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R. bras. Est. Pop., São Paulo, v. 23, n. 1, p. 167-186, jan./jun. 2006 O patriarcalismo possível: relações de poder em uma região do Brasil escravista em que o trabalho familiar era a norma * Cacilda Machado ** Esse artigo procura reunir indicadores da existência de uma peculiar forma de patriarcalismo em regiões de agricultura de alimentos do Brasil escravista, nas quais a população cativa era pouco relevante, do ponto de vista demográfico, e onde o trabalho familiar era a norma. O locus de estudo é a Freguesia de São José dos Pinhais (PR), na passagem do século XVIII para o XIX, cuja dinâmica das relações sociais é analisada a partir de dados sobre composição dos domicílios, produção e posse de terras. Palavras-chave: Patriarcalismo. Dependência. Escravidão. Introdução Em seu artigo polêmico, Mariza Corrêa (1994, p.15-42) 1 resumiu as mais contun- dentes críticas ao conceito de “família patriarcal” produzidas pela historiografia brasileira. A autora enfatiza o exagero de se imputar a todas as áreas e grupos da sociedade colonial brasileira, bem como a todas as épocas, a hegemonia de um modelo mais apropriado para definir a prática de um grupo restrito da elite colonial – o de senhores de engenho de açúcar de Pernambuco. Corrêa traça um quadro da diversidade econômica e social do largo território que constituía os domínios portugueses na Amé- rica, entre os séculos XVI e XIX – realidade que não poderia ser acomodada nos estreitos limites do engenho ou da fazenda. Para ela, Gilberto Freyre e Antonio Cândido recuaram para o interior da instituição dominante num certo momento do Brasil colonial e, assumindo o olhar dos senhores brancos e suas famílias, negaram a possi- bilidade de autonomia aos demais grupos da sociedade nascente. Segundo a autora, a família patriarcal pode ter existido e seu papel ter sido extremamente importante, “apenas não existiu sozinha, nem coman- dou do alto da varanda da casa grande o processo total de formação da sociedade brasileira”. Melhor seria aceitar que ela foi, de fato, um instrumento disciplinador (CORRÊA, 1994, p.24-34). Nessas críticas, Marisa Corrêa baseou- se especialmente em dados produzidos por estudos sobre população e família, a partir da década de 70, os quais destacaram a existência, de acordo com as regiões eco- nômicas e a condição social das popula- ções, de múltiplas formas de composição domiciliar, de um grande número de domi- cílios nucleares e de mulheres chefiando * Este artigo é uma versão resumida de um capítulo de tese de doutoramento, defendida em abril de 2006, no Programa de Pós- graduação em História Social da UFRJ. ** Historiadora. Professora do DEHIS/UFPR, lotada na ESS/UFRJ. 1 O trabalho foi publicado antes nos Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, de maio de 1981.

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O patriarcalismo possível: relações de poderem uma região do Brasil escravista em que o

trabalho familiar era a norma*

Cacilda Machado**

Esse artigo procura reunir indicadores da existência de uma peculiar formade patriarcalismo em regiões de agricultura de alimentos do Brasil escravista,nas quais a população cativa era pouco relevante, do ponto de vista demográfico,e onde o trabalho familiar era a norma. O locus de estudo é a Freguesia de SãoJosé dos Pinhais (PR), na passagem do século XVIII para o XIX, cuja dinâmica dasrelações sociais é analisada a partir de dados sobre composição dos domicílios,produção e posse de terras.

Palavras-chave: Patriarcalismo. Dependência. Escravidão.

Introdução

Em seu artigo polêmico, Mariza Corrêa(1994, p.15-42)1 resumiu as mais contun-dentes críticas ao conceito de “famíliapatriarcal” produzidas pela historiografiabrasileira. A autora enfatiza o exagero dese imputar a todas as áreas e grupos dasociedade colonial brasileira, bem como atodas as épocas, a hegemonia de ummodelo mais apropriado para definir aprática de um grupo restrito da elite colonial– o de senhores de engenho de açúcar dePernambuco.

Corrêa traça um quadro da diversidadeeconômica e social do largo território queconstituía os domínios portugueses na Amé-rica, entre os séculos XVI e XIX – realidadeque não poderia ser acomodada nosestreitos limites do engenho ou da fazenda.Para ela, Gilberto Freyre e Antonio Cândidorecuaram para o interior da instituição

dominante num certo momento do Brasilcolonial e, assumindo o olhar dos senhoresbrancos e suas famílias, negaram a possi-bilidade de autonomia aos demais gruposda sociedade nascente. Segundo a autora,a família patriarcal pode ter existido e seupapel ter sido extremamente importante,“apenas não existiu sozinha, nem coman-dou do alto da varanda da casa grande oprocesso total de formação da sociedadebrasileira”. Melhor seria aceitar que ela foi,de fato, um instrumento disciplinador(CORRÊA, 1994, p.24-34).

Nessas críticas, Marisa Corrêa baseou-se especialmente em dados produzidos porestudos sobre população e família, a partirda década de 70, os quais destacaram aexistência, de acordo com as regiões eco-nômicas e a condição social das popula-ções, de múltiplas formas de composiçãodomiciliar, de um grande número de domi-cílios nucleares e de mulheres chefiando

* Este artigo é uma versão resumida de um capítulo de tese de doutoramento, defendida em abril de 2006, no Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ.** Historiadora. Professora do DEHIS/UFPR, lotada na ESS/UFRJ.1 O trabalho foi publicado antes nos Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, de maio de 1981.

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famílias.2 Questionando a validade dessasevidências, no entanto, já se argumentou que,

se as famílias coloniais eram mais ou menosextensas, [...] eis um dilema de pouca rele-vância nos trabalhos de Freyre e Cândido.E quer-nos parecer, ainda, que a maior oumenor concentração de indivíduos, fosse emsolares, fosse em casebres, em nadaofuscava o patriarcalismo dominante, amenos que se pretenda que, pelo simplesfato de não habitarem a casa-grande, asassim chamadas “famílias alternativas” viviamalheias ao poder e aos valores patriarcais, oque ninguém seria capaz de afirmar,seguramente (VAINFAS, 1989, p.110).

De todo modo, nos anos 80 e 90, inú-meros historiadores destacaram a vigência,no passado brasileiro, de modalidades derelações consensuais entre iguais, conhe-cidas e aceitas pela comunidade, pelosparentes e por autoridades civis e ecle-siásticas, que estariam na origem daconstituição de outras formas de família quenão aquela de nítidos traços patriarcais.3

Eni Samara (1998, p.8) sintetizou todaa polêmica, ao indicar que ospesquisadores em geral se dividem em doisgrandes “modos de ver”: Dain Borges eAngela Mendes de Almeida, por exemplo,entendem a ordem patriarcal como umgrande modelo “ideológico” e paradigmáticode família; outros, como Muriel Nazzari, AlidaMetcalf e Darrel Levi, ressaltam suasambigüidades nos diversos contextosregionais, suas transformações ao longo dotempo e seus limites quando a raça e aclasse são colocadas em questão.

Mesmo em trabalhos mais recentes otema persiste, numa evidência do quantoas formulações de Freyre marcaram fundoa historiografia nacional. Silvia MariaBrügger (2002, cap. 1), por exemplo, a partirda noção de patriarcalismo como umconjunto de valores e práticas que colocama família no centro da ação social, reiterasua presença em Minas ou em qualqueroutra parte da Colônia ou do Império.

No presente artigo, procura-se discutirmais esse tema, partindo-se do princípio de

2 Alguns exemplos dessa bibliografia: COSTA (1979), KUSNESOF (1980), SAMARA (1984).3 Por exemplo: Silva (1984), Figueiredo (1997), Londoño (1999).

que a apropriação do patriarcalismo deFreyre apenas como um conjunto de valorese práticas que colocam a família no centroda ação social, ou como um ideal disci-plinador, presente nos diversos ambientesescravistas do Brasil ao longo de toda asua história, não é útil para a ampliação doconhecimento. Apreendido de uma ou deoutra maneira, o patriarcalismo pode tornar-se um conceito genérico de dominação quepouco ou nada esclarece acerca decontextos específicos.

O patriarcalismo de Gilberto Freyre,concebido a partir do estudo dos engenhosde Pernambuco, tem grande força teóricaporque sintetiza a arquitetura do poder ges-tado no conjunto das relações que ligavamos principais chefes da elite econômica aosseus familiares, aos seus (muitos) escravos,e à população de livres pobres que habi-tavam seus domínios e o entorno. Isso nãosignifica afirmar a ausência de diferençasno interior da família senhorial, da escra-varia e do grupo de livres pobres. Afinal,uma das características fundamentais desociedades com traços de Antigo Regime éque nelas a mobilidade social não se resu-me a passagem de um estamento a outro.A ascensão social ocorre, em geral, nointerior dos grupos (FERREIRA, 2005, p.68-69). Sobretudo quando se trata de locussociais aparentemente pouco hierarqui-zados, não se podem deixar de lado essas(outras) relações de poder.

