrando, desta forma, na diversidade étnica e cultural que caracterizava
o território português do período das navegações.
Nesse mundo em formação, Oribela, uma órfã, é mandada de Portugal, junto
com sete outras, a mando da Rainha para se casarem com colonos no Brasil. No
caminho, os relatos sobre a viagem e os medos gerados por ela dão o tom da narrativa.
Uma outra personagem, mandada para o Brasil também é uma viúva, a Velha, que,
devido a sua experiência de vida, acaba por se tornar uma espécie de conselheira das
mulheres que foram mandadas para o degredo. Logo que chegam ao Brasil, hospedam-
se em uma pensão, enquanto os casamentos são arranjados. Oribela casa-se com
Francisco de Albuquerque, rico colono, proprietário de terras e escravos, mesmo que
ela só reconhecesse nele o que há de mais repugnante no mundo (seu cheiro, seu
aspecto físico, seu passado de viajante...). Ainda virgem, é forçada a manter relações
sexuais com Francisco na noite de núpcias. Após isso, ele a deixa livre para que,
quando ela tivesse vontade de se entregar para ele, que o viesse procurar, pois ele não
mais a forçaria. Oribela arquiteta planos para a fuga, buscando encontrar uma forma
de retornar para Portugal. Descobre um meio: entrar clandestina (fantasiada de
homem) em uma nau. Para tanto, precisava arranjar dinheiro para subornar as pessoas
que lhe deixariam embarcar. Durante meses (enquanto se esperava a chegada da nau),
junta dinheiro. Mas, ao fugir de casa e dirigir-se para embarcar, é enganada e quem
deveria ajudá-la rouba seu dinheiro e a estupra. Durante o estupro, seu marido,
Francisco, aparece, mata os estupradores e leva Oribela novamente para casa, onde a
prende com uma corrente nos pés. Ao sair para suas expedições de caca de índios,
Oribela é obrigada a viver o cotidiano da casa, durante o qual torna-se cada vez mais
íntima de Temericô, uma índia que trabalhava na casa, a quem ensina um pouco do
português e de quem aprende a língua indígena, além de receber diversos costumes.
Durante uma das expedições, Francisco de Albuquerque a leva junto. É quando vê
uma certa grandeza em seu marido, ao guerrear com os indígenas, mas esse
reconhecimento do valor do marido não é suficiente para gerar nela amor. Ao
retornarem, com milhares de índios cativos (que em parte seriam vendidos como
escravos, em parte seriam aproveitados nas terras do marido), Oribela sente pena
deles. As terras de Francisco de Albuquerque são atacadas pouco tempo depois e é
quando Oribela aproveita a confusão para fugir novamente. Torna a esperar por uma
nau que a pudesse levar para Portugal, mas desta vez esconde-se na casa de Ximeno
Dias, um mouro. Apesar dele se mostrar gentil, educado, instruído, de possuir livros
(que Oribela não vê sentido), os preconceitos dela sobre os mouros estão sempre a
fazendo desconfiar dele. A sua cor (vermelho), o seu corpo sem pelos, ao mesmo
tempo que a atraem, fazem com que ela reconheça nele a possibilidade dele ser o
diabo, mas por fim acaba por entregar-se a ele. Logo da chegada de uma nova nau,
meses depois de sua fuga, é descoberta pelo marido que vagava pela cidade a buscá-
la. Está grávida. É levada para casa, onde tem o bebê. Pouco tempo depois do
nascimento, Francisco de Albuquerque pega o filho e parte com ele para Portugal.
Oribela, não desejando nada daquele homem, queima a casa onde moravam com tudo
que nela houvesse. Parte, então, sozinha, para enfrentar a vida na colônia, um lugar
que não gostaria de estar, lembrando de Portugal, mas sentindo ódio de toda essa
situação.
A República de Platão
O romance Desmundo, de Ana Miranda, pode ser considerado como um
romance de formação. Narra a formação do país em seu momento mais incipiente.
