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O PROBLEMA DO SOFRIMENTO UM DEBATE ENTRE BART EHRMAN E N. T. WRIGHT Tradução, revisão e edição: www.ElielVieira.org

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Page 1: "O Problema do Sofrimento": um debate entre Bart Ehrman e N T Wright

O PROBLEMA DO SOFRIMENTO UM DEBATE ENTRE BART EHRMAN E N. T. WRIGHT

Tradução, revisão e edição:

www.ElielVieira.org

Page 2: "O Problema do Sofrimento": um debate entre Bart Ehrman e N T Wright

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO

BIOGRAFIA DOS PARTICIPANTES

BART EHRMAN: Como o problema do sofrimento arruinou minha fé.

N. T. WRIGHT: O plano de Deus para nos resgatar.

BART EHRMAN: O que dizer sobre o sofrimento real?

N. T. WRIGHT: O que o mundo parece quando Deus está no comando?

BART EHRMAN: O reino de Deus não chegou!

N. T. WRIGHT: A Bíblia responde ao problema – veja como.

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INTRODUÇÃO

O presente debate aconteceu durante o mês de Abril de 2008 e foi organizado

pelo site Beliefnet1 com o título Is Our Pain God’s Problem? [A nossa dor é problema

de Deus?]. O formato deste debate é um pouco diferente do convencional, pois os

participantes não se encontraram pessoalmente, diante de uma platéia, para a realização

do mesmo. Ambos escrevem seus discursos e enviaram para serem publicados no

website que organizou o debate. Cada participante deve direito a escrever três posts, que

variaram entre 1000 e 2000 palavras cada.

Tradução e edição: Eliel Vieira2. Todos os direitos da tradução reservados.

1 <http://blog.beliefnet.com/blogalogue/is-our-pain-gods-problem/>.

2 <www.elielvieira.org>.

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BIOGRAFIA DOS PARTICIPANTES

BART EHRMAN

Bart Ehrman é o autor de O Problema com Deus: as respostas que a Bíblia não

dá ao sofrimento (lançado no Brasil pela editora Agir), além de vários outros títulos.

Atualmente Bart Ehman é o titular da cadeira James A. Gray de estudos religiosos na

Universidade da Carolina do Norte, Chapel Hill, EUA.

N. T. WRIGHT

N. T. Wright é o bispo de Durham pela Igreja da Inglaterra. Foi professor de

Novo Testamento em Cambridge, McGill e Oxford, e tem continuamente escrito e

falado sobre teologia bíblica e história cristã. Wright é autor de Surpreendido pela

Esperança, Simplesmente Cristão e O Mal e a Justiça de Deus (todos os três títulos

lançados no Brasil pela editora Ultimato), além de vários outros títulos.

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BART EHRMAN

COMO O PROBLEMA DO SOFRIMENTO ARRUINOU MINHA FÉ

Durante a maior parte de minha vida eu fui um cristão devoto, acreditava em

Deus, confiava em Cristo para salvação, sabia que Deus estava envolvido de forma ativa

neste mundo. Durante minha adolescência eu era evangélico, com uma crença firme na

Bíblia como a Palavra inspirada e inerrante de Deus. Naquele tempo eu tinha algumas

visões bem simples, mas em geral aceitas, sobre como pode haver tanta dor e miséria no

mundo. Deus nos concedeu livre arbítrio (nós não fomos programados como robôs),

mas uma vez que éramos livres para fazer o bem, éramos livres também para fazer o

mal – desta forma ocorreram o holocausto, o genocídio em Camboja, etc. Com certeza,

esta visão não explicava todo mal presente no mundo, mas um bom número de

sofrimento era um mistério e, no fim das contas, Deus concertaria tudo o que estava

errado.

Por volta dos meus vinte anos de idade eu deixei de ser evangélico, mas

continuei sendo cristão por outros vinte anos – um crente em Deus, que confessava seus

pecados, que ia à igreja, que não mais sustentava a inerrância das Escrituras, mas que

acreditava que a Bíblia continha a palavra de Deus, digna de ser tomada como fonte de

reflexão teológica. E quanto mais eu estudava a tradição cristã, primeiro como um

estudante de graduação no seminário e depois como um jovem professor de estudos

bíblicos em universidades, mais sofisticadas ficavam minhas visões teológicas e minha

compreensão sobre o mundo e o que há nele.

A questão do sofrimento cada vez mais se tornava um problema para mim e

minha fé. Como alguém consegue explicar a miséria e a dor no mundo se Deus – o

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criador e redentor de tudo – é soberano sobre nossas vidas? Por que, eu me perguntava,

existe esta fome desenfreada no mundo? Por que existem secas prolongadas, epidemias,

furacões e terremotos? Se Deus responde a orações, por que ele não respondeu às

orações dos judeus fieis durante o holocausto, ou dos cristãos fieis que também

sofreram tortura e morte nas mãos dos nazistas? Se Deus se preocupa em responder às

minhas pequenas orações relacionadas à minha vida diária, por que ele não respondeu às

minhas (e de várias outras pessoas) orações grandes quando milhões de pessoas foram

escravizadas pelo Khmer Rouge no Camboja, quando em questão de minutos um

deslizamento de terra matou 30 mil colombianos enquanto eles dormiam, quando

desastres de todos os tipos causados por seres humanos e pela natureza acontecem no

mundo?

Eu li muito sobre esta questão. Li filósofos, teólogos, estudiosos bíblicos,

grandes figuras literárias e autores populares, de Platão a Sartre, de Apuleio a

Dostoievsky, do apóstolo Paulo a Henri Nouwen, de Shakespeare a T. S. Eliot, a

Archibald Macleish, de C. S. Lewis (de quem eu sempre tomava alguma ideia

emprestada) a Harold Kushner, a Elie Wiesel.

Eventualmente, enquanto ainda era um pensador cristão, eu acreditava que o

próprio Deus estava profundamente relacionado com o sofrimento e intimamente

envolvido com ele. A mensagem cristã, para mim, naquele tempo, era que Jesus Cristo é

a revelação de Deus para nós humanos, e que em Jesus nós podemos enxergar como

Deus lida com o mundo e se relaciona com ele. Ele se relaciona com o mundo, eu

pensava, não o conquistando, mas sofrendo junto com ele. Jesus não estava sentado em

um trono em Jerusalém para governar o Reino de Deus. Ele foi crucificado pelos

romanos, sofrendo uma morte dolorosa, excruciante e humilhante por nós. Como Deus

é? Ele é um Deus que sofre. A maneira como ele lida com o sofrimento é sofrendo por e

junto conosco.

Esta foi minha visão por muitos anos, e eu ainda a considero uma visão teológica

muito poderosa. Esta seria a visão que eu abraçaria se ainda fosse um cristão. Mas eu

não sou.

Há cerca de nove ou dez anos atrás eu vim perceber que eu simplesmente não

acreditava mais na mensagem cristã. Grande parte do meu afastamento da fé aconteceu

por causa de minhas reflexões em relação ao sofrimento. Eu simplesmente não

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conseguia mais abraçar a visão – que eu considerava ser essencial à fé cristã – de que

Deus era ativo no mundo; que ele respondia orações; que ele intervinha no mundo de

acordo com sua fidelidade; que ele trouxe salvação no passado e que no futuro, no

eschaton, ele endireitaria tudo o que estava errado; que ele vindicaria seu nome e seu

povo, e que traria um novo reino (seja na nossa morte ou aqui em uma Terra de

existência futura utópica).