Ao longo deste texto, procurou-se recu-perar ao menos parte das redes de poderque organizavam hierarquicamente ho-mens e mulheres livres na freguesia de SãoJosé dos Pinhais (PR), que, na passagemdo século XVIII para o XIX, era uma regiãode agricultura de subsistência e de abas-tecimento, onde a população cativa era pou-co relevante, do ponto de vista demográfico,e mesmo a elite tinha dificuldades emincorporar terras, escravos e dependentesaos seus domínios. Sugere-se, aqui, que anoção de “família patriarcal”, tal comoaparece em Casa-Grande & Senzala e em

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outros clássicos da nossa historiografia, nãose constitui como o melhor modelo deanálise desse locus social, embora nele asrelações de poder também apresentavamuma conformação patriarcalista.

A análise foi realizada a partir docruzamento de dados sobre composiçãodomiciliar, produção e posse de terras,presentes nas Listas Nominativas deHabitantes – censos realizados regularmentena Capitania de São Paulo na passagemdo século XVIII para o XIX – e no Inventáriode Bens Rústicos – levantamento daspropriedades rurais da mesma capitania,produzido em 1818. No processo deelaboração, foi particularmente útil oprincípio formulado por Fredrick Barth(2000, p.128-130), de que as estruturasmais significativas da cultura – ou seja,aquelas que mais conseqüências siste-máticas têm para os atos e relações daspessoas – talvez não estejam em suasformas, mas sim em sua distribuição epadrões de não-compartilhamento.

A freguesia de São José dos Pinhais

O vilarejo de São José dos Pinhais faziaparte da porção meridional da Capitania deSão Paulo, território que mais tarde formouo Paraná. Esta região começou a ser explo-rada pelos portugueses já no século XVI,no entanto a ocupação foi mais efetivasomente a partir de 1570-1580, quando alise encontrou ouro aluvional. Em 1617, nolitoral, foi fundada a vila de Paranaguá, quese tornou em centro da então recém-criadaCapitania de Nossa Senhora do Rosário deParanaguá. A partir do início do século XVIII,o ouro das Minas Gerais eclipsou a modestaprodução local e, em 1711, a região passouà condição de comarca da Capitania de SãoPaulo. Muito antes da decadência aurífera,porém, os mineradores avançaram pelaSerra do Mar até o planalto, onde fundaramnovos núcleos populacionais, como os deNossa Senhora da Luz dos Pinhais(Curitiba) e de São José dos Pinhais (naregião contígua a Curitiba), povoaçõesiniciadas ainda no século XVII.

À medida que se exauria o ouro, oshabitantes do planalto voltaram-se para a

agricultura, a pecuária e o tropeirismo. Estasduas últimas atividades rapidamente sevincularam à economia do Centro-Sul, emface da grande demanda por alimentos emMinas Gerais. No século XVIII, o alto preçodo gado nas Minas contribuiu para amultiplicação das fazendas de criação e deinvernagem, a maioria delas nos CamposGerais, especialmente após 1730, quandofoi aberto o Caminho do Viamão, que ligavao Continente do Sul a Sorocaba, passandonecessariamente pelo Paraná. Graças aessas atividades, incrementou-se a ocupa-ção do planalto paranaense, em direção aooeste, e Curitiba desenvolveu-se como cen-tro importante, disputando com Paranaguáa hegemonia econômica e política local, atése tornar sede da Comarca, em 1812.

Simultaneamente à criação e à in-vernagem, a população do planalto, es-pecialmente aquela estabelecida emCuritiba e seu entorno (inclusive São Josédos Pinhais), produzia milho, trigo, feijão emandioca, atividade que garantia oabastecimento regional e dava suporte aosetor de exportação. Nessa região, aspropriedades eram em geral menores doque as dos Campos Gerais, compondo-sesua paisagem agrária principalmente desítios agrícolas e, de quando em quando,uma fazenda. Ali a população de escravose agregados era menos numerosa, se com-parada à presente nos Campos Gerais,e o trabalho familiar adquiria maior peso.

A produção de dependentes

No período analisado, a população livrede São José dos Pinhais, e de boa parte daregião do Paraná, caracterizava-se peloexpressivo contingente de não-brancos. Deacordo com os dados dos mapas popula-cionais, para seis anos entre 1798 e 1830,era tímida a presença de negros na popu-lação livre da freguesia (até 1,5%), porém,a proporção daqueles identificados comopardos variou entre 22% e 49,5% (COSTAe GUTIÉRREZ, 1985, passim).

Do conjunto dos livres, eram poucos osque podiam ter escravos: em 1782, 80,6%dos 160 domicílios do vilarejo não eramescravistas; em 1803 estes constituíam

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79,9% das 319 unidades domiciliares,chegando em 1827 a 83,6% (de 587domicílios). Do seleto grupo de escravistas,58% tinham apenas de um a quatro cativosem 1782; em 1803 esse grupo chefiava66% dos domicílios com escravos, aumen-tando para 75% em 1827. A participaçãodas escravarias médias – cinco a novecativos – diminuiu sensivelmente no pe-ríodo (de 29% para 27,4% e depois para24%), e reduziu-se mais ainda a de grandesescravarias (mais de dez) – de 12,9% para6,5% e finalmente para apenas 1% (Tabe-la 1). Conforme já se anotou, Curitiba eprincipalmente São José dos Pinhais foramos casos mais extremos da representa-tividade do pequeno plantel escravista noParaná no século XIX (PENA,1999, p.30).

Como em outras partes do BrasilMeridional, alguns domicílios de São Josédos Pinhais tinham agregados entre os seusmembros. Este específico grupo social hámuito vem sendo observado pela his-toriografia. Oliveira Vianna, por exemplo,escreveu que as três classes fundamentaisdas regiões rurais do Centro-Sul eram afamília senhorial, os agregados e os es-cravos. Sobre os agregados este autorsublinhou que constituíam uma sorte decolonos livres.

Habitam fora dos perímetros das senzalas, empequenos lotes, em toscas choupanas,circundantes ao casario senhorial, que do

alto da sua colina, os centraliza e domina.[....] Essa é a origem da classe dosagregados ou moradores do domínio. Ela éo refúgio a que se ocolhem os peninsulares,de estração plebéia, sem meios para reque-rerem sesmarias, lançados na agitaçãocolonial e postos defronte da escravaria dosgrandes domínios. [...] Porém, logo essaplebe entra a receber o transbordo das sen-zalas repletas, as récovas da escravaria, osobejo da mestiçagem das fazendas. [...]O elemento branco acaba afundando-senessa ralé absorvente que, um pouco maistarde, se fará o peso específico da popu-lação dos moradores (OLIVEIRA VIANNA,1987, p.65-67).

Embora o autor acabe por considerarindivíduos de condição muito variada numamesma categoria (agregados), o fato é quena caracterização acima, e para além deseu conteúdo elitista, Oliveira Vianna anun-cia uma disposição em pensar aquelasociedade rural de modo a incluir a imensafaixa de sua população que não era escravanem escravista.

Muito tempo depois, em um trabalhovoltado exclusivamente para o tema, EniSamara (1997, p.42) procurou definirmelhor a categoria “agregado”. A partir depesquisa sobre a vila de Itu, na passagemdo século XVIII para o XIX, a autora afirmatratar-se de uma sorte de homens, mulherese crianças que tinham em comum o fato denão possuírem terras ou casa própria,tendo, portanto, que se ajustar aos

TABELA 1 Domicílios, segundo número de escravos existentes

São José dos Pinhais – 1782-1827

Fonte: Listas nominativas de S.José dos Pinhais de 1782, 1803 e 1827.Cópias: Cedope/DEHIS-UFPR.Originais: Arquivo do Estado de São Paulo.

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proprietários das áreas rurais ou urbanas,dentro dos mais diferentes tipos de relações.

Por seu lado, Carlos Bacellar enfatizaque a agregação era sintoma de umasociedade em que alguns segmentos, pordiversas razões, não encontravam condi-ções de se estabelecer autonomamente.Buscava-se, assim, trocar trabalho por tetoe comida, ou instalar-se “de favor” em terrasde outrem. Muitos agregados eram indiví-duos solitários e extremamente pobres edesenraizados, mas também podiam serchefes de família que detinham, inclusive,a posse de um ou dois escravos. Tambémvariava o status do agregado no interior deum domicílio ou de uma propriedade: elepodia ser um idoso, um inválido ou umamulher sozinha com filhos pequenos, podiaser um ex-escravo com parentes no planteldo chefe do fogo, ou mesmo um migranterecém-chegado à espera de oportunidadede ascensão social. Mas também podia sero filho recém-casado, o irmão ou o pai dochefe do domicílio (BACELLAR, 2001).