Narra, com isso, a formação de seu povo de forma alegórica, apresentando a
diversidade e a mistura étnica e cultural que ocorre na colônia. O trabalho alegórico
realizado no romance aproxima-se da proposta apresentada por Platão, em seu texto A
República, quando pelos dizeres de Sócrates, em especial no livro segundo, quando
esta personagem narra, alegoricamente, a construção de uma cidade perfeita.
Inicialmente, Sócrates apresenta uma cidade composta por três habitantes, cada
um desempenhando uma função ligada a uma necessidade essencial ao ser humano.
Sócrates – Construamos, pois, em pensamento, uma cidade, cujos alicerces serão as nossas necessidades. Adimanto – Certo. Sócrates – O primeiro deles, que é também o mais importante de todos, consiste na alimentação. (...) O segundo consiste na moradia; o terceiro, no vestuário. (Platão, 65)
Entretanto, uma vez que a necessidade de seus habitantes não se reduziam
somente a essas questões, tornou-se necessário um aumento de habitantes, ampliando,
conseqüentemente, a complexidade das relações internas na cidade.
A cidade passa, então, a comportar todos os tipos de pessoas, cada uma
desempenhando a sua função para a constituição do todo. Há também, mais de uma
pessoa para cada função, pois, em uma cidade tão grande, com tantas pessoas, nem
sempre somente um indivíduo seria capaz de responder às necessidades de toda uma
coletividade.
Fato importante para Platão é a guerra. Uma vez que a cidade cresce, crescem
também as suas necessidades materiais. Necessita-se, então, de mais terras para a
produção. Como essa não seria a única cidade no mundo, próxima a ela é provável que
existisse uma outra cidade que necessitaria, também, ampliar suas posses devido à
ampliação de sua própria população. Seria praticamente inevitável que essas duas
cidades não entrassem em confronto. Disso deriva que a guerra seria algo justo, pois
estaria se fazendo para responder a necessidades reais (mesmo que criadas a parir de
desejos e paixões dos homens que lá habitam) de cada uma das cidades.
Sócrates – E a pátria, que até então era de tamanho suficientes para alimentar os seus habitantes, tornar-se-á demasiado pequena e insuficiente. (...) Então seremos obrigados a tomar as pastagens e lavouras dos nossos vizinhos? E ele não farão a mesma coisa em relação a nós, se, ultrapassando os limites do necessário, se entregarem, como nós, a uma insaciável cupidez? (...) Iremos então à guerra. (...) Ainda não chegou o momento de dizer se a guerra acarreta bons ou maus resultados. (Platão, 70-71)
Em Desmundo, o processo de construção da realidade no Brasil se dá forma
muito semelhante. Em uma cidade portuária é possível encontrar representantes de
todas as partes do Império Português.
Gente natural da terra e do reino, num quieto rumor de quem se ajunta, muito atentos, fêmeas, machos, os da terra de cor vermelha, em camisas e sem barba segurando seus machados de ferro ou ferramentas da lavoura ou remos, de pestanas raspadas, cafres machos ou fêmeas, os machos armados de dar temor e os demais portugueses, barbados, bragas, camisas rotas, uns
de botas, barretes, braguilhas sujas de tinta vermelha. Diziam que eram aquela gente tanoeiros, carvoeiros, caldeireiros, cavaqueiros, soldados, sangradres, pedreiros, ferreiros, calheiros, pscadores, lavradores, eiros, eiros, ores, ores, e tudo o mais necessário para se fazer do mato uma cidade. (Miranda, 25)
E, conforme a narração avança, vão aparecendo cada vez mais detalhados esses que
compõem a cidade, bispo, padre, mulheres, homens, comerciantes, marinheiros,
cristãos, judeus, mouros, escravos, muitos escravos. A partir desses exemplos de
habitantes, alguns nomeados, outros não, a maioria presa a funções específicas que
lhes atribuem um caráter de personagens-tipo, é que a ficção de Desmundo constrói
um projeto de uma cidade típica brasileira da época do início da colonização. Não há
necessidade de reconhecer a veracidade desta cidade, mas há, sim, a necessidade de
reconhecer que a sua construção se dá sobre os discursos que tratam sobre o que seria
essa população que veio para a colônia e aqui formou cidades e portos, produziu e
guerreou.