Nós vivemos em um mundo no qual uma criança morre a cada cinco segundos

por não ter o que comer. Cinco segundos. A cada minuto vinte e cinco pessoas morrem

por não ter água potável para beber. A cada hora 700 pessoas morrem de malária. Onde

está Deus nisto tudo? Nós vivemos em um mundo no qual terremotos no Himalaia

matam 50 mil pessoas e deixam 3 milhões sem teto à beira do inverno. Nós vivemos em

um mundo onde um furacão destrói Nova Orleans. Onde um tsunami mata 300 mil

pessoas em uma gigantesca inundação. Onde milhões de crianças nascem com defeitos

de nascimento horríveis. E onde está Deus? Dizer que ele algum dia vai endireitar tudo

o que está errado me parece, agora, ser puro wishful thinking.

Como se vê, minhas várias lutas com o problema do mal me levaram, já como

um agnóstico, de volta à Bíblia, para ver como autores bíblicos diferentes lidaram com

este problema, a maior de todas as questões humanas. O resultado está em meu mais

recente livro O Problema com Deus: as respostas que a Bíblia não dá ao sofrimento3.

Meu ponto é que muitos dos autores da Bíblia lutaram com esta mesma questão: por que

as pessoas (especialmente o povo de Deus) sofrem? As respostas bíblicas algumas vezes

são impressionantes por causa de sua simplicidade e poder (o sofrimento vem como

uma punição de Deus pelo pecado; o sofrimento é um teste para a fé; o sofrimento é

gerado por poderes cósmicos inimigos de Deus e de seu povo; o sofrimento é um

mistério gigantesco e nós não temos direito de perguntar por qual motivo ele acontece;

o sofrimento gera redenção e ele é o meio pelo qual Deus traz sua salvação; etc.).

Algumas destas respostas contradizem umas às outras (é Deus ou são seus inimigos

cósmicos que estão gerando destruição na Terra?), embora muitas delas continuam a ser

ensinadas às pessoas religiosas.

Minha esperança ao escrever este livro certamente não foi de encorajar as

pessoas a se tornarem agnósticas – o caminho que eu tomei. Meu objetivo é ajudar as

3 Editora Agir, 2008.

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pessoas a pensar, tanto nesta questão, a maior de todas as questões, quanto no

significado histórico e cultural das respostas religiosas a esta questão que podem ser

encontradas nos livros de histórica de nossa civilização.

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N. T. WRIGHT

O PLANO DE DEUS PARA NOS RESGATAR

Obrigado, Bart, pelo relato claro e comovente da fé que você abraçava, seus

questionamentos, e seu eventual abandono da fé cristã. Estou feliz em ler que você

escreveu seu livro sem o objetivo de encorajar as pessoas a te seguir no agnosticismo

(embora eu ache que é assim que o livro vai funcionar retoricamente a alguns), mas para

encorajar todos nós a pensar. Isto é algo que eu constantemente falo às pessoas: eu

acredito na autoridade da Escritura e na tradição cristã como a comunidade de discussão

na qual os cristãos ouvem esta Escritura – mas acredito também, no muito importante

uso apropriado da razão. Nossa cultura caiu e tornou-se presa do emotivismo, que leva

as pessoas a dizer “eu sinto” quando elas querem dizer “eu penso”, e então a – em um

simples movimento – permitir que o sentimento triunfe sobre o pensamento, e em

seguida, substituí-lo por completo. Este caminho, eu acho que nós concordamos aqui,

permite o caos e a loucura.

Existem dois grandes elementos gerais em seu livro e seu primeiro discurso que

eu gostaria de mastigar nesta primeira resposta.

Primeiro, aproveitando este ponto sobre pensar e sentir, eu acho que o impacto

retórico tanto do seu livro quando de seu breve discurso de abertura está em fazer um

forte apelo às emoções, talvez particularmente às emoções das pessoas ocidentais como

nós próprios, que são acusados, geográfica e culturalmente, dos muitos horrores que

acontecem no mundo. Você devota muito tempo em seu livro, e até mesmo em seu

breve discurso de abertura, detalhando alguns destes horrores, como que para lembrar

aos leitores o que (certamente?) todas as pessoas inteligentes já sabem. (Eu não teria

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sido capaz de recitar as estatísticas reais, mas nenhum dos fenômenos me soou como

surpresa.)

Existem, obviamente, múltiplas misérias no mundo, e para muitos (a maioria?)

deles é impossível dizer, “Olha! Um grande bem veio daquele mal.” Eu acho que nós

dois reagimos da mesma forma contra esta sugestão. Certa vez ouvi Rowan Williams

sugerir que pode ser imoral tentar “solucionar” o problema do mal, porque tão logo

você diga, “Olha, isto aqui resolve tudo, não?”, você já estará diminuindo o problema,

voluntariamente se cegando para a natureza radical, poderosa e real do mal. Mas eu não

estou certo sobre qual força lógica ou moral (em contraste com a retórica) que você

acrescentou ao seu caso ao descrever com tantos detalhes os horrores que ocorrem no

mundo.

Em certo sentido você simplesmente nos trouxe de volta para onde a Europa

ocidental se encontrou após o terremoto em Lisboa no Dia de Todos os Santos de 1755.

Naqueles dias alguns diziam, “Olhe para o mundo, pense nisto, e você verá que Deus

existe e que o Cristianismo é verdadeiro.” O terremoto foi um chamado despertador

para a religião ocidental casual, e precipitou toda a revolução do Iluminismo, primeiro

em direção ao imparcial Deísmo e em seguida ao agnosticismo e ateísmo. Você fez algo

mais do que apenas recapitular aquele momento? E, se você não fez, então eu acho que

quero lhe perguntar: você não estava ciente, antes, da escala de mal existente no mundo

– o holocausto, os bebês mortos, os desastres “naturais” inexplicáveis, etc.? Você não

está implicando que as pessoas (como eu, por exemplo) que ainda abraçam a fé cristã

estão de alguma forma falhando em observar estes horrores, ou em refletir de forma

sóbria e profunda sobre eles? E se, como você diz, seu livro (e seu discurso de abertura)

não constituem na verdade um argumento contra a fé cristã (“Se você refletir nestas

questões você verá que as afirmações cristãs são incríveis”), não poderia parecer que

sua mudança de posição descrita por você próprio é uma mudança que ocorreu não em

virtude de argumentos lógicos, mas por causa de outros (não especificados) fatores, com

o problema do sofrimento provendo um tipo de pano de fundo intelectual para uma

jornada cuja principal energia veio de outro lugar? Eu não estou dizendo que os

argumentos não são importantes. Mas eu estou tentando entender o que você está

dizendo quando nega que os argumentos do seu livro e do seu discurso constituam um

apelo para que qualquer pessoa siga seu caminho.

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O segundo ponto geral se refere à maneira de você lidar e descrever a Bíblia e a

fé cristã. Eu gostaria de comentar sua análise do material bíblico. É aqui que eu tenho

que referir ao tratamento que eu faço do mesmo problema em O Mal e a Justiça de

Deus4, que constitui parte do trabalho de base para meu novo livro Surpreendido pela

Esperança5. Eu não sei se você leu alguns destes livros, mas no primeiro eu forneço um

relato bem diferente do seu para o material do Antigo Testamento, enxergando o

chamado de Abraão não como Deus simplesmente chamando Abraão “para ter uma

relação especial com ele”, mas como o momento no qual Deus lança o plano de

realização em longo prazo para resgatar o mundo de sua miséria. Em outras palavras, eu

li a história de Israel como um todo (não apenas em suas partes individuais, que, por

elas mesmas, se retiradas de seu contexto, podem ser reduzidas para “Israel pecou, Deus

puniu”, etc.), como a história da teodicéia em prática: “está é a narrativa de como o

Deus criador vai eventualmente endireitar todas as coisas”. E, desta forma, as promessas

de Isaías 11, etc.