Nas listas nominativas de São José dosPinhais, aparecem três categorias de indi-víduos livres agregados a alguns dos domi-cílios: parentes não nucleares, expostos epessoas sem vínculos de parentesco como chefe do fogo (estes, os que mais sistema-ticamente são identificados, nas listasnominativas de São José, pelo termo agre-gado e, portanto, assim serão referenciadosdaqui por diante).

Em 1782, cerca de 4% dos 848 livresque viviam em São José dos Pinhais esta-vam agregados em domicílio alheio; eleseram pouco mais de 5% das 1.689 pessoaslivres, em 1803, e 3,7% (dos 2.795 livres),

em 1827. Sobre expostos e parentes, nãose dispõe de dados para 1782, pois nesseano as informações da lista de habitantesapresentam muitas lacunas quanto a estesquesitos. Ainda assim, sabe-se que pelomenos 10% da população livre da freguesiavivia sob uma destas condições em 1803 e4,2% em 1827. Nesse último ano, os nú-meros podiam ser ainda maiores, uma vezque os dados são menos precisos do queos da lista de 1803. Entretanto, conside-rando-se os índices obtidos, a populaçãolivre formada por agregados, parentes eexpostos correspondia a 15% em 1803 e a8% em 1827, lembrando que são anos emque a participação da população cativa erade 13% e de 9,2%, respectivamente.

Não eram poucos os domicílios comagregados, parentes e/ou expostos em SãoJosé dos Pinhais. Eles tinham presençamarcante, especialmente em 1803. Dos160 fogos da freguesia, 10% tinham agre-gados em 1782; nada menos que 18,5%dos 319 domicílios registrados em 1803 ecerca de 12% das 587 unidades recen-seadas em 1827. Em 1803, 23,2% dosdomicílios tinham pelo menos um parentenão-nuclear ou um exposto, sendo esteíndice de 9,7% em 1827. No entanto, não éprovável que eles estivessem presentes emmenor número, ao menos não tanto, em1827. Tudo indica ser este mais um caso desub-registro. No conjunto dos domicílios dovilarejo, cerca de 30% tinham ao menos ummembro que não pertencia à família nuclearem 1782. Esse índice era de 62% em 1803(lembrando que esta é a Lista com infor-mações mais precisas) e de 38% em 1827(Tabela 2).

TABELA 2 Domicílios, segundo sua composição

São José dos Pinhais – 1782-1827

Fonte: Listas nominativas de S.José dos Pinhais de 1782, 1803 e 1827.Cópias: Cedope/DEHIS-UFPR.Originais: Arquivo do Estado de São Paulo.

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Em São José, o grupo formado pelosagregados era marcadamente feminino: nostrês anos observados 2/3 dele eramcompostos por mulheres, enquanto napopulação livre não-agregada elas repre-sentavam a metade. O grupo também eramais jovem: a idade média dos agregadosera de 22,6 anos em 1782, 19,7 anos em1803 e 17 anos em 1827. Já para os livresnão-agregados, a idade média era, nosrespectivos anos, de 24,2, 20,8 e 19,6 anos.Contudo, em relação à população livre não-agregada, apenas em 1782 havia umaproporção maior de crianças entre os agre-gados. A principal característica dessegrupo era a pequena proporção de idosos(especialmente em 1803).

Este quadro não difere muito do en-contrado em Itu, por Eni Samara, e a autoraafirma que o mesmo era regra geral naCapitania de São Paulo. No conjunto dosrecenseamentos paulistas iniciados nasegunda metade do século XVIII, era grandeo número de mulheres solteiras e viúvas,muitas vezes com filhos, que se agregavamàs famílias locais. No entanto, apesar darelativa freqüência com que aparecemcrianças agregadas nos fogos, eram maisnumerosos os agregados adultos (SAMARA,1977, p.55-60).

Em São José dos Pinhais, a maior partedos fogos com agregados abrigava apenasum ou dois deles, e em nenhum fogo haviamais do que sete. Embora existissem agre-gados em domicílios escravistas, estasituação era mais comum naqueles semcativos (que constituíam 75% dos fogos comagregados em 1782, quase 70% em 1803e 64% em 1827), e a maior parte dos agre-gados encontrava-se neste tipo de domicílio(85% em 1782, 63% em 1803 e 61% em1827).

No entanto, por esses mesmos dadostambém se infere que, conforme se reduziao contingente cativo na freguesia, mais osescravistas incorporavam agregados. Emoutras palavras, a possibilidade de homense mulheres pobres de atrair agregadosprovavelmente se reduzia quando os escra-vistas (homens e mulheres de maior podereconômico e político no interior do vilarejo)passavam a se interessar mais por aquela

mão-de-obra, devido à dificuldade emadquirir cativos.

Os dados referentes a Itu, estudadospor Eni Samara, tendem a reforçar a hipó-tese. Como já indicado, a autora observouesta vila no momento de expansão daeconomia açucareira. Ela percebeu que alarga penetração de mão-de-obra escravarelegava a segundo plano a mão-de-obralivre nas grandes fazendas, e que osagregados concentravam-se mais naspropriedades de lavoura de mantimentos enas unidades domiciliares da vila. Em 1798,em um bairro onde se localizavam grandespropriedades canavieiras, a pesquisadoranão computou nenhum agregado e os es-cravos representavam 83% dos moradores,enquanto na rua do Ouvidor, no mesmo ano,32% dos moradores eram agregados emenos de 11% escravos. Os índices levan-tados para os demais bairros e ruas de Ituseguem praticamente o mesmo padrão. Poresta razão, Samara depreende que osagregados eram utilizados como mão-de-obra, nas áreas de lavoura comercial,somente em períodos de carência deescravos. Além disso, quanto mais cresciaa população cativa na região, mais sereduzia a de agregados: entre 1785 e1829, a proporção de escravos aumentoupaulatinamente de 25% até 55%, enquantoa dos agregados, que no início do períodocorrespondia a cerca de 10% da população,passou para apenas 4% em 1829(SAMARA, 1977, p.43-47 e 73-74).

Também as informações reunidas porRoberto Guedes Ferreira reforçam a asser-tiva apresentada neste artigo. A vila de PortoFeliz, vizinha a Itu, no século XIX viu crescersignificativamente sua população cativa,devido à expansão da economia canavieira.Entre 1798 e 1818, os escravos represen-tavam entre 31% e 36% da população totaldo lugar. Desde então, este porcentual subiupara 40% em 1820 e 45% em 1824,chegando a 51% em 1829. Em movimentoinverso, a proporção de agregados napopulação total, que girava em torno de11% entre 1798 e 1820, decresceu para9,5%, em 1824, e para apenas 5%, em 1829.Além disso, 36,5% dos fogos registrados em1820 tinham agregados, diminuindo para

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30,6% em 1824 e para 19% em 1829.Finalmente, em 1818, os domicílios escra-vistas que também agregavam livresrepresentavam 12,5% do total de fogos davila e 38,5% dos fogos escravistas, pas-sando para 8% e 26%, respectivamente, em1829. Do mesmo modo, 48,5% dos agre-gados de Porto Feliz estavam em fogosescravistas em 1798, índice que caiu para45% em 1829.4

Para o agregado, estabelecer-se emdomicílio alheio podia funcionar como estra-tégia de sobrevivência. Em estudo sobre aLapa, Maria Luiza Andreazza (2002, p.10-11) observa que muitas mulheres, especial-mente as mães-solteiras, por certa fase dacriação dos filhos, agregavam-se a umdomicílio, à espera de condições para alçarautonomia. Em São José dos Pinhais issotambém não deveria ser incomum, pois,como se viu, era grande o número de mu-lheres, crianças e jovens nesse grupo. Umaoutra razão foi apontada por Bert Barickman(2003, p.167-209), que estudou osplantadores de mandioca do Recôncavobaiano, quando sugere que, apesar de aregião contar com uma fronteira aberta, nemtodos os homens pobres se interessavamem desbravar novas terras, preferindopermanecer agregados de algum engenho,onde teriam acesso mais fácil ao mercadopara vender sua produção excedente. Comestes exemplos, pretende-se salientar,enfim, que a perda da autonomia era o preçoa pagar pela possibilidade de viver damelhor maneira possível, até conseguiralçar a uma melhor condição. Ainda quenem sempre isso acontecesse, talvezmuitos agregados acreditassem que taisexpectativas poderiam ser mais facilmenteconcretizadas sob a proteção de homensmais poderosos.

