o pássaro da cabeça (poemas)

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1 O pássaro da cabeça Manuel António Pina (1983) A Ana quer A Ana quer Nunca ter saído Da barriga da mãe. Cá fora estáse bem, mas na barriga também era divertido. O coração ali à mão, os pulmões ali ao pé, ver como a mãe é do lado que não se vê. O que a Ana mais quer ser quando for grande e crescer é ser outra vez pequena: não ter nada que fazer senão ser pequena e crescer e de vez em quando nascer e voltar a desnascer. Era uma vez A Ana lê muito devagar, Só uma letra de cada vez. Enquanto ela está a só uma letrar, A Sara letra duas ou três. A Ana tem tempo de lá chegar. Os pês, o tês, os bês, os mês, Não fogem se ela demorar. A Sara acaba e começa outra vez. A Ana lê e põese a pensar Nos quês, nos porquês, nos para quês, E volta atrás para confirmar Porque, afinal de contas, talvez. A Sara prefere entrar Nas palavras, nos desenhos, e ficar. Existir nas histórias, em vez De ver, viver, em vez De pensar, de pausar, de perspicar, Ser ela a ser o que o herói fez. Sai dos livros sem sair do lugar E corre o mundo de lés a lés. A Sara lê assim, a Ana mais devagar, E depois ficam as duas a conversar. A Ana conta: “Era uma vez...” E a Sara: “Era eu uma vez...” A sopa de letras Era uma vez um menino Que não queria sopa de letras. Podiam lá estar coisas bonitas escritas, Mas para ele era tudo tretas... Podia lá estar escrito COMER, Podia lá estar escrito GOIBADA, Como ele não sabia ler, A sopa não lhe sabia a nada. Tinha no prato uma FLOR, Um NAVIO na colher, Comia coisas lindíssimas sem saber Mas ele queria lá sabor! Até que um amigo com todas as letras Lhe ensinou a soletrar a sopa. E ele passou a ler a sopa toda. E até o peixe, a carne, a sobremesa, etc. ... Coisas que não há que há Uma coisa que me põe triste É que não exista o que não existe. (se é que existe, e isto é que existe!) há tantas coias bonitas que não há, coisas que não há, gente que não há, bichos que já houve e já não há, livros por ler, coisas por ver, feitos desfeitos, outros feitos por fazer, pessoas tão boas ainda por nascer e outras que morreram há tanto tempo! Tantas lembranças de que não me lembro, Sítios que não sei, invenções que não invento, Gente de vidro e de vento, países por achar,

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Livro "O pássaro da cabeça"

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    O pssaro da cabea Manuel Antnio Pina (1983)

    A Ana quer A Ana quer Nunca ter sado Da barriga da me. C fora est-se bem, mas na barriga tambm era divertido. O corao ali mo, os pulmes ali ao p, ver como a me do lado que no se v. O que a Ana mais quer ser quando for grande e crescer ser outra vez pequena: no ter nada que fazer seno ser pequena e crescer e de vez em quando nascer e voltar a desnascer. Era uma vez A Ana l muito devagar, S uma letra de cada vez. Enquanto ela est a s uma letrar, A Sara letra duas ou trs. A Ana tem tempo de l chegar. Os ps, o ts, os bs, os ms, No fogem se ela demorar. A Sara acaba e comea outra vez. A Ana l e pe-se a pensar Nos qus, nos porqus, nos para qus, E volta atrs para confirmar Porque, afinal de contas, talvez. A Sara prefere entrar Nas palavras, nos desenhos, e ficar. Existir nas histrias, em vez De ver, viver, em vez

    De pensar, de pausar, de perspicar, Ser ela a ser o que o heri fez. Sai dos livros sem sair do lugar E corre o mundo de ls a ls. A Sara l assim, a Ana mais devagar, E depois ficam as duas a conversar. A Ana conta: Era uma vez... E a Sara: Era eu uma vez... A sopa de letras Era uma vez um menino Que no queria sopa de letras. Podiam l estar coisas bonitas escritas, Mas para ele era tudo tretas... Podia l estar escrito COMER, Podia l estar escrito GOIBADA, Como ele no sabia ler, A sopa no lhe sabia a nada. Tinha no prato uma FLOR, Um NAVIO na colher, Comia coisas lindssimas sem saber Mas ele queria l sabor! At que um amigo com todas as letras Lhe ensinou a soletrar a sopa. E ele passou a ler a sopa toda. E at o peixe, a carne, a sobremesa, etc. ... Coisas que no h que h Uma coisa que me pe triste que no exista o que no existe. (se que existe, e isto que existe!) h tantas coias bonitas que no h, coisas que no h, gente que no h, bichos que j houve e j no h, livros por ler, coisas por ver, feitos desfeitos, outros feitos por fazer, pessoas to boas ainda por nascer e outras que morreram h tanto tempo! Tantas lembranas de que no me lembro, Stios que no sei, invenes que no invento, Gente de vidro e de vento, pases por achar,

