o regresso das musas - antónio galrinho · memória, elas são as nove protetoras das artes....
TRANSCRIPT
O REGRESSO DAS
MUSAS pintura de
António Galrinho
Casa da Cultura - Espaço das Artes 23 setembro - 6 outubro
CONVITEAntónio Galrinho e a Artiset convidam-no/a a estar presente na inauguração da exposição de pintura
O REGRESSO DAS MUSAS no dia 24 de setembro pelas 17h no Espaço das Artes - Casa da Cultura
Porquê as musas?
As musas da Grécia Antiga são belas raparigas no final da adolescência ou belas mulheres acabadas de entrar na idade adulta; além de beleza, possuem graciosidade, inocência e pureza. Ao longo de dois milénios e meio, os criadores de arte foram essencialmente homens, que se encantavam com a beleza dos corpos, dos rostos, dos gestos e dos atos das musas. Contudo, alguns assumiam como musas raparigas ou mulheres verdadeiras que admiravam, por quem se apaixonavam ou com quem eram casados.
Até meados do séc. XIX, sobretudo em abordagens clássicas e românticas, com suporte académico ou não, são frequentes as solicitações feitas às musas, quer por artistas, quer por filósofos, no sentido de estas lhes trazerem inspiração e luz, com vista à realização de boas obras ou ao despertar de boas ideias. Curiosamente, inspirar é o primeiro ato que fazemos enquanto seres vivos, começando de imediato a… respirar; só depois abrimos os olhos para ver a luz.
O pensamento científico sobrepôs-se aos pensamentos religioso e mitológico, é certo que com todas as vantagens que daí advieram. A razão sobrepôs-se ao dogma, mas também a todo um imaginário baseado na tradição e na lenda, sendo também certo que daí vieram desvantagens. As musas deixaram de ser solicitadas, foram postas de parte e até ridicularizadas. Quase levadas à extinção, sobreviveram sobretudo nas páginas dos poetas e nas telas dos pintores, onde podemos marcar encontro com elas sempre que o nosso imaginário estiver para aí virado.
O ânimo e o estímulo para criar surgem de algum modo ou vêm de algum lado. Existirão teorias cientificamente consistentes para explicar o fenómeno da criação artística, mas o efeito dessa explicação é, para quem cria, nulo. O apelo interior de artistas e de pensadores para criar não se compadece com as certezas da ciência, já que aquilo que os move serão sempre as dúvidas. Mesmo que ninguém sinta agora que a sua inspiração venha das musas da mitologia, não se deixa de questionar de onde e como vem ela, afinal. Seja das musas ou dos musos que nos rodeiam, ou de um conjunto de fatores que se reúnem, fruto de experiências, vivências e saberes, o fenómeno da criação artística está sempre envolto em magia e encanto. Ora, magia e encanto não faltam às musas.
Sobre esta série
Antes desta série, composta por doze quadros, apenas tinha realizado uma tela com a temática do nu, por me ter interessado essencialmente por rostos, fossem eles retratos ou não. Contudo, bem vistas as coisas, a temática aqui não será o nu mas as musas em si, que, ao longo dos tempos, foram frequentemente representadas nuas ou seminuas, com os atributos (objetos e símbolos) que lhes são associados. Tais atributos variam, chegando a confundir-se e a sobrepor-se, podendo o artista incluir alguns da sua lavra. Os que surgem nesta série são referidos na legenda de cada tela.
Neste conjunto de obras faço regressar as musas ao convívio dos artistas e dos apaixonados pela arte. Não percebi se as procurei ou se elas vieram ter comigo, mas o que é certo é que nos estamos a dar muito bem. Quando com elas deparei achei-as tristes e desanimadas pelo desprezo a que foram votadas durante século e meio. Essa situação tocou-me de tal modo que não achei, na altura, outra maneira de as representar senão tristes e desanimadas, sendo com essa intenção que comecei a trabalhar na série.
Contudo, ao longo do percurso de um ano, as reflexões e as pinceladas desobedeceram muitas vezes à intenção inicial. As musas não estavam a ficar tristes e cabisbaixas como as encontrei, como que sobrepondo a sua vontade à minha. Anuí de bom grado, respeitando o seu desejo. A pincelada também não ficou tão larga, gestual e rude como inicialmente previra. Como tal, as musas ficaram muito coloridas; algumas têm os olhos bem vivos e brilhantes, outras esboçam sorrisos, e as que revelam alguma dor já me confidenciaram que estão a fazer de conta. Na realidade, estão muito felizes por eu as ter libertado da catacumba escura onde foram colocadas, como se fazia aos criminosos. Cada uma de nove telas representa uma das musas clássicas gregas. Os atributos que lhes são associados estão pintados no seu corpo, numa estética meio naífe, meio tribal, vagamente inspirada nas pinturas corporais da tribo de l’Omo, da Etiópia. Três outras telas, formando um tríptico, representam as três graças. Não possuem atributos específicos, estando pintadas com uma cor base, a que se sobrepõem linhas de uma outra cor. Uma explicação mais detalhada surge na legenda das graças.
