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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA CONSTRUÇÃO DO DIREITO NA TEORIA DE RONALD DWORKIN SHEILA CATARINA DA SILVA SENS Itajaí, novembro de 2008.

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA CONSTRUÇÃO DO DIREIT O NA TEORIA DE RONALD DWORKIN

SHEILA CATARINA DA SILVA SENS

Itajaí, novembro de 2008.

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA CONSTRUÇÃO DO DIREIT O NA TEORIA DE RONALD DWORKIN

SHEILA CATARINA DA SILVA SENS

Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como

requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Professora Dra. Claudia Rosane Roesler

Itajaí, novembro de 2008

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, que é o início e o fim de tudo.

A minha família e meu marido pelo apoio, paciência, estímulo, por sempre acreditarem na minha capacidade e se orgulharem das pequenas e grandes conquistas, muitas vezes usurpados da minha presença mas nunca de meu amor.

A Lisa, Robert e Sharon Schreter, que me ensinaram o caminho de volta para os meus sonhos e sem os quais não teria sido possível cumprir essa jornada.

Aos meus colegas de trabalho pelo apoio, estímulo, compreensão e carinho.

A Cíntia Odorizzi, Suzette Rovaris Brasil e Professor Clovis Demarchi que gentilmente me ajudaram na produção deste trabalho.

Aos demais amigos tão queridos e em especial Daniela Coletti que teve o carinho e a paciência de me ouvir por intermináveis horas, ler meus trabalhos, me apoiar, rir e chorar comigo.

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DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho à minha Professora, Orientadora e amiga Dra. Claudia Rosane Roesler, que com carinho, paciência e generosidade me introduziu no mundo da pesquisa acadêmica, me transmitiu o amor pela filosofia, me ensinou não apenas teoria do Direito, mas também lições e exemplos de gentileza, humildade e dedicação.

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo

aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do

Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o

Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Itajaí, novembro de 2008

Sheila Catarina da Silva Sens Graduanda

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PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale

do Itajaí – UNIVALI, elaborada pela graduanda Sheila Catarina da Silva Sens, sob

o título “O papel do poder judiciário na construção do direito na teoria de Ronald

Dworkin”, foi submetida em 17 de novembro de 2008 à banca examinadora

composta pelos seguintes professores: Dra. Claudia Rosane Roesler (Presidente

da banca), Msc. Roseana Maria Alencar Araújo (Examinadora), e aprovada com a

nota [Nota] ([nota Extenso]).

Itajaí, novembro de 2008

Professor a Dra. Claudia Rosane Roesler Orientador e Presidente da Banca

Professor Msc. Antonio Augusto Lapa Coordenação da Monografia

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SUMÁRIO

RESUMO .......................................................................................... VII

INTRODUÇÃO ................................................................................... 1

CAPÍTULO 1 ........................................ .............................................. 4

TEORIA DO DIREITO EM DWORKIN ...................... .......................... 4

1.1 RONALD DWORKIN ................................ ........................................................ 4 1.2 CRÍTICA AO POSITIVISMO ........................ ..................................................... 8 1.2.1 O DIREITO COMO “ SIMPLES QUESTÃO DE FATO ” ................................................. 8 1.2.2 REGRA DE RECONHECIMENTO OU “T ESTE DE PEDIGREE” .................................. 13 1.2.3 PRINCÍPIOS, REGRAS E O PODER DISCRICIONÁRIO ............................................ 22

CAPÍTULO 2 ........................................ ............................................ 31

O PROCESSO INTERPRETATIVO E O DIREITO COMO INTEGRIDADE ................................................................................. 31

2.1 O PROCESSO INTERPRETATIVO ................................................................ 31 2.1.1 UM EXEMPLO IMAGINÁRIO ................................................................................ 35 2.1.2 ETAPAS DA INTERPRETAÇÃO ........................................................................... 39 2.2 CONVENCIONALISMO .............................. .................................................... 44 2.3 PRAGMATISMO ................................... .......................................................... 47 2.4 DIREITO COMO INTEGRIDADE .................................................................... 51

CAPÍTULO 3 ........................................ ............................................ 61

O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA CONSTRUÇÃO DO DIREIT O ......................................................................................................... 61

3.1 HÉRCULES E A COERÊNCIA NA DECISÃO JUDICIAL .... .......................... 61 3.2 IGUALDADE, DIREITOS INDIVIDUAIS E A JUDICIALIZA ÇÃO DA POLÍTICA .............................................................................................................................. 76 3.3 A ATIVIDADE JUDICIÁRIA ALÉM DA POLÍTICA ....... .................................. 83

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................. ................................ 86

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ..................... ..................... 89

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RESUMO

A presente monografia trata da investigação realizada a

respeito do Poder Judiciário exposta pelo autor norte-americano Ronald Dworkin,

a fim de analisar a forma com que o referido autor concebe a atividade judiciária,

seu limite valorativo e seu papel na construção do direito. A partir da investigação

realizada, pode-se compreender a noção dworkiniana do direito como integridade

e a atividade jurídica como uma atividade baseada em princípios, adequada à

moral política e à história legislativa da comunidade. Na teoria de Dworkin, a

atividade jurídica é mais que a de simples aplicação de normas legisladas, é uma

ferramenta fundamental na construção e condução do direito em uma sociedade,

e como tal, deve ser fiel aos princípios como equidade, justiça, legalidade e

integridade. O método utilizado para a realização da pesquisa foi o indutivo, por

meio de revisão bibliográfica das obras do referido autor, bem como a leitura de

trabalhos elaborados por críticos da teoria de Dworkin. A realização da pesquisa

resultou numa maior compreensão da concepção dworkiniana da atividade

judiciária e seu contorno valorativo, bem como sua função na construção do

direito nas sociedades contemporâneas.

Palavras–Chave: Poder Judiciário; Construção do Direito;

Interpretação; Argumentação Jurídica.

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INTRODUÇÃO

A presente Monografia tem como objeto a análise do

pensamento de Dworkin para determinar como este autor concebe o Poder

Judiciário e sua função social nos sistemas jurídicos das sociedades

contemporâneas, sua visão a respeito da atividade do julgador e dos limites

valorativos que se aplicam à atividade judiciária, bem como no sentido que a

instituição judiciária adquire ao exercer suas atividades e o seu papel social na

construção do Direito.

A crise do Poder Judiciário causada, entre outros motivos,

pelo questionamento quanto ao papel deste na criação dos direito no Estado

contemporâneo é um dos pontos centrais das teorias jurídicas contemporâneas.

Ao interpretar uma norma criada pelo Legislador, a atividade jurídica pode levar,

inegavelmente, a criações de direitos. Os limites dessa atividade criativa estão no

núcleo das discussões a respeito do papel do poder judiciário.

O objetivo dessa investigação é esclarecer alguns desses

problemas teóricos de alta relevância prática, como os do limites do Poder

Judiciário e de seu papel social, ao investigar e aprofundar a análise do

pensamento de um autor polêmico que vem sendo profusamente utilizado na

doutrina jurídica brasileira dos últimos anos.

Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, tratando da crítica de

Dworkin ao Positivismo jurídico onde este expõe os aspectos falhos do direito

como simples questão de fato; em seguida trata-se a respeito da regra de

reconhecimento de Hart e a crítica de Dworkin à este instituto; logo após são

apontadas as diferenças entre princípios e regras e suas aplicações no controle

da atividade valorativa desempenhada pelo Poder Judiciário, passando-se então

ao tema do poder discricionário na decisão judicial.

No Capítulo 2, tratando-se de processo interpretativo

construtivo de Dworkin, descrevendo as estapas de interpretação que constroem

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a decisão judicial dworkiniana; em seguida discorre-se a respeito das doutrinas

convencionalista e pragmatista do Direito apontados seus pontos principais e as

críticas de Dworkin a essas doutrinas, de forma a posteriormente apresentar a

teoria do Direito de Dworkin, chamada de Direito como integridade.

No Capítulo 3, tratando-se do papel do poder judiciário na

construção do direito, onde inicialmente apresenta-se o juiz-filósofo Hércules,

personagem fictício que Dworkin utiliza pra descrever a atividade jurisdicional e o

papel do julgador no Direito como integridade; em seguida ocupa-se da

importância para Dworkin do princípio da igualdade, os direitos individuais e a

judicialização da política; logo após é discutida atividade judiciária sob a

perspectiva política, concluindo com as considerações finais a respeito do tema

do presente trabalho.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as

Considerações Finais, onde são apresentados pontos conclusivos destacados,

seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre o

papel do Poder Judiciário na construção do direito das sociedades

contemporâneas.

Para o desenvolvimento da presente pesquisa foram criados

os seguintes problemas:

1. Como Dworkin define o papel do Poder Judiciário na criação de

direitos?

2. Como Dworkin trata dos limites da atuação do Poder Judiciário?

3. Como Dworkin se posiciona quanto à previsibilidade das decisões e

a segurança jurídica?

4. Na concepção de Dworkin, o Juiz tem ou não um papel político?

Para a presente monografia foram levantadas as seguintes

hipóteses:

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1. Para Dworkin, o Juiz e a atividade jurisdicional são fundamentais na

construção do direito, onde o Poder Judiciário possui um papel

estratégico com poder de afirmar e proteger os princípios que

orientam a comunidade de direitos.

2. Para Dworkin, o Poder Judiciário exerce um papel ativo, em

condição estratégica de afirmar e proteger os princípios

democráticos de uma comunidade, estando seu limite de

atuação condicionado à integridade que rege a atividade do juiz

na teoria de Dworkin.

3. A previsibilidade e segurança jurídicas residem no fato de que cada

decisão deverá estar revestida de integridade, o princípio mais

invocado em sua teoria, que obriga a atividade judiciária a

obedecer uma vinculação com os princípios, a história legislativa

e com o contexto em que está inserido, oferecendo uma

justificação de princípios em todas as decisões preferidas.

