o registro do patrimônio imaterial
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Estudo de caso sobre a proteção do patrimônio imaterial brasileiro.pesquisa vinculada ao iphanTRANSCRIPT
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o Registro do patrimnioimaterial e o reconhecimentoda diversidade tnica e cultural
ia:
ID-ria
FABOLA NOGUEIRA DA GAMA CARDOSOl
,no
Re-101.
11noResumoEste trabalho uma leitura da maneira como tem sido conduzida a inclusodas minorias no campo da poltica federal de Registro de Bens Culturais deNatureza Imaterial realizada pelo IPHAN. Por meio das consideraes de al-guns processos de registro procura-se entender a forma como o Estado buscao reconhecimento de sua diversidade tnica e cultural. Considera-se que areviso e a recuperao dos sentidos que orientaram a prtica de preservaono Brasil, at chegar noo de patrimnio imaterial, de fundamental im-portncia para o entendimento de como essas questes foram incorporadas nopas. O artigo traz tambm um histrico da poltica federal de preservao noBrasil, desde a dcada de 1930, quando esta poltica foi oficialmente institu-da, at a dcada de 1980.
fade:
Iven-
l SRJ
Bra-
aaus ed.Rio
ropo-spole:
1 Fabola Nogueira da Gama Cardoso antroploga. bolsista do PEP/lPHAN/U ES-CO, na Gerncia de Registro do Departamento de Patrimnio [material, Braslia/DF. Trabalhorealizado sob a superviso de Ana Cludia Lima e Alves, Gerente de Registro do DPIIIPHAN.Artigo elaborado em novembro de 2006.
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FABloLA NOGUEIRA DA GAMA CARDOSO
o conceito de patrimnio foi formulado em fins do sculo XVIII,tendo como pano de fundo a questo nacional. At meados do sculo
XX, os critrios que orientavam a seleo de bens para constituir o
patrimnio nacional baseavam-se nas categorias ocidentais de his-
tria e de arte. Constitudo apenas de bens materiais, o patrimnio
relacionava-se ideia de monumento seguindo critrios de grandeza
e excepcional idade, sendo selecionados, na Europa, e sobretudo na
Frana, vestgios e obras de arte da Antiguidade clssica e edifcios
religiosos e castelos da Idade Mdia. No Brasil, a noo de patrimnio
voltava-se para os exemplares da arquitetura colonial (SANT'ANNA,
2001). A partir da dcada de 1960, novos conceitos foram introduzi-
dos na prtica de preservao e, com isso, observou-se um processo
de expanso tipolgica na noo de patrimnio. Com base no concei-
to antropolgico de cultura e nas concepes da nova historiografia,
o patrimnio foi "acrescido de novas categorias que ultrapassam a
materialidade dos bens e remetem a processos e prticas culturais de
outra natureza" (Idem, p. 152).
Com nfase no valor da diversidade cultural, e tendo como foco
os processos nos quais os grupos sociais, em diferentes contextos
culturais especficos, produzem, mantm e valorizam os bens cul-
turais, a salvaguarda do chamado patrimnio imaterial tornou-se
central em muitos pases. No Brasil, a poltica de salvaguarda do
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patrimnio imaterial est organizada em trs frentes: identificao,
registro e apoio e fomento. Diante da grandeza territorial do pas
e da riqueza de seu patrimnio, a formulao e a implementao
dessa nova poltica de patrimnio esto orientadas por diretrizes
que buscam promover: i) o reconhecimento da diversidade tnica
e cultural do pas; ii) a descentralizao das aes institucionais
para regies historicamente pouco atendidas pela ao estatal; iii)
a ampliao do uso social dos bens culturais e a democratizao
do acesso aos benefcios gerados pelo seu reconhecimento como
patrimnio cultural; iv) a sustentabilidade das aes de preserva-
o por meio da promoo do desenvolvimento social e econmico
das comunidades portadoras e mantenedoras do patrimnio; e v)
a defesa de bens culturais em situao de risco e dos direitos re-
lacionados s expresses reconhecidas como patrimnio cultural
(SANT'ANNA, 2005, p. 11).
Neste artigo, procuro realizar uma leitura do modo como est sendo
conduzido o registro de bens culturais de natureza imaterial, criado
em 2000 pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
(lPHAN). Dando continuidade aos estudos que desenvolvi no primeiro
ano do PEP/IPHAN/UNESCO, procuro aprofundar as reflexes sobrealguns aspectos da concepo e do exerccio dessa poltica de patri-
mnio. Foi dada nfase compreenso da atuao hoje, em relao
aos grupos minoritrios e, mais especificamente, em relao aos povos
indgenas, afro-descentes e imigrantes.
Por meio da.. consideraes de alguns processos de registro queme parecem exemplares para a discusso, procuro entender, princi-
palmente, a forma como o Estado est buscando o reconhecimento
da diversidade tnica e cultural existente no territrio brasileiro. A
reviso e a recuperao dos sentidos que orientaram a prtica de
preservao no Brasil, at chegar noo de patrimnio imaterial,
FABloLA NOGUEIRA DA GAMA CARDOSO
de fundamental importncia para o entendimento de como essas
questes foram incorporadas no pas. Por esse motivo abordado
tambm o histrico da poltica federal de preservao no Brasil des-
de a dcada de 1930, quando esta poltica foi oficialmente instituda,
at a dcada de 1980.
A poltica federal de preservao no Brasil,entre as dcadas de 1930 e 1980
A institucionalizao da proteo do patrimnio no Brasil se deu em
1937, quando o Estado se mobilizou para iniciativas, em curso desde a
dcada de 1920, que visavam proteo de monumentos e obras de arte.
O Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (SPHAN), hoje
IPHAN, foi criado pela Lei n 378, de 13 de janeiro de 1937. Em 30 de
novembro, as aes de proteo foram regulamentadas pelo Decreto-
Lei n 25, que instituiu o ato administrativo do tombamento (CHU-
VA, 1998; FONSECA, 2005). Introduzida por um grupo de intelectuais
vinculados ao movimento modernista, essa prtica de preservao do
patrimnio cultural foi importada do modelo francs, que, calcado em
valores histricos e culturais ocidentais, tinha a sua base, principal-
mente, no Estado e no valor da nacionalidade.
FONSECA (2005) buscou analisar a trajetria da poltica federal de pre-
servao no Brasil a partir da anlise das diferentes concepes de patri-
mnio cultural, dos processos de atribuio de valor e do estabelecimento
de critrios de seleo de bens em dois momentos importantes: o momento
fundador do SPHAN, nas dcadas de 1930/1940; e o momento renovador,
nas dcadas de 1970/1980, quando foram criados, em 1973 e 1975,respec-
tivamente, o Programa Integrado de Reconstruo das Cidades Histricas
(PCH), junto Secretaria de Planejamento da Presidncia da Repblica
(SEPLAN), e o Centro Nacional de Referncia Cultural (CNRC).
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No primeiro momento (1930-1970), conhecido como "fase he-rica", a instituio voltou-se para a preservao de objetos de arte
e do patrimnio edificado. Em relao ao processo de atribuio
de valor, a orientao do antigo SPHAN inseria-se na tradio eu-
ropeia de constituio dos patrimnios nacionais. Como Mrcia
CHUVA (1998) assinala, as coisas patrimoniais restringiram-se a
monumentos e peas de arte "cuja origem remontava a um tempo
histrico determinado, que se pretendia sacralizar" (1998, p. 42). Ao
lado dos valores da histria e da histria da arte, estava a considera-
o do carter excepcional do valor de um bem para a nao e para a
identidade nacional, em oposio aos valores e padres estrangeiros
hegemnicos. Havia, ento, uma preocupao com a construo de
uma cultura nacional autntica.
Nesse perodo, foi designada como patrimnio histrico e ar-
tstico nacional, basicamente, a arquitetura tradicional luso-bra-
sileira do perodo colonial, considerada, na poca, como sendo
a "representante genuna das origens da nao" (CHUVA, 1998,
p. 37). Foi a noo de civilizao material, elaborada por Afonso
Arinos de Mello Franco, que fundamentou a leitura dos monu-
mentos e objetos, justificando os tombamentos da fase herica. O
conceito de civilizao material possibilitava uma leitura dos bens
"a partir de sua relao com o processo histrico de ocupao das
diferentes regies brasileiras" (FONSECA, 2005, p. 107). Desse
ponto de vista, "Afonso Arinos considerava que a presena por-
tuguesa pre, minava sobre as influncias negra e indgena, que,
praticamente, no haviam deixado vestgios materiais significati-
vos" (CHUVA, 1998, p. 107).
Como observa Maria Ceclia Londres FONSECA (1996),a propostade construo de um patrimnio histrico e artstico nacional, reco-nhecida no meio intelectual como uma questo de interesse nacional,
FABloLA NOGUEIRA DAGAMA CARDOSO
no era percebida pela sociedade de ento como uma necessidade a seratendida, nem constitua uma demanda apoiada por outros setores que
no a elite culta (e brancaj. A atribuio de valor histrico reprodu-
zia, na se1eode bens para comporem o patrimnio nacional, critrios
excludentes da histria factual oficial, centrada no evento poltico e
nos feitos das classes dirigentes. Na fase herica, ento, a atuao do
SPHAN pode ser caracterizada como uma atividade elitista e pouco
representativa da pluralidade cultural.Nas dcadas de 1950 e 1960, verificou-se um processo de rede-
finio da problemtica brasileira em termos de oposio ao colo-
nialismo e vinculao entre identidade nacional e Estado nacional
(ORTIZ, 2005). Com isso, a afirmao dos direitos das minorias
comeou a alcanar o campo das polticas culturais. Alm disso, as
grandes transformaes ocorridas no pas, como a industrializao,
a crescente urbanizao e a interiorizao, estimulada, especial-
mente, pela construo de Braslia, levaram a poltica de preserva-
o a recorrer a novas alternativas. Na dcada de 1970, a questo
nacional passou a ser formulada a partir da articulao entre a ques-
to cultural e a questo do desenvolvimento econmico. O objetivo
da poltica de preservao no seria mais simplesmente a eleio de
smbolos da nao, mas a busca de um modelo de desenvolvimento
apropriado s condies locais e compatvel com os diferentes con-
textos socioculturais brasileiros.Nesta nova conjuntura, o carter marcadamente cultural de atua-
o do SPHAN, voltado para a construo de uma cultura nacional,
revelou-se inadequado. Para adequar a poltica federal de preservao
aos novos tempos, foram criados o Programa Integrado de Reconstru-
2 Ressalto que no me refiro cor da pele ou a qualquer outra caracterstica biolgica, masao grupo dominante do ponto de vista poltico, ao qual os povos indgenas e as populaesafro-descendentes, principalmente, estiveram historicamente submetidos.