A guerra, entretanto, em Desmundo, não é travada somente com uma outra
cidade, como na alegoria platônica. É travada multilateralmente, contra vários povos,
todos eles cheios de cobiça e “cupidez”. Os portugueses precisavam estar sempre
preparados com armas, munições, fortificações (o que nem sempre acontecia), para os
ataques dos “malditos da Espanha e os perros lusitanos da França” (Miranda, 141).
Entretanto, não somente para se defender é que as guerras no Brasil ocorriam. Elas
eram tanto fruto das necessidades dos outros povos, como eram das portuguesas.
Essas necessidades se refletiam em ataques contra os povos indígenas, para capturar
escravos. Essas guerras contra os gentios era vista como uma guerra por necessidade
(econômica, de força de trabalho), apresentando a guerra como algo justo, pois os
colonos haviam sido atacados primeiro e então, teriam o direito de contra-atacar.
Fartar, rapazes! Vingança! Vilanagem!
Cercaram os cristãos a aldeia, com suas armas apontadas, postos em suas ordens e em suas capitanias, com muita soma de guiões e bandeiras, os selvagens dispararam flechas que tombavam uns dos animais e se fez uma tal grita que pensei estar na batalha do fim do mundo, por fora dos naturais andavam uma grande cópia de homens correndo de uma parte a outra com suas lanças nas mãos a meterem os naturais em cerco, mais uma fileira de gente, avançaram, entraram na aldeia, davam com as espadas nas cabeças dos velhos e das mulheres ou metiam uns disparos para todo lado, de modo que o terreiro deles se foi cobrindo de mortos, uns nus e vermelhos, outros de suas capas e cabelos negros e vermelho de sangue, de miolos e uns pedaços de gente, até o fim. (Miranda, 144)
O tratamento a que os indígenas são submetidos é até visto como algo penoso, mas
que não tem como ser evitado.
A pobre Temericô enxergava tudo, parada na mata feito uma pedra, depois de algumas fritas se curvou sobre a barriga e gemeu feito cantasse, uma coisa estranha de se ver. Mandei assentar ao meu lado, o que ela fez. Não sabia que brasil sente dor.
Os vaqueiros amarraram num fio os guerreiros brasilos, um atrás outro, escolhendo e metendo uma espada n peito dos que não tinham serventia, ou quebrando os miolos deles e veio o gentio assim puxado, um espetáculo tão piedoso que não havia bom homem ou mulher que não pasmasse de tristeza. Eram mil os cativados que iam agora servir de escravos. (Miranda, 144)
Essa incorporação da guerra de captura dentro da ficção histórica se dá em
duas perspectivas: de um lado, o aparecimento do relato histórico, enquanto uma
referência à imagem canônica, faz com que a história seja reafirmada, produzindo uma
representação sobre o passado no presente; mais do que negar o passado, a ficção
histórica contemporânea, como afirma Hutcheon (1991), busca retrabalhar as imagens
canônicas incorporadas no imaginário sobre o passado. Mas, ao mesmo tempo, ao
reafirmar o passado que de certa forma se tona oficial, a ficção histórica
contemporânea, como afirma Menton (s/d), traz uma grande quantidade de
anacronismos. Esses anacronismos são certas atualizações do discurso possíveis
dentro de um discurso não compromissado com a verdade histórica, como é o caso do
discurso ficcional. Ao apresentar a compaixão sobre o sofrimento do gentio, nas
palavras de Oribela, a ficção histórica que toma corpo em Desmundo aponta para uma
visão do futuro (contemporânea da época da produção do romance) sobre a
escravidão.
Subversão histórica – voz feminina
Esse anacronismo pode ocorrer de diversas formas. Seja pela incorporação de
elementos posteriores aos fatos históricos, como pode ocorrer pela voz narrativa.
Enquanto A República, de Platão, e narrada com uma voz masculina, por Sócrates, o
que também ocorre com a totalidade dos textos históricos brasileiros dos séculos XVI
e XVII, nesse romance ocorre uma subversão desse padrão histórico na voz narrativa.