A partir disto temos três subpontos. Primeiro, sua leitura apocalíptica me parece

imprecisa em termos de substância e fora do tempo em termos acadêmicos. A disjunção

aguda entre “profético” e “apocalíptico”, e a caracterização do apocalíptico em termos

de dualismo, pessimismo, etc., é muito enganadora, e cresceu a partir de uma velha

ciência que não tinha simpatia alguma pelo o que os apocalipsistas estavam tentando

fazer.

Segundo, eu fiquei surpreso que ao discutir Paulo você nunca mencionou que

Romanos é todo sobre a “justiça de Deus”, ou seja, a mesma questão abordada em todo

o seu livro; você reduz o entendimento de Paulo a um relato substitutivo simplista da

cruz, o que, embora importante, não apresenta a grande imagem ou todo seu argumento.

Terceiro, você nunca analisou os evangelhos da forma como eles realmente se

apresentam – como o clímax da história enraizada em Abraão de Israel como a resposta

de Deus para o problema. A inauguração de Jesus do Reino de Deus (e a culminação da

inauguração do reino na cruz e ressurreição), como eu tenho argumentado em meus

livros, era precisamente a resposta para a questão “como o mundo se parece quando

Deus o comanda?” – a mesma questão de todo o seu livro. Não ficou claro para mim se

4 Ultimato, 2009.

5 Ultimato, 2009.

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você estava dizendo que Jesus se enganou em suas crenças e ensinamentos... Eu senti

com frequência que a forma de fé cristã que você estava rejeitando era o tipo particular

do protestantismo norte americano, que eu não acho que faz justiça ao material.

Em particular, é claro, a ressurreição de Jesus é absolutamente central para mim.

Como muitas pessoas antigas e modernas, você não vê credibilidade nisto. Se eu não

acreditasse na ressurreição, eu não teria as crenças que eu tenho sobre as outras coisas.

Ainda há muito que comentar, mas aqui está o começo. Eu suspeito que ambos

ficaremos frustrados no fim por sermos limitados a três discursos. Ambos ultrapassamos

a meta de 500 palavras para este primeiro discurso. Estou satisfeito assim, caso você

esteja.

Estou ansioso para ouvir sua resposta.

Tom.

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BART EHRMAN

O QUE DIZER SOBRE O SOFRIMENTO REAL?

Obrigado, Tom, pela sua profunda e interessante resposta. Eu acho que nós

percebemos o quão difícil é interagir neste tipo de fórum, onde queremos estabelecer

um debate, mas tivemos que nos limitar a breves respostas. Mas nós – você e eu –

precisamos nos adaptar da melhor forma que conseguirmos...

Você está certo. Meu objetivo não é fazer pessoas agnósticas nem com meu livro

nem com minhas respostas neste fórum. Isto porque eu não sou tão arrogante a ponto de

pensar que pessoas inteligentes precisam sempre estar de acordo comigo! Mas eu fico

pensando se você não estaria tomando uma posição semelhante, isto é, se você estaria

ou não querendo dizer que você também não está interessado em converter pessoas para

sua maneira de pensar ou acreditar.

Eu estou especialmente surpreso que você tenha considerado que um apelo a

emoções não seja digno de debate, ou seja, irrelevante às questões da dor e miséria no

mundo – como se a pura lógica (ou exegese!) fria fosse a única coisa necessária para

lidarmos com o problema do sofrimento. Sua visão me ataca como uma posição pós-

iluminista única e característica de um ramo particular do protestantismo moderno, e eu

devo dizer, em minha opinião, esta é uma postura completamente inapropriada. (Eu sou

influenciado, nesta questão, particularmente, pelas posições “antiteóricas” de Therence

Tilley e Kenneth Surin, que eu recomendo a todos que não se importam em ler leituras

um pouco mais pesadas sobre estas questões importantes.) A questão do sofrimento

humano não é um problema lógico ou um tipo de equação matemática que precisa ser

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resolvido. É um problema humano que exige empatia, simpatia, envolvimento

emocional e ação.

Você pergunta se eu suspeito que você e outros como você não estariam cientes

da dor e da miséria no mundo. Não, eu acho que você sabe disto. Mas, pessoalmente, eu

sou totalmente contra uma abordagem para o sofrimento que pensa que a agonia

humana precisa ser vista distante do engajamento intelectual destas “questões”. Uma

coisa é pregar no púlpito de marfim da academia ou da catedral sobre a usurpação do

Reino de Deus, outra é sentar do lado de uma criança morrendo de fome em Darfur e

falar do propósito glorioso de Deus para este mundo. Durante o tempo que eu gastei

para escrever esta resposta para você, cerca de 30 mil morreram desta forma –

morreram terrivelmente por inanição – no mundo. Certamente você não está defendendo

que, ao lidarmos com este problema, nós devemos ser imparciais em relação a esta dor e

miséria e, ao invés disto, falarmos racionalmente sobre a exegese da carta de Paulo aos

romanos. Eu pelo menos *espero* que você não esteja dizendo isto (embora pareça ser

isto que você esteja dizendo), porque isto me parece desumano, e eu sei (uma vez que te

conheço) que você não é desumano.

Quanto à substância de sua resposta eu também fiquei um pouco atrás com sua

afirmação de que minhas visões do apocalipsismo estão de algum modo fora de época.

Eu não sei o que você tem em mente, já que você não diz, mas eu considero o estudo de

profecias antigas uma das áreas do meu conhecimento acadêmico; eu tenho lido e

estudado literatura apocalíptica pelos últimos 30 anos e tenho, acredito, um bom

conhecimento neste campo.

Desta forma, seu comentário improvisado de que meus pontos de vista estão de

alguma forma antiquados me parecem retóricos e sem substância. Ainda assim eu me

interessaria em ter uma discussão séria, caso queira me dizer onde você acha que eu

entendi errado.

Eu devo dizer, neste contexto, que eu não acho que o pensamento apocalíptico

esteja, de um lado, em radical descontinuidade com a profecia de alguém ou, por outro

lado, que ele deveria ser dispensado (estas parecem ser duas objeções que você sustenta

em relação ao meu ponto de vista). Visões apocalípticas, com certeza, surgiram a partir

de visões proféticas – em grande parte por causa das drásticas deficiências da insistência

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profética de que o sofrimento chega ao povo de Deus porque Ele está punindo este povo

por causa de seus pecados: se está é a razão para o sofrimento, por que então as pessoas

sofrem quando elas seguem Sua vontade? A resposta apocalíptica provê uma

explicação. Para os apocalipsistas, são os inimigos cósmicos que estão causando o

sofrimento. Este é o período na história de Israel em que os pensadores judeus

começaram (ao contrário dos profetas clássicos) a considerar a hipótese da existência do

Diabo, demônios e outros poderes do mal que se opunham a Deus. E como você sabe,

por ter lido meu livro, eu não sou de todo antipático com esta visão. Esta foi a visão que

eu acreditei por muitos anos como um cristão, e se eu ainda fosse um cristão, eu

continuaria a abraçá-la.

Sim, eu li sua discussão da Bíblia hebraica e Abraão, e eu a considerei não

persuasiva e inadequada. A explicação para isto, possivelmente, é que você quis

escrever um livro simples e curto e então teve que simplificar suas visões. Em seu livro

sobre o mal você trata a Bíblia hebraica como se ela fosse uma narrativa contínua

escrita por um único autor com um tema geral (sendo Abraão o suporte principal da

história). Não é assim! A Bíblia hebraica nem um pouco mais do que o Novo

Testamento, ou mesmo a literatura evangélica do Novo Testamento, representa o ponto

de vista de um único autor. A Bíblia é gloriosamente rica, diversa e contextualizada.