A esse respeito, Eni Samara (1977,p.69-71) indica o potencial conflito quemediava tal relação de dependência, aosugerir que a falta de serviço na fazenda ea abertura de novas áreas para o plantio ou

4 Esses dados foram generosamente cedidos por Roberto Guedes Ferreira, retirados de um banco de dados por ele criado paraa confecção de sua tese de doutoramento (FERREIRA, 2005).5 Em 30 anos (de 1775 a 1804), foram batizadas 1.965 crianças em São José dos Pinhais, sendo que 206 (10,5%) eram expostas(Livros 1 e 2 de batismos), dando uma média de 6 a 7 batismos de expostos por ano.

mesmo novas possibilidades de trabalho navila de Itu, nos séculos XVIII e XIX, pode seruma das explicações para a insta-bilidaderesidencial dos agregados: “num ano estãonum domicílio, no outro já não se encontrammais lá”. Dessas palavras, pode-se deduzirque, se em algumas situações reafirmar asubmissão podia ser boa estratégia, emoutras, sair de uma relação de dependênciapara outra era mais eficaz.

Como já mencionado anteriormente,além dos agregados, uma parcela dosmembros de alguns domicílios de São Josédos Pinhais era formada por parentes não-nucleares, ou por expostos. Esta últimacategoria era comumente encontrada nasinúmeras vilas e freguesias do Brasil, naépoca. A condição dos expostos era, emgeral, bastante dúbia, ora inseridos nosdomicílios como se filhos fossem, oradistinguidos por sua específica condição,ora tratados como agregados. A própriaforma como foram recenseados em SãoJosé dos Pinhais dá uma dimensão dessadubiedade, pois aparecem expostos apenasem 1803, e certamente eles existiam em1782 e em 1827, já que a exposição eracomum no vilarejo,5 mas provavelmenteforam contabilizados como filhos ou comoagregados. Em 1803 foi indicada a pre-sença de 41 expostos em São José dosPinhais (21 homens e 20 mulheres), crian-ças e jovens quase todos.

Os parentes não-nucleares presentesnos fogos da freguesia de São José dosPinhais, no período, eram predominante-mente mulheres e crianças. Nos dois anosaqui observados, as mulheres eram emgeral irmãs, mas também mães, tias,sogras, noras e cunhadas; as crianças eramsobrinhos e principalmente netos (a prole,sobretudo, das filhas solteiras ou viúvasvivendo com os pais).

Tomando apenas o ano de 1803,observou-se que 13% (42 de 319) dasunidades domiciliares possuíam dez oumais membros. Destas, em sete (16,3%)

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viviam apenas famílias nucleares, e as demaisadotavam estratégias de compo-sição mista.Desse conjunto, além dos parentesnucleares, em 22 dos fogos havia escravos,17 abrigavam agregados e 15 tinhamparentes não-nucleares ou expos-tos. Nomesmo ano, dos 277 fogos com até novemembros, 168 (61%) eram nucleares (ou desolitários) e os demais apresentavamcomposições mistas, sendo que em 52existiam parentes ou expostos, 38 abriga-vam agregados e em 37 havia escravos.6

Tudo indica que as unidades comnúmero menor de pessoas tinham estacaracterística exatamente porque suaschefias não conseguiam atrair muitosdependentes. E esta dificuldade era maisreal em relação a escravos, um poucomenos no que se refere a agregados emenor ainda quanto a parentes. Já asunidades mais extensas garantiam estacaracterística preferencialmente com

6 No cálculo sobre a composição dos domicílios, foram incluídos os escravos, pois, como estão sendo abordadas as relaçõeseconômicas e políticas no interior dos fogos, os cativos não podem ser tratados separadamente. Isso porque tinham um papeleconômico nas unidades domiciliares e, embora fossem propriedade de outrem, eles faziam parte da rede de dominação edependência que garantia a reprodução da hierarquia social.7 Lista Nominativa de Habitantes de Paranaguá, 1803. Cópia do Cedope-UFPR, originais no Arquivo do Estado de São Paulo.

escravos, mas também com agregados e,em menor grau, com parentes não-nu-cleares (Gráfico 1).

Quadro semelhante foi encontrado emParanaguá. Dos 99 fogos que, em 1803,tinham dez ou mais integrantes, apenas 18(18,2%) eram formados somente pelafamília nuclear; dos 888 fogos com menosde dez integrantes, 585 (65,9%) tinham estaconformação. Dos domicílios com menos dedez membros, em 19% havia parentes não-nucleares, 15,5% abrigavam agregados e13,4% tinham escravos. Dos domicílios comdez ou mais membros, 78,8% possuíamescravos, em 30,3% havia agregados e17,2% abrigavam parentes não-nucleares.7

Portanto, nessa vila do litoral paranaense,onde no período a participação de cativosera maior do que em São José dos Pinhais,a preferência pela mão-de-obra cativa, porparte dos mais poderosos, era ainda maisevidente.

GRÁFICO 1Domicílios com escravos, agregados e parentes não-nucleares, segundo número de integrantes

São José dos Pinhais – 1803

Fonte: Lista nominativa de São José dos Pinhais de 1803.Cópia: Cedope/DEHIS-UFPR.Original: Arquivo do Estado de São Paulo.

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Acrescente-se que a capacidade dereunir pessoas no domicílio aumentava deacordo com a idade. Em São José dosPinhais, ainda tomando como base o anode 1803, apenas 1,7% dos fogos com chefiade até 30 anos possuíam dez ou maisintegrantes. Para os domicílios com chefiasentre 31 e 50 anos, essa proporção corres-pondia a 11,4% do total e, para aquelescom chefes de 51 anos ou mais, era de26,2%. Ao longo do ciclo familiar mudavamtambém as condições de arregimentaçãode dependentes, pois nos primeiros anosda constituição de domicílio autônomo(chefes com até 30 anos) aparentementehavia maior dificuldade para atrair parentesnão-nucleares e agregados (Gráfico 2).

Por fim, vale a pena pensar o acolhi-mento de expostos, parentes e, sobretudo,agregados, em São José dos Pinhais, noâmbito da discussão de uma prática costu-meira na Europa dos séculos XVII e XVIII,qual seja, a circulação dos filhos, um fenô-meno que ficou conhecido pela expressãolife-cycle servant, cunhada por Peter Laslett(BURGUIÈRE, 1998, p.37).

Muitas vezes tal prática tinha finalidadepedagógica e, em algumas regiões, era

8 Embora a prática da circulação de filhos, na Europa, muitas vezes também pressupunha um arranjo hierárquico.

freqüente mesmo entre os ricos, quetrocavam de filhos para que adquirissemcompetência e conhecimentos. No entanto,os autores em geral concordam que o cos-tume esteve mais disseminado em regiõese meios desfavorecidos, pois permitia aoscamponeses pobres verem-se livres de umaparte do fardo familiar, ao mesmo tempo emque proporcionava a outras famílias umcomplemento de mão-de-obra, especial-mente enquanto seus filhos eram de tenraidade (BURGUIÈRE, 1998, p.38).

É provável que tal quadro pudesse sereventualmente encontrado em São Josédos Pinhais, notadamente no caso deparentes. Porém, ainda que o vilarejo ti-vesse poucos escravos, é provável que alia prática da agregação de não-parentes eramenos um signo da existência de umacomunidade camponesa8 e mais um índicede diferenciação escravista. O principalargumento a reforçar tal afirmativa talvezseja a designação da cor das pessoas: 74%dos agregados foram identificados comopardos ou negros em 1803; índice que seampliaria para 82% em 1827. Ademais, dos23 agregados brancos de São José em1803, 22 estavam em fogos chefiados por

GRÁFICO 2 Domicílios com escravos, agregados e parentes não-nucleares, segundo a idade do chefe do domicílio

São José dos Pinhais – 1803

Fonte: Lista nominativa de São José dos Pinhais de 1803.

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brancos e todos os 19 agregados brancos,em 1827, viviam em fogos com chefiabranca. Já entre os 63 não-brancos que em1803 eram agregados, apenas 24 residiamem fogos de não-brancos e, em 1827,apenas 26 dos 84 estavam estabelecidosem domicílios de chefia não-branca.

Por fim, observe-se que, embora osagregados mais comumente encontradosna freguesia fossem crianças e jovens, operfil dos domicílios em que viviam diferemuito do que geralmente se encontra emfontes européias. Apenas para citar algunsexemplos, esse era o caso de Angélica,uma parda de seis anos, que estavaagregada no domicílio do lavrador JoséMartins de Brito, um branco de 49 anos,casado e com seis filhos entre 5 e 22 anos(domicílio 21, Lista de 1803). Ou ainda, dosjovens Sypriano (12 anos), Manoel (11anos), Anna (dez anos), Francisca (noveanos) e Antonia (seis anos), todos pardos,agregados na casa de Camilio de Lima,fazendeiro branco, de 29 anos, casado, semfilhos e proprietário de 11 escravos(domicílio 189, Lista de 1803).