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o das Cidades Histricas (PCH) e o Centro Nacional de Referncia
Cultural (CNRC).3 O primeiro foi idealizado basicamente com vistas
a suprir a falta de recursos financeiros e administrativos do IPHAN
e, nesse sentido, voltou-se para a valorizao, em termos econmicos
e sociais, dos bens tombados como patrimnio nacional, especial-
mente aqueles localizados em regies carentes. Seu objetivo era criar
infra-estrutura adequada ao desenvolvimento de atividades tursticas
e ao uso de bens tombados como fonte de renda (FONSECA, 1996;
2005).4 J o CNRC procurou estender a reviso crtica das carncias
operacionais ao campo conceitual. Em sua concepo, a nfase dada
pelo IPHAN aos monumentos da cultura do colonizador tornava pro-
blemtica uma identificao social mais abrangente e trazia tona a
necessidade urgente de atualizar a composio do patrimnio, consi-
derada limitada a uma vertente da nacionalidade (a luso-brasileira) e
a determinados perodos histricos, e elitista na seleo e no trato dos
bens culturais (FONSECA, 2005).
Com uma atuao complementar e crtica em relao atuao do
IPHAN, voltada para os bens de "pedra e cal", o CNRC se propunha,
entre outros objetivos, a conferir a distino de patrimnio histrico
e artstico nacional no apenas aos produtos (bens materiais), mas
memria dos processos de produo desses bens. Como assinala FON-
SECA (2005), ao CNRC no interessava atuar sobre bens que fossem
3 o CNRC no se originou do interior da burocracia estatal, como o PCH, mas foi fruto deconversas de um ~ ~ueno grupo de profissionais, oriundos de diversas reas de atuao,que se reunia em Braslia. Seu funcionamento se deu, inicialmente, graas a um convniofirmado entre o governo do Distrito Federal, por meio da Secretaria de Educao e Cultura,e o Ministrio de Indstria e Comrcio, por meio da Secretaria de Tecnologia Industrial.Depois, foi firmado um novo convnio, ao qual aderiram a SEPLAN, o Ministrio da Edu-cao e Cultura, o Ministrio do Interior, o Ministrio das Relaes Exteriores, a CaixaEconmica Federal, a Fundao Universidade de Braslia, o Banco do Brasil e o ConselhoNacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq).
4 O que era feito por meio da restaurao e revitalizao de monumentos degradados.
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meros signos do passado, mas sobre aquelas expresses culturais vi-
vas que se encontravam inseridas em uma dinmica de uso cotidiano
e de prticas sociais contemporneas. Alm disso, o CNRC procurava
preservar a produo oriunda de contextos populares e, sobretudo, das
etnias indgena e afro-brasileira.
Com isso, em um segundo momento (1970-1980), definido como "fase
moderna", a noo de patrimnio se ampliou e novos conceitos foram
introduzidos na prtica de preservao no Brasil. Com base no conceito
antropolgico de cultura e com a incorporao das concepes da nova
historiografia, uma maior variedade de pocas histricas, de grupos for-
madores da nacionalidade brasileira e as manifestaes da cultura popu-
lar passaram a ser considerados na constituio do patrimnio nacional.
Iniciou-se um processo de aproximao das demandas de setores at ento
marginalizados das polticas culturais e a prtica de preservao passou a
ser confrontada com o chamado "patrimnio cultural no-consagrado".
Essa expresso foi criada para designar aqueles bens culturais que at en-
to no integravam o universo do patrimnio histrico e artstico oficial.
Tratava-se das produes dos excludos da histria oficial: indgenas, ne-
gros, imigrantes, populaes rurais e da periferia urbana, etc.
A partir da dcada de 1980, com a fuso IPHAN/PCH/CNRC, ocor-
rida em 1979, a instituio passou a contemplar bens representativos da
presena negra, assim como expresses arquitetnicas representativas e
formas de ocupao do territrio nacional de imigrantes alemes e italia-
nos no sul do pas (CHUVA, 1998; FONSECA, 2005). Nesse momento, a
questo central passou a ser a da relao entre cultura e cidadania, a qual
passou a constituir uma alternativa privilegiada para a elaborao de no-
vas identidades coletivas. A difuso da democracia como valor levou
afirmao dos "direitos das identidades coletivas particulares, sobrepon-
do-se ideia, dominante no sculo XIX e primeira metade do sculo XX,
de uma identidade nacional" (FONSECA, 2005, p. 169).
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PROGRAMA DE ESPECIALIZAO EM PATRIMNIO FABloLA NOGUEIRA DAGAMA CARDOSO
Como observa FONSECA (1996), os primeiros tombamentos de tes-
temunhos da cultura afro-brasileira - o Terreiro da Casa Branca, em Sal-
vador, Bahia, e a Serra da Barriga, em Unio dos Palmares, Alagoas-, ocorridos em 1982, representaram um marco na histria da poltica
federal de preservao no Brasil. Conforme enfatiza a autora, eles foram
resultado de uma mobilizao conjunta de movimentos negros, intelec-
tuais e polticos, e no tinham como alvo principal a proteo desses
bens em si mesmos, mas sobretudo a repercusso simblica e poltica
da sua incluso no patrimnio cultural nacional. interessante perceber
que, alm de representar o interesse e os recursos de que dispe o Estado
para objetivar e legitimar a ideia de nao, a ideia de patrimnio estava
sendo, agora, ativada pela sociedade brasileira para a afirmao de novas
identidades coletivas, que se valiam dos bens culturais como referncias
materiais e simblicas. Conforme observa FONSECA (1996, p. 158):
(FONSECA, 2005). Visando implementar novas estratgias e formas
de proteo ao patrimnio cultural, foi institudo, pelo decreto 3.551, de
4 de agosto de 2000, o Registro de Bens Culturais de Natureza Imate-
rial. Esse novo mecanismo de preservao e valorizao do patrimnio
cultural veio atender a uma demanda antiga pela reviso e ampliao
da poltica de patrimnio no Brasil.
o Registro de Bens Culturais de NaturezaImaterial e o reconhecimento da diversidadetnica e cultural brasileira
Ao lado do interesse do estado de circunscrever um universo debens culturais que atestassem a existncia da nao, surgiam novasmotivaes, por parte de grupos sociais diversos, que erigiam oexerccio da preservao de "lugares de memria" em direito.
