o professor como trabalhador

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Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.36, p. 153-166, dez.2009 - ISSN: 1676-2584 153 A CONSTITUIÇÃO DO PROFESSOR COMO TRABALHADOR Áurea de Carvalho Costa UNESP/BAURU-SP [email protected] Adriana Maria Mattos Marafon UNIMEP/PIRACICABA-SP [email protected] RESUMO: O presente texto surgiu como um exercício para responder uma indagação: Como se constituiu historicamente o professor enquanto trabalhador? Para contribuir à elucidação dessa indagação, procuramos situar esse profissional na divisão social do trabalho, em diferentes contextos históricos. Buscamos levantar elementos da sua constituição enquanto profissional desde o pólo do entendimento do mestre como um vocacionado, um profissional, com aptidões especiais numa visão inatista, até o pólo do profissional. Objetivamos contribuir para a análise sobre a configuração histórica do magistério como profissão e encerramos o texto apresentando a nossa tese de que o professor não pode ser considerado nem um vocacionado, nem profissional liberal prestador de serviços, mas o profissional da educação, com conhecimentos específicos e experiências que se constroem na trajetória de trabalho, e, na esfera social, como intelectual orgânico. Palavras-chave: professor, magistério, licenciaturas THE CONSTITUTION OF TEACHER AS WORKER ABSTRACT: This paper appeared like an exercise to answer a question: Wich´s be constituted the teacher´s like worker? How this place was been consisted historicaly? To contribute to briefing of this question, we look for to point out education´s professional in differents historic contexts, looking the teacher since polo of professional whith a vocation and special aptitudes, till polo of professional whose activity includes comceptual, experience and social dimensions. We goal to contribute to analysis of neolibealism´s effects about the teachers professional identity build, and we finish the paper presenting our tesis that teacher may not to be considered either like a vocacioned, neither a proletary, nor a lender of services, but an organic intelectual. Keywords: teacher, teaching, 1) Introdução Pode-se entender o magistério como o exercício de uma vocação? E, em decorrência disso, pode-se admitir a atividade de ensinar como a missão daqueles que teriam recebido um dom? Para responder a tais questionamentos, faz-se necessário refletir o magistério buscando problematizar a hipótese de que esta atividade foi se constituindo, inicialmente, como decorrente do dom, atributo do vocacionado, tendo como fundamento filosófico a verdade como revelação. Depois, como aptidão, em que o fundamento é a

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    A CONSTITUIO DO PROFESSOR COMO TRABALHADOR

    urea de Carvalho Costa UNESP/BAURU-SP

    [email protected]

    Adriana Maria Mattos Marafon UNIMEP/PIRACICABA-SP

    [email protected]

    RESUMO: O presente texto surgiu como um exerccio para responder uma indagao: Como se constituiu historicamente o professor enquanto trabalhador? Para contribuir elucidao dessa indagao, procuramos situar esse profissional na diviso social do trabalho, em diferentes contextos histricos. Buscamos levantar elementos da sua constituio enquanto profissional desde o plo do entendimento do mestre como um vocacionado, um profissional, com aptides especiais numa viso inatista, at o plo do profissional. Objetivamos contribuir para a anlise sobre a configurao histrica do magistrio como profisso e encerramos o texto apresentando a nossa tese de que o professor no pode ser considerado nem um vocacionado, nem profissional liberal prestador de servios, mas o profissional da educao, com conhecimentos especficos e experincias que se constroem na trajetria de trabalho, e, na esfera social, como intelectual orgnico. Palavras-chave: professor, magistrio, licenciaturas

    THE CONSTITUTION OF TEACHER AS WORKER

    ABSTRACT: This paper appeared like an exercise to answer a question: Wichs be constituted the teachers like worker? How this place was been consisted historicaly? To contribute to briefing of this question, we look for to point out educations professional in differents historic contexts, looking the teacher since polo of professional whith a vocation and special aptitudes, till polo of professional whose activity includes comceptual, experience and social dimensions. We goal to contribute to analysis of neolibealisms effects about the teachers professional identity build, and we finish the paper presenting our tesis that teacher may not to be considered either like a vocacioned, neither a proletary, nor a lender of services, but an organic intelectual. Keywords: teacher, teaching,

    1) Introduo

    Pode-se entender o magistrio como o exerccio de uma vocao? E, em decorrncia disso, pode-se admitir a atividade de ensinar como a misso daqueles que teriam recebido um dom? Para responder a tais questionamentos, faz-se necessrio refletir o magistrio buscando problematizar a hiptese de que esta atividade foi se constituindo, inicialmente, como decorrente do dom, atributo do vocacionado, tendo como fundamento filosfico a verdade como revelao. Depois, como aptido, em que o fundamento a

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    habilidade inata e, finalmente, como exerccio de uma profisso, constituda socialmente, no interior de uma sociedade classista, entendimento construdo a partir do referencial do materialismo histrico e dialtico. Entretanto, h uma indagao anterior: quais so as origens de tal hiptese?

    Franco (1993), ao analisar o Segundo Tratado sobre o Governo, apontou as relaes entre as categorias liberdade, igualdade, propriedade e natureza na doutrina liberal e como estas se combinam para lhe conferir uma organicidade peculiar. Uma das premissas da doutrina liberal, em sua verso clssica, que o homem possui naturalmente a vocao para se constituir em proprietrio desde o nascimento. Essa premissa sustenta-se no fenmeno da igualdade biolgica, cuja argumentao fundamenta-se na origem natural comum de todos os homens. Tal premissa serviu a um fim: de instituir a noo de igualdade originria, biolgica e genrica, como igualdade real. Entretanto, apesar de os homens serem iguais, enquanto membros de uma mesma espcie e partes do reino da natureza, cumprem de maneiras diversas o ciclo natural de apropriao e estabelecem uma relao com a natureza que os diferencia entre si, no que tange s diferenas de aptides (FRANCO, 1993, p. 51).