4. Para Dworkin, o Juiz não possui um papel político. Sua atividade

está além da política.

Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase

de Investigação foi utilizado o Método Indutivo, por meio da revisão bibliográfica

das obras de Dworkin, assim como de autores a respeito de sua teoria, o

Relatório dos Resultados expresso na presente Monografia é composto na base

indutiva.

Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as

Técnicas do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da Pesquisa

Bibliográfica.

As categorias fundamentais para a monografia, bem como

os seus conceitos operacionais serão apresentados no decorrer da monografia.

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CAPÍTULO 1

TEORIA DO DIREITO EM DWORKIN

1.1 RONALD DWORKIN

Para uma melhor compreensão do tema deste trabalho,

importa conhecer um pouco a respeito do autor Ronald Dworkin, assim como das

influências doutrinárias que possivelmente determinaram os rumos da carreira

acadêmica do referido autor.

O norte-americano Ronald Myles Dworkin nasceu em

Worcester, Massachusetts (EUA) em 1931, teve seu interesse inicial por filosofia

e estudou na Universidade de Harvard e Oxord. Posteriormente ingressou na Law

School em Harvard e, após graduar-se, se tornou auxiliar do notável juiz norte-

americano conhecido como Learned Hand, durante o período de 1957-1958.

Tornou-se membro da firma de advogados Sullivan e Cromwell exercendo a

advocacia de 1958 a 1962, após esse período ingressou na carreira acadêmica

onde passou a lecionar na Universidade de Yale em 1962, em 1969 foi convidado

a suceder Hart como professor de Jurisprudence em Oxford, e em 1975 se tornou

professor da Universidade de Nova Iorque. Desde 1984 é professor visitante da

Universidade de Londres.1

Dworkin é autor de várias e expressivas obras e artigos de

filosofia do direito e teoria política, mas foi a publicação do artigo “O Modelo de

Regras” em 1967 que alavancou sua reputação. Conforme Stephen Guest, tal

artigo possui três características marcantes: é muito bem escrito, é enérgico, e

possui clareza jornalística.

Ele contém um brilhante resumo das principais doutrinas de “O Conceito de Direito” de Herbert Hart e acima de tudo, apresenta

1 GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. 2nd ed. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1997. p. 1-2

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um consistente e construtivo ataque às teses contidas neste livro. O artigo agora presente como o segundo capítulo de “Levando os Direitos a Sério”, não perdeu sua força inicial. É o melhor artigo para encorajar estudantes a ler primeiro. Apesar de, nos últimos anos, algumas ênfases terem mudado, a tese emergente é clara.2

Suas obras expõem teorias que possuem complexidade,

poder moral e inovação3 que têm despertado intensas discussões dentro dos

círculos não só jurídicos, mas filosóficos, políticos, sociológicos e econômicos. A

contribuição de Dworkin para a teoria legal é marcada por uma intensa crítica às

correntes doutrinárias jurídicas que encaram a moralidade como irrelevante para

o direito.

Com seu método inciso e provocativo, Dworkin volta seus

afiados argumentos contra as doutrinas positivistas e utilitaristas, gerando um

intenso incômodo aos defensores da teoria analítica do direito, sobre a qual se

assenta o atual sistema jurídico não só norte-americano e inglês, mas de muitos

países ocidentais.

Como não poderia deixar de ser, Dworkin atrai mais

detratores que simpatizantes de suas obras, chegando mesmo a afirmar que é

pelos críticos que têm trabalhado, como expressou no prefácio de sua obra “O

Império do Direito”:

Sou grato, acima de tudo, aos prestigiosos críticos que tive a sorte de atrair no passado; este livro poderia ter sido dedicado a eles. Responder às críticas tem sido, para mim, o lado mais produtivo de todo o meu trabalho.4

Conforme sustenta Igor Suzano Machado, a teoria do Direito

de Dworkin é erigida sobre a crítica, nascida já no seio de uma controvérsia,

2 It contains a brilliant summary of the main tenets of Herbert Hart’s “The Concept of Law” and

above all, It presents a sustained and constructive attack on the thesis contained in that book. The article, now appearing as Chapter 2 of “Taking Rights Seriously”, has not lost its initial force. It is the best article to encourage students to read first. Although, in late years, some emphases have changed, the emerging thesis is clear. (tradução nossa) GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. p. 2

3 GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. p. 1 4 DWORKIN, Ronald.O Império do Direito . Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:

Martins Fontes, 2003. p. XV

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marcada pela presença de uma rival sua desde a fundação. Tal rival é a teoria

designada por Dworkin de direito como simples questão de fato: o Positivismo

Jurídico, ou ainda, em sua versão mais dogmática ou interpretativa, chamada por

Dworkin de convencionalismo. Assim, o principal alvo da crítica Dworkiniana é,

desde o início, o Positivismo, “sendo sua própria teoria do Direito marcada, desde

o nascimento, pela assunção de uma rivalidade que se torna sua marca

constitutiva.5”

Ronald Dworkin é um desses autores que não costuma causar a famigerada indiferença naqueles dedicados ao conhecimento mais aprofundado de sua obra. Logo, o conteúdo de seus livros tende a despertar sentimentos, não se tratando eles, conseqüentemente, nem sempre de sentimentos positivos. Porém, mais do que simplesmente se sujeitar a uma leitura crítica, a obra do jusfilósofo norte-americano acabou por gerar uma verdadeira literatura crítica, ancorada nas obras de seus adversários.6

Embora seja um declarado opositor à teoria positivista do

direito, não pode ser classificado como jusnaturalista, como alguns estudiosos

erroneamente preferem classificá-lo. Albert Casamiglia, no seu texto de

apresentação feito para a edição espanhola da obra de Dworkin “Derechos en

Serio” assim fala de Dworkin:

Dworkin não é um autor jusnaturalista porque não crê na existência de um direito natural que está constituído por um conjunto de princípios unitários, universais e imutáveis. A teoria do autor americano não é uma caixa de torrentes transcendental que permite solucionar todos os problemas e que fundamenta a validez e a justiça do direito. [...] O autor americano tenta construir uma terceira via – entre o jusnaturalismo e o positivismo.

Porém, sua crítica ao Positivismo Jurídico levou Dworkin a

ser incluído no rol dos pragmatistas do Direito, o que o obrigou a enfrentar essa

5 MACHADO, Igor Suzano. A justiça de toga . Boletim CEDES [on-line], Rio de Janeiro, julho e

agosto de 2008, p. 31-35. Acessado em: 25 de outubro de 2008. Disponível em: http://www.cedes.iuperj.br. p. 31

6 MACHADO, Igor Suzano. A justiça de toga. p. 31

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outra corrente da teoria jurídica norte-americana para que pudesse expor de

forma exaustiva as marcas distintivas existentes entre a sua própria teoria e o

Pragmatismo Jurídico, demonstrando as fragilidades dos argumentos pragmáticos

e, portanto, despertando mais uma corrente teórica como rival da teoria de

Dworkin, chamando à baila outros tantos críticos com os quais ele é obrigado a

dialogar.7

Além disso, ao levar sua obra para além das fronteiras da

teoria do Direito, Dworkin ainda conseguiu adicionar mais adversários às suas

teorias. Ao defender em suas obras um liberalismo igualitarista, Dworkin acabou

por atrair mais outros tantos críticos, assim como acabou por se comprometer a

entrar em debate com autores fora do círculo do Direito, como é exemplo as

contendas com grupos feministas e religiosos ao tratar de temas como aborto e

eutanásia na obra “Domínio da Vida”.

Ainda, é comum que críticos classifiquem Dworkin como um

autor arrogante, exageradamente certo da solidez de sua teoria, mas Guest

afirma que seus trabalhos demonstram uma força de convicção que também é

econtrada em autores como Hart, porém ninguém acusa Hart de ser arrogante.

Finaliza tal argumento sustentando que isso soa mais como inveja acadêmica,

muitos críticos dirigem árduas críticas à Dworkin enquanto deveriam, antes de

criticar, ler cuidadosamente avaliando cada argumento em seu próprio mérito, e

ficar quietos quando não têm nada de substancial a dizer. 8

Porém Dworkin trata de forma pacífica e um tanto bem-

humorada a sua relação com os críticos, atribuindo a esses um papel de destaque

na sua produção literária: “críticos são os melhores aliados dos escritores, e um

escritor de sorte tem críticos poderosos”.9

7 MACHADO, Igor Suzano. A justiça de toga. p. 32 8 GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. p. XV 9 Critics are writer’s best allies, and a lucky writer has powerful critics. (tradução nossa) DWORKIN,

Ronald. Dworkin and his critics: with replies by Dworkin / edited by Justine Burley. Malden, MA: Blackwell 2004. p. 339

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É inegável que encontra-se em Dworkin uma ampla e

interessante contribuição para a Teoria do Direito, especialmente no que se refere

à atividade jurídica, seus limites valorativos e seu papel na construção do Direito.

Como autor que vêm sendo amplamente utilizado nas doutrinas jurídicas

brasileira, torna-se indispensável uma análise aprofundada de sua teoria a

respeito da função do Poder Judiciário na construção do Direito

1.2 CRÍTICA AO POSITIVISMO

1.2.1 O Direito como “simples questão de fato”

Na década de 60 e 70 Dworkin lança diversas críticas ao

positivismo, na forma de artigos, que serão reunidos na obra “Levando os Direitos

a Sério”, que funda a base teórica de seus estudos e serão posteriormente

amadurecidos e melhorados na sua principal obra: “O Império do Direito”.