O objetivo de abarcar as mltiplas referncias culturais e, paralela-
mente, a determinao de que o registro deve observar a "a relevncia
nacional para a memria, a identidade e a formao da sociedade bra-
sileira" trouxeram tona velhos problemas e novos desafios quanto
deciso do que seria reconhecido como patrimnio cultural do Brasil.
A considerao de alguns processos de registro, feita a seguir, permite
levantar algumas questes que considero bastante interessantes para se
pensar a maneira pela qual o Estado est buscando o reconhecimento
de sua diversidade tnica e cultural. Nesses processos, possvel per-
ceber uma srie de questes, como a relao entre patrimnio cultural
e cidadania, as dificuldades e os limites no atendimento de certas de-
mandas e a ambivalncia mesma que parece existir entre a busca da
diversidade cultural e do carter nacional do patrimnio cultural.
Como o prprio processo de expanso da noo de patrimnio
indica, a instituio da salvaguarda do patrimnio imaterial veio ao
encontro de um compromisso do pas com o desenvolvimento e a
execuo de uma poltica de cultura socialmente mais justa e demo-
crtica e sintonizada com as demandas de grupos at ento excludos
das narrativas oficiais da nao. O Registro do Jongo no Sudeste
Apesar da significativa ampliao da noo de patrimnio que
ocorreu nas dcadas de 1970/1980, a atuao na rea de preservao
continuou limitada. O tombamento de bens relativos a contextos di-
versificados, que no o da cultura luso-brasileira, continuou rara, e o
tombamento de bens inseridos numa dinmica de uso cotidiano era
considerado problemtico pelos critrios de atribuio de valor histri-
co e artstico, de valor excepcional e de valor nacional ainda vigentes5
5 Um exemplo caracterstico dessa problemtica foi o tombamento de bens vistos como"inusitados", caso da Fbrica de Vinho de Caju Tito Silva, que visava proteo do imvele seu equipamento enquanto suportes de um fazer popular, de um processo de fabricao devinho - o vinho de caju - intimamente relacionado com as caractersticas regionais brasilei-ras (FONSECA, 2005). Entrentanto, como a preservao recaiu sobre o imvel, o processode fabricao acabou se perdendo.
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PROGRAMA DE ESPECIALIZAO EM PATRIMNIO
bastante elucidativo quanto a essas questes. De acordo com as in-
formaes sistematizadas pelo inventrio que instrui o processo de
registro e que fundamenta o pedido, o jongo uma forma de expres-
so afro-brasileira que integra canto, dana coletiva, percusso de
tambores e prticas de magia e praticado nos quintais de periferias
urbanas e de comunidades rurais do sudeste brasileiro. Formou-se ,
basicamente, a partir da herana cultural dos negros de lngua banto,
trazidos para o Brasil para trabalhar como escravos nas fazendas de
caf e' de cana-de-acar do vale do Paraba. Atrelado sempre a uma
dimenso marginal, em que os negros falam de si e de sua comunida-
de por meio da crnica e da linguagem cifrada, denominada ponto=
"o jongo uma forma de louvao aos antepassados, consolidao de
tradies e afirmao de identidades" (CNFCP, 2005).
Formulado pelo Grupo Cultural Jongo da Serrinha e pela Associa-
o da Comunidade Negra de Remanescentes de Quilombo da Fazen-
da So Jos da Serra, o pedido de registro dessa forma de expresso
justifica-se pelo fato de o Jongo ser considerado ainda hoje um espao
de circulao e renovao de crenas e valores de parte da populao
afro-brasileira. Esta prtica encontra-se, no entanto, ameaada pelo es-
facelamento das comunidades onde vivem os jongueiros e pelo desafio
da transformao dessa forma de expresso em espetculo. Como ar-
gumenta a equipe que realizou a instruo do processo:
(...) o Registro do jongo como patrimnio cultural do Brasil oreconhecimento, por parte do Estado, da importncia desta formade e "resso para a conformao da multifacetada identidade bra-sileira. Este Registro chama a ateno para necessidade de polticas
6 Ponto a forma potica e musical expressa nos versos cantados pelos jongueiros. formasinttica, palavra cantada, como muitas das formas artsticas africanas. "Configura um co-nhecimento restrito, secreto, guardado pelos jongueiros mais velhos - que s ensinam aosjovens j iniciados. (...) Vem da frica a ideia de que nos pontos a palavra proferida cominteno marcada pelos tambores acorda as foras do mundo espiritual, fazendo com que
coisas mgicas aconteam" (CNFCP, 2005).
FABloLA NOGUEIRA DA GAMA CARDOSO
pblicas que promovam a equidade econmica articulada com aplural idade cultural; polticas que garantam a qualidade de vida ecidadania. E condies de autodeterminao para que as comuni-dades jongueiras mantenham vivo o jongo nas suas mais variadasformas e expresses. (CNFCP, 2005, s/p)
Como assinalei no trabalho que desenvolvi no primeiro ano do
PEP/IPHAN/UNESCO, interessante perceber que o registro dessa
forma de expresso evidencia contradies socioeconmicas e cul-
turais da sociedade brasileira e coloca uma resposta s experincias
de racismo e excluso no pas, reforando a necessidade de reconhe-
cimento, no apenas por parte do poder pblico, mas da sociedade
em geral, da contribuio de grupos sociais que foram relegados ao
longo da histria. O parecer que aprova a distino dessa forma de
expresso como Patrimnio Cultural do Brasil chama ateno para a
sua representatividade enquanto referncia cultural remanescente do
legado dos povos africanos escravizados no Brasil, e tambm por se
tratar de comunidades que passam por dificuldades socioeconmicas
bsicas e de interlocuo com o poder pblico.