O papel da modelo
Um papel muito significativo no processo foi desempenhado pela Catarina, modelo que
trabalhou neste projeto, entendendo e concretizando plenamente o que se pretendia na
abordagem a fazer a cada uma das musas e graças. Muito jovem, mas muito atenta e
dedicada, com o corpo e a atitude certas, pedi-lhe não só que interpretasse o papel de
cada musa e graça, mas também que fosse ela a pintar as formas / atributos que lhes
estão associados. Decidi manter as cores e as misturas de tintas que ficaram nas suas
mãos no decorrer da pintura corporal.
Uma metamorfose plena de magia e encanto acontecia em cada sessão: a rapariga
transformando-se em modelo, a modelo em pintora do seu corpo e depois em musa ou
graça, que logo ganhava caráter próprio. Esse resultado foi possível devido a uma
entrega séria, atempadamente refletida e com trabalho prévio realizado. Com expressões
de rosto e gestos adequados, e delicadeza na colocação das mãos, sempre expressivas,
a Catarina materializou com excelência cada uma das musas e graças, pelo que o
resultado final muito lhe fica a dever. De salientar que contribuiu também com sugestões,
que aproveitei quando as achei mais válidas do que as minhas. O registo fotográfico
utilizado neste processo permitiu explorar diversidade de posições, de ângulos e gestos.
Entretanto, as musas (com exceção de uma delas) e as graças precisavam de penteados
clássicos, que eu não quis perfeitos de modo a manter o caráter de abandono de todas
elas, ainda não plenamente integradas no mundo do artista por serem recém-chegadas
do esquecimento. A Olímpia, amiga de longa data, fez os penteados como lhos pedi.
Portanto, com a conjugação dos esforços de três pessoas, aquilo que estiver menos bem
nos quadros, apenas ao pintor se deve, pois foi ele quem os executou e, na generalidade,
os concebeu.
Acerca das musas e das graças
A decadência da arte explica a redução da vida amorosa à vida erótica quando a humanidade sofre o cansaço de imaginar.
Álvaro Ribeiro
Todos sabemos que a existência do mundo dito Ocidental, a Europa, está intimamente
ligada às culturas e mitologias grega e romana: ao classicismo. Ao longo da história da
Europa o retorno periódico aos temas da antiguidade foi uma constante. Com diferentes
aprofundamentos e perspetivas foi assim no Renascimento, no Barroco, no Neoclássico e
no Romantismo até à atualidade.
Aprisionadas e fechadas nas salas dos museus, por um excesso de zelo do positivismo,
sintoma da decadência do Ocidente, não suspeitaríamos da existência das Musas se não
fosse a sua música que transborda com alguma estridência como um grito de alerta. Ali
estiveram até há bem pouco tempo sem vida nem movimento aprisionadas e infelizes
sujeitas ao espartilho dos horários. Filhas de Zeus e de Mnemósine, que é a deusa da
memória, elas são as nove protetoras das artes. Todavia quando interrogamos quais as
artes? descobrimos que sete são artes da palavra e da música: comédia, hinos, poesia,
música, poesia lírica, história e canto e mais duas, a dança e a astronomia e astrologia na
mesma musa. A escultura, a pintura e a arquitetura parecem estar incluídas nesta última,
a Urânia. Mais próximo das coisas do espírito, o elemento ar que é onde o som dos
fonemas e das notas existe, é dominante. Inefáveis e fugidias, elas são seres aéreos, das
brisas e dos sopros, inspirando os artistas que têm inteligência, ouvido e sensibilidade.
Talvez, quem sabe, por intervenção da mãe que é a memória, em lembrança, recordação
ou saudade, consciente e atormentada com tanto esquecimento das suas filhas pelos
humanos, convocou-as para numa reunião familiar e decidirem qual a estratégia a adotar.
Saturadas de tanta mudez e violência, estabeleceram um objetivo que foi regressarem
progressivamente às oficinas dos artistas tocando o coração aberto e o espírito livre de
alguns.
Porque uma oficina é um templo, assim aconteceu no templo de António Galrinho. Figurar,
desenhar, pintar ou esculpir estes seres imponderáveis, invisíveis, mas audíveis foi o
difícil desafio posto a si próprio pelo pintor.