Suas obras suscitam questões polêmicas, que causam alto

impacto na corrente teórico-jurídica do século XX. Suas críticas são, na maioria,

contra a teoria de Hart, ao tratar do positivismo jurídico, pois a considera o melhor

e mais refinado modelo que a escola jurídica positivista já produziu. Dworkin foi

seu aluno e é seu sucessor na Universidade de Oxford, assim como seu principal

crítico.

Desejo examinar a solidez do positivismo jurídico, especialmente na forma poderosa que lhe foi dada pelo Professor H. L. A. Hart. Resolvi concentrar-me na sua posição não apenas devido a sua clareza e elegância, mas porque neste caso, como em quase todas as outras áreas da filosofia do direito, o pensamento que visa construir deve começar com um exame das concepções de Hart. 10

O caloroso debate entre as teorias de Dworkin e Hart gerou

no mundo acadêmico um extenso número de trabalhos analisando a dicotomia

10 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . p. 27

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entre o direito como integridade do primeiro e o positivismo de um caráter de

textura aberta do segundo.

Como crítico do positivismo, Dworkin desperta discussões

acerca do que é o Direito, obrigação jurídica, proposições conceituais de direito,

levantando a questão dos princípios, da moral e da justiça na atividade jurídica. O

posicionamento positivista, principalmente aquele transmitido por Austin e seus

seguidores, é o de encarar o direito como um produto acabado e que o cientista

do direito tem como objetivo apenas o de descrever esse direito, a ciência jurídica

deve ser neutra e, portanto, independente de juízos morais e interesses

políticos.11 Dworkin, de forma ousada, põe em questão esse paradigma criticando

o posicionamento descritivo dessa teoria jurídica, defendendo uma teoria

completa do direito que tenha um aspecto justificador das decisões judiciais.

O positivismo, buscando uma teoria que possa dar conta da

noção de direito e obrigação jurídica, se apóia numa teoria geral que tem em seu

esqueleto os seguintes dogmas centrais e organizadores que Dworkin dispõe da

seguinte maneira12:

a) o direito consiste em um conjunto de regras especiais de

que faz uso a comunidade, de forma direta ou indireta, para determinar padrões

de conduta e parâmetros para punição de determinados comportamentos. Essas

regras podem ser identificadas e distinguidas com o auxílio de critérios

específicos, de um teste de pedigree que as diferencia das regras espúrias;

b) este conjunto de regras é exaustivo, os casos em que não

forem claramente cobertos por uma regra de direito vigente, o julgador, através de

seu discernimento pessoal, cria uma nova regra ou suplementa uma já existente;

11 CALSAMIGLIA, Albert. El Concepto de Integridad en Dworkin. Doxa: Cuadernos de Filosofía

del Derecho. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2001., núm. 12 (1992), p.155-176. p. 155

12 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . Tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 27-28

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c) a obrigação jurídica consiste na contraprestação de fazer

ou não fazer algo, de acordo com o disposto na regra jurídica vigente, cujo

descumprimento importa no dever público de punição e reprimenda.

Este é apenas o esqueleto do positivismo. A carne é distribuída diferentemente por diferentes positivistas e alguns chegam mesmo a rearranjar os ossos. As diferentes versões diferem sobretudo na sua descrição do teste fundamental de pedigree que uma regra deve satisfazer para ser considerada uma regra jurídica.13

Dworkin se propõe a defender uma teoria melhor do que as

“construções precedentes vêm oferecendo como resposta à situação da atividade

dos juízes quando a ação judicial não pode ser submetida a uma regra de direito

clara.14” Propõe uma teoria mais completa do direito, onde a atividade do julgador

deixa de ser a de um simples aplicador de normas, para ser uma ferramenta na

construção do direito.

Segundo ele, o direito nasce de um processo de construção

e justificação, opondo-se claramente ao direito “como simples questão de fato”

que é a tese defendida pelos positivistas.

De acordo com a concepção do direito “como simples

questão de fato”, os operadores jurídicos sempre estão de acordo quanto ao que

é o direito – o que instituições jurídicas e legislativas estabeleceram no passado –

e quando divergem, é por questões de moralidade, fidelidade, ou simplesmente

uma divergência verbal, mas nunca sobre qual é o direito, pois este já está

previamente estabelecido como um conjunto de regras comum a todos.

Para se responder questões relativas ao direito basta

apenas a análise dos registros das decisões institucionais sobre o que este deve

ser. Quando os julgadores divergem teoricamente sobre o que é direito, estão na

verdade divergindo sobre aquilo que o direito deveria ser.

13 DWORKIN, Ronald.. Levando os direitos a sério . p. 29 14 SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 147

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Para o direito como simples questão de fato, o direito é

sempre uma questão de fato histórico e nunca depende da moralidade e a

verdadeira divergência sobre a natureza do direito é uma divergência empírica,

sobre a história das instituições jurídicas.

Assim, as divergências existentes entre as teorias

semânticas do Direito, teorias positivistas como são chamadas, referem-se tão

somente sobre quais critérios advogados e juízes de fato compartilham e sobre os

fundamentos que esses critérios na verdade estipulam.

Na busca de analisar esses critérios de avaliação de

proposições jurídicas e os demais aspectos da teoria positivista, Dworkin cita em

sua obra John Austin, advogado e acadêmico inglês do século XIX, que dizia que

a validade de uma proposição jurídica é determinada pelo critério de esta estar

transmitindo corretamente a vontade de uma pessoa ou grupo soberano.15

John Austin e sua formulação teórica, conhecida como

Teoria Analítica do Direito, foram um marco importante para a teoria jurídica

inglesa. A citada teoria foi iniciada por Bentham e tem como sua característica a

de se preocupar em “determinar os contornos do Direito e de analisar seus

conceitos através de um modelo teórico – contextualizado – de reflexão sobre o

conhecimento jurídico com cuidados de cunhos lingüístico.16”

Seu trabalho mais importante é “A Delimitação do Objeto do

Direito” onde ele, centrado nas idéias de “obediência”, “soberano” e “comando”,

propõe-se a identificar os elementos distintivos do direito positivo. O objeto de

estudo do Direito é o “direito positivo”, que ele trata como as leis que são

impostas como a vontade de superiores políticos.

Tais superiores políticos representam a figura do soberano,

que para Austin é caracterizado por aqueles que costumam ser obedecidos e que

não obedecem a ninguém. Toda lei positiva é posta por uma pessoa soberana ou

15 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 41 16 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006., p. 1

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por um corpo soberano, à qual o grupo deve obediência e sujeição. O soberano

possui autoridade máxima para legislar e regular as condutas sociais.

É a figura do soberano que identifica a ordem jurídica, que

delimita o campo político interno do externo. Austin não discute o fundamento ou

a validade do poder do soberano, este é concebido como uma questão

constatável, com uma existência fática.

Essa teoria foi objeto de intensos debates e

questionamentos, principalmente quanto à legitimidade da figura do soberano,

ainda mais em democracias como a dos Estados Unidos onde o povo é, por

direito, detentor do poder. Porém, conforme Dworkin:

[...] ainda que a teoria de Austin se mostrasse deficiente em várias questões de detalhe, o que resultou na sugestão de muitas emendas e aperfeiçoamentos, sua idéia central de que o direito é uma questão de decisões históricas tomadas por aqueles que detêm o poder político, nunca perdeu totalmente sua força sobre a doutrina. 17

A mais importante reformulação dessa idéia foi produzida

por Herbert L. A. Hart, herdeiro e crítico de John Austin, que deve ser

considerado, junto com Kelsen, um dos maiores nomes da Teoria Positivista do

Direito do século XX.

Hart refuta a idéia de autoridade jurídica como um fato

puramente físico de comando e obediência habituais. Conforme este autor, o

verdadeiro fundamento do direito reside na aceitação por toda a comunidade de

uma regra-mestra18 fundamental, a qual ele chama de Regra de Reconhecimento,

que representa as convenções sociais de aceitação das proposições jurídicas

como verdadeiras e atribui o poder a esses indivíduos ou grupos, de criar leis

válidas.

17 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 42 18 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 42

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A seguir será visto um breve esboço do surgimento do

conceito de Regra de Reconhecimento na obra de Hart, assim como a

importância deste conceito na formação da teoria de Hart e, posteriormente, a

crítica de Dworkin a este instituto.

1.2.2 Regra de Reconhecimento ou “Teste de Pedigree”

A principal obra de Hart é “O Conceito de Direito”, em que

este apresenta seus principais esclarecimentos sobre as características do Direito

e onde seu propósito fundamental é o de, segundo Sgarbi19, apresentar “uma

análise estrutural do ordenamento jurídico na busca de mais bem descrever seu

funcionamento.”

Seu objetivo não é o de oferecer uma definição do conceito

de Direito, como sugere o título de sua obra, mas sim fazer avançar a teoria

jurídica, apresentando uma melhor distinção entre moral, coerção e direito,

enquanto fenômenos sociais; “aprofundar a compreensão do direito, da coerção e

da moral como fenômenos sociais diferentes mas relacionados.20”

Para atingir tal intento, Hart considera de importância

fundamental distinguir a idéia de um hábito geral a de uma regra social,

introduzindo então as distinções de regras primárias de obrigação e regras

secundárias de reconhecimento, alteração e julgamento21.

Hart sustenta que os sistemas jurídicos podem ser simples

ou tribais, quando prevêem apenas normas de conduta ou “primárias”; ou o

sistema jurídico moderno ou complexo, que abrange além das normas de

conduta, normas atributivas de poderes ou normas “secundárias”. As regras

primárias são aquelas que concedem direitos ou impõem obrigações aos

19 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. p. 104 20 HART, Herbert L.A. O Conceito de Direito . 4 ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa:

Fundação Caloustre Gulbenkian, 2005. p. 1 21 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 169

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membros da comunidade, enquanto as regras secundárias estipulam como e por

quem estas regras podem ser estabelecidas.