    Apesar de partir de uma premissa restrita igualdade originria do homem, a lgica acima formulada tem uma finalidade: introduzir o conceito de igualdade diante do conceito de desigualdade, o de liberdade, diante do de coero, e assim por diante. No se trata de inverso de significado, mas de deslizamento de conceitos, como o que identificamos na configurao neoliberal que o liberalismo assumiu na atual conjuntura. Ocorre que s podemos conhecer esses conceitos mediante seus opostos.

    O efeito produzido por tal ideologia o que hoje chamamos por discurso peculiar ao capitalismo, em que as diferena individuais fundamentariam a existncia de diferentes aptides. Contudo, a identificao da aptido a um valor sustenta-se na arbitrariedade, eis a inconsistncia. A aptido assumida como uma construo, cuja base encontra-se alm do domnio possvel ao controle dos mortais dom divino ou obra da natureza. necessrio considerar a aptido como uma propriedade no inerente a todo indivduo para transmut-la numa forma de distino daquele que a tem. A aptido significa, sobretudo, uma forma de operar a identificao de indivduos, tornando-se instrumento de distribuio destes na diviso social do trabalho.

    Como se pode observar, os tericos da doutrina liberal empregaram a prtica do deslizamento dos conceitos de tal forma que a igualdade, tomada no liberalismo como igualdade de deveres sociais e oportunidades, postula que os diferentes talentos naturais levam os indivduos a utilizarem, de formas diferentes, as oportunidades oferecidas pela sociedade, segundo suas diferentes aptides. nesses termos que a dimenso biolgica da vocao a aptido - incorporada e irradiada como uma verdade de status cientfico, construdo no mbito das cincias situadas no referencial terico empirista.

    MARAFON (2001, p. 21) faz uma anlise histrica do conceito vocao na modernidade e nos informa que, da traduo do latim consiste numa ocupao contnua do homem sob a diviso do trabalho, fonte de seu sustento, destacando aqui, alm da dimenso biolgica, a dimenso social do conceito.

    Dessa pesquisa, destacamos a palavra officium - com sentido de tarefas, obrigaes- e professio -referindo-se especialmente s obrigaes dos seculares, que so os trabalhadores ligados ao clero como os mestres, os escribas no Medievo e os devotados s outras tarefas, peculiares ao monastrio - e, na modernidade, refere-se aos profissionais liberais.

    Na conjuntura da reforma protestante, o termo vocao assumiu um novo sentido, uma vez que a qualificao e a especializao profissional passaram a ser requisitos para a

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    eficincia da chamada racionalidade tcnica no capitalismo ocidental, buscando as suas bases tericas na doutrina liberal, de marca individualista, meritocrtica e competitiva (MARAFON, op. cit.).

    E qual esse novo sentido? Vocao enquanto execuo de um trabalho como fim em si mesmo, uma atitude. Trata-se de exerccio de tarefas, o qual passa a envolver aptides, competncias, habilidades, como requisito para atingir eficincia e produtividade, tendo como referente a adaptao sociedade capitalista. Isto significa, colocar a subjetividade do homem a servio do capital?

    Em suma, o que se produziu hoje sobre o conceito vocao, objetivou-se na forma de hierarquias estabelecidas a partir do exame de competncias e comportamentos caractersticas da subjetividade - condizentes com as profisses, de modo que a vocao constituiu-se, antes, como ideolgia diversa do que como chamamento divino ou aptido natural, uma vez que resulta da interao dos indivduos entre si e com o meio natural e social em que se encontram inseridos (MARAFON, op. cit.).

    Assim, constitui-se uma subjetividade que no inata e, portanto, no pode aparecer como um conjunto de tendncias naturais peculiares a cada um:

    S por meio da riqueza objetivamente desenvolvida do ser humano que em parte se cultiva e em parte se cria a riqueza da sensibilidade subjetiva humana (o ouvido musical, o olho para a beleza das formas, em resumo os sentidos capazes de satisfao humana e que se confirmam como capacidades humanas). Certamente, no so apenas os cinco sentidos, mas tambm os chamados sentidos espirituais, os sentidos prticos (vontade, amor, etc), ou melhor, a sensibilidade humana e o carter humano dos sentidos, que vm existncia mediante a existncia do seu objeto, por meio da caracterstica humanizada. A formao dos cinco sentidos a obra de toda a histria mundial anterior (MARX, 2001, p. 143-4, grifos do autor).

    Enfim, toda sensibilidade desenvolvida por cada ser humano, no mbito subjetivo, no se deve, necessariamente, aos fatores intrnsecos e forma como o homem interage com a natureza, mas ao contexto em que cada sujeito se insere enquanto parte do gnero humano, uma construo social.

    1) DO PRECEPTOR AO MESTRE: notas sobre a constituio profissional do professor na Histria

    O problema da profissionalizao da atividade de ensino articula-se profundamente com a natureza das relaes entre os adultos que transmitiam os conhecimentos e as geraes mais jovens, pois a partir desta realidade que o educador dever se situar nas relaes sociais e constituir a base da profisso, que a relao tridica entre educador, contedos e educando. Tal tema demanda uma abordagem aprofundada que tem sido empreendida por didatas e historiadores da educao e sistematizadas em textos especializados. Contudo, cabe, neste estudo pontuar trs caractersitcas de tais relaes at o medievo: assistemticas, polarizadas entre educador e educando, no coletivas e no institucionalizadas (ALVES, 2005, P. 17-18).