Nesse sentido, bastante esclarecedor tambm o caso do Registro
da Cachoeira de Iauaret - Lugar Sagrado dos Povos Indgenas dos
Rios Uaups e Papuri, no Amazonas. Encaminhado ao IPHAN pela
Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro (FOIRN), jun-
tamente com uma declarao de interesse firmada por representantes
da Coordenao das Organizaes Indgenas do Distrito de Iauaret
(COIDI), o pedido de registro resultado de um movimento organiza-
do por lideranas indgenas locais pela revitalizao cultural da regio
do Alto Rio Negro. O dossi de instruo do processo chama ateno
para os impactos sociais, econmicos, culturais e ambientais provoca-
dos pela histria de dois sculos de contato com o branco, que provocou
a desarticulao dos elementos estruturantes dos contextos tnicos 10-
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cais, a desvalorizao dos conhecimentos e prticas culturais mantidos
por sucessivas geraes, a sustentabilidade de seus padres de existn-
cia no territrio e o consequente esvaziamento dos contedos simbli-
cos desses territrios. Nesse contexto, ocorreu o desaparecimento dos
significados que a cachoeira de Iauaret ensejava e dos mecanismos
de transmisso do campo simblico associado. Preocupadas ento em
resgatar e preservar os conhecimentos herdados dos ancestrais, suas
histrias, seus mitos, cantos, suas danas, cerimnias e seus antigos
rituais, as lideranas locais iniciaram um projeto poltico-pedaggico
de revitalizao cultural que culminou com a apresentao da proposta
de Registro da Cachoeira de Iauaret.
Conforme explicado no Dossi, a cachoeira de Iauaret um aci-
dente geogrfico povoado de mitos de origem dos diversos povos que
habitam a regio do Alto Rio Negro," funcionando como referncia
central de uma complexa rede de relaes que articula os diferentes
grupos indgenas da regio. Povoada de narrativas mticas, histricas
e de representaes polticas, um lugar que organiza (e hierarquiza)
a vida e a relao dos diferentes grupos e indivduos que nela tm seus
mitos de origem. Isso porque os mitos e as narrativas inscritos em suas
pedras e igaraps apontam para as origens e para a fixao, naquele
territrio, das etnias presentes na regio, ditando todo um complexo de
cdigos de relaes sociais, econmicas, polticas etc.
Assim como no caso do Registro do longo no Sudeste, o Registro da
Cachoeira de Iauaret coloca em evidncia a luta dos povos indgenas
para legitimar um espao de afirmao identitria. Nesse contexto,
7 A regio do Alto Rio Negro habitada por povos indgenas pertencentes s famliaslingusticas Aruaque, Tukano Oriental e Maku. Reunidos em dez comunidades, essespovos representam mais de trinta mil moradores, vivendo em povoados e stios distri-budos entre os rios da regio e nos dois ncleos urbanos ali existentes: So Gabr ielda Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro. (CACHOEIRA, 2007. Ver Referncias ao
final do artigo.)
FABloLA NOGUEIRA DA GAMA CARDOSO
interessante destacar tambm que, alm das exigncias e orientaes
estabelecidas no decreto 3.551/2000, foram definidos critrios para a
prioridade das propostas de registro, entre os quais esto: tratar-se de
bens culturais relacionados a grupos indgenas, afro-descendentes e a
populaes tradicionais; e tratar-se de proposta que permita a amplia-
o do uso social de bens culturais e a promoo do desenvolvimento
social e econmico de grupos e comunidades envolvidos. Como se v,
o reconhecimento de bens culturais de natureza imaterial, no momen-
to atual, no visa, simplesmente, incluir as mltiplas referncias da
diversidade tnica e cultural nessa narrativa oficial da nao que a
constituio de patrimnios culturais, mas assume uma posio com-
prometida com os grupos sociais at ento marginalizados das polticas
pblicas de maneira geral.
Analisando a funo integradora das narrativas nacionais e procu-
rando perceber quais estratgias representacionais so acionadas para
construir a identidade nacional, Stuart HALL (2005) fala na existncia
de alguns elementos recorrentes nas representaes das naes mo-
dernas. De acordo com ele, a nao contada por meio de narrativas
- imagens, paisagens, cenrios, eventos histricos, smbolos e rituais
- que, ao simbolizarem experincias partilhadas, dariam sentido pr-
pria ideia de nao. Ademais, o autor observa que essas narrativas enfa-
tizam a origem, a continuidade e a tradio, fazendo com que as naes
sejam representadas como primordiais e com que os elementos do car-
ter nacional sejam, desde sempre, reconhecidos como imutveis.
interessante assinalar aqui que o processo histrico de ocupao
do Brasil se deu com base na colonizao estabelecida pelos europeus
e por meio da escravido dos negros trazidos da frica, do exterm-
nio das populaes autctones e do trabalho assalariado de migrantes
europeus e asiticos. E foram, sobretudo, os colonizadores portugue-
ses que moldaram significativamente a conduta ideolgica da nao.