Conforme este autor, muitas das idéias que constituem a

estrutura do pensamento jurídico fazem referência a esta distinção e que a união

entre destes dois tipos de regras podem ser vistas como a essência do direito:

A nossa justificação para atribuir à união das regras primárias e das secundárias este lugar central não consiste em que elas desempenharão aí a função de um dicionário, mas antes que elas têm um grande poder explicativo. 22

O caráter inicial das regras primárias de determinar os

padrões de comportamento de uma comunidade, quando por si só, carrega

defeitos como a incerteza, caráter estático e ineficácia. As regras secundárias

servem como remédio a esses defeitos, onde Hart sustenta que a introdução

desse remédio corretivo é a passagem do mundo pré-jurídico para o mundo

jurídico23, resultando num conjunto de elementos que formam um sistema jurídico.

Hart oferece uma teoria geral de regras que não faz a

autoridade destas depender da força física de seus autores. Uma regra pode ser

aceita em uma comunidade porque essa, em suas práticas, “aceita” essa regra de

conduta; ou pode vir a se tornar obrigatória pelo fato de ela ter sido promulgada

conforme o estabelecido em uma norma secundária que a torna “válida”.

O autor então apresenta a regra de reconhecimento, que

serve para identificar, por meio de alguma característica geral, as normas

primárias pertencentes à ordem jurídica, informando o que se pode considerar

direito em uma certa comunidade, eliminando a incerteza do regime destas

regras. Nas palavras de Argemiro Martins e Caroline Ferri:

Todo o direito é composto por normas que têm por finalidade a regulação de comportamentos direta ou indiretamente. Direta quando a própria regra expõe a ação a ser realizada ou evitada; indiretamente quando o regulamento normativo preserve

22 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 169 23 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 103

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designações acerca da produção de normas de conduta. Em qualquer sistema jurídico se faz presente um teste que objetiva a verificação de pertencimento de uma regra ao ordenamento jurídico. 24

Segundo Hart, a regra de reconhecimento, assim como as

regras sociais, podem ser individualizadas a partir do grupo de pessoas que as

aceitam como regra do ponto de vista interno, estas podem ser passíveis de

críticas justificadas. Estas regras devem ser obedecidas tanto pelos cidadãos

comuns, como pelos funcionários públicos como padrões públicos e comuns de

comportamento e, embora não haja um teste mecânico de aplicação, não corre o

risco de se confundir com regras de moralidade.

Conforme Hart, somente pode haver uma norma de

reconhecimento em cada ordenamento jurídico. Esta funcionalmente opera de

forma inclusiva, ao reconhecer as normas que são aceitas por ela; e exclusiva, ao

não reconhecer determinadas regras, normas de outros ordenamentos que esta

não admite.

A regra de reconhecimento é um traço da sofisticação do

positivismo alcançado por Hart, que pretende ser capaz de identificar os muitos

elementos do normativismo jurídico. A teoria estatui que a norma (law) deve ser

identificada por meio de uma atitude de aceitação legal por um juiz ou por

funcionários públicos, ou ainda, alguém com tal legitimidade. Não significa que

cada norma deva ser conscientemente e formalmente aceita ou aprovada, no

entanto, cada sentença normativa deve ser identificada pelos critérios aceitos pela

regra de reconhecimento. 25

Conforme Sgarbi:

Para se obter resposta à pergunta qual é a Regra de Reconhecimento de dada ordem jurídica, deve-se perquirir com

24 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade

em face da decisão judicial com base em princípios : a contribuição de Ronald Dworkin. Revista Novos Estudos Jurídicos, Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí, v.11, n.2, (jul./dez. 2006), p. 264-289. p. 267

25 GUEST, Stephen. Ronald Dworkin . p. 99

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que critérios determinado ordenamento jurídico funciona efetivamente26.

Segundo Hart e, em geral, a teoria positivista, as regras só

são válidas porque passaram por esta regra de reconhecimento, ou como

Dworkin gosta de denominar, um “teste de pedigree”27 que determinou a sua

legitimidade. Esse teste serve para diferenciar as regras válidas, aquelas criadas

por instituições competentes na forma de leis ou precedentes de decisões

judiciais, de regras jurídicas “espúrias”, que seriam as argumentações

erroneamente utilizadas pelos litigantes ou advogados, sem o devido

embasamento legal.

Dworkin objeta radicalmente esta premissa positivista de que

as proposições jurídicas são verdadeiras na medida em que descrevem

corretamente o conteúdo das leis ou normas jurídicas. Entende que há casos nos

quais as proposições jurídicas não aludem às regras de direito institucionalmente

sancionadas, mas a princípios cujos conteúdos são, geralmente, controversos. 28

Dworkin sustenta que os estudiosos do direito encontram

dificuldade ao tentar determinar qual é este conjunto de regras comum a todos os

envolvidos no mundo jurídico porque ele simplesmente não existe. Segundo ele, o

“teste de pedigree” seria adequado se o direito fosse limitado a um conjunto de

normas, mas essa visão do direito é unilateral; o teste de reconhecimento falharia

quanto aos princípios e diretrizes políticas que não podem ser identificados por tal

teste, mas sim por suas forças argumentativas:

O positivismo é um modelo de e para um sistema de regras e [...] sua noção central de um único teste fundamental para o direito nos força a ignorar os papéis importantes desempenhados pelos padrões que não são regras. 29

26 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. p. 135. 27 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . p. 64 28 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e modernidade: Dworkin e a possibilidade de

um discurso instituinte de direitos. p. 63 29 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . p. 36

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Importa expor que, ao tratar do presente tema, Dworkin

esclarece que ao utilizar o termo “política” está se referindo àquele tipo de padrão

que estabelece um objetivo a ser alcançado, que em geral está ligado a alguma

melhoria econômica, política ou social da comunidade, seja esta ação positiva ou

negativa (no sentido de proteger um bem jurídico).

Ao utilizar o termo “princípio” se refere a um padrão que:

deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade.30

É importante que as distinções não se confundam, levando a

interpretar um princípio com um fim social ou uma política que expressa um

princípio.

Os argumentos de princípios são argumentos destinados a estabelecer um direito individual; os argumentos de política são argumentos destinados a estabelecer um objetivo coletivo. Os princípios são proposições que descrevem direitos; as políticas são proposições que descrevem objetivos.31

Conforme Hart, as regras de direito são válidas porque

alguma instituição competente as promulgou, ou então foram outorgadas por um

poder legislativo, ou estipuladas por juízes ao tratarem de casos difíceis, criando

precedentes para julgamentos futuros.

Mas Dworkin sustenta que o teste de pedigree não pode

captar princípios que são invocados, por exemplo, num caso que cita em sua

obra, o caso “Riggs vs. Palmer”32, onde o herdeiro único e legítimo mata seu avô

para herdar sua fortuna, mas o tribunal de Nova Iorque conclui que, apesar das

leis testamentárias serem favoráveis à Riggs, ninguém poderá beneficiar-se com

seus próprios atos ilícitos.

30 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . p. 36 31 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . p.141 32 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 37

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De acordo com Dworkin,

A origem destes princípios enquanto princípios jurídicos não se encontra na decisão particular de um poder legislativo ou tribunal, mas na compreensão do que é apropriado, desenvolvida pelos membros da profissão e pelo público ao longo do tempo. A continuidade de seu poder depende da manutenção dessa compreensão do que é apropriado. [...] Quando entram em declínio, eles sofrem uma erosão, eles não são torpedeados.33

Dworkin afirma que para uma regra de reconhecimento

completa e eficaz quanto aos princípios, deve-se arrolar todos os princípios em

vigor, e para isso seríamos mal-sucedidos:

Eles são controversos, seu peso é de importância fundamental, eles são incontáveis e se transformam com tanta rapidez que o início de nossa lista estaria obsoleto antes que chegássemos à metade dela. Mesmo se tivéssemos sucesso, não teríamos uma chave para o direito, pois não teria restado nada para nossa chave abrir.34

Demonstrado, assim, que não é possível atingir o intento de

identificação integral dos princípios, e uma vez que os princípios são elementos

essenciais do direito, deve-se abandonar a doutrina da regra de reconhecimento.

Ainda, Hart afirma que as proposições jurídicas são

verdadeiras em função de convenções sociais que representam aceitação, pela

comunidade de um sistema de regras que outorga a tais indivíduos ou grupos o

poder de criar leis válidas, mas Dworkin refuta essa afirmação classificando-a

como falha pela razão de que as regras também podem ser obedecidas por medo

ou mera obediência. Assim, sustenta que a teoria de Hart não seria capaz de

apreender o modo como os operadores jurídicos empregam a palavra “direito”, de

estabelecer os critérios que esses compartilham e sobre os fundamentos que

esses critérios na verdade estipulam.

33 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 64 34 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 70

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Hart, no pós-escrito inserido em sua obra 32 anos a partir da

data da primeira publicação, procura responder a algumas das críticas mais

importantes sobre sua teoria do direito, dando ênfase à Dworkin por ser este o

seu maior crítico. Hart admite a coerência e a força das críticas feitas por Dworkin,

assim como o alcance que esta obteve.

Neste pós-escrito cinjo-me principalmente às críticas de Dworkin, porque este sustentou não só que quase todas as teses distintivas deste livro estavam radicalmente erradas, mas também pôs em questão toda a concepção de teoria jurídica e daquilo que esta devia fazer, que está implícita na obra.35

Hart sustenta que em sua obra buscou oferecer uma teoria

descritiva do direito, moralmente neutra, livre de justificativas morais ou

recomendações. Uma teoria jurídica descritiva e geral difere radicalmente

daquela empreendida por Dworkin, que é concebida como uma teoria de

avaliação e justificação dirigida a uma cultura jurídica concreta.36Enquanto

Dworkin concebe a teoria jurídica como “interpretativa”, na busca de princípios e

práticas que se ajustam melhor ao direito estabelecido, que ofereçam a melhor

justificação moral para as decisões jurídicas, mostrando o direito na sua melhor

iluminação.