Diferentes autores bíblicos escreveram em diferentes épocas, em situações diferentes e

para públicos diferentes, e eles tem diferentes perspectivas e pontos de vista, muitos

deles completamente contraditórios uns aos outros. Eu sei que você sabe disto. Mas por

que você age, fala e escreve como se fosse o contrário? Sua narrativa síntese do texto

(tanto em relação à Bíblia hebraica quando aos Evangelhos) é exatamente o que eu

tenho tentando corrigir em meus alunos durante a maior parte de minha carreira. As

narrativas da Bíblia hebraica incorporam inúmeras fontes, com várias perspectivas que

algumas vezes são contraditórias, em termos de perspectivas teológicas, umas às outras

(sobre o problema do sofrimento, por exemplo). Tudo isto está completamente perdido

em seu relato “da” história da Bíblia, tendo Abraão como o pivô que conduz a história

para Isaías 11 (e assim por diante).

Concluindo, eu acho que o que mais me surpreendeu foi que você não lidou na

verdade com o problema do sofrimento em seu discurso de abertura. Você se escondeu

atrás da idéia de que você tem alguma explicação teológica para tudo isto. Mas você não

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indicou que explicação é esta. Eu gostaria de ouvi-la. Meu ponto de vista é que é

impossível explicar a dor e a miséria sobre nós – as milhões de crianças na África

morrendo de AIDS e malária, as outras milhões de crianças que estão morrendo ao

serem forçadas a beber água contaminada, os incontáveis desastres naturais (furacões,

tsunamis, secas, fome) – se existe um Deus bom e todo poderoso governando o mundo.

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N. T. WRIGHT

O QUE O MUNDO PARECE QUANDO DEUS ESTÁ NO COMANDO?

Obrigado, Bart, pela sua resposta e novo discurso. Eu suspeito que nós fizemos

algumas lebres correrem na mente um do outro, mas que não terão tempo de serem

perseguidas. Eu penso que a questão da definição e descrição do que é apocalíptico é

uma destas lebres; nós podemos falar sobre isto outra hora talvez...

Mas eu gostaria de começar onde você terminou, sobre a questão-chave do seu

livro.

(E, obviamente, eu estou muito ciente da importância das emoções dentro do

conjunto do debate, e não quero de forma alguma reduzi-lo à lógica fria; mas se alguém

está apresentando um argumento, então multiplicar os exemplos do problema na

verdade não acrescenta força alguma ao argumento.)

A questão é, como pode haver todo este horror “se existe um Deus bom e todo

poderoso governando o mundo?” Meu comentário, em minha declaração anterior, era

que nos Evangelhos, a afirmação de Jesus era, “É assim que as coisas se parecem

quando Deus está no comando do mundo” (uma maneira de dizer “o reino de Deus está

próximo”). É claro que eu estou ciente das diferentes ênfases e nuances entre os

Evangelhos, mas em suas diferentes formas eles concordam, eu penso, sobre isto: que

tudo aquilo que estava acontecendo durante a carreira pública de Jesus era a

inauguração de uma nova forma de “Deus estar no comando do mundo”. (Neste ponto, a

despeito de suas várias ênfases, os evangelhos canônicos concordam ao contrário dos

não-canônicos, você não acha?)

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Claro, não é desta forma que os contemporâneos de Jesus esperavam que as

coisas acontecessem (vitória de Israel sobre seus inimigos; novos níveis de pureza

alcançados; etc.). Da mesma forma, não é desta forma que nós quereríamos que as

coisas acontecessem (Deus abolindo a doença, a guerra, o ódio, os desastres naturais,

etc. de uma vez por todas). Mas Jesus parece ter afirmado que isto é o que o Deus de

Israel, o criador do mundo, estava na verdade fazendo.

Deste ponto de vista eu suponho que os Evangelhos constituíram, e ainda

constituem, um desafio a todas as expectativas, particularmente na medida em que eles

ligam – como leitores por séculos consideraram difícil ligar – a história da inauguração

do reino de Jesus com a história de sua crucificação e ressurreição. De alguma forma,

eles estavam dizendo que é assim que o mundo se parece quando o Deus bom, todo

poderoso e todo amoroso está no comando do mundo. Você pode dizer que se é isto o

que eles estavam dizendo, então o Deus do qual eles falavam não era todo poderoso da

maneira como imaginávamos, e eu suspeito que em certo sentido isto esteja correto.

Próximo ao âmago da proclamação de Jesus estava a incrível redefinição do próprio

poder, que se parece, na verdade, como se apontasse para a direção do “comando de

Deus no mundo” (se esta for a expressão correta), no que se poderia chamar de jeito

auto-renunciado deliberado, quase estudado, de comandar o mundo, através de um ser

humano obediente e sofredor, tendo esta obediência e especialmente este sofrimento

como, de alguma forma, instrumentos de todo o processo. O que “nós quereríamos que

Deus fizesse” – ter Deus se adequando aos nossos padrões de “como um Deus bom e

todo poderoso comandaria o mundo”! – parece ser a mesma coisa que Jesus estava

pondo em causa.

O mistério do próprio Jesus, portanto, para mim está próximo ao âmago – não

“da resposta”, porque eu não acho que exista algo como “a resposta”, mas – da matriz

do pensamento e da vida, na qual o povo de Deus é chamado a continuar a lidar com

este problema. Este é o lugar onde, em O mal e a Justiça de Deus, eu tento reunir as

discussões tradicionais da “expiação” e as discussões tradicionais do “problema do mal”

e sugiro que é estranho que elas tenham que ser tratadas separadamente, uma vez que

elas parecem estar intimamente relacionadas na própria Bíblia. (E elas não podem ser

reduzias, eu diria, à lógica “Deus pune o pecado”; eu tenho sido levado a incluir alguns

elementos presentes na ideia principal de Christus Victor, que, sim, envolvem poderes

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cósmicos sobrenaturais e tudo mais. Embora eles sejam difíceis de serem descritos

adequadamente, eles são mais difíceis ainda, em minha opinião, de serem ignorados.)

É por isto que, no meu ponto de vista, os Evangelhos não foram escritos apenas

para apresentar o clímax da história de Israel (a propósito, eu ouvi o que você disse

sobre a grande história e as múltiplas pequenas histórias; eu amo as pequenas historias

que nadam contra a correnteza, mas eu insisto em pensar que é parte da tarefa da

teologia cristã ler a Bíblia como um todo e enxergar suas correntes largas de

pensamento, bem como as correntes menores. Isto, em parte, é uma reedição do debate

Platão/Aristóteles, não é? Eu acho que ambos precisamos tanto do quadro grande

quanto dos pequenos detalhes)... mas também para gerar uma história que continua, em

minha opinião, até o dia de hoje e continuará, de fato, até o dia em que Deus renovará

todas as coisas: a história daqueles que, seguindo Jesus, fizeram seu problema com o

mal uma realidade em e através de suas próprias vidas. É por isto que a igreja primitiva

pregou – não socando dogmas na cabeça das pessoas, mas vivendo de forma a ajudar as

pessoas – um caminho fundamentado na realização de Jesus na inauguração de seu

reino e, não menos importe, no estabelecimento do seu reino através de sua morte e

ressurreição. (E, obviamente – apenas no caso de alguém estiver em dúvida – todos os

cristãos que viveram antes da medicina moderna sabiam muito mais sobre dor

sofrimento e mortes aparentemente sem sentido do que a maioria de nós hoje. E isto não

balançava a fé deles, ao menos não tão drasticamente. O “problema do mal”, da forma

como nós o pensamos hoje, é uma grande construção pós-iluminista.)