    Na antiguidade grega, a relao entre o pedagogo e o discpulo era permeada pela seguinte contradio: por um lado, a atividade do pedagogo permitia a opresso, devido ao uso da exigncia menmnica e da coero fsica como estratgias de ensino; por outro, os educandos eram os filhos dos senhores e os pedagogos, escravos de guerra. Portanto, eles mesmos oprimidos pelas prprias famlias onde educavam. Nesse contexto, a condio

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    social do educador era peculiar, devido prpria concepo negativa de trabalho: alm da figura do pedagogo, que se tornou escravo pelo fato de ser perdedor na guerra, havia a do mestre de escola livre, um homem de cultura, que elegia o ensino como seu ofcio, em situaes de dificuldades financeiras e descenso social de sua famlia. Havia preceptores que se enriqueciam devido a essa atividade laboral, entretanto, no escapavam ao preconceito social, pois, Ento, coisa digna ensinar aos amigos e parentes, mas vergonhoso ensinar por dinheiro e por pobreza. Tambm numa sociedade mercantil permanece por muito tempo o desprezo arcaico pelas atividades exercidas com fins de lucro. (MANACORDA, 1992, P. 63).

    Scrates debatia com os sofistas sobre a polmica de se receber proventos para ensinar se constituiria numa prtica no virtuosa, devido ao fato de que: 1) quando ensinamos, ao mesmo tempo, aprendemos, estabelecendo-se desde o incio uma relao essencialmente de troca; 2) a posio do educando em relao ao educador de subordinao e, nessa condio, o educador deve submeter seu educando de maneira virtuosa, ao invs de tirar proveito de sua ignorncia. O filsofo afirma que a obteno de proventos por meio do ensino se inseria na injusta lgica da justia dos homens: a da convenincia do mais forte. Nesse sentido, aquele que ensina o detentor do poder na relao professor e aluno ao instituir como regra cobrar por essa atividade, o faz como exerccio de dominao sobre aquele que no sabe:

    [Trasmaco] -Que outra pena respondi eu seno aquela [o pagamento] que deve sofrer o ignorante? Devo aprender junto de quem sabe. isso, portanto, o que eu julgo merecer. [Scrates]-s muito engraado. Mas, alm de aprender, ters de pagar tambm dinheiro (PLATO, s/d, p. 22).

    O discpulo, ao pagar pelos ensinamentos do mestre, sofria duas penas: a primeira era a submisso ao mestre e a segunda, o pagamento em i. O fato de o preceptor cobrar pelo ensino incorria num desvio na natureza da atividade de ensinar, pois tratava-se de atividade que deveria visar ao benefcio do aprendiz, exclusivamente, e, de forma extensiva, sociedade:

    -Portanto, Trasmaco, nenhum chefe, em qualquer lugar de comando, na medida em que chefe, examina ou prescreve o que vantajoso para ele mesmo, mas o que o para o seu subordinado, para o qual exerce a sua profisso, e tendo esse homem em ateno, e o que lhe vantajoso e conveniente, que diz o que diz e faz tudo o quanto faz (Idem, p. 31).

    De fato, o que Scrates objetava era a considerao do ensino como atividade mercenria, vez que, para o filsofo, tratava-se, antes, de oportunidade de exerccio da subordinao do educando com a finalidade virtuosa de lhe proporcionar o aprendizado das artes liberais, de instaurao de uma segunda natureza, a civilizada. Na Idade Mdia, o magistrio aparece como misso, materializada na tarefa do professor de auxiliar o aluno no processo de apreenso da verdade. O mestre j no a fonte do conhecimento, mas um instrumento para se atingir a verdade, na medida em que o conhecimento verdadeiro pr-existe ao homem e revelado por Deus aos iluminados:

    legtimo afirmar que um homem verdadeiro professor, que ensina a verdade e que ilumina a mente, no porque infunda a luz da razo em outro, mas como que ajudando essa luz da razo para a perfeio do

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    conhecimento, por meio daquilo que prope exteriormente, tal como o diz So Paulo (Ef. 3,8) A mim, que sou nfimo entre os santos, foi dada esta graa: a de iluminar a todos etc (TOMS DE AQUINO, 2001, p. 35, grifos nossos).

    Observe-se que, para Toms de Aquino, o professor ensina a verdade que ilumina a mente, no podendo infundir a razo no aluno que no a tem dentro de si. Parece permanecer a idia socrtica de que o aprendizado depende do metal que o indivduo traz na constituio de sua alma, ou seja, depende do seu talento, uma pr-disposio para a apreenso da verdade que no dada a qualquer ser humano.

    No sculo XIII, o magistrio era praticado predominantemente por clrigos e, mesmo os leigos que se dedicavam a essa atividade, tendiam a viver sob preceitos morais estabelecidos socialmente para os primeiros, o que pode ter relao com o fato de o ensino ser considerado como vocao, ou seja, chamado divino1. O ensino universitrio foi constitudo no seio da igreja catlica: a universidade de Bolonha nasceu como um centro catlico de estudos jurdicos e depois, em 1352, fundou-se uma faculdade de teologia, devido influncia do papa Inocncio VI. Antes mesmo, no sculo XII, o papa Inocncio III criara a universidade de Paris e, a Universidade de Paris ter-se-ia constitudo sem a interveno dos papas, mas impossvel compreender o que lhe assegurou um lugar nico entre todas as universidades medievais se no se levar em conta a interveno ativa e os desgnios religiosos nitidamente definidos do papado (VERGER, 1990, p. 485). A hegemonia da igreja catlica sobre os estudos superiores era o tempo todo ameaada, mediante as lutas pela laicizao do ensino universitrio, pelo interesse do poder Estatal em financi-los e o interesse de alunos e professores em fundar instituies independentes (Idem, p. 26030). Naquele momento, em que os estudos universitrios ainda no tinham o sentido de Universidade, qual se apresenta a partir da modernidade, a Universitas, ou Studium Generale, ou Comune referia-se a um conjunto de pessoas, mestres e alunos, que participam do ensino dado nessa mesma cidade (GILSON, 2001, p.483). Durante toda a Idade Mdia, a presena de clrigos na histria da educao muito marcante e pode ser representada por pensadores como Santo Agostinho, So Toms de Aquino, So Boaventura, Santo Ambrsio, Santo Anselmo de Cantunria, Guilherme de Okcam e outros (Idem, p. 492 e ss.).