É uma teoria avaliadora e, segundo Hart, não lhe interessa

disputar a elaboração destas suas idéias interpretativas. Mas discorda de Dworkin

quando este afirma que pode reapresentar sua teoria jurídica positivista de uma

forma iluminadora. Dworkin rejeita a teoria descritiva do direito sustentando que

esta não pode apresentar um relato adequado do direito, como o feito por um

participante do sistema jurídico que ofereça uma perspectiva interna. Mas para

Hart:

[...] nada há, de fato, no projeto de uma Teoria Geral do Direito descritiva, tal como está exemplificada no meu livro, que impeça um observador externo não participante de descrever os modos

35 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 300 36 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 301

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por que os participantes encaram o direito, de tal ponto de vista interno.37

Para este autor, o teorizador jurídico pode compreender e

descrever a perspectiva interna da pessoa que está dentro do sistema jurídico,

sem adotar, sustentar ou partilhar das razões e crenças morais que esta pessoa

carrega. “Uma descrição pode ainda continuar a ser descrição, mesmo quando o

que é descrito constitui uma avaliação.” 38

Ao tratar da crítica de Dworkin a sua teoria de regra de

reconhecimento, Hart sustenta que a preocupação de Dworkin com a

interpretação construtiva o tem levado a ignorar que muitos princípios devem seu

“estatuto não ao conteúdo que serve como interpretação do direito estabelecido

mas antes àquilo a que ele chama o seu pedigree.39”

Conforme Hart, Dworkin erra por acreditar que os princípios

jurídicos não podem ser identificados pelo pedigree e, em segundo lugar, por

sustentar que a regra de reconhecimento só pode fornecer critérios de pedigree.

A primeira crença, segundo Hart, é errada porque não há

nada no caráter não-conclusivo e nem em seus outros aspectos que o impeçam

de ser identificados por critérios de pedigree, como por exemplo, um aditamento

constitucional que pretende agir como razão de decisões que poderá ser

superado por qualquer outra regra ou princípio que se apresente mais forte numa

decisão alternativa. Os princípios são continuamente identificados por critérios de

pedigree e, portanto, não alcança êxito qualquer argumento no sentido de que a

inclusão de princípios como parte do direito acarreta o abandono da regra de

reconhecimento. 40

Ainda que se conceda que alguns princípios jurídicos

podem ser identificados pelos critérios de pedigree, estes são tão numerosos e

37 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 303 38 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 306 39 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 327 40 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 327

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fugazes que uma regra de reconhecimento não pode assegurar o grau de certeza

na identificação que, segundo Dworkin, seria desejado por um positivista. Porém,

devido a estes traços dos princípios, o teste mais adequado seria o de uma forma

positivista moderada que identifica o princípio pelo conteúdo e não pelo pedigree.

[...] Dworkin deve reduzir-se à pretensão mais modesta de que há muitos princípios jurídicos que não podem ser capturados assim, porque são demasiados numerosos, demasiado fugazes, ou demasiado suscetíveis de alteração ou modificação, ou não têm uma característica que permita a sua identificação como princípios de direito por referência a qualquer outro teste diverso do de pertencerem a esse esquema coerente de princípios que não só melhor se ajusta à história institucional e às práticas do sistema, como também melhor as justifica.41

Mas Dworkin sustenta que não é possível adaptar a versão

de Hart do positivismo, modificando sua regra de reconhecimento para incluir

princípios. Conforme ele, nenhum teste de pedigree pode ser formulado de modo

a associar princípios a atos que geram legislação, nem o reconhecimento dos

costumes como parte integrante do direito pode ser feito sem o abandono integral

da tese da regra de reconhecimento.

Conforme Dworkin, a aceitação de que existem pelo menos

algumas regras de direito que não são obrigatórias pelo fato de terem sua

validade estabelecida conforme padrões de uma regra superior de

reconhecimento:

[...] reduz a fragmentos a elegante arquitetura piramidal que admiramos na teoria de Hart: não podemos mais afirmar que apenas a regra suprema é obrigatória em razão de sua aceitação e que todas as demais regras são válidas nos termos da regra suprema.42

Finalmente, Dworkin conclui que se tratarmos os princípios

como direito, devemos rejeitar a primeira doutrina positivista segundo a qual o

41 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 328 42 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . p. 69

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direito de uma comunidade se distingue de outros padrões sociais por conter uma

regra suprema de reconhecimento, e a segunda doutrina que trata do poder

discricionário do juiz.

A seguir, será tratado do tema da atividade discricionária do

julgador, assim como o papel fundamental dos princípios na teoria de Dworkin e a

forma com que ele atribui aos princípios o papel destaque nas decisões jurídicas.

A distinção entre princípios e regras esclarecerá como funciona tal distinção como

elemento definidor e ao mesmo tempo controlador da atividade valorativa

desempenhada pelo Poder Judiciário.

1.2.3 Princípios, Regras e o Poder Discricionário

Dworkin diferencia princípio jurídico de regra jurídica,

demonstrando o quanto é mais complexo determinar o peso e a dimensão de um

princípio, na medida em que os princípios jurídicos nem mesmo estabelecem as

condições que tornam a sua aplicação necessária, mas conduz o argumento em

uma certa direção.

Princípio é o que é observado na aplicação da justiça,

equidade ou qualquer outra dimensão da moralidade; são avaliados a partir de

cada caso particular, de seu conteúdo, é um padrão que não precisa estar

necessariamente estabelecido em uma lei ou precedente.

Na leitura filosófica que Dworkin faz do direito os princípios

ocupam papel central. Conforme Martins:

O papel hoje desempenhado pelos princípios na definição dos direitos é inegável, cada vez mais os juízes e os tribunais apelam a essa espécie normativa na solução de casos judiciais. Isso é evidente na jurisdição constitucional, onde a questão dos direitos fundamentais está sempre em pauta de discussões.43

43 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade

em face da decisão judicial com base em princípios : a contribuição de Ronald Dworkin. p. 266

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Regra é aquilo que concede direitos ou obrigações aos

membros de uma comunidade e é passível de legitimação, que se torna

obrigatória, segundo Hart, a partir do momento em que é válida ou aceita.

Conforme Dworkin, a diferença entre princípios e regras é de

natureza lógica, ambos apontam para a decisão a respeito de determinada

obrigação judicial em um caso específico, mas distanciam-se quanto à natureza

da orientação que oferecem44.

Não nos é possível enumerar todos os princípios que fazem

parte do universo jurídico porque eles são controversos, incontáveis, mutantes,

extraídos da uma situação específica.

Se pudermos tratar os princípios como direito,

[...] devemos rejeitar a primeira doutrina positivista, aquela segundo a qual o direito de uma comunidade se distingue de outros padrões sociais através de algum teste que toma a forma de uma regra suprema.45

As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada, de

acordo com a os fatos que tal regra estipula. Quando ocorre um fato que está

previsto em alguma regra, esta deve ser efetivamente aplicada; a não realização

só é possível se a regra não for válida. “Ou uma regra é dotada de validade e,

portanto, deve ser realizada na íntegra ou, em não sendo válida, considera-se ter

sido excluída do ordenamento jurídico.46”

Se duas regras entram em conflito na solução de

determinada lide, uma apenas deverá ser considerada válida, e os critérios para

distinguir qual delas é válida deverá ser encontrado em considerações que estão

além da própria regra, como por exemplo outras regras que determinam a

44 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . p. 39 45 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . p. 70 46 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade

em face da decisão judicial com base em princípios : a contribuição de Ronald Dworkin. p. 269

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preferência cronológica ou hierarquia de tais regras ou então quais estão

sustentadas por princípios mais importantes.

Quando princípios se intercruzam a solução da lide não tem

a exatidão utilizada pelas regras, há de se analisar a força que cada um possui:

[...] cada princípio relevante para um problema jurídico particular fornece uma razão em favor de uma determinada solução, mas não a estipula. O homem que deve decidir uma questão vê-se, portanto, diante da exigência de avaliar todos esses princípios conflitantes e antagônicos que incidem sobre ela e chegar a um veredicto a partir desses princípios, em vez de identificar um dentre eles como ‘válido’. 47

Os princípios, conforme Dworkin, possuem grande força nas

questões judiciais nas quais são invocados para justificar a aplicação de

determinada regra ao caso particular,

Subitamente nos damos conta de que estão por toda a parte, à nossa volta. Os professores de direito os ensinam, os livros de direito os citam e os historiadores do direito os celebram. Mas eles parecem atuar de maneira mais vigorosa, com toda a sua força, nas questões judiciais difíceis. 48

Observa-se com freqüência a alusão aos princípios quando

um juiz, ao decidir um caso que não é coberto por uma regra clara, deve exercer

seu “poder discricionário” mediante a criação de uma nova regra; quando

determinada decisão judicial não encontra amparo em nenhuma regra pré-

estabelecida, o juiz utiliza seu poder discricionário para criar um novo direito.

Para Dworkin, reduzir o fenômeno normativo a regras gera

prejuízos no que diz respeito à argumentação, debate e balanceamento de razões

na prática jurídica. Assim, o modelo positivista de atividade jurisdicional acaba

levando os juízes a empreenderem decisões institucionadoras de direitos, como

47 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . p. 114 48 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . p. 46

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se legisladores fossem, quando não encontram uma regra que atenda à

necessidade de um caso em julgamento49.