Também não era incomum a agregaçãode pardos e negros livres casados com es-cravos do domicílio. E ainda algunsagregados poderiam ter outros laços deparentesco com escravos dos domicílios –além do nuclear –, os quais, no entanto,muito dificilmente podem ser recuperadospelo historiador.

Em alguns fogos talvez houvesse aagregação de forros, o que não é espe-cificado de forma sistemática pelas listas deSão José, entretanto, a historiografia temacentuado a grande ocorrência de agre-gação de forros ou livres de cor, especial-mente mulheres idosas ou jovens com seusfilhos pequenos. De fato, essa situação foiencontrada nas treze indicações deagregados forros em listas nominativas deParanaguá (nove em 1783 e quatro em1830). Como enfatizou Manuela Cardoso daCunha (1985, p.48-51), a “esperança damanumissão (...) passava pela dependência

9 Na lista consta o que o domicílio exportou, e não o que vendeu, portanto, pode-se deduzir que os dados referiam-se ao que olavrador e/ou pecuarista vendeu fora do vilarejo.

pessoal do senhor, ou eventualmente deoutro senhor”. Ainda conforme a autora, oque a “alforria revela é uma expectativade transformar o escravo num cliente,agregado”.

Os dados até aqui apresentadospermitem inferências que transcendem amera identificação de uma morfologiadoméstica, uma vez que se referem a práticassociais importantes, fornecendo subsídiosque possibilitam avançar no entendimentodo funcionamento de uma sociedadeescravista, por certo, mas com poucosescravos.

A presença de agregados (principal-mente), expostos e parentes nos domicíliosde São José dos Pinhais (e de outras vilase freguesias da Capitania de São Paulo)sugere a releitura das relações de poderem sociedades escravistas, pois indica ageneralização de uma específica práticapatriarcalista entre os livres. Nela, algunseram mais bem-sucedidos – aqueles commaior poder econômico e político para tor-nar um estranho sua propriedade ou seudependente –; os menos poderosos perse-guiam o mesmo objetivo, embora raramentetivessem condições de exercer seu poderde mando para além da parentela. A análisedos dados sobre atividade econômica eposse de terras, no item a seguir, devecontribuir para a clarificação do que até aquifoi exposto.

Atividades econômicas e propriedadedas terras

No período, como já mencionado, apopulação da freguesia de São Josémantinha-se basicamente do fruto do traba-lho na agricultura e na criação, o que eracaracterística de toda a região de Curitiba eseu entorno. Os dados sobre atividadeseconômicas, presentes nas listas nomina-tivas, ajudam a completar esse quadro.

A lista de 1803 traz a ocupação dochefe do domicílio bem como suasexportações no ano.9 Considerando-se

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esses dois elementos (isto é, classificandocomo artesão e lavrador, por exemplo, umchefe de domicílio que se identificou comosapateiro e exportou farinha de trigo; oucomo lavrador e pecuarista um chefe dedomicílio que tenha declarado ser lavrador,mas também exportou toucinho e bois),foram obtidos os seguintes resultados: dos319 chefes dos fogos, 291 (91%) indicaramexercer algum tipo de atividade agrícola;destes, quase 70% declararam plantarapenas para o próprio sustento. Os demais,além de garantir a subsistência, conse-guiram gerar excedentes para o mercado.

Da pecuária (criação de vacum) ocu-pavam-se pelo menos 25 chefes de fogos,cerca de 8% do total (em geral tambémlavradores), e quase todos declararam terexportado parte da produção naquele ano,sendo que apenas dois homens foramidentificados como proprietários de fazen-das. Nesta lista foram ainda recenseadosum minerador, três indivíduos ocupados naextração de erva-mate, dois tropeiros,10 doisfazendeiros11 e 15 jornaleiros. Também sefaz referência a ocupações mais ligadas aomeio urbano (artesãos, serviçais, eclesiásti-cos, militares, etc.), a nove chefes de domicí-lios que estariam no Sul (talvez conduzindotropas ou negociando) e a cinco que viviamde esmolas.

A lista de 1827 é muito pobre eminformações, pois nela consta apenas aocupação. Por esta razão, para fins decomparação, preferiu-se utilizar os dados dalista de 1818, na qual, além da ocupação eda exportação, aparece a produção de cadadomicílio. Nesse recenseamento, dos 494chefes de fogos, 417 (84,4%) dedica-vam-se à lavoura e 146 (29,5%) à pecuária. Detodos eles, foi possível apurar que apenassete correspondiam a proprietários defazendas, 196 venderam parte de suaprodução e 317 (56%) produziram apenaspara o seu próprio sustento. Entre os chefesde domicílio da freguesia, havia 26 apanha-dores de erva-mate, dez fazendeiros e

10 O dado é impreciso, pois tropeiro é, normalmente, o comerciante de animais, enquanto condutor de tropas é aquele que levaos animais do comerciante até o ponto de revenda. Na lista não é possível saber se se trata de um ou outro.11 Fazendeiro era o administrador da fazenda, e não seu proprietário.

quatro capitães do mato. Também foramregistrados alguns artesãos, eclesiásticos,profissionais liberais, etc., além de 24 pes-soas identificadas como pobres ou mendi-gos. Ainda consta na lista que 12 indivíduosestavam “no Sul” e 13 “na guerrilha”.

Em 1803, os domicílios que declararamvendas de produtos agrícolas tinham emmédia 1,3 cativo; para os que informaramplantar apenas para o próprio sustento essamédia era de 0,5. Em 1818, quando oporcentual de escravos havia caído nafreguesia, a desigualdade no interior dessegrupo de lavradores se manifestava aindamais claramente: as sete fazendas tinhamem média seis cativos; os lavradores quedeclararam vendas possuíam em média umescravo (estas duas categorias, juntas,tinham em média 1,3 cativo); e os queproduziram para o próprio sustentodispunham de apenas 0,1 cativo, tambémem média.

Todavia, a mão-de-obra da freguesianão se restringia aos escravos. Em 1803,aqueles que plantavam apenas para osustento abrigavam em média 0,2 agregadoe, para os que venderam parte de suaprodução, essa média correspondia a 0,3.Em 1818, quando era menor a participaçãode escravos na freguesia, a diferençaacentuou-se, com uma média 0,1 agregadopara os que plantavam para o sustento e de0,4 para os que venderam parte da produção(incluídos aí os grandes proprietários).

Parece que existia, de fato, uma relaçãodiretamente proporcional entre volume daprodução e número de pessoas integradasao domicílio, pois, até mesmo no que serefere aos parentes (nucleares ou não) eaos expostos, os lavradores com produçãoexcedente apresentavam, em média, umnúmero maior de pessoas em seus domi-cílios: 5,7 em 1803 e 5,0 em 1818, contra4,8 e 4,5 dos outros lavradores, nos res-pectivos anos.

Para o século XVIII, os dados sobre asformas de aquisição das terras no Paraná

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estão esparsos e são imprecisos. Sabe-seque na região as sesmarias eram reque-ridas através da prática de alegar posseanterior. A ocupação pura e simples e ausurpação também eram formas muitocomuns de obtenção de terras.

Para 1818, tem-se um quadro maisdetalhado, graças à existência de um censode terras realizado em toda a Capitania deSão Paulo: o Inventário de Bens Rústicos.Horácio Gutiérrez, que estudou esse docu-mento na parte relativa ao Paraná, apontapara a existência, em toda essa região, degrande número de pequenas propriedades,particularmente no litoral e nas áreas maisurbanizadas do planalto, voltadas basica-mente para a agricultura de alimentos e oautoconsumo. No entanto, ressalta o autor,havia uma altíssima concentração da pro-priedade da terra no Paraná, pois, enquantoas propriedades com até 100ha, perfazendo64% do total, representavam apenas 1,6%da área total, propriedades acima de5.000ha, correspondendo a 2,4% do númerototal, apropriavam-se de 66,6% da áreaocupada (GUTIÉRREZ, 2001, p.217).

Manipulando os dados do Inventário deBens Rústicos de Curitiba (em que estáincluído o registro das propriedades de SãoJosé dos Pinhais), foi possível confirmar etambém detalhar tal quadro. Das 872propriedades registradas em sete com-panhias de ordenanças,12 524 (60%) tinhammenos de 100ha, ocupando apenas 3,4%das terras (14.390,9ha de um total de422.831,5ha). Apenas 11 propriedadespossuíam mais de 5.000ha (1,2%), noentanto ocupavam 32% do total de terras(135.641,0ha).