Veja, (para voltar a este ponto novamente) eu insisto que se Jesus não

ressuscitou de dentre os mortos, então não existiria razão alguma para sustentar

nenhuma forma de fé cristã. Um judaísmo ansioso, talvez, mas não uma fé em alguém

que fosse um profeta falho do reino. É precisamente porque eu acredito na ressurreição

de Jesus que eu acredito que o Deus criador inaugurou sua nova criação na qual, enfim,

Ele enxugará as lágrimas de todos os olhos. Eu não acho que você possa começar a

partir da observação do mundo e de alguma forma racionalizar até a fé cristã, porque

você encontrará precisamente os problemas que você tão correta e graficamente

levantou. Mas – eu me pergunto se está é verdadeiramente a posição que você abraçava

quando você ainda era um cristão praticante – se alguém crê, não apenas como um

assentimento intelectual com a doutrina, mas como uma relação viva com Deus através

Page 20: "O Problema do Sofrimento": um debate entre Bart Ehrman e N T Wright

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de Jesus Cristo, então o negro mistério do sofrimento pode ser visto dentro do contexto

do seu sofrimento, e ser transformado por ele. Claro, para sua plenitude, o mistério

necessariamente gera, como eu disse, a vida da igreja e, através dela, o mal é abordado.

Parte da “transformação” é que os discípulos de Jesus saíram para atuar como

curadores, reconciliadores, etc. É por isto que os dois últimos capítulos do meu livro são

uma pequena tentativa de dizer que a atuação das pessoas de fé em cuidar das

necessidades urgentes do mundo é, na verdade, uma parte da resposta bíblica – se você

pode chamar isto de “resposta” – ao problema. E no decorrer destes capítulos eu exploro

a noção de “perdão” como aquilo que não apenas liberta a pessoa perdoada do peso da

culpa, mas também liberta a pessoa que perdoa do peso da raiva. E eu sugiro que isto

pode até ser aplicado ao próprio Deus, no fim... embora eu ache que está é uma ponte

muito distante para algumas pessoas, e certamente para você próprio.

Eu espero conseguir ajudar outras pessoas a ter uma visão similar à minha

(embora, como eu geralmente digo aos meus alunos, 25% do que eu digo está errado,

mas eu não sei quais são estes 15%). Eu não estava dizendo que é uma coisa ruim

querer persuadir pessoas, apenas perguntando se você não pensou que estava montando

um argumento potencialmente conclusivo, e isto levantou a questão sobre se ele era a

principal razão de você ter deixado de ser cristão. Mas esta seria uma questão para outra

hora.

Eu sinto que estamos apenas começando... mas mesmo que sua próxima resposta

seja sua última, muito obrigado pelo prazer de abordarmos juntos estas questões

complexas, mas urgentes.

Tom.

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21

BART EHRMAN

O REINO DE DEUS NÃO CHEGOU!

Tom,

Muito obrigado pela sua última resposta, que esclareceu sua visão

consideravelmente. Trata-se de uma poderosa, e eu diria, elegante, declaração.

Antes de respondê-lo, permita-me abordar dois pontos menores que você disse

de passagem, um sobre meu argumento e outro sobre mim.

(1) Quanto a esta questão da emoção, você indica que “se alguém está

apresentando um argumento, então multiplicar os exemplos do problema na verdade não

acrescenta força alguma ao argumento”. Este é um ponto lógico e (eu temo) ele sugere

investimentos diferentes daqueles que eu tenho neste “debate”. Minha opinião é que os

números importam porque as pessoas importam. Todos eles importam e eles são tudo o

que importa. Se os nazistas tivessem matado apenas um judeu, nós não estaríamos tendo

esta conversa (provavelmente nós deveríamos tê-la, mas não a teríamos). Eles mataram

seis milhões. Cada um é um exemplo, e múltiplos exemplos importam. Os lógicos

(poderíamos acrescentar) que se danem.

(2) Você suspeita que eu tenha abandonado a fé porque eu tinha um

entendimento intelectualizado dela. Eu temo que isto não seja verdade. Eu era

completamente contra o entendimento da fé cristã como algum tipo de concordância

com declarações proposicionais – eu preguei (literalmente, algumas vezes) contra esta

visão frequentemente durante alguns anos. Minha fé era uma relação com Cristo e,

Page 22: "O Problema do Sofrimento": um debate entre Bart Ehrman e N T Wright

22

através dele, com Deus. Várias pessoas tentaram psicanalisar minha jornada; na maioria

das vezes elas fracassaram. Entretanto eu consigo entender porque elas tentaram. Se eu

abandonei a fé por boas razões, eles também podem abandoná-la ao encarar o vazio!

Deixando estes dois pontos de lado, eu tenho duas respostas principais à sua

segunda declaração.

Primeiro, eu seu resumo da visão “bíblica” do sofrimento (o que eu considero

ser a sua declaração anterior – mas talvez eu esteja enganado quanto a isto), você se

esqueceu de praticamente tudo que a Bíblia na verdade diz sobre a questão.

Eu sei que você (intimamente) sabe o que a Bíblia diz sobre esta questão. Mas

permita-me sumarizar alguns pontos para chegar a uma questão no final. (O resumo é

para o bem do debate – não para você!)

A resposta mais proeminente na Escritura é apresentada pelos profetas: a razão

das pessoas sofrerem é porque elas pecaram e Deus está as punindo por isto. É esta

visão que você, como um teólogo bíblico (ou qualquer pessoa) deseja sustentar? Apenas

pegue o livro de Amós, que tem a característica, a este respeito, de todo o corpo

profético. Porque Israel é o povo escolhido de Deus (3:2), “portanto eu vou punir vocês

por todas as suas iniquidades.” E então Ele os pune. Ele traz fome (4:6), seca (4:7-8),

falta de colheita (4:9); Ele literalmente “matou seus jovens” (4:10) assim como Ele fez

com as pessoas de Sodoma e Gomorra (4:11). Estes eventos não eram isolados, para

Amós ou para o resto da Bíblia. É assim, para a maior parte da Bíblia, que Deus lida

com seu povo! “O desastre (calamidade/mal) vem sobre a cidade se o Senhor não a

trouxer?” (3:6)

Eu desejava que Amós fosse um caso isolado, mas não é. Esta é a mensagem nos

livros dos profetas: Deus machuca, tortura e mata pessoas para trazê-las ao

arrependimento. Surpreendentemente, entretanto, esta visão não está limitada aos

profetas. Em Gênesis o mundo estava tão corrupto que Deus afogou todo mundo. Cada

pessoa. Cada homem, mulher e criança do planeta morreu afogada pelo próprio Deus,

incluindo todas as crianças de quatro anos de idade, meninos e menininhas. (Perdão por

multiplicar os exemplos...) E o que exatamente estas crianças tinham a ver com a

iniquidade do mundo?

Page 23: "O Problema do Sofrimento": um debate entre Bart Ehrman e N T Wright

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Deus também ordenou que seu povo escolhido mutilasse e matasse outros povos

de acordo com seus propósitos. Por que o povo de Jericó sofreu? Simplesmente porque

aconteceu deles viverem em Jericó. Hora errada e lugar errado. Quando Deus deu a

Terra Prometida ao seu povo, ele os instruiu explicitamente a tomar a cidade matando

cada homem, mulher e criança (e animais!) na cidade. Este é um Deus no qual devemos

acreditar? Um Deus que ordena assassinatos? Ou seria este um caso excepcional? Afinal

de contas, provavelmente aquele povo era iníquo e precisava ser eliminado?

Este ponto de vista sobre o sofrimento como punição, claro, é apenas uma das

respostas bíblicas (embora seja a mais predominante). Mas ninguém deve pensar que ela

é limitada ao Velho Testamento, como deixa claro o livro de Apocalipse. O Lago de

Fogo está ardendo e esperando. Lá sofrerão ao extremo, e por toda eternidade, aqueles

que não ficaram do lado do Cordeiro. Todos mulçumanos, judeus, budistas – inclusive

todos felizes agnósticos – terão este fim.