    Quanto remunerao, o professor podia receber contribuies de seus alunos aps as aulas, mas no tinha um provento de valor fixo e frequncia peridica, que caracterizasse uma relao de trabalho salariado2. Nesse momento, retoma-se o debate sobre se era moral ou amoral por parte dos mestres receber para ensinar ou se a Igreja quem deveria remunerar quem ensina. Entendemos que isso suscitava uma discusso mais profunda sobre se o magistrio deveria ou no se constituir em profisso, tendo em vista seu carter de dom divino, recebido gratuitamente, para assim ser oferecido (VERGER, op. cit.). Naturalmente, no se deve olvidar, que no contexto histrico medieval, o trabalho segue tendo um carter negativo, de modo que era considerado como atividade prpria dos estratos inferiores da sociedade. O fato de que os candidatos a professores eram filhos de nobres e burgueses abastados permite-nos a inferncia de que, nesse momento, estes ocupavam um lugar privilegiado na diviso social do trabalho.

    Indagamo-nos se, na modernidade, a sociedade ocidental teria herdado o pr-conceito de que o requisito para se tornar um bom professor seria o dom e/ou a aptido para ensinar, e apresentamos a seguinte hipotese: devido ao fato de que o dom entendido como ddiva divina3, na perspectiva metafsica, e a aptido vista enquanto atributo da

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    natureza, na perspectiva inatista, tem-se a justificativa ideolgica para que aqueles atributos subjetivos sejam assumidos como condicionantes da formao objetiva do professor no liberalismo.

    Ante o exposto, entendemos que se trata de uma ideologia, cujo fundamento o que estabelece como natural a igualdade biolgica e a desigualdade social entre os homens na doutrina liberal. Considerar o professor como um vocacionado situ-lo na diviso social do trabalho capitalista fixando-o num determinado papel social to diferenciado de missionrio - em relao aos trabalhadores em geral. Isso suscita outra indagao: nessa condio de signatrio de uma misso, o professor seria atingido de forma diversa pelas injunes que se abatem sobre a totalidade da classe trabalhadora, no que se refere remunerao, s condies e precarizao do trabalho?

    2) O professor na diviso social do trabalho capitalista A gnese da diviso social do trabalho se confunde com o surgimento da

    propriedade privada: o objeto da produo no tem a funo social de contribuir para a satisfao das necessidades do gnero humano, como uma totalidade, mas a produo para a satisfao de necessidades particulares e imediatas de cada indivduo. No modo de produo capitalista, a sociedade reduzida sociedade civil, em que os indivduos particulares realizam trocas entre si para satisfao de necessidades egostas, sob a mediao do dinheiro: A sociedade como surge aos olhos do economista a sociedade civil, em que cada indivduo constitui uma totalidade de necessidades e s existe para ele medida que se tornam meios uns para os outros (MARX, 2001, p. 160).

    N'O Capital, Marx define a diviso social do trabalho, no capitalismo, a partir da diferenciao em relao diviso do trabalho na manufatura, devido a diferentes condicionantes. Historicamente, a diviso manufatureira do trabalho situa-se no seio das corporaes de ofcio, enquanto que a diviso social do trabalho de marca capitalista, na oposio entre trabalho no campo e na cidade, desde o momento da constituio do trabalhador urbano, como decorrncia da expulso do campesinato, que j se observa em meados do sculo XV, no ocidente (MARX, 1998,p. 264). Do ponto de vista processual, enquando na diviso manufatureira h um encadeamento em que o produto de uma etapa de um processo de produo constitui-se em matria prima para outro,de modo que todo o processo produtivo objetiva-se num produto final, na social, acontece a articulao dos diversos ramos da produo, de modo que ocorre um encontro de indivduos, portadores de necessidades particulares, vendedores de produtos excedentes, as mercadorias, enquanto que, na manufatureira. Enfim, a diviso social do trabalho torna-se mais complexa em diferentes ramos da produo, como o comrcio, a indstria e a agricultura, para penetrar organizao da produo e proporcionar o aparecimento dos ofcios e das profisses, limitando os indivduos s esferas profissionais particulares (MARX, 1998, p. 406 e ss.).

    A diviso manufatureira do trabalho segmentou o corpo de conhecimentos necessrios para a conformao do ofcio. Por meio da parcelizao, as tarefas, antes elaboradas pelo arteso, passaram a ser desenvolvidas por vrios trabalhadores parcelares na fbrica, no especializados, dando origem a uma multiplicidade de ofcios. Isso ocorreu quando o capitalista tornou-se proprietrio da oficina, da matria-prima e dos instrumentos de trabalho. A partir da, contratou artesos para fabricar os produtos e imps uma organizao do trabalho de tal modo que a classe trablahadora, constituda com um corpo de conhecimentos sobre o trabalho que a possibilitava o controle sobre o processo de trabalho do comeo ao fim, aps algumas geraes de

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    implementao a parcelizaor foi impingida a se dedicar a tarefas parciais na produo de uma determinada mercadoria. Nesse momento, a alienao no trabalho se efetiva como esvaziamento de seus contedos e um no reconhecimento, pelos trabalhadores, do produto que eles mesmos produzem em conjunto. Tal processo de alienao tem tornado a classe trabalhadora cada vez mais dependente das trocas que se do na sociedade, segundo as lei de mercado, impostas como alternativa nica de sobrevivncia (Idem, p. 408).