Uma história narrada com voz feminina, o que aponta para as categorias de Menton
(s/d), quando ele define que uma das características do novo romance histórico é de
subverter a história canônica, mas que, como foi apresentado acima, liga-se mais
consistentemente às idéias de Hutcheon (1991), quando afirma que a metaficção
historiográfica possui um caráter ambíguo: de um lado ela reafirma o cânone, e de
outro ela o subverte.
Em Desmundo, ocorre a confirmação do cânone, uma vez que a narrativa é
centrada sobre as imagens canônicas do que seria o Brasil nos séculos XVI e XVII,
concentrando essas imagens em uma alegoria de cidade. Mas, ao colocar o foco
narrativo sobre a voz de uma mulher, ele subverte a história, dando capacidade de fala
a grupos marginalizados do passado. Novamente, o anacronismo. Não se busca afirma
aqui que esses grupos marginalizados no discurso histórico não pudessem ser
conscientes, em suas épocas de marginalização, sobre as condições materiais e
espirituais que os cercavam e que não pudessem construir um discurso coerente sobre
a sua própria condição. Mas essa possibilidade de consciência não permanece no
discurso histórico, ela não possui poder suficiente, em sua época, para tornar-se um
discurso válido (Foucault, 2000), sendo, então interditados.
A apropriação do discurso histórico não se dá pela reprodução do ambiente
original de onde ele saiu, nem sequer pela reprodução de sua voz original. Ela se dá
por uma criação ficcional que incorpora o discurso dentro de uma realidade possível
para o contexto a que se refere.
Incorporação do discurso histórico
Um dos momentos que se percebe claramente a incorporação do discurso
histórico e a forma como ele é transformado em uma questão de uso cotidiano dentro
do texto, é quando Oribela, convivendo com uma escrava começa a aprender a fala
dos gentios e, ao mesmo tempo, ensina português para a índia. A sua surpresa fica por
conta de Oribela perceber que a sua escrava não consegue falar algumas palavras
devido a sua incapacidade de pronunciar algumas letras.
Tinha Temericó muita graça quando falava, era compendiosa na forma da linguagem, copiosa no orar e lhe faltavam algumas letras, dizia Pancico o nome de Francisco de Albuquerque e Rorenço e Rodigo aos vaqueiros, ria do nome Janafonso. Cruz, era curuzu, selvagem era sarauaia, sapato era sapatú, cabra era cabará. E cantava canções. (Miranda, 2005, 120)
Essa passagem remete a um trecho do texto de Gabriel Soares de Sousa,
quando, em seu texto, Tratado descritivo do Brasil em 1587, afirma que os indígenas
não terem três letras no alfabeto, F, L e R, para dizer que são carentes de Fé, de Lei e
dum Rei (Moises, 1990, 61)
Em outra cena na qual Oribela foge de casa, após um ataque que haviam
sofrido, e esconde-se na residência de um mouro, Ximenos Dias, local em que passará
alguns meses, vê-se algumas imagens típicas do pensamento português sobre os
árabes. Mesmo que Ximeno não possuísse a característica física moura (a pele
queimada, os olhos e cabelos escuros), ele é objeto de interesse para os olhos de uma
mulher confusa e, mais do que portadora de valores religiosos católicos, ela traz
consigo a visão de mundo construída por esses valores, em especial as imagens sobre
outras culturas construídas por eles.
O mouro possui uma descrição que enfatiza a sua cor, em especial o cabelo
avermelhado e a pele rosada. Ximeno incorpora em si toda a diversidade de visões
sobre o que era o mouro: tipo de religião, conhecimento, erudição, sensualidade e a
encarnação do demônio.