Eu acho que consigo entender porque você escolheu não falar sobre tais

passagens – embora elas lidem diretamente com o que a Bíblia tem a dizer sobre o

sofrimento. Ou com outras passagens, como na narrativa de prosa no início e no fim de

Jó, onde Deus permite que a vida de Jô seja destruída a fim de provar alguma coisa a

Satanás – permitindo que Satanás até mesmo assassinasse os filhos de Jó para ver se Jó

o amaldiçoaria. No fim Deus concerta a vida de Jó, recuperando sua saúde e lhe dando

mais dez filhos. Eu duvido que exista algum versículo mais ofensivo na Bíblia do que

este – Deus dá a Jó mais dez filhos para substituir aqueles que Jó perdeu. Como se se

pudesse substituir seis milhões de judeus mortos no holocausto com o nascimento de

mais seis milhões de judeus na próxima geração. Algumas vezes eu fico pensando o que

exatamente os autores bíblicos tinham em mente.

Então existe a poesia de Jó, onde a resposta ao sofrimento parece ser que, na

verdade, não existe resposta, que Deus é todo poderoso e não é responsável pelo o que

acontece conosco, e se nós ousarmos perguntar o motivo de nós, embora inocentes,

sofrermos, nós estamos sujeitos a ser esmagados no lixo pela presença poderosa de

Deus, forçados a nos “arrependermos no pó e na cinza” por termos sequer ousado fazer

esta pergunta.

Page 24: "O Problema do Sofrimento": um debate entre Bart Ehrman e N T Wright

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E existe a resposta de Eclesiastes (com a qual eu, pessoalmente, tenho alguma

ressonância), de que a vida é curta, que frequentemente não há justiça, que as coisas

geralmente dão errado e que não existe vida após a morte na qual tudo será acertado. Eu

acho que Eclesiastes ensina estas coisas, mas ele parece estar em contradição com seu

ponto de vista.

Mas ainda existe a resposta dos apocalipsistas, aquela que (em sua versão cristã,

não judaica) você finalmente defende. Mais sobre ela em instantes. Por agora, eu apenas

gostaria de fazer uma pergunta simples. Se você se considera um teólogo bíblico que

toma a Bíblia – toda a Bíblia, não apenas as partes que você gosta – de forma séria,

como você pode deixar fora da equação a maior parte do que a Bíblia na verdade diz

sobre o assunto? Isto acontece porque você pensa que algumas partes da Bíblia não são

mais aplicáveis? Isto acontece porque você está trabalhando – como nós dizíamos há

vinte anos – com um “Canon dentro do Canon”? Ou você honestamente acha que está

permitindo que estas outras vozes sejam ouvidas em sua síntese da visão “bíblica” sobre

o sofrimento?

O segundo problema que eu tenho com seu ponto de vista é que ao apresentar

um tipo de visão global da mensagem do Evangelho (e de Paulo), você cria uma síntese

que enfraquece o que cada autor, individualmente, estava dizendo. As visões de Marcos,

por exemplo, são radicalmente diferentes das visões de João. Não é que simplesmente

existam algumas histórias aqui e ali que vão pela contramão; A visão de Marcos de

Jesus, Deus, o reino e o que ele representa – para usar os seus termos, que não são os

termos do Evangelho – decididamente não são as visões de João, e vice versa.

Eu não sou um teólogo (graças a Deus), mas se eu fosse, eu pensaria que não é

uma boa teologia privar as vozes das opiniões pessoais de cada autor bíblico e sintetizá-

las em um conjunto que não é comum a nenhum deles.

Além do mais, eu diria que para um Evangelho como Marcos, a verdade é que o

Reino de Deus está chegando (o que, a propósito, não é o mesmo que dizer que alguém

pode ver como Deus comanda o mundo!), e que em algum sentido, ele se tornou

manifesto no ministério de Jesus. Mas toda a premissa da vinda do Reino (tanto no

ensino do Jesus histórico quando em Marcos) (embora não em João) é que ele é um

evento iminente. “Alguns de vocês aqui não experimentarão a morte antes que vejam o

Page 25: "O Problema do Sofrimento": um debate entre Bart Ehrman e N T Wright

25

Reino de Deus vindo em poder.” Prive o Reino de sua iminência e de repente as coisas

vão ter um significado muito, muito diferente aqui. Aqui eu acho que nossas diferentes

visões do apocalipsismo são como borracha em atrito com asfalto.

O reino nunca veio. Você parece acreditar que ele virá, assim como toda geração

de cristãos desde o primeiro dia – muitos deles, como Mateus, Marcos, Lucas e Paulo

esperavam que ele chegasse enquanto ainda estavam vivos. Todos estes cristãos

estavam errados. Eu não acho que os cristãos devam se animar com isto. A visão de que

o reino já começou a ser manifesto na vida e no ministério de Jesus depende de sua

aparição nos dias (iminentes) que estão por vir. Se esta aparição for deixada de lado,

tudo muda.

Mas, deixando de lado a questão se é sensato pensar que o reino realmente está

por vir, como alguém pode enxergá-lo manifesto em Jesus? Na verdade, não é tão fácil

enxergá-lo em sua “obediência” (e sofrimento), como você sugere. Eu acho que você

está lendo os Evangelhos pelas lentes de Paulo ao invés de ler as narrativas por elas

mesmas. Para os sinóticos, por exemplo, o Reino é manifestado na vida e no trabalho de

Jesus: no reino não haverá doença, demônios ou morte. Jesus manifestou este reino

durante o tempo em que viveu: ele curou os doentes, expulsou demônios, e ressuscitou

de dentre os mortos. Esta não era uma mensagem sobre algum poder vago de Deus

agindo em algum período há milênios atrás. Era Deus agindo agora (na antecipação da

iminência aparição do reino em poder).

E ele esta agindo agora? É aqui que, penso, nós temos nossa principal diferença.

Em minha opinião não há nada que sugere que o Reino já chegou, mesmo que

provisoriamente, na vinda de Jesus, na forma como os Evangelhos acreditam (que em

sua vinda os doentes seriam curados, os demônios expulsos e os mortos ressuscitados).

Não há menos doentes, possessos por demônios ou morrendo agora, do que antes da

aparição de Jesus (e sua obediência e morte). Não há menos crianças nascendo com

horríveis defeitos de nascimento. Não há menos leprosos, cegos e coxos. As multidões

não estão sendo alimentadas. As tempestades não estão sendo caladas (pense no

Katrina, por exemplo).

Muito pelo contrário, o mundo nunca esteve tão pior. Os escritores de Mateus,

Marcos e Lucas não esperavam por isto (nem Paulo). Eles viram o reino chegando com

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o ministério de Jesus, eles viram sua morte e ressurreição como o começo do fim, e eles

esperaram pelo fim para entrar na vida após a morte – quando Deus derrubaria as forças

do mal e estabeleceria um reino no qual não haveria mais dor, miséria ou sofrimento.

Nossa história contradiz esta expectativa, nosso mundo de genocídios, AIDS, malária,

falta de água potável, leprosos, defeitos de nascimento, deslizamentos de terra na

Colômbia que matam 30 mil, terremotos no Paquistão que matam 50 mil, tsunamis no

Oceano Indico que matam 300 mil, e assim por diante.

Eu queria que Jesus tivesse trago seu Reino. Mas a raça humana segue a vida de

forma não tão feliz, com seu mundo de dor, miséria e sofrimento sem fim.

O que eu vejo de extremamente válido em sua visão é a ênfase na necessidade de

imitar Jesus em sua vida e obediência. Se os cristãos realmente obedecessem aquilo que

eles entendem como vontade de Deus – por exemplo, os “dois grandes mandamentos” –

o mundo seria um lugar muito melhor. Mas ainda assim não seria o Reino.

Eu sei que esta nota soa crítica em alguns pontos, mas é porque eu queria

expressar minha visão com ênfase. Permita-me concluir com uma nota conciliatória, e

perguntar se você concorda comigo com os quatro pontos principais de meu livro O

Problema com Deus: as respostas que a Bíblia não dá ao sofrimento:

(1) Existem na verdade muitas e variadas respostas na Bíblia para a questão do

por que existe o sofrimento, embora não haja nenhuma resposta global que seja comum

a todos os autores bíblicos.