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PROGRAMA DE ESPECIALIZAO EM PATRIMNIO
Assim, na sociedade brasileira, predomina a representao de um
pas branco e ocidental, resultante de mltiplas fuses e influncias
que envolveram trs elementos bsicos: as culturas portuguesa, afri-
cana e indgena. Como observa Roque de Barros LARAIA (1978),
essa representao tem como base a predominncia da influncia por-
tuguesa e tem como consequncia a ideia de uma dominao cultural
(e econmica) dela sobre as demais.
Nesse sentido, interessante perceber que, se durante muito tempo, as
culturas africanas e indgenas foram excludas das narrativas oficias da na-
o, hoje elas figuram como sendo os elementos principais. Tomando como
referncia algumas ideias de Walter Benjamin (citado por LOWI, 2005), se
por um lado podemos pensar que a nova poltica de patrimnio traz tona a
dimenso poltica e ativa de uma "interveno salvadora" e coloca a possibi-
lidade de uma "reparao histrica" e simblica, por outro, ela parece operar
ainda a partir da ideologia das trs raas, por meio da qual a conformao
da identidade nacional se d, basicamente, a partir das mltiplas fuses e
influncias dos componentes portugus, africano e indgena.
Para explicitar melhor essa questo, interessante considerar o caso
do processo de registro da lngua talian, com o qual tambm trabalhei no
primeiro ano do PEP. O talian uma lngua nascida no Brasil, formada
pela unio do falar dos diversos dialetos dos primeiros imigrantes italianos
que vieram para o pas. Assim como os indgenas e os afro-descendentes,
os imigrantes italianos e seus descendentes so grupos privilegiados para
delinear a questo da emergncia e do posicionamento de diferentes gru-
pos minoritrios no seio do estado nacional. Giralda SEYFERTH (1990)
chama a ateno para a aglutinao de pessoas de mesma origem em gru-
pos tnicos mais ou menos identificados com valores e elementos culturais
prprios, entre os quais se destaca a preservao da lngua materna.
O pedido de registro dessa lngua foi encaminhado ao IPHAN em
2001 pela Associao dos Apresentadores de Programas de Rdio Ta-
FA8foLA NOGUBIRA DA GAMA CARDOSO
lian do Brasil (ASSAPRORATABRAS), do estado do Rio Grande do
Sul. Apesar de o pedido apresentar argumentos que afirmassem a vi-
talidade e a permanncia do talian, naquele momento o IPHAN con-
siderou improcedente o registro e concluiu que as informaes envia-
das eram insuficientes e inadequadas para a compreenso dessa lngua
como patrimnio cultural do Brasil.
No parecer emitido para avaliao preliminar do pedido, o
IPHAN, apesar de ter reconhecido a importncia da participao
da imigrao italiana na formao do pas, questiona a abrangncia
dessa lngua na "formao da identidade brasileira". Como afirma
o parecer, "a lngua funda e organiza a identidade de um grupo
social", adquirindo papel central na conformao de identidades
culturais, mas, especialmente, na conformao da identidade nacio-
nal. Como se sabe, no processo de formao do Estado brasileiro, a
lngua portuguesa foi instituda como o meio de comunicao ofi-
cial em todo o territrio nacional e, tido como a lngua verncula,
constituiu-se como padro de ensino e alfabetizao. Como j havia
assinalado no trabalho que desenvolvi no primeiro ano do PEP, se
for levado em considerao que os oito bensf j Registrados como
Patrimnio Cultural do Brasil no se caracterizam pela abrangncia
nacional, mas por condies bastante restritas de (re)produo e co-
nhecimento, caberia perguntar que tipo de abrangncia necessria
para a constatao da relevncia nacional.
interessante perceber ainda que, alm de questionar a abrangn-
cia do talian na "formao da sociedade brasileira", o IPHAN observa
8 So eles: I) Ofcio das Paneleiras de Goiabeiras, de Vitria, Esprito Santo; 2) Arte Ku-siwa - Pintura Corporal e Arte Grfica Wajpi, dos ndios Wajpi do Amap; 3) Ofcio dasBaianas de Acaraj, de Salvador, Bahia; 4) Samba de Roda do Recncavo Baiano; 5) Criode Nossa Senhora de Nazar, de Belm do Par; 6) Modo de fazer Viola-de-Cocho nos esta-dos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; 7) Jongo no Sudeste e; 8) Cachoeira de Iauaret- Lugar Sagrado dos Povos Indgenas dos rios Uaups e Papuri, no Amazonas.
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PROGRAMA DE ESPECIALIZAO EM PATRIMNIO
que, em funo da dificuldade de apreenso, dada a sua complexidade e
autonomia como campo de estudo, e a "insuficincia dos instrumentos
de descrio e documentao tcnica disponveis no momento", a consi-
derao das lnguas como patrimnio imaterial no estava prevista em
nenhuma das quatro categorias estabelecidas no decreto 3551/2000. Ex-
plica tambm que, embora haja um Livro para a inscrio das Formas de
Expresso, estas se referem no a lnguas em si, mas a linguagens.
Considerando que faltavam elementos que justificassem a legi-
timidade do reconhecimento e registro da lngua talian, o IPHAN
solicitou, ento, a complementao das informaes enviadas e
manifestou interesse em apoiar a realizao de um inventrio que
revelasse as diferentes manifestaes culturais das comunidades
de falantes do talian. Tendo em vista que a ASSAPRORAT ABRAS
no enviou essa complementao de informaes, o pedido foi ar-
quivado. Quatro anos depois, deflagrou-se uma espcie de movi-
mento reivindicando o reconhecimento das "lnguas brasileiras" e,
sobretudo, o reconhecimento do talian como patrimnio cultural.