E me fez ele [o mouro] subir uma escada que dava num quarto pequeno com vistas sobre o mar, onde havia uma cama, uma mesa com um livro e mais outros numa ordem serena, celebrassem em si um grande saber, de um reino que não é deste mundo mas de outro, ornado e composto pelos sábios, pontífices, profetas, todos subidos no mais alto grau, de que sento querer cair de joelhos. O que ensinavam estes livros? (...) Quis saber o contido no livro preto de letras em ouro, disse o Ximeno Dias ser aquele um com as peregrinações pelo mundo, riscados numa carta a baías, montes, lagos, os peixes avoadores, os monstros marinhos, promontórios, canais, coroas, arrecifes, as aldeias de naturais, os fortes, rios, as ilhas, que formavam a costa do Brasil, as anotações das léguas, dos alísios. (Miranda, 2005, 168) Estava a casa de Ximeno escura, os lumes apagados, uma luz de lua peregrina pintava às avessas um mundo, do escuro ao claro, assim como o sol fizera às sombras, fazia a lua às luzes e avistei no catre o Ximeno adormecido, desnudado de suas vestes, descalçado dos sapatos, eram seus pés de gente, fosse naquela noite, nas outras não se sabia. Mas assim o vi. Era tal, que atraiu em tudo o que há em mim e lhe fui sentir a boca, ele despertou e me tomou em seus braços num desatino e grandíssimo ímpeto, correndo as mãos pelo meu corpo, dizendo suas falas de amante, a beijar meus beiços e outras obras bem desconcertadas, famintos afagos a soltar o meu gibanete de homem, arrancar colchetes, desatar os cordões da camisa, a me querer deixar feito as naturais, a mim dava um gosto bom, fino punhal frio arrastando em toda a pele, a querer sentir que ele se fazia em mim, um prazer perseverante tragando minhas tentações para vencer minhas malícias, inferno glorioso tirado de meu corpo, de minha natureza humana, minha perdiçõe e minha alma indo à luz, portas se abrindo, minha boca bem aventurada, ele um todo poderoso a me desfalecer, demandar, huhá hio hio, digo que sim, re-si, eia, sus, lago dos cães, hua, hua, ala ala, saca saca, hao, hao, mas ele disse que não, e foi dizendo que não e não, que ia causar um grandíssimo mal, tamalavez, ieramá muitieramá, se vos eu arrebatar, de maneira que estando ele sobre mim vi entre seus cabelos os chifres, endureci a seus suspiros e me desfiz do encantamento. (Miranda, 2005, 179)
Essa incorporação inverte de certa forma a visão apresentada por Gilberto
Freyre (2000) sobre a moura sensual. Para Freyre, os portugueses, quando chegaram
ao Brasil encontraram as índias nuas que, pelo seu aspecto físico se assemelhava ao
imaginário português sobre a mulher moura. Essa é uma das explicações que Freyre
dá para a grande capacidade que os portugueses tiveram ao chegar nas terras de além-
mar.
Quanto à miscibilidade, nenhum povo colonizador, do modernos, excedeu ou sequer igualou nesse ponto aos portugueses. Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contato e multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firma-se n posse de terras vastíssimas e competir com povos grandes e numerosos na extensão de domínio colonial e na eficácia de ação colonizadora. A miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os portugueses compensaram-se da deficiência em massa ou volume humano para a coloização em larga escala e sobre áreas extensíssimas. Para tal processo preparara-os a íntima convivência, o intercurso social e sexual com raças de cor, invasora ou vizinhas da Península, uma delas, a fé maometana, em condições superiores, técnicas e de cultura intelectual e artística, à dos cristãos louros.
O longo contato com os sarracenos deixara idealizada entre os portugueses a figura da moura-encantada, tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em misticismo sexual – sempre encarnado, sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos rios ou nas águas das fontes mal-assombradas – que os colonizadores vieram encontrar parecido, quase igual, entre as índias nuas e de cabelos soltos do Brasil. Que estas tinham também os olhos e os cabelos pretos, o corpo pardo pintado de vermelho, e, tanto quanto as nereidas mouriscas, eram doidas por um banho de rio onde se refrescasse sua ardente nudez e por um pente para pentear o cabelo. Além do que, eram gordas como as mouras. Apenas menos ariscas: por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam se entregando, de pernas abertas, aos “caraíbas” gulosos de mulher. (Gilberto Freyre, 2000, 84)
Esses diálogos que ocorrem com os textos sobre o passado histórico brasileiro
também ocorrem com a história da literatura. Em uma subversão de uma imagem
canônica da literatura brasileira sobre a formação do povo brasileiro, o romance
Desmundo se apropria da forma de romance de formação, usada por José de Alencar,
em Iracema. Neste, uma índia, belíssima, pari um filho de um português, também
belo, e o lusitano, no intuito de dar melhores condições de educação e civilidade, leva
o filho para a Europa, deixando a índia, Iracema, abandonada no Brasil. Ela acaba
morrendo de tanto sofrer pela separação. Este romance, alegoricamente, narra o
nascimento do primeiro brasileiro (no texto, o primeiro cearense), filho de português
com índio, e educado cultamente na Europa.