    A decorrncia desse processo de alienao consiste numa diversificao dos talentos humanos como um efeito da diviso social do trabalho e no a sua causa. Os intelectuais orgnicos do liberalismo trabalham na constituio da ideologia de que o talento seria algo inato, que teria como consquencia a diviso social do trabalho, quando, na verdade, o contrrio que ocorre. Os atributos humanos so constitudos no seio das relaes sociais, e geram intercmbios, uma vez que os talentos humanos e as formas de atividade mais diversos so de mtua utilidade, porque lhes possvel juntar os diferentes produtos numa massa comum, onde cada qual pode comprar. Assim como a diviso do trabalho nasce da disposio para a troca, assim tambm ela cresce e delimitada pela extenso da troca, do mercado (MARX, 2001,p. 164, grifos do autor).

    Dessa discusso, destacamos o surgimento da idia de trabalhador especializado, que vai originar o ofcio e a profisso. Durante todo o sculo XX, desenvolveu-se um debate sobre a qualificao, diretamente influenciada pelas variaes na organizao do trabalho fabril. No taylorismo, desenvolveu-se uma tecnologia para elevar os nveis de produtividade do trabalhador, parcelando-se, cada vez mais, suas tarefas e controlando seus tempos de atividade e repouso, com vistas a elevar os nveis de explorao da sua fora fsica. No fordismo, a idia de qualificao refere-se formao de trabalhadores especializados em determinadas tarefas na fbrica, aprofundando, ainda mais, a parcelizao do trabalho e exigindo, nessa conjuntura, alm da fora fsica, a formao tcnica como recursos para a ampliao da expropriao de mais-valia. Saliente-se que, no contexto do ps 2 Grande Guerra, o conceito qualificao foi utilizado como recurso ideolgico do capital para fragmentar a classe trabalhadora. A partir de tal conceito, o capitalismo instituiu uma polarizao: o plo do perfil de trabalhador requerido e o plo da formao tcnica, da experincia acumulada e o prprio lugar na diviso social do trabalho que cada trabalhador ocupa, aprofundando a hierarquizao no seio da classe trabalhadora ( Cf. RAMOS, 2001; PEA CASTRO, 1996).

    A partir do conceito qualificao, d-se a categorizao com vistas a apreender diferentes nveis de qualificao profissional determinadas de acordo com a formao:

    Profisses, ofcios e empregos se diversificam tambm segundo o tipo de formao requerida, a durao da aprendizagem e o nvel de qualificao que resulta. Contrariamente a uma opinio difundida, a formao em escola tcnica ou em uma empresa, o elemento decisivo das capacitaes profissionais e do grau de qualificao alcanado. O profissional, em qualquer ramo de atividade e qualquer emprego, o trabalhador (provisto) de uma experincia (educada). A extenso do ensino tcnico e dos (mdios) de aperfeioamento desde h vinte anos, em todos os pases industriais, basta para prov-lo. O aumento do nmero de diplomas e certificados profissionais emitidos na Frana, para uma populao ativa que cresce ao mximo, se produz no mesmo sentido. verdade que o aprendiz muda de modalidades em grande medida. Proporcionalmente se termina com menos freqncia depois de dois ou trs anos de ensino profissional e com maior freqncia se acelera, prolonga e mantm sesses de aperfeioamento, quase sempre na empresa (NAVILLE; FRIEDMANN, 1992, p. 232, grifos nossos)

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    A qualificao tcnica , por sua vez, determinante da situao do trabalhador num posto de trabalho correspondente sua formao e, no limite, determinante de sua profisso:

    De qualquer maneira, segue sem uma forma essencial de aquisio de capacidades que fazem de seu possuidor um profissional e um homem de ofcio. A diminuio do tempo de adaptao imediata a certas tarefas no incompatvel com esta tendncia, mesmo nas tarefas de vigilncia que necessitam, pelo contrrio, quase sempre, de longos perodos de familiarizao e de experincia. Pela regra geral, poderamos dizer que a atividade de trabalho se parece tanto mais com uma profisso ou a um verdadeiro ofcio quanto mais prolongado o tempo e mais amplos os conhecimentos que caracterizam a aquisio de seu domnio (Idem).

    A partir dos anos 1970, nos pases de capitalismo central, e 1980, no Brasil, assistimos a uma nova crise do capital, decorrente da crise energtica em todo mundo e da queda na taxa de lucros, um fenmeno tendencial no capitalismo. Tal conjuntura demandou novas formas de organizao do processo produtivo, e nele, a nova organizao do trabalho, em que se deu a relativizao dessa categorizao das profisses entre os trabalhadores especializados. Os trabalhadores diretamente ligados produo foram submetidos a um processo de restruturao da organizao do trabalho fabril que rompe com a idia de trabalhador qualificado especializado, em prol de uma formao dos trabalhadores de natureza polivalente, que os prepare para situaes novas, administrao de conflitos, deteco e resoluo de problemas, elaborao de propostas criativas, tendo em vista o aumento da produtividade. Mediante a imposio escola capitalista de responder a essa demanda, tal instituio assume a tarefa de formar trabalhadores com competncias aplicveis s diferentes situaes de trabalho, tornando-os flexveis, para responder demanda do capital a partir da instituio da organizao em clulas nas quais os operrios passam a exercer mltiplas funes. Manifesta-se, mais uma vez, a subsuno da escola ao mundo do trabalho, porm, com caractersitas especficas da conjuntura neoliberal. Nesse quadro, possvel que a nova organizao do trabalho possa atingir a formao e a atuao do professor? Uma vez explicitada nossa concepo de diviso social do trabalho, indagamos qual o lugar do professor nessa diviso, no neoliberalismo?