Em 2005, foram encaminhados ao IPHAN outros vrios pedidos
de registro do talian, bem como pedidos solicitando a criao do
Livro de Registro das Lnguas. Formulados pela Federao dos
Vnetos do Rio Grande do Sul, pela Associao de Municpios do
Alto Rio Uruguai, pelo Instituto de Investigao e Desenvolvi-
mento em Poltica Lingustica (lPOL) e pelo deputado federal Car-
los Abicalil, do Partido dos Trabalhadores de Mato Grosso, esses
pedidos chamam a ateno para a necessidade de reconhecimento,
por parte do Estado, dos direitos lingusticos das mais diversas
comunidades lingusticas existentes no seio do Estado nacional e
para a pluralidade lingustica existente no pas.
Como consequncia dessa demanda, o IPHAN, juntamente com a
Comisso de Educao e Cultura da Cmara dos Deputados e o IPOL
FABloLA NOGUEIRA DA GAMA CARDOSO
organizaram um seminrio para a discusso de parmetros (tcnicos e
polticos) para a ao do IPHAN no campo do patrimnio lingustico.
O "Seminrio sobre a Criao do Livro das Lnguas", ocorrido na C-
mara dos Deputados entre 6 e 9 de maro de 2006, contou com a par-
ticipao de especialistas, pesquisadores, falantes de diversas comuni-
dades lingusticas e tcnicos dos Ministrios da Cultura e da Educao,
alm de parlamentares interessados no assunto.
Conforme colocado pelo deputado Paulo Delgado." o Seminrio
teve como propsitos aprimorar a formulao de polticas pblicas
na rea da lingustica, equiparar a existncia da lngua a um direito,
discutir parmetros polticos para a ao institucional no campo do
patrimnio lingustico e reivindicar critrios tcnicos para regis-
tro das lnguas como patrimnio da nao. Como assinalou Suzana
Grillo, 10 representante da Secretaria de Educao Continuada, Alfa-
betizao e Diversidade do MEC - SECAD/MEC, o evento marcou
como a questo da pluralidade lingustica no Brasil vem passando
por uma reavaliao e reconceitualizao. O conceito que orientou
o Seminrio foi o de "lnguas brasileiras", que para o presidente do
IPOL, professor Gilvan Muller de Oliveira, refere-se a "todas as
lnguas que so faladas em territrio brasileiro por comunidades
lingusticas de cidados brasileiros, sejam eles de origem indgena,
imigrante ou de outras origens". I I
Aqui, interessante assinalar que o plurilinguismo brasileiro est
diferentemente representado pelo Estado. Em nvel federal, a ques-
to lingustica pouco reconhecida e legislada. Alm da instituio
9 Referncia fala do deputado Paulo Delgado, proferida no Seminrio no dia 7 de marode 2006.
10 Referncia fala de Suzana Grillo, proferida no Seminrio no dia 9 de maro de 2006.
11 Transcrio da fala de Gilvan Muller de Oliveira, proferida no Seminrio no dia 7 demaro de 2006.
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PROORAMA DE ESPECIALIZAO EM PATRIMNIO
e gesto da lngua portuguesa como lngua oficial, a referncia aos
direitos lingusticos aparece somente no captulo VIII da Constitui-
o Federal de 1988, onde est expresso o reconhecimento das ln-
guas como um direito dos povos indgenas e onde est assegurada a
educao escolar bilngue, diferenciada e especfica somente a esses
povos. Alm das lnguas indgenas, recentemente, foi reconhecida
tambm a Lngua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como instrumento
legal de comunicao e expresso. J em nveis estadual e munici-
pal, h mais iniciativas interessantes relativas ao desenvolvimento
de polticas lingusticas para a oficializao de lnguas. Conforme
apresentado no Seminrio, o municpio de Blumenau.l- em Santa
Catarina, por exemplo, criou o primeiro sistema de escolas pblicas
bilngues no indgenas do Brasil, com a criao de dez escolas
rurais bilngues alemo/portugus e uma escola bilngue polons/
portugus; o municpio de So Gabriel da Cachoeira, no Amazonas,
para alm da legislao federal sobre as lnguas indgenas, tornou
trs delas lnguas oficiais em dezembro de 2002: o nheengatu, o
baniwa e o tucano.
No decorrer do Seminrio, constatou-se que o instrumento do regis-
tro, no contexto da diversidade lingustica, no responderia, por si s,
complexidade da questo, e seria necessrio articular diversas institui-
es para aprofundar o debate e estabelecer polticas pblicas de salva-
guarda do patrimnio lingustico brasileiro. Ficou patente que o Livro
de Registro das Lnguas funcionaria, sobretudo, como um instrumento
de defesa e afirmao dos direitos lingusticos dos cidados, sendo a
maior expectativa em relao a sua criao a mobilizao de outras
iniciativas que levassem definio de polticas lingusticas voltadas
para o fortalecimento das lnguas minoritrias.
12 Maior cidade falante de alemo nas Amricas, conforme apresentado pelo professor Gil-van Muller de Oliveira no Seminrio.
FABloLA NOOUEIRA DAGAMA CARDOSO
Nesse sentido, foi aprovada a criao de um grupo multidisciplinar
e interinstitucional para formular e encaminhar propostas capazes de
atender s demandas existentes. Esse grupo, coordenado pelo IPHAN,
foi formado por representantes da Comisso de Educao e Cultura da
Cmara dos Deputados, do Instituto de Investigao e Desenvolvimen-
to em Poltica Lingustica - IPOL, da Fundao Cultural Palmares,
da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade
(SECAD), do Ministrio da Educao, do Laboratrio de Lnguas Ind-
genas da Universidade de Braslia, do Museu Paraense Emlio Goeldi
(Ministrio da Cincia e Tecnologia) e do Museu do ndio (FUNAI).