Já em Desmundo, ela, Oribela, uma portuguesa órfã e de pouca beleza vem
para o Brasil e aqui acaba por se casar com um colono português, Francisco de
Albuquerque, que já havia incorporado grande parte dos costumes da terra, tornando-
se praticamente um bruto, um selvagem (a sua falta de civilidade é reforçada ta,bem
pelo seu aspecto grotesco, com barba grande e sujo). Ele, ao final da narrativa, ao
desistir de conquistar pelo menos respeito por parte de Oribela, mulher que lhe havia
traído e que havia engravidado de outro homem (ainda por cima um mouro), ao nascer
do filho ele toma o filho de sua mãe e parte com ele para Portugal, abandonando
Oribela (imagem de uma Iracema traidora, impura) a praguejar contra o seu marido e
contra à terra em que é condenada a viver.
Como diz Linda Hutcheon (1991), essa é uma da formas usadas para criar
condições para que os excluídos, ou melhor, os ex-cêntricos (mulheres, escravos,
marginais) consigam se inserir em um processo de construção discursiva sobre o
passado, questionando as imagens canônicas sobre ele.
A paródia é mais do que uma simples estratégia essencial pela qual a “duplicidade” se revela (...); é uma das principais maneiras pelas quais as mulheres e outros ex-cêntricos usam e abusam, estabelecem e depois desafiam as tradições masculinas na arte. (...) A importância da paródia [em relação ao romance A cor púrpura, de Alice Walker] só fica evidente quando o leitor percebe a inversão de sexo e raça efetuada por sua ironia: o mundo em que depois ela vive feliz para sempre é feminino e negro. (Hutcheon, 1991, 175)
Nada de belo é apresentado nessa imagem da subversão de Iracema. Bem pelo
contrário: o que ocorre é a dessacralização do imaginário do Romantismo, apontando
um diálogo com o passado, mas buscando livrar-se de suas imagens estereotipadas.
Conclusão
O romance histórico, enquanto um ambiente ficcional, possui algumas
especificidades, que o diferenciam de uma abordagem histórica stricto sensu.
A revisão desenvolvida nesta monografia aponta para as formas como a
literatura incorpora a noção de história, em especial, qual o conceito de história que é
produzido nessa incorporação. No tocante ao romance histórico, narrativa que
incorpora o passado como matéria essencial à sua estrutura, e que mantém relações
mais intrínsecas com a produção do conhecimento histórico, a noção do que é história
tem mudado de forma substancial no decorrer do tempo, desde que essa forma de
narrar passou a ser mais difundida na literatura.
O início do que se convencionou a chamar de romance histórico se deu com a obra
de Walter Scott, na Inglaterra (modelo reproduzido de maneira geral por toda a América
Latina), ainda no século XVIII e, até meados do século XX, o conceito de história aplicado
nessas narrativas era o mesmo. Esse romance histórico tradicional produzido nesse período
trabalha com as situações históricas como ambientação para as suas narrativas, usando
pessoas comuns que incorporam em si as variações do período em que viveram. Ou seja,
elas se tornam personagens-modelo que representam todo o contexto social em que vivem.