    A partir do anos 1970, houve a superao do modelo de Estado do Bem-Estar, em favor de outro menos interventor nas questes concernentes ao mercado o Estado Mnimo. Nesse modelo, a escola tem sido considerada como prestadora de servios, devido prpria mudana na funo Estatal, de garantidor de direitos para provedor uma estrutura para o mercado, em que suas instituies passam a ser organizadas como prestadoras de servios, exclusivos do Estado ou no. Isso, alis, mostra que Hayek, a despeito de todo o seu determinado abandono da miragem de justia social, no se limitou a retroceder a um puro favorecimento de laissez-faire ou ao Estado Vigia noturno (MERQUIOR, 1991, p. 191).

    O Estado, segundo esse modelo, passou a restringir sua atuao no mbito social e a assumir as tarefas de fomentador e avaliador de polticas pblicas no mbito social. Consequentemente, a educao torna-se servio, apelando s parcerias com a iniciativa privada para a implementao de polticas de servios educacionais.

    A classe trabalhadora, desde meados do sculo XIX, empreende lutas pelo direito educao, buscando arranc-la ao Estado Burgus nas condies de pblica, gratuita, universal e laica (ALVES, op. cit.). Contudo, desde a segunda metade do sculo XX, o

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    professor tem atuado profissionalmente numa escola onde a formao bsica, de direito a ser garantido pelo Estado, tem sido convertida pelo Estado neoliberal em servio no exclusivo daquele. Essa transmutao do direito educao escolar em servio educacional constitui-se em um aspecto importante da mercantilizao no mbito da educao e coloca novas exigncias aos educadores.

    Se nos detivermos mais pormenorizadamente na dinmica interna da instituio escolar, constataremos que, mesmo antes da reforma nas funes do Estado, que marcou a passagem do sculo XX para o sculo XXI, a organizao taylorista-fordista do trabalho j guardava uma racionalidade que cedo se introduziu na organizao do trabalho escolar, com vistas a aumentar a produtividade, ampliando as tarefas do professor na escola e fora dela, otimizando o seu trabalho de atendimento a nmeros cada vez maiores de alunos, e buscando nveis de controle cada vez maiores sobre seu trabalho. Nesse sentido, o tecnicismo na educao, sob inspirao taylorista-fordista, prestou uma importante contribuio para a racionalizao do trabalho na escola. As novas demandas ao profissional da educao no neoliberalismo, de mercantilizao do ensino, notadamente o escolar, forjou a necessidade de uma transformao nos processos de formao dos professores. Mais uma vez, uma metodologia de organizao do trabalho no mundo da produo introduzida na organizao do trabalho escolar e passa a se constituir em eixo para a elaborao de diretrizes em todos os nveis e modalidades de ensino, inclusive a formao e a atuao profissional de professores (COSTA, 2004).

    No que tange aos profissionais da educao, por vezes, assistimos a um processo de degradao das condies de trabalho que se concretiza sob duas formas. A primeira forma consiste no esvaziamento de contedos do seu trabalho, transformando-o em mero tcnico, o que concorre para a destituio de sua autonomia na escolha e seleo dos contedos. Os instrumentos de concretizao disso so: a formao dos professores em licenciaturas cada vez mais aligeiradas, que os leva a uma maior dependncia dos livros didticos; o estabelecimento dos parmetros curriculares nacionais, que elegem determinados eixos transversais como os privilegiados na seleo de organizao dos contedos; a prtica das avaliaes institucionais, como o exame nacional do ensino mdio, o sistema de avaliao do ensino bsico, o sistema de avaliao do rendimento escolar de So Paulo e outras, que classificam as escolas a partir dos desempenhos dos alunos e, aferem esses desempenhos a partir de competncias pr-determinadas pelos avaliadores. A outra forma o rebaixamento do salrio e condies laborais, ao oferecer salas superlotadas tornando a escola mais produtiva do ponto de vista de fluxo, como se fosse suficiente aferir o nmero de concluintes para se ter uma dimenso exata da qualidade da escola (NOVAES, 1987, p. 50-52).

    E, mesmo no contexto da reestruturao produtiva, que sucedeu a crise do capitalismo da dcada de 1970, o professor no escapou influncia da organizao flexvel do trabalho sobre a sua prtica docente. No texto do parecer CNE/CP 009/2001, o qual estabelece as diretrizes para formao de professores, esse profissional, alm da regncia, tambm convocado a atuar junto comunidade, a fazer pesquisa, a envolver-se em processos de educao continuada e na atualizao profissional, bem como ter uma formao flexvel para que possa atuar em diferentes instituies, com alunos que apresentam diferentes necessidades, a utilizar as tecnologias da informao e gerir as situaes escolares, tudo isso num contexto em que permanece a precariedade de salrios e condies de trabalho (COSTA, 2004, p. 8).

    Entretanto, h uma contradio: se, por um lado, o capital esfora-se por apreender do trabalhador seus saberes sobre o trabalho, por outro, jamais consegue o domnio completo

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    sobre eles (ROSA, 1998 p. 130 e ss). No que tange, especificamente, ao trabalhador da educao, essas tentativas de destituir o professor de sua funo de intelectual orgnico no logram xito: ele continua tendo ascendncia sobre os alunos e a estratgia mais recente do Estado neoliberal de interferir nisso estabelecendo polticas que visam ao oferecimento de uma formao inicial empobrecida, alienada dessa funo social, reduzindo-o a tcnico de alto nvel:

    A poltica do MEC refora o aligeiramento da formao de professores quando, por exemplo, valoriza os modelos institucionais alternativos de formao de professores para a educao bsica; possibilita a criao dos institutos superiores de educao; regulamenta a formao de professores para a educao bsica num corpo de complementao; estabelece consrcios com instituies de ensino para certificar docentes por meio de universidade virtual (MINTO; MURANAKA, 1991, p. 142).