Em suas reunies, o grupo vem discutindo algumas estratgias de
implantao de polticas pblicas de reconhecimento da pluralidade
lingustica brasileira, entre as quais esto: a definio de uma meto-
dologia especfica para o inventrio das lnguas faladas no Brasil; a
definio de critrios para a seleo das lnguas e sua incluso na lista
de patrimnio cultural; e a indicao do registro como um instrumen-
to importante, mas no nico, para o reconhecimento da diversidade
lingustica. Nesse sentido, o grupo enviou uma carta ao Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatstica (IBGE), solicitando a incluso de inqu-
rito demogrfico e sociolingustico no Censo Brasileiro de 2010, e vem
refletindo sobre como proceder para selecionar lnguas para comporem
o patrimnio cultural brasileiro. Inicialmente, sugeriram-se, como cri-
trios de pertinncia e prioridade, tratar-se de: i) lnguas ameaadas de
extino; ii) lnguas dos povos autctones; iii) lnguas dos afro-descen-
dentes e de comunidades quilombolas e, finalmente; iv) lnguas de po-
pulaes originrias da imigrao, que tenham continuidade histrica
e que sejam faladas no pas h mais de trs geraes.
Como se pode observar, para alm da "retrica da perda", assina-
lada por Jos Reginaldo GONALVES (1996), as discusses sobre o
registro das lnguas tm apontado para o atendimento prioritrio dos
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PROGRAMA DE ESPECIALIZAO EM PATRIMNIO
casos para os quais o registro teria uma conotao de reparao his-
trica e simblica. interessante assinalar que as diversas comuni-
dades lingusticas existentes no Brasil- sejam elas grupos indgenas,
afro-descendentes ou descendentes de imigrantes - sofreram formas
de violncia pelo fato de expressarem-se em outra lngua que no o
portugus. Como foi enfatizado no Seminrio, todas elas tm uma
experincia particular com relao a diferentes nveis de represso,
discriminao, silenciamento forado e outras formas de violncia.
Entretanto, como observa o antroplogo do IPHAN Marcus Vincius
Carvalho GARCIA (2006), em sua reflexo quanto ao estado atual da
discusso sobre polticas lingusticas e sua relao com a poltica de
patrimnio cultural, no caso dos grupos indgenas e afro-descenden-
tes, a situao foi muito mais aguda, visto que a perda das lnguas
dessas comunidades falantes foi gerada em um ambiente de opresso,
escravizao ou, mesmo, de extermnio tnico.
Assim, como GARCIA (2006) observa, se por um lado h a de-
manda por reconhecimento de lnguas em extino e a necessidade
de reparao e apoio s condies de transmisso dessas lnguas, h
tambm o caso do talian, cujos falantes defendem a relevncia dessa
lngua mediante o argumento da representatividade-' e do sucesso de
um grupo que, apesar de todo tipo de violncia sofrido, foi bem su-
cedido na luta pela manuteno de suas tradies e expresses cultu-
rais. Conforme colocado no Seminrio pelo professor Gilvan Muller
de Oliveira, trata-se ento de duas grandes necessidades: registrar
lnguas em extino, de modo a promover a formulao de polticas
pblicas que garantam a sua continuidade, assim como atestar o seu
reconhecimento como patrimnio cultural do Brasil a grandes comu-
nidades lingusticas no seio do Estado nacional.
13 Conforme enfatizado inmeras vezes no Seminrio, trata-se de uma lngua falada porcerca de trs milhes de pessoas.
FABloLA NOGUEIRA DA GAMA CARDOSO
Consideraes finais
Atendendo a uma demanda antiga pela ampliao da noo de patrimnio
cultural no Brasil, o Registro de Bens Culturais de Natureza lmaterial assu-
me uma posio comprometida com os grupos sociais at ento margina-
lizados pelas polticas pblicas. Em conjunto, os processos aqui analisados
chamam a ateno para os direitos (polticos, econmicos, sociais, intelec-
tuais e culturais) desses grupos e, portanto, para a relao entre patrimnio
cultural e cidadania. Nesse sentido, o trabalho com o patrimnio imaterial
coloca em evidncia a luta desses grupos para legitimar um espao de afir-
mao identitria e chama a ateno para o reconhecimento dos direitos das
minorias no campo das polticas culturais. Chamam a ateno tambm para
a questo da negociao da condio nacional. Todos apontam para o fato de
que a ideia de nao uma construo histrica que est mudando.
Disso, depreende-se que o registro pode funcionar como recurso
simblico e poltico. No primeiro caso, ele se insere no projeto amplo
de construo de uma identidade nacional, contribuindo para objetivar
e legitimar essa entidade ideal que a nao. Os bens culturais regis-
trados funcionam como provas materiais das vises oficiais da histria
nacional, que, conforme sugeri antes, ainda se amparam no mito da
origem das trs raas fundadoras: branca, indgena e africana. No se-
gundo caso, a prtica da poltica de registro pode ser vista como campo
para o exerccio da cidadania, evidenciando-se a utilizao da cultura
como arma poltica e como instrumento para a mudana.
Assim, dar privilgio aos indgenas e aos afro-descendentes, mais
do que um ato de reparao histrica e simblica, parece sinalizar para
um desejo de realizar a expectativa de que as populaes considera-
das como as mais antigas do pas, constituintes do mito fundador, mas
tradicionalmente marginalizadas ou excludas, sejam mais importantes
para a identidade nacional do que os imigrantes tardios, por exemplo.
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PROGRAMA DE ESPECIALIZAO EM PATRIMNIO
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