Essa mesma narrativa que coloca o foco sobre as personagens comuns, faz com que as
grandes personalidades históricas somente figurem como pano de fundo. Desta forma, o
que se obtém como resultado é uma preservação dos cânones sobre o passado, preservados
e reafirmados. Não há uma humanização das personalidades históricas, assim como
apresenta personagens atuando como era de ser esperado em um contexto do passado já
dado e conhecido, pelo menos de forma genérica, pelos leitores. As personagens históricas,
como encarnam o “espírito de uma época”, acabam por reafirmar os ideais escolhidos como
“corretos” para se pensar aquele momento no passado. E, como se tem um presente
pensando um passado dado como correto e afirmável, ocorre, como era de se esperar, que o
passado fosse usado como uma justificativa de um estado de coisas.
No decorrer do século XX, a noção sobre história muda, e, juntamente com ela, a
forma de apresentar a história no texto literário. As experiências modernistas de certa forma
buscaram desenvolver mais uma abordagem estética sobre a linguagem do que um
posicionamento social, e, quando se comprometiam com a sociedade, estavam mais
próximos de um questionamento do presente do que uma construção narrativa sobre o
passado. Mas, a partir do final dos anos 1940, mais especificamente com o romance O
reino de este mundo, de Carpentier, publicado em 1949, o romance latino-americano passa
por uma mudança de rumos. Não se tenha procurado um outro passado, mas se busca uma
história diferente no passado. O novo romance histórico, também podendo ser denominado
de metaficção historiográfica, trabalha com uma outra noção de história, não mais pautada
pelas questões factuais e de verdade, mas sobre a possibilidade deixada nos vácuos do
passado. Desta forma, é uma narrativa que se utiliza do cânone histórico (mesmo que seja
sobre a história da própria literatura) e o subverte apontando várias lacunas em seu
discurso. Além dessa busca dos “ex-cêntricos”, o novo romance histórico inverte o discurso
hegemônico de várias formas, seja pela carnavalização, seja pela paródia ou pela subversão
da voz narrativa.
O texto de Ana Miranda, Desmundo, se enquadra nessa linhagem do novo romance
histórico. Nele encontramos a subversão dos cânones sobre a história colonial brasileira, em
especial do primeiro século da colonização. Em primeiro lugar, o que se nota é a motivação
do texto: uma carta do Padre Manuel da Nóbrega que pedia que o rei português enviasse
para a colônia americana mulheres para casar com os colonos. O romance se constrói como
se a carta houvesse sido atendida e as mulheres enviadas. Em todo o romance, diversos
discursos canônicos sobre o que era o Brasil no século XVI são incorporados e narrados
como se fossem fatos comuns da vida cotidiana das pessoas que vivem na cidade litorânea
onde se passa a história (como a falta de F, L e R nas línguas indígenas, que se encontra em
um texto de época escrito por Gabriel Soares de Sousa e aparece como uma constatação de
uma falta de capacidade de uma índia de pronunciar algumas palavras do dia-a-dia –
palavras com conotação bem diferente das apontadas por Gabriel Soares de Sousa). Lá se
encontra, também, um microcosmo do Império Português, com várias personagens
representando a diversidade de povos e culturas que convivem juntas dentro das regiões
coloniais do imenso reino que era Portugal. A subversão já aparece quando se coloca como
narradora, ou seja, como a voz expressiva daquele mundo, uma mulher. Além disso, várias
outras histórias, como a moura sensual, os relatos de viagens, as entradas, as guerras contra
os índios, e diversos episódios da história literária, como o mito de nascimento do primeiro
brasileiro presente no romance Iracema, de José de Alencar, são questionados.
Entretanto, o que deve ficar claro, ao trabalhar com uma produção que usa a história
como foco, é qual a postura que cada um, o ficcionista e o historiador, possui sobre a
abordagem do passado. O historiador, ao falar sobre o passado, está subjugado ao crivo da
verdade, da necessidade de comprovação. Já o ficcionista, pode se apropriar do passado e,
sobre ele, produzir uma história possível, mesmo que ela apresente questionamentos sobre
as lacunas do estudo histórico, uma vez que o ficcionista não compartilha da mesma
postura do historiador sobre a verdade. Por isso que, antes de um romance ser histórico, ele
precisa possuir uma unidade interna coerente e convincente, para, depois, poder ser
colocado sob o crivo de uma realidade externa a ele, a realidade histórica.
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