Conforme Martins:

Em cabendo ao direito a explicação de acontecimentos fáticos, este conhecer está ligado com a questão de que decisões passadas acabam, em geral, a determinar as presentes. Assim, em não havendo uma norma de direito ou uma decisão judicial anterior que possa ser aplicada a um acontecimento atual, cabe ao juiz, no uso de seu poder discricionário, decidir. Essa decisão, então, por não utilizar o direito vigente, cria algo novo na esfera jurídica.50

Dworkin afirma que a popularidade quanto ao poder

discricionário do juiz se deve a um conceito errôneo que a maioria dos positivistas

utilizam para defendê-la. Conforme o autor, o “conceito de poder discricionário só

está perfeitamente à vontade num tipo de contexto: quando alguém é em geral

encarregado de tomar decisões de acordo com padrões estabelecidos por uma

determinada autoridade.51”

Quando trata da discricionariedade, o autor em estudo se

refere a três significados de discricionariedade: em seu sentido fraco, quando o

juiz não pode decidir mecanicamente, deve empregar algum discernimento; uma

segunda também considerada em sentido fraco pelo autor, onde expressa a

situação de alguém ter de tomar uma decisão definitiva, que não pode ser

cancelada ou revista; e por último, a discricionariedade em sentido forte, quando

um agente deve tomar uma decisão sem estar vinculado a nenhum critério

explícito.

O poder discricionário no seu sentido forte é quando o

funcionário decide sem estar preso a padrões previamente determinados, sem

49 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. p. 153 50 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade

em face da decisão judicial com base em princípios : a contribuição de Ronald Dworkin. p. 267

51 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p.50

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abandonar o bom senso e a equidade, mas livre da obrigatoriedade de aplicação

de determinada regra.

Esta terceira acepção estaria por fim ligada às questões de completude ou incompletude do direito, da natureza legal ou meramente moral dos princípios, da competência ou incompetência do juiz de elaborar leis.52

A diferença entre discricionariedade fraca e forte reside,

basicamente, no fato de que ao usar de uma discricionariedade forte, o agente vai

poder ser criticado, mas não pode ser acusado de desobedecer a uma norma.

Mas importa lembrar que o poder discricionário não isenta o funcionário de decidir

sem recorrer a padrões de bom senso e eqüidade, “mas apenas que sua decisão

não é controlada por um padrão formulado pela autoridade particular que temos

em mente quando colocamos a questão do poder discricionário.53”

Dentro do paradigma positivista, o surgimento de situações

no cenário jurídico que invoque o uso da discricionariedade são aqueles

conhecidos como “casos difíceis”, ou seja, quando o acontecimento de uma

situação específica é levado ao poder judiciário e este, ao não encontrar qualquer

regra que ofereça uma resposta ou solução ao caso apresentado, profere uma

decisão que não se enquadra em nenhuma legislação específica mediante o uso

da discricionariedade.

A teoria positivista vê a origem da discricionariedade na ausência de legislação aplicável. Havendo uma situação onde o direito aplicável não há, e como o poder judiciário tem o dever de responder a todas as questões a ele requeridas, cabe ao juiz, como agente estatal, proferir uma decisão. E é neste momento, quando se tem ausente um direito específico, e ao mesmo tempo o Direito deve conferir uma resposta ao apelo realizado, o juiz, investido de um poder específico de decisão, deve deliberar através de sua discricionariedade.54

52 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade . Revista Lua Nova, São Paulo, n. 61,

p. 97-113, 2004. pg. 98 53 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 53 54 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade

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Esta questão da existência ou não de um dever legal do juiz

decidir de determinada forma remete, nas palavras de Daniela Ikawa55, à questão

de completude ou incompletude da lei, de onde então partem as ponderações de

Dworkin e Hart.

Hart procura, em sua obra, desenvolver uma teoria

puramente descritiva da lei, neutra, capaz de identificar critérios que definam o

que são regras jurídicas e até mesmo os princípios que são válidos como

jurídicos. Assim, não possui nenhum compromisso de justificação ou adequação

moral.

O meu relato é descritivo, na medida em que é moralmente neutro e não tem propósito de justificação; não procura justificar ou recomendar, por razões morais ou outras, as formas e estruturas que surgem na minha exposição geral do direito [...] 56

Já Dworkin procura traçar uma teoria normativa que não

apenas descreva e esteja apta a identificar a lei, mas que também tenha

capacidade de justificá-la da melhor maneira possível, o que só é possível com o

auxílio indispensável da moral. Dworkin repele totalmente o grande pilar do

positivismo jurídico que é a dissociação entre moral e norma jurídica,

demonstrando por meio de seus argumentos que tal separação não é tão clara

quanto os positivistas gostam de sustentar.

A teoria positivista trata o direito como um produto acabado,

onde o operador do direito será o imparcial cientista a descrever e aplicar tal

produto na esfera social. Para Dworkin:

[...] o ponto de vista romântico da ‘ciência’ é insatisfatório; é excessivamente desestruturado, por demais complacente com os

em face da decisão judicial com base em princípios : a contribuição de Ronald Dworkin. p. 268

55 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade . pg. 100 56 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 301

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mistérios que cultiva para ser considerado uma teoria avançada do que seja o argumento jurídico. 57

Na opinião de Dworkin a teoria de Hart, além de padecer da

falta de percepção da importância dos princípios, possui defeito “descritivo” e

“normativo”. Hart não descreve corretamente o direito existente e se há criação

dos tribunais quando há a atividade discricionária em sentido forte, essa atitude é

antidemocrática (os juízes agindo como legisladores) e injusta (ao aplicar

retroativamente uma norma que acabaram de criar)58.

Dworkin se preocupa, principalmente, com a edição pelo

juiz de novas leis quando faz uso da discricionariedade, pois para ele essa atitude

desconsidera os direitos individuais pré-existentes.

Mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode, ainda assim, ter o direito de ganhar a causa. O juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente.59

Embora iremos tratar mais amplamente da questão

interpretativa no capítulo a seguir, importa aqui distinguir o sistema bifásico de

interpretação de Hart e o processo de identificação e justificação do sistema de

Dworkin.

Para Hart, haveria uma primeira fase de existência de regras

válidas na qual se aplicaria a discricionariedade em seu sentido fraco, e depois

uma fase de inexistência da lei onde se aplicaria, necessariamente, a

discricionariedade em seu sentido forte admitida após o exaurimento da regra

social. Ambos os autores admitem que a regra social se exaure; porém, para Hart,

57 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 14 58 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. p. 160 59 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério . p. 127

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o exaurimento da lei e a passagem para o uso da discricionariedade demarca o

sistema bifásico.60

Para Dworkin esse exaurimento representa uma falha na

teoria da regra social; como vimos anteriormente, critica esta visão da regra de

reconhecimento para determinar uma lei como “válida”, sustentando que pode

haver uma obrigação jurídica mesmo onde não há uma regra determinando a

obrigação.

Hart apregoa em seu sistema interpretativo bifásico que o

juiz pode recorrer a princípios convencionados pela regra de reconhecimento para

julgamento de um caso, mas, segundo Ikawa:

Não reconhece [...] qualquer dever legal do juiz em buscar na análise holística da lei que forneça critérios mais objetivos, e que, conseqüentemente, diminua a possibilidade de erros judiciais. Embora concorde que vigorarão, no caso, princípios meramente morais, esses princípios, por não possuírem caráter vinculante na teoria positivista, poderão ou não ser considerados pelo juiz. 61

A discricionariedade de Hart é superada pelo sistema

interpretativo monofásico de Dworkin que, como vimos, sustenta que podemos

tratar um princípio como direito e, assim, propõe que um juiz tem o dever legal de

analisar de modo mais abrangente as fontes de lei e mesmo os princípios não

convencionais, de maneira que torne a atividade judiciária capaz de alcançar os

casos mais difíceis, fornecendo a esses casos critérios mais consistentes que o

da discricionariedade no sentido forte, sem tirar do juiz a possibilidade de utilizar a

discricionariedade no seu sentido fraco.

Com essa possibilidade de um maior alcance da decisão

judicial, seria incoerente a “criação” de novos direitos, pois o papel legislativo não

cabe ao poder judiciário. Segundo nosso autor, ao juiz cabe descobrir e aplicar o

direito do indivíduo, não de inventá-lo, como aconteceria quando este utilizasse o

poder discricionário defendido por Hart. Dworkin tem uma grande preocupação

60 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade . pg. 102 61 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade . p. 103

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quanto a garantir o respeito pelos direitos individuais que estariam fragilizados

pela aplicação da discricionariedade de Hart em seu sentido forte.

Ele lembra que não há um método mecânico para descobrir

quais são os direitos das partes, mas isso não quer dizer que esses direitos não

existam. Exige-se que o juiz desempenhe um papel de filósofo quando aplicar a

decisão que melhor justifique sua prática.

Assim, Dworkin perverte o conceito positivista de

discricionariedade judicial, expondo os contornos antiéticos e totalmente passíveis

de interferência das convicções pessoais morais e políticas do julgador em uma

decisão controversa, quando os juízes utilizam desta discricionariedade.

Sua argumentação apóia-se na sua tese de direitos que

determina que as decisões judiciais, especialmente nos casos controversos e nos

casos cíveis de maior alcance social, devem ser geradas por princípios, aliada à

história institucional da comunidade.

É notável na teoria de Dworkin a maior tendência a abarcar

princípios morais legalmente vinculantes, o que impossibilitaria a existência de

lacunas e, portanto, do uso da discricionariedade judicial em seu sentido forte.

Importa ressaltar que para Dworkin a atuação do Poder

Judiciário requer que a atividade jurisdicional seja calcada fundamentalmente em

princípios, e não em fundamentos políticos, estratégias ou outros valores. A

aplicação metodológica dessa atividade será fornecida pelo direito como

integridade, como veremos no capítulo a seguir.