Artista também da palavra e Mestre de Aikido, talvez a mais bela das artes marciais do
Budo, onde é determinante a harmonia dos movimentos entre adversários, como se a luta
fosse uma dança, seria portanto incapaz de ceder e de se interessar pela corrente
pictórica que disseca e autopsia o corpo inerte e frio. António Galrinho escolheu uma
modelo jovem que numa movimentada dramatização pudesse convocar as deusas e
fosse um hino à vida. As musas, que na antiguidade clássica, sem falso pudor ou aviltante
exposição, cobriam parte da sua nudez apolínea, com leves tecidos que são o símbolo,
de que este corpo de carne não termina, não se esgota, na pele, seria inaceitável serem
representadas hoje do mesmo modo. Por isso o artista em substituição dessa parcela de
tecido e dos símbolos que lhes estão associados aventurou-se com a colaboração do
modelo na descoberta, de uma escrita nova, de um novo alfabeto, que contaminasse a
rigidez do discurso académico do classicismo. Nas visitas que efetuei durante a
elaboração dos quadros, ao templo do artista, foi-me particularmente grato assistir à
progressiva despersonalização da modelo, que numa inocente, alegre e espontânea ação
se pintou a si própria dando lugar, deixando transparecer, as musas fugidias.
O pessimismo, ou sentimento trágico, é doença social que resulta de uma cultura com falta de imaginação.
Álvaro Ribeiro
As graças, meias-irmãs das musas porque também são filhas de Zeus mas desta vez da
deusa Euronima elas gostam de estar presentes com os seus atributos e qualidades em
qualquer obra de arte. Inocentes e descontraídas, vivem em ambiente natural, a floresta,
como que a lembrar que a natureza é a matriz, a obra-prima, onde se pode ir buscar a
inspiração. Três são as cordas da lira de Apolo, três são também as graças. Alegres e
conversadoras estão sempre juntas e ligadas por gestos graciosos e, embora existam
outras figurações e organizações possíveis, elas aparecem nas imagens mais antigas
com as duas graças laterais viradas para o observador e a do meio de costas para o
observador. Com a idêntica orientação no olhar a do meio assume-se deste modo como
guia do artista que, conversando com as outras duas, o convida a segui-la em frente
aventurando-se no caminho desconhecido da floresta.
Esta insistência nas tríades indica que a criação se faz em três momentos ou por três
forças. Nada se cria com pares de opostos irredutíveis, terá que haver sempre uma
terceira força que harmoniza e concilia. Associadas a esta imagem estão também as
ideias de verticalidade e de equilíbrio de justeza e perfeição. Por isso são as deusas dos
banquetes onde, segundo Platão, se conversa sobre o amor, o amor à arte, neste caso…,
que é a terceira força, a do meio, a conciliadora. Não podemos deixar de lembrar como
exemplo a pintura do banquete, agraciado pelas Musas, do Grupo do Leão pintado por
Rafael Bordalo Pinheiro onde está entre outros ilustres o setubalense João Vaz e onde
poderia também estar o nosso António Galrinho, caso fossem contemporâneos.
Luís Paixão
CALÍOPE, a da bela voz Musa da eloquência e da poesia heróica Atributos: tábua com poema, coroa e peitoril de flores. Acrílico sobre tela, 74x60
CLIO, a proclamadora Musa da história Atributos: livro aberto, trombeta, coroa de louros e espiral. Acrílico sobre tela, 82x54
ERATO, a amável Musa da poesia lírica Atributos: pandeireta, coroa de rosas, pétalas e folhas. Acrílico sobre tela, 74x60
EUTERPE, a doadora de prazeres Musa da música Atributos: flauta dupla e flores. Acrílico sobre tela, 90x70
MELPÓMENE, a poetisa Musa da tragédia Atributos: colar de flores e máscara triste. Acrílico sobre tela, 74x54
POLÍMNIA, a dos hinos Musa da geometria e da agricultura Atributos: formas geométricas e cacho de uvas. Acrílico sobre tela, 90x70
TÁLIA, a que faz brotar flores Musa da comédia Atributos: máscara alegre, flores e folhas de hera. Acrílico sobre tela, 74x60
URÂNIA, a celestial Musa da astronomia e da astrologia Atributos: sol, lua e globo celeste. Acrílico sobre tela, 96x60
GRAÇA da esquerda Sem atributos específicos, parcialmente pintada em tons de verde. Acrílico sobre tela, 120x60
GRAÇA do centro Sem atributos específicos, parcialmente pintada em tons de rosa. Acrílico sobre tela, 120x60
GRAÇA da direita Sem atributos específicos, parcialmente pintada em tons de azul. Acrílico sobre tela, 120x60
AS GRAÇAS HESITANTES Tríptico abordando o tema clássico As Três Graças
Cada graça toca noutra, deixando nela a marca da sua mão e passando a sua cor para as linhas do peito e das coxas. Tradicionalmente as graças são representadas em dança lenta, tocando-se nas mãos ou nos braços e sem se olharem; aqui tocaram-se e afastaram-se, hesitantes nos movimentos de dança que estão prestes a iniciar.
Agradecimentos
Catarina Nunes Dedicada modelo neste projeto
Olímpia Júlio Pela realização dos penteados
Luís Paixão Pelo texto “Acerca das musas e das graças”
e pelos esclarecimentos prestados
Artiset Associação de Artistas Plásticos de Setúbal