    LE BOTERF (2003, p. 22-3) resgata o termo profisso desde a Idade Mdia, como algo que diz respeito aos saberes sobre o trabalho especficos de um grupo uma ordem e isso resguardado pela lei, segundo a qual os profissionais s poderiam exercer a profisso mediante licena. Outrossim, ele define ofcio como conjunto de saberes que se obtm a partir da experincia o saber-fazer. De incio, o autor estabelece uma hierarquizao entre o profissional (com os saberes intelectuais) e o oficial (com saberes prticos). Conforme o autor, Profissionalismo uma idia que se desenvolveu na Frana, num contexto de crise do desemprego e de busca pela conciliao entre os interesses da classe trabalhadora de serem reconhecidos a partir de sua qualificao - e os interesses do capital - de obter trabalhadores cada vez mais polivalentes. Ele prope o profissionalismo e a situao profissional como conceitos representativos de uma evoluo em relao idia de profissional. Entendemos, assim, que o autor reedita o conceito de ofcio sob a forma de profissionalismo. Para ele, o profissional da atualidade deve ter uma gama de competncias que o permita competir por empregos em diferentes lugares, vender-se, ter empregabilidade, em vez de uma qualificao. a valorizao dos saberes prticos, em detrimento dos conhecimentos sobre o trabalho (Idem, p. 24).

    Com relao ao profissional da educao, como em outras situaes profissionais, o apelo para que o trabalhador esteja em estado de permanente requalificao. E, conforme analisaram MINTO & MURANAKA (1991), tal entendimento est presente nas polticas pblicas brasileiras de formao de professores de educao bsica, em carter de complementao. O que se tem em vista, especificamente, so as necessidades do mercado de trabalho capitalista, cambiante e subordinador da educao ao mundo do trabalho.

    Enfim, denomina-se profissionalismo a capacidade de um indivduo vender sua fora de trabalho nesse mercado excludente, aproximando-se do modelo de profissional liberal, no sentido de prestador de servios, com plasticidade para se adaptar s variaes do mercado:

    A identidade profissional construda em relao a um projeto, a um produto, a um resultado esperado ou a um servio para um cliente. O profissional solicitado a contribuir para processos interofcios, a no mais se limitar a um posto de trabalho, mas intervir em processos e ser eficiente em interoperaes. As etapas de sua carreira no so fixadas de antemo: resultam dos percursos a definir progressivamente, dentro ou fora da empresa. Um excelente profissional, mesmo que tenha sido instrudo em uma determinada empresa, saber vender-se no mercado de trabalho graas ao conjunto de competncias que possui. O profissionalismo no deve excluir a referncia a um ofcio de origem. O

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    ofcio fonte de identidade. uma comunidade de origem e de competncias. O profissional se caracteriza por uma forte empregabilidade. Possui a dupla caracterstica de dominar bem suas competncias e de ter suficiente recuo em relao a elas para poder adaptar-se a mudanas de empregos ou de setores de atividade. Ele sabe manter-se preparado para estar pronto para mudar. imagem dos esportistas, mantm-se em forma para. Seu potencial torna-o disponvel para evoluir, para ser reempregvel em outra empresa (LE BOTERF, 2003, p. 23, grifos nossos)

    Isso justifica a relativizao da importncia dos contedos e a supervalorizao da dimenso prtica do trabalho pedaggico, presente na legislao que regulamenta as licenciaturas no Brasil, a partir de 2002 (BRASIL, 2002).

    O professor, na contemporaneidade, apresenta-se sob novas formas: como um trabalhador autnomo, sem direitos e garantias legais, que se submete s incertezas das leis do mercado, por exemplo, os pedagogos, que abrem consultrios para atendimento de dificuldades de aprendizagem; os Educadores Fsicos, que se empregam como personal trainer; os licenciados que sobrevivem oferecendo servios na forma de aulas particulares; os professores que se submetem a contratos como prestadores de servios com inscrio municipal ou contratos por tempo determinado e outras formas de exerccio profissional da docncia, marcadas pela instabilidade e precarizao de direitos do trabalho.

    Quando se estabelece estritamente esse perfil profissional como o desejvel, rompe-se com o conceito de qualificao, o qual, na verdade, guarda 3 dimenses: a conceitual, que se refere aos conhecimentos tericos e tcnicos sobre o trabalho; a da experincia, relativa aos saberes prticos; e a social, ou seja, a conscincia de seu papel social a partir do fato de ser um profissional, que se refere importncia social da profisso. O mercado de trabalho tende a tornar-se cada vez mais plstico e elstico, demandando trabalhadores, ora com umas competncias, ora com outras e, por isso, forte capacidade adaptativa. Nessa conjuntura, a educao permanente, a formao continuada, a capacitao a reciclagem de profissionais so imposies do mercado de trabalho aos trabalhadores, para que o recurtamento e a seleo de profissionais se dem segundo critrios sempre variantes, conforme as demandas de cada momento, subsumindo-se e esvaziando-se a formao inicial, cada vez mais aligeirada.