(2) Algumas destas respostas contradizem umas as outras.

(3) Algumas destas visões bíblicas (que Deus esfomeia, afoga e abate as pessoas

que Ele desaprova, por exemplo) não são respostas satisfatórias do por que existe

sofrimento no mundo.

(4) Mesmo que nós não possamos, no fim, saber as razões para o sofrimento, nós

podemos ao menos ter repostas apropriadas para ele. Nós podemos nós mesmos

alimentar os famintos, dar um teto a quem não tem, vestir o nu; nós podemos trabalhar

para resolver o problema da pobreza; nós podemos colaborar financeiramente com

agências que pesquisam curas para o câncer e a AIDS; nós podemos ser voluntários em

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27

trabalhos perto de nós; nós podemos doar mais aos esforços de ajuda humanitária. Nós

podemos, de fato, atender às demandas urgentes implícitas no relato de Mateus do

julgamento entre as ovelhas e os bodes, porque “tudo o que você fizer a cada um destes

pequenos, irmãos e irmãs, você terá feito a mim.”

Page 28: "O Problema do Sofrimento": um debate entre Bart Ehrman e N T Wright

28

N. T. WRIGHT

A BÍBLIA RESPONDE AO PROBLEMA – VEJA COMO

Obrigado, Bart, por mais esta resposta clara (e como você disse, poderosa). Você

usou um pouco mais de palavras desta vez (fiquei feliz de ver) e eu alegremente farei o

mesmo.

Permita-me começar tentando esclarecer as primeiras questões que você

destacou. Eu as tomarei em ordem reversa de forma a deixar o esclarecimento mais

organizado.

Eu não estava sugerindo que você abandonou sua fé porque você tinha um

entendimento intelectualizado dela. Eu estava refletindo se o argumento do seu livro –

existe muito sofrimento, a Bíblia não o explica satisfatoriamente e eu não consigo

reconciliar este sofrimento com um Deus bom e todo poderoso – não seria a razão de

você ter abandonado sua fé ou, se não foi, qual foi então a razão, e como esta razão se

relaciona com o argumento do seu livro.

Pelo o que você diz agora, me parece que você está dizendo que tinha uma

relação com Deus através de Jesus Cristo e agora você não tem mais, e que o argumento

sobre o sofrimento reforçou aquele sentimento de que nada mais funciona para você.

(Ou você está dizendo que o argumento precipitou sua perda de relacionamento? Você

diz que talvez você “deixou por boas razões” – estas razões estão no seu livro? Se sim,

como ele difere de um argumento intelectual que chega a uma conclusão?) Eu não

estou, certamente, tentando colocar palavras na sua boca ou ideias em sua cabeça – eu

sou (eu acho) um pastor muito experiente que, eu acho, consegue psicanalisar até

mesmo alguém que esteja sentado na mesma sala co-operando! – mas apenas buscando

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ter certeza que eu ouvi exatamente o que você disse. Você fala um pouco, afinal de

contas, no seu livro e em seu primeiro discurso, sobre a perda de sua fé, e eu estava

querendo ter certeza que eu ouvi o que você estava dizendo e como esta perda está

relacionada com o argumento sobre o sofrimento.

É por isto que (seu primeiro ponto, meu segundo) eu estava perguntando sobre

que força ele acrescenta ao caso que seu livro defende (ou – um súbito pensamento –

não estaria seu livro “defendendo um caso”, além de “expressar uma emoção”?) ao

gastar, digamos, vinte páginas descrevendo o holocausto em detalhes, além de

sumarizar isto em uma ou duas páginas. Eu ainda estou tentando estabelecer um

identificador entre a estratégia retórica do seu livro (esfregando o nariz de seus leitores

nos detalhes sobre os horrores do mundo) e a verdadeira substância do ponto que você

está defendendo. Eu não estou de forma alguma dizendo que números não são

importantes ou querendo reduzir o problema à lógica fria...

Digo o mesmo em relação aos seus pontos mais substanciais. Eu acho que nós

diferimos sobre o que pode significar “a visão bíblica do sofrimento”. A frase é ao que

parece bem ambígua. Você está tentando conseguir “o que a Bíblia diz sobre por que o

sofrimento acontece”. Eu argumentei em meu livro que a Bíblia não nos dá, na verdade,

uma resposta para esta questão – por que, para colocar isto rapidamente, existia uma

serpente no jardim para início de conversa? – e que a “visão bíblica do sofrimento” é

mais sobre o que o Deus criador está fazendo sobre ele e/ou com ele. Nós podemos

desta forma, na verdade, estar falando mais sobre propósitos do que eu tinha percebido.

Em outras palavras, eu não acho (por exemplo) que Amós e os outros estavam

escrevendo a fim de abordar o problema da teodicéia (“Por que estas coisas más

acontecem? Por que eles têm sido iníquos!”), mas para dizer, “Israel, YHWH lhe

chamou para ser seu povo santo, e se você falhar neste ponto, o mundo ficará fora do

comum, e vocês vão descobrir o que isto significa!” Em outras palavras, os profetas não

estavam, nem de longe, respondendo a nossa questão filosófica, mas agindo (ao menos

assim eles acreditavam) como porta-vozes da aliança de Deus. É certo que Jó (e o

Salmo 73 e outras passagens) estão abordando o problema filosófico do mal mais

diretamente, e eu concordo que as respostas lá continuam confusas, embora eu ache que

as verdadeiras respostas lá são, “Aqui estão algumas razões do por que você nunca

estará pronto para entender este problema nesta vida presente.” Sim, eu fico intrigado

Page 30: "O Problema do Sofrimento": um debate entre Bart Ehrman e N T Wright

30

com o final do livro de Jó, mas minha postura diante desta intriga é diferente da sua, eu

acho. (Veja meu livro Scripture and the Autorithy of God, publicado nos EUA sob título

de The Last Word.)

Por baixo disto tudo eu reflito com uma linha de pensamento de Bonhoeffer que

tem me perseguido desde quando eu era um estudante: o pecado original da

humanidade, conforme Gênesis 3, é colocar o conhecimento do bem e do mal antes do

conhecimento de Deus. Isto poderia significar um simples encolher de ombros (“Quem

sou eu para entender tais mistérios?”), mas isto poderia e eu acho que deveria implicar

algo mais: um reconhecimento de que criaturas do tipo que nós somos jamais estarão na

posição de estabelecer uma barreira moral e insistir que Deus – se existir um Deus

criador – pule sobre ela. É como reconhecer que o telescópio que eu tenho, embora seja

muito bom para que eu enxergue a lua, Júpiter, Saturno e outros gloriosos corpos, nunca

me permitirá ver um buraco negro, ou várias outras coisas que os mais proeminentes

físicos e astrônomos falam que existe. O instrumento em questão – minha humanidade

intrinsecamente rebelde – não pode capturar todos os mistérios de Deus e do mundo.

Claro, existe continuidade entre a visão de Deus o bem e do mal e a nossa visão, ou

tudo seria um caos. Mas nós nunca estaremos na posição de julgar Deus (se Deus

existir). Isto não é um chavão pietista, mas uma realidade ontológica óbvia.