Especificamente para a região de SãoJosé dos Pinhais (3a e 7a companhias deordenanças de Curitiba), encontrou-se oseguinte quadro: 115 propriedades com até100ha compunham 56% do total de 205propriedades e ocupavam pouco menos de4% da área total. Já as propriedades commais de 4.000ha (não foram registradaspropriedades com mais de 5.000ha) eram

12 São, na verdade, 873 propriedades, porém, na 6a companhia, uma propriedade foi registrada sem menção do seu tamanho, porisso não foi computada aqui.

apenas quatro (perfazendo cerca de 2% dototal de propriedades), ocupando 70% daárea total na freguesia.

É possível matizar esse quadro, emduas direções. Por um lado, porque naregião não era incomum que uma só pessoativesse duas ou três propriedades nãocontíguas. Embora na freguesia de São Josénão tenham sido registradas propriedadescom mais de 5.000ha, na manipulação dosdados identificou-se registro de pessoascom mais de uma propriedade. É o caso doCapitão Francisco da Costa, que possuíatrês propriedades, que, juntas, perfaziam umtotal 5.880,6ha. Além disso, não é impro-vável que alguns proprietários, especial-mente os grandes, também possuíssemterras e escravos em outras freguesias doplanalto e do litoral. Esta possibilidade pa-rece ainda mais plausível quando se verificaque, em São José dos Pinhais, foramregistradas oito propriedades cujos donosviviam em Santa Catarina, São Francisco,Paranaguá, Antonina ou Sorocaba.

Por outro lado, das 205 propriedadesda freguesia de São José, 27 estavam emnome de escravos. Na verdade, não hácomo decifrar exatamente o que issosignifica, pois a identificação é ambígua.Tem-se apenas a indicação de que, nessasterras, as pessoas estabelecidas eram “osescravos de fulano de tal”. Como na listanominativa do mesmo ano foram encon-trados apenas quatro domicílios integradossomente por escravos, pode-se supor queaquelas terras eram ocupadas coletiva-mente por libertos e seus descendentes,ainda que não necessariamente fossemlegalmente suas. Ocorre que, juntas, taispropriedades perfaziam o não desprezívelíndice de 22,4% da área total, chegandouma delas a medir pouco mais de 2.900ha.Talvez isso explique, ao menos parcial-mente, a discrepância entre o número depropriedades e o de domicílios: foramregistradas 215 propriedades na freguesiaem 1818, no entanto, na lista nominativa domesmo ano, foram recenseadas 494 uni-

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dades domiciliares. Logo, pode-se deduzirque muitos desses domicílios seriamocupados por aqueles negros e pardoslivres, embora certamente existisseminúmeras propriedades em nome de uma sópessoa, porém habitadas e cultivadas porsua família ampliada, organizada emdomicílios nucleares, ou ainda por agrega-dos que construíam casa na propriedade.

Feitas essas ressalvas, para avaliaçãodas diferenças quanto às dimensões daspropriedades arroladas no Inventário deBens Rústicos de 1818, as medidas origi-nais (em braças de fundos e testada) foramtransformadas em alqueires paulistas,13

obtendo-se, assim, números “redondos”. Osresultados desses cálculos estão resumidosna Tabela 3.

Verifica-se que, em relação a Curitiba,São José dos Pinhais apresentava menorconcentração de terras, pois lá existiam,proporcionalmente, menos propriedadescom até 50 alqueires, ocupando uma áreamaior de terras do que suas similares deCuritiba. Além disso, as propriedades mé-dias, em São José dos Pinhais, ocupavamuma proporção muito mais significativa da

área total das terras, do que aquelas simi-lares nas demais companhias de ordenan-ças da região. Finalmente, em São José aelite latifundiária detinha uma porção muitomenor das terras. Como já mencionado,era ainda maior a diferença entre São Josée as localidades mais especializadas napecuária e no tropeirismo, como Castro,onde os latifúndios monopolizavam boaparte das terras. Desse modo, a freguesiaem estudo era exemplo extremo nãoapenas da representatividade do pequenoplantel de escravos na região, mas tambémseria a área do planalto em que as terrasestavam menos concentradas.

Segundo o Inventário de Bens Rústi-cos, para o conjunto das sete companhiasde ordenanças de Curitiba, 72% daspropriedades (626) foram adquiridas porcompra e/ou herdadas e 27% (237) eramposses. As demais eram sesmarias (5), ouum misto de herança e posse (2), sesmariae herança (1), sesmaria e compra (1) eposse e compra (1). Exclusivamente paraas companhias de São José dos Pinhais,as proporções foram de 76,8% para compraou herança e de apenas 14% para posse.

13 Quando se tem, por exemplo, um terreno de 100 x 500 braças, é preciso calcular a área do terreno. Para isto, multiplica-se 500x 2,20 = 1.100m; e 100 x 2,20 = 220m. A área do terreno é: 1.100mx220m= 242.000 metros quadrados. Para transformar em hase deve dividir por 10.000, o que vai dar 24,2ha. Para calcular quantos alqueires paulistas existem em 24,2ha é só dividir por 2,42,o que dá 10 alqueires paulistas.

TABELA 3 Propriedades e área ocupada, segundo tamanho das propriedades

Curitiba e São José dos Pinhais – 1818

Fonte: Inventário de Bens Rústicos, 1818.Cópia: Cedope/DEHIS-UFPR.Original: Arquivo do Estado de São Paulo.

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Embora esse último porcentual sejapequeno, a posse era forma de ocupaçãorelativamente usual para os mais pobres,pois 86% das propriedades obtidas por estemeio, em São José, tinham até 50 alqueires.Dado que as terras do vilarejo eram deocupação antiga (iniciada no século XVII,como se viu), esta característica pode indicarque alguns pecuaristas e invernistas queali viviam, no passado, venderam ou aban-donaram suas sesmarias, transferindo-separa a Lapa, Castro ou outras localidadesdos Campos Gerais, mais próximas doCaminho do Viamão, e, assim, parte de suasterras tornou-se posse da população maispobre.

O cruzamento dos dados do Inventáriode Bens Rústicos de 1818 com as infor-mações da lista nominativa de São Josédos Pinhais, do mesmo ano, permitiurealizar outras inferências. Porém, comonem todas as pessoas relacionadas noinventário foram encontradas na listanominativa e outras tinham homônimos,foram levantados os dados de apenas 90proprietários, aqueles sobre os quais nãose teve dúvida. Embora se trate de umaamostragem, ela é bastante significativa, jáque se refere a 95 das 205 propriedadesregistradas (portanto 46% delas) e a cerca

de 40% das terras ocupadas na freguesia.Além disso, abrange os diferentes estratosde proprietários: dos 90 selecionados, 66possuíam terras com até 100 alqueires, 18eram donos de 101 a 500 alqueires, trêseram proprietários de 501 a 1.000 alqueirese três eram senhores de terras de com maisde 1.000 alqueires. Nos casos em que apessoa tivesse mais de uma propriedaderegistrada em seu nome, foram somadosos alqueires de todas, que passaram a sertratadas como se fosse uma única.

Na busca de relação entre produti-vidade e tamanho da propriedade, inferiu-se que a posse de poucas terras podiadificultar a produção de excedentes: dos40 proprietários de até 50 alqueires sobreos quais havia informações a respeito daprodução, 25 declararam ter plantadoapenas para comer e outros 15 afirmaramter feito alguma venda de lavoura e/oucriação naquele ano. Entre os proprietárioscom mais de 50 alqueires, apenas quatrodeclararam ter plantado só para o sustentoe os demais (26) venderam gado e/ouprodutos agrícolas naquele ano.

Parece que existia relação tambémentre tamanho da propriedade e númerode pessoas no domicílio: dos 52 proprie-tários de até 50 alqueires de terras, 41

TABELA 4 Produção média dos domicílios, por tipo de cultura, segundo número de pessoas residentes

São José dos Pinhais – 1818

Fonte: Inventário de Bens Rústicos, 1818. Lista Nominativa de São José dos Pinhais, 1818.Cópias: Cedope/DEHIS-UFPROriginais: Arquivo do Estado de São Paulo.

TABELA 5Produção média dos domicílios, por tipo de cultura, segundo dimensões das propriedades rurais

São José dos Pinhais – 1818

Fonte: Inventário de Bens Rústicos, 1818 Lista Nominativa de São José dos Pinhais, 1818.Cópias: Cedope/DEHIS-UFPR.Originais: Arquivo do Estado de São Paulo.

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(79%) não possuíam escravos, 33 (63,5%)não abrigavam agregados e 44 (84,5%)tinham no máximo dez pessoas morandoem seu domicílio. Dos 36 proprietários deterras com mais de 50 alqueires, 17 (47%)não possuíam escravos, 21 (58%) nãoabrigavam agregados e 26 (72%) viviam emdomicílios com no máximo dez pessoas.

Também havia relação entre número depessoas nas propriedades e produtividade.Na Tabela 4 observa-se que, para as quatromais importantes produções da freguesia(milho, feijão, trigo e vacum), na amostragemos domicílios com dez ou mais pessoastinham maior produção, em média, do queas propriedades de até nove pessoas.