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CAPÍTULO 2

O PROCESSO INTERPRETATIVO E O DIREITO COMO INTEGRIDADE

2.1 O PROCESSO INTERPRETATIVO

Em sua obra “O Império do Direito” Dworkin intenciona

colocar em discussão a própria discussão do direito, procura concentrar-se na

questão de divergência do direito, os tipos de divergências que os juízes e

advogados têm ao decidir uma questão. “Seu objetivo (da obra) é compreender

de que tipo de divergência se trata e, então, criar e defender uma teoria particular

sobre os fundamentos apropriados do direito.62”

Assim, critica as teorias que concebem o direito como

“simples questão de fato” e propõe uma teoria da interpretação que auxilia os

operadores do Direito a encontrar uma resposta correta mesmo para os casos

complexos.

Conforme exposto anteriormente, no direito como simples

questão de fato os teóricos sustentam que os advogados e juízes estão sempre

de acordo quanto aos fundamentos da lei. Quando divergem, se trata de uma

divergência a respeito de moralidade ou política, ou seja, é uma divergência

empírica. O direito já está estabelecido e para a solução de um problema a

respeito do direito basta uma análise cuidadosa do texto legal ou dos históricos da

atividade jurídica.

Mas para Dworkin, os processos judiciais sempre suscitam

questões de fato, de direito e as questões interligadas de moralidade, política e

fidelidade63. A primeira questão é bastante direta, se os juízes divergem quanto

62 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 15 63 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 5

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aos fatos concretos, sabemos do que estão divergindo e que uma evidência

decidiria a questão. A terceira questão é comum e trata dos conceitos pessoais de

certo e errado, o que não apresenta um grande problema. Mas quanto à segunda,

a divergência se torna mais complicada por dizer respeito quanto à definição de

qual é o direito aplicável e o que ele estabelece.

Advogados e juízes parecem freqüentemente divergir sobre

questões de direito, sobre a verdade de uma proposição jurídica e os

fundamentos desse direito. A essa divergência sobre o que determinada lei

realmente é, sobre os fundamentos do direito, Dworkin nomeia de “divergência

teórica do direito64”.

A divergência empírica sobre o direito quase nada tem de misteriosa. As pessoas podem divergir a propósito de quais palavras estão nos códigos da mesma maneira que divergem sobre quaisquer outras questões de fato. Mas a divergência teórica no direito, a divergência quanto aos fundamentos do direito, é mais problemática. [...] Advogados e juízes têm, de fato, divergências teóricas. Divergem, por exemplo, sobre o que o direito realmente é, sobre a questão da segregação racial ou dos acidentes de trabalho, mesmo quando estão de acordo sobre as leis que foram aplicadas, e sobre o que as autoridades públicas disseram e pensaram no passado.65

Para Dworkin, a maioria das teorias de direito recentes têm

tentado dar uma solução ao problema dos desacordos teóricos partindo da

premissa de que juízes e advogados utilizam fundamentalmente os mesmos

critérios para decidir quando uma proposição jurídica é verdadeira ou falsa.

Insistem que esses utilizam critérios lingüísticos para avaliar as proposições

jurídicas e estão sempre de acordo quanto ao que é o direito. 66

Dworkin chama esse argumento de “aguilhão semântico”,

que é o defeito de se tentar entender o direito apenas como uma questão de

discordância de convenção social, é uma imagem equivocada do que devem ser

64 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 8 65 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 8 66 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 40-41

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as divergências. Suas vítimas pensam que apenas podemos discutir

sensatamente se seguirmos os mesmos critérios, mesmo que estes não sejam

exatos. 67 Os filósofos do direito tentam localizar as regras fundamentais que

devem estar contidas, mas não reconhecidas na prática jurídica, produzindo e

discutindo as teorias semânticas do direito. 68

Para Dworkin, o tipo de divergência alegada pelos filósofos

de direito não corresponde ao tipo de divergência que juízes e advogados

realmente têm. Afirma que pode ser coerente quando estes divergem quanto a

um fato histórico ou social, mas a maioria de divergências em direito é teórica e

não empírica.

Conforme este autor, o direito não pode ser tratado como um

simples dado objetivo, visto que tal foco não permite entender os conflitos

interpretativos, e também, que o direito não é apenas uma questão semântica,

mas sim de concepção. Sustenta que os filósofos de direito tentam subestimar a

divergência teórica por meio de explicações, como a que:

Os advogados e juízes apenas fingem, ou que só divergem porque o caso que têm em mãos se situa numa zona cinzenta ou periférica das regras comuns. Em ambos os casos (dizem eles), o melhor a fazer é ignorar os termos usados pelos juízes e tratá-los como se divergissem quanto à fidelidade ou reforma do direito, e não quanto ao direito. Aí está o aguilhão: estamos marcados como seu alvo por uma imagem demasiado tosca do que deve ser a divergência.69

Porém, Dworkin argumenta que a possibilidade de que toda

a divergência teórica em direito seja fruto de fingimento não pode ao menos

considerada. Assim, o autor chega à conclusão de que é impossível determinar o

67 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 55-56 68 Importa citar que a respeito do termo “teorias semânticas do direito”, Isabel Lifante Vidal assim

esclarece: Con la expressión ‘teorías semánticas’, Dworkin se refiere a aquellas teorías según las cuales el significado de la palabra de ‘Derecho’ viene dado por ciertas reglas de uso (semánticas) aceptadas por la comunidad lingüística, de modo que los juristas seguirían principios lingüísticos (aun de forma inconsciente) para juzgar las proposiciones acerca del Derecho. VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica en la teoría del derecho contemporánea. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1999. p. 259

69 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 56

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que é ou não direito por meio de critérios semânticos. A única maneira de

oferecer uma explicação satisfatória dos desacordos teóricos e extrair o “aguilhão

semântico” é “abandonar as teorias semânticas e optar por uma perspectiva de

análise do Direito diferente: uma teoria que considere o Direito como um conceito

interpretativo.70”

Dworkin faz referência à Hart quando trata das teorias

semânticas de direito, que segundo Dworkin é caracterizada por adotar o ponto

de vista segundo o qual são os fatos que determinam os elementos do direito,

para que algo seja qualificado como direito deve necessariamente corresponder a

certos fatos históricos.71

A respeito deste tema, Hart, em seu pós-escrito, rebate os

argumentos de Dworkin afirmando que, apesar de seus critérios de validade

jurídica basearem-se fundamentalmente naquilo que Dworkin chama de pedigree,

Hart admite que princípios de justiça e valores morais podem integrar o conteúdo

jurídico. Portanto, ao imputar-lhe o positivismo como uma questão meramente

factual:

Dworkin ignora este aspecto da minha teoria. Assim, a versão ‘semântica’ do positivismo meramente factual que me atribui não é pura e simplesmente minha, nem é minha qualquer forma de positivismo meramente factual. 72

Assim, Hart sustenta que, ao contrário do que Dworkin

pensa, além de sua teoria não ser meramente factual, posto que admite o

ingresso de valores morais, sua teoria não tem como cerne a justificação da

coerção. Hart afirma que não há nada em sua teoria que apóie o ponto de vista

segundo o qual o direito consiste em justificar o uso da coerção:

70 Abandonar las teorías semánticas y optar por una perspectiva de análisis del Derecho diferente:

una teoría que considere al Derecho como un concepto interpretativo. (tradução nossa) VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica en la teoría del derecho contemporánea. p.262

71 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica en la teoría del derecho contemporánea. p. 260

72 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 309

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De fato, penso que é totalmente despiciendo procurar qualquer finalidade mais específica que o direito, enquanto tal, sirva, para além de fornecer orientações à conduta humana e padrões de crítica de tal conduta. 73

Assim, Hart nega que sua teoria do Direito seja a teoria

positivista meramente factual apresentada por Dworkin em O Império do Direito, e

conseqüentemente nega a presença da doutrina semântica em sua obra.

Mas Hart, ao sustentar que não se preocupa com a

justificativa da coerção, reafirma o traço característico positivista, que Dworkin

gosta de nomear como “direito como simples questão de fato”. Ainda, Dworkin

atribui às teorias semânticas a preocupação em extrair regras comuns de um

criterioso estudo da atividade dos advogados e juízes, atividade esta

empreendida por Hart em suas obras.

Dworkin propõe que o direito é um conceito interpretativo e

que os textos por si só não dizem nada. É necessário um enfoque determinado,

que os positivistas não têm apreciado. O seu conceito interpretativo do direito é a

arma mais poderosa de Dworkin no desafio ao positivismo74, como veremos a

seguir.

2.1.1 Um exemplo imaginário

De acordo com Dworkin, quando membros de uma

comunidade específica, que partilham de práticas e tradições comuns, divergem

sobre aquilo que uma prática ou tradição realmente exige, entram em um

desacordo teórico onde a divergência é genuína - por esses conflitos voltarem-se

para os mesmo objetos ou práticas a interpretar – mesmo que as pessoas usem

critérios diferentes para dar forma a essas interpretações75.

73 HART, Herbert L.A. O conceito de direito . p. 310 74 CALSAMIGLIA, Albert. El Concepto de Integridad en Dworkin . Doxa: Cuadernos de filosofía

del derecho, nº 12, 1992 , p. 160 75 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 57

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Dworkin então faz uso de um exemplo imaginário, uma

comunidade regida por regras de cortesia, para demonstrar como seu modelo

interpretativo é mais útil na compreensão do argumento jurídico e como nos ajuda

a enxergar com mais clareza o papel do direito na cultura em seu sentido vasto.

Nesta comunidade fictícia os habitantes são regidos por

regras de cortesias utilizadas em determinadas situações sociais, como a de os

camponeses tirarem os chapéus na presença de nobres. Essa prática tem um

caráter inicial de tabu, ninguém as questiona e nem tenta mudá-las. Mas

lentamente, com a prática constante da cortesia, os habitantes vão

desenvolvendo uma atitude “interpretativa” em relação a estas regras.