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    Paisagens, plantas, jardins de ar, Tudo o que eu nem posso imaginar Porque se o imaginasse j existia Embora num lugar onde s eu ia... A cabea no ar As coisas melhores so feitas no ar, Andar nas nuvens, devanear, Voar, sonhar, falar no ar, Fazer castelos no ar E ir l para dentro morar, Ou ento estar em qualquer stio s a estar, A respirao a respirar, O corao a pulsar, O sangue a sangrar, A imaginao a imaginar, Os olhos a olhar (embora sem ver), e ficar muito quietinho a ser, os tecidos a tecer, os cabelos a crescer, e isto tudo a saber que isto tudo est a acontecer! As coisas melhores so de ar, S preciso abrir os olhos e olhar, Basta respirar. Basta imaginar Basta imaginar Um pssaro para o aprisionar, E depois imaginar o ar para o libertar E imaginar as asas para ele voar E imaginar uma cano para ele cantar. O pssaro da cabea Sou o pssaro que canta dentro da tua cabea, que canta na tua garganta, que canta onde lhe apetea. Sou o pssaro que voa dentro do teu corao e do de qualquer pessoa (mesmo as que julgas que no).

    Sou o pssaro da imaginao que voa at na priso e canta por tudo e por nada mesmo com a boca fechada. E esta a cano sem razo que no serve para mais nada seno para ser cantada quando os amigos se vo e ficas de novo sozinho na solido que comea apenas com o passarinho dentro da tua cabea. O aviador interior O ar no se v No se sente no se ouve Mas quanto mais se sobe Mais no sei qu. E quando se sobe Sem sair do cho? Quando a cabea se move E o resto do corpo no? A cabea subindo Pelo lado de dentro E o teu pensamento To limpo e to lindo. To maravilhoso Como o de um matemtico, To rigoroso Como o de um mgico. Embora s vezes parea, Embora te digam que no, Tens um campo de aviao Dentro da tua cabea!

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    No desfazendo Nada do que existe No cai do cu na cabea. Nem a chuva, embora parea: At ela estava c em baixo a existir Antes de ser chuva a cair! Mais ou menos perfeito ou imperfeito, Tudo o que existe foi feito E, antes de ser feito, desfeito. Com a gua, luz e vento A Terra se foi fazendo: O distante Sol est ardendo H milhes de anos e morrendo. O lavrador deitou terra a semente, O operrio fez a enxada e a charrua, O cantor canta no palco, o actor actua, O inventor inventa o inexistente. Foi feita a cama, Feito o pijama, Com fogo e esforo Se fez o almoo. Que faz agora este alvoroo Toda a tarde a brincar e a correr Enchendo de alegria a casa inteira? Oh, que feito do tempo da brincadeira Em que no havia nada que fazer? A cano dos adultos Parece que crescemos mas no. Somos sempre do mesmo tamanho. As coisas que volta esto que mudam de tamanho. Parece que crescemos mas no crescemos. So as coisas grandes que h, o amor que h, a alegria que h, que esto a ficar mais pequenos. Ficam de ns to distantes Que s vezes j mal os vemos. Por isso parece que crescemos e que somos maiores que dantes.

    Mas somos sempre como dantes. Talvez at mais pequenos quando o amor e o resto esto to distantes que nem vemos como esto distantes. Ento julgamos que somos grandes. E j nem isso compreendemos. Mais versos Para cima e para baixo A Ana tinha um i-i muito bonito Que fazia tudo o que ela queria Quando ela dizia Para cima! o i-i ia para baixo Quando ela dizia Para baixo! o i-i ia para cima Como gostava muito muito daquele i-i A Ana fazia de conta que no percebia Para o i-i ir para cima dizia Para baixo! Para o i-i ir para baixo dizia Para cima! E como o i-i gostava muito da Ana Era o i-i mais obediente que havia Quando ia para cima fazia de conta que ia para baixo Quando ia para baixo fazia de conta que ia para cima. In Giges & Anantes (1974)

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    Giges e Anantes Giges so anantes muito grandes. Anantes so giges muito pequenos. Os giges diferem dos anantes porque uns so um bocado mais outros so um bocado menos. Era uma vez um gigo to grande, to grande, que no cabia. Em qu? O gigo era to grande que nem se sabia em que que ele no cabia! Mas havia um anante ainda maior que o gigo, e esse nem se sabia se ele cabia ou no. S havia uma maneira de os distinguir: era chegar ao p deles e perguntar: Mas eram to grandes que no se podia l chegar! E nunca se sabia se estavam a mentir! Ento a Ana como no podia resolver o problema arranjou uma teoria: xixanava com eles e o que ficava xubiante ou ximbimpante era o gigo, e o anante fingia que no. A teoria nunca falhava porque era toda com palavras que s a Ana sabia. E como eram palavras de toda a confiana s queriam dizer o que a Ana queria. Versos Ana no dia do anaversrio Havia uma flor! Nem eu sabia onde que a flor havia, Mas tanto fazia. Talvez houvesse onde ningum soubesse ou fosse uma flor de estar a haver s na minha imaginao, ou no fosse uma flor, fosse uma cano. Nem a flor sabia que existia. Em qualquer stio, sem saber, floria. E se fosse uma cano cantava e no se ouvia.

    E isso acontecia no meu corao. No sei se era uma flor se uma melodia, era qualquer coisa que havia e cantava e floria dentro de mim sem razo. Ia pela rua e ningum diria. As pessoas passavam e eu dizia: Bom dia! e ningum suspeitava o bom dia que fazia em qualquer stio que dentro de mim havia! S eu sabia e sorria, levando-te pela mo.