Além disso, é possível que houvessetendência à maior diversificação dasatividades nas unidades domiciliares maisnumerosas, pois, embora a moda fossecinco atividades para os dois tipos dedomicílios, no grupo daqueles com até novepessoas existiam 13 unidades que desen-volviam apenas três ou quatro atividades;enquanto naquele com dez ou mais mora-dores nenhuma unidade apresentavamenos de cinco atividades.

Finalmente, encontrou-se relação entreprodutividade, diversificação das atividadese tamanho das propriedades: aquelas comaté cinco atividades tinham em média 85alqueires e as que desenvolviam entre seise oito atividades possuíam uma média de212 alqueires. Além disso, as produçõesde milho, feijão e vacum eram mais eleva-das quanto maiores fossem as proprieda-des. Isso não era verdade apenas para otrigo, cultura de exportação cuja produçãodas propriedades médias e pequenas(nesta ordem) era maior, em média, do quea das propriedades grandes (Tabela 5).

Como mencionado anteriormente, osdados sobre composição dos domicíliosestariam indicando a existência de umaprática “patriarcalista” na freguesia de SãoJosé, da qual todos participavam, visandoa constituição, a manutenção ou a amplia-ção de suas redes de poder. O cruzamentodos dados sobre propriedade das terras e

produção agrícola acrescenta novas variá-veis a essa trama relacional, pois reunirdependentes em torno do fogo propiciavao incremento da produtividade e da pro-dução de excedentes, possibilitando aatuação no mercado e, por sua vez, aincorporação de mais terras. E para grandeparte das pessoas, somente com o correrdo tempo isso se tornava possível.

Relações de dependência em umaeconomia familiar

A partir dos dados de São José dosPinhais aqui apresentados, é possívelresumir os aspectos que podem contribuirpara o enriquecimento da discussão acercado patriarcalismo no Brasil escravista. Paratanto, tome-se o trabalho de Maria LuizaMarcílio, Crescimento demográfico e evolu-ção agrária paulista, 1700-1836, publicadoem 2000, mas que se tornou “um clássicosecreto”,14 desde que foi apresentado comotese de livre-docência na Universidade deSão Paulo, em 1974, e que ainda é umadas pesquisas mais abrangentes sobre ahistória paulista no período.

Para a discussão tratada no presenteartigo, a referência a esta obra é especial-mente pertinente, pois o vilarejo de São Josédos Pinhais fazia parte da grande áreasocioeconômica estudada por Marcílio.Além disso, a configuração dos domicíliose a posse de escravos de São José dosPinhais coincidem, no geral, com o quadroencontrado pela autora em grande parte dasvilas e freguesias da região paulista.

Com base nas listas nominativas dehabitantes das vilas e freguesias daquelacapitania (incluindo o Paraná), Maria LuizaMarcílio afirma que eram minoria os fogosde grandes dimensões, posto que a médiade pessoas livres girava em torno de 4,6por fogo, e que, embora fosse crescente noperíodo a entrada de escravos, em geral asescravarias eram diminutas. Em todas asregiões da capitania, com pequenasdiferenças que não alteram o quadro total,havia a prevalência dos domicílios com

14 Expressão cunhada por Stuart Schwartz no prefácio que escreveu para o livro (MARCÍLIO, 2000, p.13).

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estrutura simples, inclusive entre os grandesproprietários: quase três quartos de todosos domicílios paulistas, possuindo ou nãoescravos, eram formados por casais comou sem filhos, pais ou mães – viúvos, soltei-ros ou casados – com filhos. Receber paren-tes próximos ou afastados em suas casas,ou a convivência de vários núcleos familia-res em um mesmo teto eram situaçõesexcepcionais e temporárias. Anotou ainda,a autora, que, nas pequenas porcentagensde grupos domésticos de famílias extensase de famílias múltiplas, ao contrário do quese poderia esperar, a maioria dos indivíduose núcleos familiares que viviam sob adependência do chefe do domicílio nãotinha vínculo de parentesco. Eram insignifi-cantes as porcentagens das pessoasvivendo de favor em casas de familiares,pois preferiam residir, em casos de neces-sidade ou em situações anormais, agrega-dos em casas de estranhos. Desde que anecessidade fosse superada ou a anorma-lidade contornada, estes agregados procu-ravam estabelecer sua residência separada(MARCÍLIO, 2000, cap.5).

Exatamente por essas características,esta obra sempre foi utilizada como contra-argumento à vigência da ordem patriarcalno Centro-Sul do Brasil escravista. A própriaautora faz referência a isso, argumentandoque suas descobertas fazem cair por terrateses prevalecentes na historiografiatradicional,

como a de Ellis Júnior, por exemplo, quepretendia uma predominância patriarcal“onde viviam filhos e netos e até mesmo osramos bastardos colhidos com a maiorisenção de ânimos pelas donas paulistas”.E mais, que “elevado era o número depessoas que formavam a família, quaseconstituída pelo casal de velhos e 10 ou 12filhos do primeiro matrimônio, outros tantosdo segundo” (MARCÍLIO, 2000, p.99).

Da mesma forma como muitos histo-riadores dedicados a esse tema, é possívelconcordar que o domicílio patriarcal, talcomo aparece descrito em Oliveira Vianna,Ellis Junior e mesmo Gilberto Freyre, dificil-mente pode funcionar como paradigma dosdomicílios paulistas daquele período.Porém, o cruzamento dos dados sobre com-posição domiciliar, produção e posse de

terras, e a observação da dinâmica daconfiguração domiciliar da freguesia deSão José dos Pinhais – isto é, suas mu-danças no tempo – puderam ao menossugerir o caráter patriarcal das relaçõesestabelecidas entre homens e mulhereslivres.

Se o quadro geral de uma sociedadese expressa no comportamento padrão (nocaso, família conjugal/estrutura domiciliarsimples), as relações de poder e a hierar-quia que a organiza só podem se expressarnos diversos comportamentos. Nesse sen-tido, o fato de que pelo menos 10% dapopulação livre de São José dos Pinhais,em 1803, e 4,2% em 1827 (este, um provávelsub-registro) estivesse estabelecida emcasa de parentes não-nucleares não pareceum comportamento desprezível. Menosdesprezível ainda é a observação de que23% dos domicílios da freguesia tinham aomenos um parente não-nuclear em 1803 ecerca de 10% em 1827. Da mesma forma,5% da população livre vivendo como agre-gada em 1782, 5% em 1803 e 3,7% em 1827pode parecer pouco, mas é sociologica-mente relevante quando se atenta que 10%dos fogos de São José tinham agregadosem 1782, 18,5% em 1803 e 12% em 1827.Ademais, se viver em casa de parente ouagregado em domicílio de estranhos erasituação temporária, isso não torna desim-portante o fenômeno; ao contrário, revelaque era estratégico.

Tudo leva a crer, desse modo, que adiversidade da organização domiciliar énecessariamente um dos componentesexplicativos da hierarquia daquela socie-dade, e sua dinâmica é especialmenteestratégica para a percepção dos esforçosde movimentação das pessoas em ambien-tes aparentemente pouco hierarquizados.

Outro argumento comumente utilizadocontra a tese do patriarcalismo é a infe-rência de Maria Luiza Marcílio (2000, p.98)de que

a própria organização da produçãoagrícola, fundada em larga escala nosistema de roça de alimentos aberta na mata,não permitia a existência de casas comnumerosas pessoas, de famílias extensas oumúltiplas. O precário patrimônio do

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camponês da roça de subsistência, arusticidade de seu rancho de sapé [...], assucessivas mudanças de local da roça, todoesse sistema requeria a prevalência deagrupamentos familiares simples.

Este é de fato um quadro bastantefidedigno, porém, não se deve generalizara idéia de que “as sucessivas mudançasde local da roça” necessariamente impli-cava mudanças também sucessivas deresidência. A estabilidade da população deSão José (a maioria dos chefes de domicílioera natural da própria freguesia, ou dosarredores) é indício do que se está propondoaqui. Em muitas regiões a rotatividade dasterras de plantio ocorria em um perímetrolimitado. Para São José dos Pinhais, umtestemunho um pouco tardio, de meadosdos anos de 1850, vem referendar esta im-pressão. Trata-se do relato de um imigrantealemão que, por essa época, se estabe-leceu com sua família naquela região, oqual faz referência a “moradores que pos-suíam outras propriedades, nas vizinhan-ças, além daquela em que viviam.15

Além disso, o cruzamento de dados aquirealizado indica ser possível relativizar atese da inviabilidade econômica dos domi-cílios numerosos. Ao menos em São Josédos Pinhais, como se viu, o aumento daprodutividade, a diversificação da produ-ção, a venda de excedentes no mercado ea incorporação de novas terras relaciona-vam-se com a capacidade de reunir ummaior número de pessoas no domicílio,ainda que poucos tivessem sucesso nessaempreitada.