Mas a principal contribuição que a Bíblia tem a oferecer, eu ainda creio – e, não,

não é um Canon dentro do Canon, mas a narrativa do próprio Canon! – é o chamado de

Abraão como aquele através do qual o problema do sofrimento humano será abordado e

resolvido, e tudo o que acontece a partir do chamado, e a história dos descendentes de

Abraão, não é uma explicação do por que existe o mal, sofrimento, etc., mas a história

sobre o que o criador está fazendo, agora, sobre isto. Eu então abraço os outros temas

dentro deste ponto da escolha de Abraão, e eu acho que isto é algo que um teólogo

cristão ou judeu pode fazer. Eu respeito que você não precise ler a Bíblia assim, e está é

uma conversa mais ampla que precisaremos ter outra hora. Como eu disse, eu acho que

nós precisamos das grandes histórias assim como dos detalhes. E os detalhes –

incluindo Amós, o dilúvio e o Apocalipse – são compreendidos dentro desta ampla

narrativa, não como sendo pepitas isoladas de afirmações filosóficas (“agora eu vou

explicar a razão do sofrimento”).

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Como eu disse no livro, uma vez que Deus decide (com o chamado de Abraão)

trabalhar no problema do sofrimento através de pessoas que são parte do problema, bem

como parte da solução, haverá uma enorme quantidade de desordem que atinge seu

clímax quando Deus não apenas suja seus pés com a bagunça do mundo, mas sangra

suas mãos com os pregos do mundo. (Mas, claro, eu me esqueci: você não acredita que

o Novo Testamento, ou suas partes mais antigas, acreditam na divindade de Jesus,

acredita? Eu estou realmente intrigado quanto a isto. Isto parece ser muito claro em

Paulo, como eu e muitos outros temos argumentado em várias obras.)

Isto não é, obviamente, uma resposta completa, mas uma placa de sinalização

apontando para uma direção. E, apenas para lhe cutucar, você tem certeza que

Eclesiastes não pensa que haverá um julgamento futuro, em outras palavras, um dia de

ajuste no qual o criador vai endireitar as coisas? Como você lê então as passagens (3:17,

12:14) que dizem que haverá isto? E o que você faz com as passagens (p. ex., 2:26, 5:6)

onde Eclesiastes parece compartilhar com o que você chama de perspectiva “profética”,

de que Deus faz coisas más acontecerem com pessoas más?

Mas o ponto que realmente nos divide – e você ainda não abordou isto – é a

questão da ressurreição. Eu penso, e eu acho que os cristãos primitivos pensavam, e eu

acho que os evangelistas (sim, de diferentes formas) pensavam, que o reino veio através

da morte e ressurreição de Jesus. Não “veio” totalmente, é claro; mas, na linguagem

usual, ele foi radicalmente inaugurado. O mito do atraso da parousia tem crescido em

grande parte do mundo moderno a fim de preencher o vácuo que surgiu quando os

estudiosos insistiram que a ressurreição não ocorreu. Para os cristãos primitivos, o novo

mundo de Deus – o mundo no qual o mandado de Deus é executado – tinha começado,

e eles estavam vivendo nele pelo poder do Espírito. As coisas mudaram. Os primeiros

cristãos fizeram a diferença. (Veja o incrível livro de Rodney Stark sobre o surgimento

do cristianismo.) Sim, é claro, terremotos e tsunamis ainda acontecem. Os escritores

neotestamentários sabiam tanto disto quanto nós sabemos, e eles saíram para pregar que

Jesus já era Senhor, não que ele simplesmente viria a ser algum dia.

Também eles não estavam em sua maioria oferecendo uma análise do “por que o

mal/sofrimento acontece”, mas estavam implantando o modo de trabalho do reino de

Jesus de desafiar o mal/sofrimento no poder de Deus – não em uma repentina teocracia

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toda poderosa, banindo todo mal de uma só vez, mas em seu contínuo trabalho sobre o

modelo do próprio Jesus e suas parábolas.

Então, se você está dizendo que eu deixei algumas para trás, eu acho que você

também está deixando – e está deixando de perceber coisas ainda mais importantes. Não

apenas a ressurreição, mas também (eu retorno a isto) a exposição maciça de Paulo

sobre a “justiça de Deus” em Romanos. Romanos é muito, muito maior do que “como

os pecadores podem encontrar um gracioso Deus”. É mais “como Deus é visto como

justo?”, que é talvez o mais perto, juntamente com Jó, que a Bíblia chega a uma

abordagem de sua questão. O interessante é que Paulo insiste que a resposta passa pela

história de Abraão e, é claro, a história de Jesus e, particularmente, sua morte e

ressurreição. Eu adoraria saber como você lida com isto.

Desta forma, para responder às suas quatro proposições (observando, como você

disse, que as proposições não são a soma e substância da fé cristã!):

Eu não acho que a Bíblia está na verdade abordando a questão, “Por que existe o

sofrimento?”, mas sim a questão, “O que Deus está fazendo sobre isto?”. Quando

sequências de causa e efeito ocorrem, como em Amós, eu as leio dentro do chamado

profético para Israel e os avisos, apropriados para os seres humanos em geral e

específicos para o povo da aliança em particular, como as consequências por não terem

seguido os propósitos do criador. (Se eu disser ao meu filho adolescente, “O motivo de

você ter saído da estrada é porque você estava muito rápido quando virou a esquina”, eu

estou apontando uma sequência de causa e efeito que ele aparentemente estava

ignorando. Eu não estou dizendo que todos os seus exemplos são assim, mas que alguns

podem ser.)

Se nós insistirmos em colocar as coisas que a Bíblia diz dentro das grades de

nossas próprias perguntas, nós encontraremos aparentes contradições. (Esta, a propósito,

é parte de minha resposta sobre os evangelhos, mas que tomaria um livro inteiro para

explicar!) Se eu dirigir por todo o perímetro de uma grande cidade eu vou encontrar

várias placas diferentes apontando para o centro da cidade. Elas dirão coisas diferentes,

porque eu estou em lugares diferentes; mas todas elas estão na verdade apontando para a

mesma realidade. Como todas as analogias, está é obviamente inadequada, mas oferece

um aviso contra a presunção de contradições onde não há nenhuma. (Exemplo óbvio: A

visão “negativa” de Paulo em relação à Lei em Gálatas e sua visão “positiva” em

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Romanos. Ele mudou de ideia? Não. Fomos nós que fomos até ele com nossa questão,

“Você tem uma visão positiva ou negativa da Lei?”. Paulo, entretanto, está lutando com

a complexa história do povo de Deus, não conferindo caixas em um livro dogmático

C17.)

Eu não acho que as passagens às quais você se referiu pretendiam ser “respostas

à questão”. Sim, elas levantam problemas que eu tentei abordar em meu livro, mas eu

não fiz isto para depois dizer, “Bem, esta foi uma pobre resposta”, e abandoná-lo.

Bem, que bom que podemos ao menos concordar sobre isto! E é por isto (é

claro, em um nível mais profundo) que eu deixei a academia há quinze anos atrás e

tenho tentado, ao estimular a igreja mais diretamente, a fazer com que isto esteja em sua

agenda. Mas isto me conduz à minha pergunta final – para insistir em um ponto que eu

levantei na entrevista que participamos na radio: Por que, dado sua visão de mundo,

deveríamos nos importar? Por que simplesmente não “comer, beber e se divertir, porque

amanhã morreremos” e agradecer às nossas estrelas da sorte por podermos agir assim?

O outro lado da moeda do “problema do mal” é, afinal de contas, o “problema do bem”:

se não existe Deus, nenhum criador bom e sábio, por que existe um impulso para a

justiça e misericórdia tão profundo dentro de nós? Por que existe beleza, amor, risos,

amizade e alegria? Como você explicaria a diferença entre Eclesiastes e Sartre? A

Bíblia, obviamente, possui algumas respostas para estas questões. Mas eu estaria

interessando em ouvir as suas.

Eu acho que este é o fim. Mas talvez seja apenas o ponto e vírgula. Obrigado

pelo diálogo e o estimulante debate. Foi frustrante por ser tão breve, mas melhor do que

nada. Obrigado por colocar-se com um teólogo incorrigível.

Tom.

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