    Consideraes finais Para exercer sua funo social, no basta ao professor uma formao estritamente tcnica, pragmtica, voltada para a atuao como mero vendedor de servios no mercado. Indagamos se ofcio e profisso no seriam duas dimenses de um mesmo objeto, e se a idia de profissional no ultrapassaria a polarizao entre o detentor de saber e o prestador de servios. Se o ofcio algo ligado virtude do cumprimento do dever, que apela tica, e profisso relaciona-se dimenso de atividade para prover o sustento, utilizando um corpo de conhecimentos especficos para o profissional cumprir sua funo social, a partir de um lugar na diviso social do trabalho, o professor contm essas duas dimenses. Ele se distingue de todos os outros profissionais que trabalham tendo como objeto a transmisso da informao, pelo fato de que o seu trabalho vivo ultrapassa a dimenso da instruo, buscando seus nexos com um processo educativo mais amplo, na escola:

    A cosncincia individual da esmagadora maioria das crianas reflete relaes civis e culturais antagnicas s que so refletidas pelos programas escolares: o certo de uma cultura evoluda torna-se verdadeiro nos quadros de uma cultura fossilizada e anacrnica, no existe unidade entre escola e vida, por isso, no existe unidade entre instruo e educao. Da porque possvel dizer que, na escola, o nexo instruo-educao somente pode ser

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    representado pelo trabalho vivo do professor, na medida que o mestre consciente dos contrastes entre o tipo de sociedade e de cultura que ele representa e o tipo de sociedade e de cultura representado pelos alunos, sendo tambm consciente de sua tarefa, que consiste em acelerar e em disciplinar a formao da criana conforme o tipo superior em luta com o tipo inferior (GRAMSCI, 1991, p. 131).

    Conclumos que o professor um trabalhador sujeito s vissicitudes impostas pelo capital, cuja profisso no escapa aos antagonismos de classe, o que aparece de forma muito incisiva no mbito das instituies privadas de ensino, mas no deixa de se manifestar tambm nas pblicas, onde um Estado capitalista utiliza-se, cada vez mais das estratgias do mundo da produo para explorar e oprimir seus funcionrios. A ttulo de ilustrao, podemos citar toda a legislao que normatiza a atividade profissional do professor na escola pblica, no sentido de ampliar as possibilidades de explorao e retirar direitos do trabalho, como a retirada de direitos dos profesores do sistema pblico estadual de ensino paulista ( CF. SO PAULO, 2008a, 2008b). Entretanto, os professores se enquadram no grupo dos profissionais que se caracterizam pelo exerccio do trabalho intelectual como ofcio:

    Todos os homens so intelectuais, poder-se-ia dizer ento; mas nem todos desempenham na sociedade a funo de intelectuais. Quando se distingue entre intelectuais e no-intelectuais, faz-se referncia, na realidade, to-somente imediata funo social da categoria profissional dos intelectuais, isto , leva-se em conta a direo sobre a qual incide o peso maior da atividade profissional especfica, se na elaborao intelectual, ou se no esforo muscular-nervoso. Isto significa que posssivel falar em intelectuais, mas impossvel falar em no-intelectuais. Mas a prpria relao entre o esforo de elaborao intelectual-cerebral e o esforo de muscular-nervoso no sempre igual; por isso, existem graus diversos de atividade especfica intelectual (Idem, p. 7).

    Nessa condio, um intelectual tradicional, como o professor assume a caracterstica de intelectual orgnico, cuja peculiaridade ser um produtor de consensos referentes ao estabelecimentos de ideologias de uma ou outra classe social, para alm de um profissional qualificado, portanto, com uma dimenso poltica (Id. p. 6) Enfim, os professores so intelectuais que atuam necessariamente a partir de uma filosofia de educao que traz consigo uma concepo de homem e de sociedade. O professor possui a prerrogativa da formao (ou deformao) das futuras geraes na escola.

    Embora o professor, como qualquer outro profissional, no deixe de ser um vendedor de fora de trabalho, pois isso constituinte da classe trabalhadora, no modo de produo capitalista, ao exercer a profisso, tem a tarefa de no permitir que os critrios imediatistas e utilitaristas do mercado condicionem a sua atuao profissional, destituam-no de peculiaridades que lhe conferem uma natureza especfica. Mediante o exposto, conclumos que a luta dessa categoria pela afirmao de seu estatuto profissional concretiza-se na preservao do ensino presencial, garantindo a relao professor-aluno num contexto de sala de aula; pela no distoro do professor em gerente de uma classe, pela superao da perspectiva que reduz o conhecimento a informaes e habilidades, pela formao inicial e continuada que o prepare para ser um intelectual de cultura geral e cumprir seu papel histrico.

    preciso que a categoria recuse a mistificao de que o magistrio um dom, uma vocao, numa perspectiva quase que de sacerdcio, no aceite a formao inicial para o magistrio com esvaziamento dos contedos de sua formao, pois so essas as justificativas ideolgica para que a sociedade capitalista exija do professor o execcio da

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    profisso sob condies de trabalho cada vez mais rebaixadas, com aviltamento dos salrios.

    Agradecemos aos professores Dr. Fernando Bastos e Dr Rosa Manzoni, do Depto de Educao da UNESP/BAURU, pelo trabalho de reviso.

    Referncias Bibliogrficas

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    1 As transgresses desses preceitos geravam polmicas como a causada pelo matrimnio do filsofo

    Abelardo com a aristocrata Louise, os quais contraram matrimmino contrariando uma exigncia aos quadros da Igreja Catlica e uma convenincia da poca em relao ao voto de castidade dos mestres, no sculo XII. 2 Conforme Robert CASTEL (1998) o surgimento das condies para a constituio da relao salarial

    moderna s ocorreu no sculo XX, entretanto, j havia embries dela nas sociedades pr-industriais, pois (...)esses vestgios tiveram tanta existncia quanto a relao salarial fordista. Certamente no tiveram sua coerncia e no exerceram a mesma hegemonia sobre as relaes de trabalho (...) Porm a questo exatamente compreender isso. Reativar esses vestgios de assalariamento na sociedade pr-industrial, isto , a grande impotncia do conjunto dos assalariados de ento (p. 145-6). Sobre a Universidade como formao de disponibilidades para o trabalho e mais especificamente sobre o peso do capital escolar, Cf. HEY, 2004 P. 121 e ss. 3 Nossa referncia para essas afirmaes o resgate histrico sobre os conceitos dom e aptido, em

    MARAFON, 2001.

    Artigo recebido em: 14/05/08

    Aprovado para publicao em: 30/06/09