Talvez não por acaso, as informaçõessobre composição domiciliar do vilarejomostraram que, conforme se reduzia acapacidade de comprar escravos, mais aelite escravista se dispunha a incorporar osagregados que, antes, estavam basica-mente estabelecidos nos fogos não-escra-vistas. Somente a atenção à plasticidade

dos elementos que sustentavam aquelaorganização hierárquica permite entender,igualmente, porque tantos dos mais pobresentre aqueles homens de “precário patri-mônio” abrigavam parentes não-nuclearese agregados em seus ranchos rústicos.

A professora Marcílio percebeu muitobem tal empenho, quando indica que, napopulação livre da Capitania de São Paulo,as razões de dependência eram muitobaixas, sugerindo utilização intensiva demão-de-obra infantil e feminina como meiosnecessários para a sobrevivência dosgrupos domésticos. E o costume de se acei-tarem agregados foi a maneira encontradapela sociedade para complementar a dimi-nuta força de trabalho familiar e a estruturada população livre com baixa razão de mas-culinidade nas idades adultas, sendo queas famílias com maiores recursos recorriamà importação de escravos (MARCÍLIO, 2000,p.105-107).

Octavio Ianni, que realizou um estudoextensivo sobre a escravidão no Paraná,embora tenha caracterizado a região a partirdo modelo patriarcalista clássico,16 nãodeixou de, ao menos, registrar (embora nãotenha ido adiante disso) a natureza maissutil das relações de poder que ligavamhierarquicamente aqueles homens livrespobres entre si, e que estão expressas nacomposição domiciliar da região:

Havia uma compulsão econômico-sociallevando continuamente os brancos à utili-zação do trabalho escravo, o que tinhadiferentes funções, além de ser requisito dadefinição de status elevado. E quando o nívelde renda da unidade não possibilitava acompra de trabalhadores, o branco incor-porava agregados, geralmente pardos, coma finalidade de suprir-se de força de trabalhopara as atividades que um senhor não deverealizar. Mesmo famílias pobres, que apenasproduzem para o próprio sustento apóiam-se na força de trabalho de agregados oumesmo escravos. [...] É desta maneira queos brancos definem-se reciprocamente as

15 Ele menciona, por exemplo, que tiveram como vizinha uma viúva que mantinha uma grande horta em sua propriedade. Certodia ela os avisou que todos iriam à sua roça de milho para fazer a colheita, e que se durante sua ausência precisassem de couve,bastaria falar com o negro velho que ficaria para cuidar da propriedade, e que os atenderia. Menciona também que um outro vizinholhes propôs a venda de uma propriedade que ficava a meia hora de São José, na estrada que seguia para Morretes, constituída porum terreno com uma boa casa, área cercada para plantação e com um tanque com monjolo (STROBEL, 1987, p.63-64).16 Ianni se utiliza especialmente das obras The brazilian family, de Antonio Cândido, e Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre.

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posições sociais relativas. É desse modo,quase que exclusivamente, que os brancosde poucos recursos conseguem afirmar-see firmar-se em determinadas posições daestrutura econômico-social da comunidade(IANNI, 1988, p.74).17

No entanto, pode-se concordar quandoa professora Maria Luiza Marcílio enfatiza arusticidade e a precariedade econômica damaior parte da população da região paulista,de modo que o poder patriarcal ali vigenteseria sempre um pouco “capenga”, permi-tindo à “arráia miúda” escapar mais facil-mente das teias da dependência, num meiocomo este, no qual mesmo a elite (muitomodesta para os padrões da colônia) tinhadificuldade de incorporar terras e homensaos seus domínios.

No entanto, se individualmente a de-pendência em relação a um parente ou aum estranho podia ser muitas vezes transi-tória, no conjunto (ou estruturalmente) eramecanismo eficiente na constituição ereprodução da desigualdade no interior dovilarejo, e mesmo no interior de cada domi-cílio. Por esta razão, o desejo de autonomia,e de se tornar um “pequeno patriarca”,18

acabava por seduzir mesmo os mais mo-destos, posto que sua concretização seriafonte de distinção social e, portanto, demobilidade ascendente.

Tal quadro guarda certo nexo com alógica da organização domiciliar de dife-rentes regiões da Europa do Antigo Regime.Em “As mil e uma famílias da Europa”,Burguière e Lebrun (1998, p.31-32), combase nos resultados de trabalhos deinúmeros pesquisadores, afirmam que adimensão das famílias no Antigo Regimeera mais um índice de poder social do quede vitalidade demográfica. Embora acitação seja longa, vale a pena transcrevê-la quase na íntegra.

É a riqueza que permite às classessuperiores manter em suas casas um grandenúmero de criados e albergar parentesisolados. Esta superioridade observa-senumericamente nos aglomerados onde reina

uma certa segregação social. Em Györ(Hungria), no século XVIII, as famílias sãonitidamente maiores no centro da cidadeonde reside a burguesia rica, e em Viena noaristocrático bairro de Herrengassen.Em compensação, quando uma casa nobreou burguesa se separa do conjunto e afirmaa sua superioridade, as estatísticas deixamde a localizar. É o caso da Inglaterra, ondea gentry, ao contrário dos outros nobreseuropeus, habita de preferência no campo.Das médias obtidas a partir das “cemaldeias inglesas” temos uma impressão degrande uniformidade: um povo de famíliasreduzidas. Ora era exactamente a impressãooposta que os camponeses tinham dapresença imperiosa, em cada aldeia inglesa(ou pelo menos quatro aldeias em cadacinco), do castelo senhorial.Em Goodnestone next Wingham, o vigáriorecenseia em 1676 uma das três famílias defidalgos, a do nobre Hales, e conta 23pessoas, entre as quais 15 criados. Comoestes criados, muito jovens em relação aoagregado, são quase todos procedentesda paróquia, podemos dizer que uma famíliaem cada cinco, em Goodnestone, está aoserviço do nobre Hales. Este modestofidalgo – nem sequer é proprietário – ilustraà sua escala a dimensão ostentatória dafamília aristocrática. A abundantecriadagem, assim como o facto de mantersob o seu tecto uma parte dos seusparentes, não tem a ver com o aspectoeconómico, mas sim com uma obrigaçãosocial. Consumir mão-de-obra até serexcessiva é uma prova de poder e degenerosidade em relação às famílias quepodem empregar os seus filhos.Fora do círculo das elites, a dimensão dasfamílias tem a ver com a situação económica,na base da capacidade de produzir, nãode gastar. Na Europa ocidental, as grandesfamílias camponesas (as dos yeomen emInglaterra ou dos “lavradores” em França)acumulam superioridade económica epoder social. Mas na Europa Central eOriental, o tamanho das famílias já nãocoincide necessariamente com a posiçãosocial. Em Villgraten, pequena aldeia dosAlpes austríacos cujos habitantes sededicam à criação de gado bovino (grandeconsumidor de mão-de-obra), a dimensãodas famílias em 1781 varia exactamente coma das manadas. Em Nagykovacsi, aldeiahúngara perto de Buda, são servos quem

17 Uma visão um pouco diferente está em Machado (2006, cap. 4), em que se realiza uma discussão sobre práticas patriarcalistasentre libertos e livres de cor.18 Expressão cunhada por Lima (1997).

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têm as maiores famílias (...) e a populaçãolivre as mais pequenas (...). Nesta região,os camponeses proprietários submetidos àservidão são muitas vezes os mais ricos.

(...) Na Europa moderna, a hipertrofia dogrupo doméstico não é uma característicada servidão mas de todos os sistemas deexploração em que a quantidade de mão-de-obra investida regula, simultaneamente,o lucro do rendeiro e o dinheiro retiradopelo proprietário.

Se no Antigo Regime europeu umamesma prática ajudava a produzir dife-rentes relações políticas e específicasconformações sociais, isso também deveriaocorrer no Brasil escravista. Assim, a des-peito da aparência de uniformidade sociale de organização familiar reduzida, a ordempatriarcal e escravista parecia vigir nesseambiente de homens pouco poderosos ede população escrava escassa.

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Abstract

The possible patriarchalism: power relations in a former slave region in Brazil where family laborwas the rule

In this article I have attempted to show indications of a peculiar configuration of patriarchalism incertain food-producing regions. In these regions family labor was the rule and, from thedemographic point of view, slavery was inexpressive. The locus of the study is “Freguesia deSão José dos Pinhais” (State of Paraná) in the 18th and 19th centuries, and the dynamic of thesocial relations there is analyzed through data on household composition, production andlandholding.

Key words: Patriarchalism. Dependence. Slavery.

Recebido para publicação em 09/11/2005.Aceito para publicação em 17/03/2006.