Essa atitude interpretativa possui dois elementos: o primeiro

é o pressuposto de que a prática da cortesia não apenas existe mas possui um

valor, serve a um interesse inerente, a um princípio. O segundo é o pressuposto

de que as regras de cortesia não são necessariamente como sempre se

imaginou, para servir ao seu propósito, podem ser modificadas, ampliadas,

melhoradas, atenuadas ou limitadas de acordo com a finalidade da cortesia.76

Conforme a atitude interpretativa vai se desenvolvendo

plenamente, vão surgindo novas exigências quanto à cortesia, os integrantes da

comunidade vão buscando um valor para a prática da cortesia e com isso vão

introduzindo novas práticas e rejeitando formas anteriormente reverenciadas. É a

introdução de um sentido valorativo que vai alterando a prática em si.

A interpretação repercute na prática, alterando a sua forma, e a nova forma incentiva uma nova reinterpretação. Assim, a prática passa por uma dramática transformação, embora cada etapa do processo seja uma interpretação do que foi conquistado pela etapa imediatamente anterior. 77

Com o exemplo da comunidade de cortesia Dworkin faz um

exame da atitude interpretativa sob uma perspectiva histórica, mas importa

esclarecer que Dworkin faz uso de outros conceitos interpretativos, como a 76 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p.57-58 77 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p . 59

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literatura e a arte para extrair sua tese, o que na opinião de Isabel Lifante Vidal,

apresenta um problema em determinar qual é o alcance da tese de Dworkin,

saber até onde deve chegar a comparação utilizada entre o exemplo fornecido e o

Direito.78

Embora Dworkin não intente fazer uma análise exaustiva

sobre a atividade de interpretação, parte de um conceito amplo de interpretação

onde enumera quatro tipos de atividades interpretativas e a relação entre as

mesmas: a conversação, a interpretação científica, a interpretação artística e a

interpretação de uma prática social.79

A conversação, segundo Dworkin, é tão conhecida que mal

a reconhecemos como prática interpretativa: é quando interpretamos os sons e

gestos que uma pessoa produz numa conversa. A interpretação científica decorre

de uma coleta e análise de dados para uma posterior interpretação descritiva

destes. A interpretação artística, assim como a de uma prática social, decorre de

se interpretar algo criado por pessoas e que adquire uma entidade distinta a de

seus criadores, por isso são denominadas por Dworkin como formas de

“interpretação criativa”.

Dworkin considera a interpretação de uma prática social

muito semelhante à interpretação artística por que ambas são interpretações de

obras que outras pessoas criaram, e o intérprete não intenciona determinar o

significado literal da obra, mas sim encontrar e defender através de argumentos o

sentido da obra como um todo. Assim, a interpretação criativa não é

conversacional ou científica, mas “construtiva”.

A interpretação das obras de arte e das práticas sociais, como demonstrarei, na verdade, se preocupa essencialmente com o propósito, não com a causa. Mas os propósitos que estão em jogo não são (fundamentalmente) os de algum autor, mas os do intérprete. Em linhas gerais, a interpretação construtiva é uma

78 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica en la teoría del derecho contemporánea. p.

264 79 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica en la teoría del derecho contemporánea. p.

265

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questão de impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina que pertençam.80

Porém, Dworkin alerta que disso não decorre que o

intérprete possa fazer da obra de arte (ou da prática social) aquilo que bem lhe

convém. As interpretações disponíveis sofrem uma coerção exercida pela história

ou pela forma de uma prática ou objeto. “Do ponto de vista construtivo, a

interpretação criativa é um caso de interação entre propósito e objeto.81”

Na interpretação construtiva o intérprete propõe um valor ao

interpretar uma prática, quando descreve um interesse, objetivo ou princípio ao

qual se supõe que ela atenda ou expresse,

[...] toda interpretação tenta tornar um objeto o melhor possível, como exemplo de algum suposto empreendimento, e que a interpretação só assume formas diferentes em diferentes contextos porque empreendimentos diferentes envolvem diferentes critérios de valor ou de sucesso.82

Na interpretação de uma prática social, requer-se dos

participantes uma atitude interpretativa frente às mesmas, atitude esta que exige

a presença de dois fatores: que a prática possua um sentido, que sirva a certos

propósitos ou valores; e em segundo lugar, o reconhecimento da primazia de tais

valores frente às regras que constituem a prática. “O que implica certa

‘flexibilidade’ na aplicação destas regras que constituem a prática.83”

Importa salientar que para uma eficaz compreensão dessa

atividade interpretativa é necessária uma análise do ponto de vista do

participante, isto é, do intérprete. “Significa dizer, a atitude interpretativa referida

por Dworkin parte do ‘ponto de vista interno’; o ponto de vista dos atores da

80 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p.63-64 81 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p.64 82 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p.65 83 Lo que implica cierta ‘flexibilidad’ en la aplicación de estas reglas que constituyen la práctica.

(tradução nossa) VIDAL, Isabel Lifante. La teoría de Ronald Dworkin: la reconstrucción del derecho a partir de casos. Jueces para la democracia, Madrid, Nº 36, p. 41-46, 1999, p. 43

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atividade realizada.84” Tal traço é distintivo nas obra de Dworkin, que parte da

figura do participante para análise do Direito, na maioria das vezes representado

pela figura do julgador.

2.1.2 Etapas da Interpretação

De modo a refinar a interpretação construtiva,

transformando-a em um instrumento apropriado ao estudo do direito enquanto

prática social, Dworkin faz uma separação analítica em três etapas interpretativas:

a etapa “pré-interpretativa”, que trata do problema da identificação do direito; a

etapa “interpretativa” que busca um significado, uma justificação para o direito; e a

etapa “pós-interpretativa”, que busca a melhor interpretação, o melhor ajuste de

acordo com o que a prática que requer.85

Na etapa pré-interpretativa é realizada a identificação e

qualificação do objeto a ser interpretado, identifica as regras e normas que

proporcionam o conteúdo da prática. Embora seja qualificada como “pré-

interpretativa”, Dworkin alerta que mesmo nessa fase é necessário algum tipo de

interpretação. As regras sociais não possuem um rótulo de identificação, mas

para o sucesso deste processo interpretativo é necessário um alto grau de

consenso na identificação, “de maneira que a presença deste consenso se

converta para Dworkin praticamente em um elemento definidor das comunidades

interpretativas.86”

Na etapa interpretativa o intérprete vai se concentrar numa

justificativa geral para os elementos da prática identificada na etapa anterior. É

nessa etapa que o intérprete vai buscar uma justificativa de valores e objetivos

que se considera que a prática persegue.

84 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. p. 179 85 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 81 86 De maneira que la presencia de este consenso se convierte para Dworkin prácticamente en un

elemento definitorio de las comunidades interpretativas. (tradução nossa) VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica en la teoría del derecho contemporánea. p. 274-275

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A justificativa não precisa ajustar-se a todos os aspectos ou características da prática estabelecida, mas deve ajustar-se o suficiente para que o intérprete possa ver-se como alguém que interpreta essa prática, não como alguém que inventa uma nova prática. 87

Por último há a etapa “pós-interpretativa” onde o objetivo é

ajustar a idéia do que a prática requer para melhor servir à justificativa da etapa

interpretativa. Trata-se de determinar o que a prática realmente necessita para

conseguir uma máxima realização dos princípios que se considera que justificam.

Nesta terceira fase interferem valores de convicção,

pretende-se alcançar uma aplicação coerente da melhor justificativa prática, essa

fase pretende estruturar a prática à luz de seus objetivos, o que pode implicar no

“abandono, reforma ou introdução de alguma das regras identificadas na primeira

etapa; isto coincide precisamente com o requisito do segundo elemento da atitude

interpretativa.88”

São os juízos morais que vão ser utilizados para oferecer a

melhor interpretação da prática social, assim como os juízos estéticos são

utilizados para julgar as obras de arte.

Um das teses principais da teoria de Dworkin consiste em

sustentar que sempre haverá uma interpretação que mostre o objeto como o

melhor caso possível do gênero que se considera que pertença. Na etapa pós-

interpretativa, os juízos valorativos são desenvolvidos ao máximo, de forma que

passe a ser a melhor prática possível dentre as distintas interpretações que

admitam os elementos identificados e interpretados nas etapas anteriores. É

nesta etapa que se estabelece uma relação entre direito e moral. 89

87 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 81 88 Abandono, reforma o introducción de algunas de las reglas identificadas en la primera etapa;

esto coincide precisamente con el requisito del segundo elemento de la actitud interpretativa. (tradução nossa) VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica en la teoría del derecho contemporánea. p. 275

89 VIDAL, Isabel Lifante. La teoría de Ronald Dworkin : la reconstrucción del derecho a partir de casos. p. 44

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Para Dworkin, o direito é um processo abstrato e como tal,

deve ser uma teoria geral do direito:

sua finalidade é interpretar o ponto essencial e a estrutura da jurisdição, não uma parte ou seção específica desta última. Contudo, apesar de sua abstração, trata-se de interpretações construtivas: tentam apresentar o conjunto da jurisdição em sua melhor luz, para alcançar o equilíbrio entre a jurisdição tal como a encontram e a melhor justificativa dessa prática. 90

O referido autor trata uma decisão judicial como uma “peça

de filosofia do direito”91 onde o Juiz age interpretando todos os princípios morais e

legais de uma comunidade, trazendo-os para o caso concreto e fazendo a devida

interpretação construtiva, dando à lei a melhor interpretação possível dentro do

caso concreto, sob o prisma político da situação presente, aliado a uma crítica

análise dos precedentes.

Porém Vidal faz a crítica de que Dworkin, ao sustentar que a

interpretação construtiva leva a uma única e melhor interpretação da prática

social, não considera que o Direito, como um fenômeno complexo, muitas vezes

serve a vários valores e, assim, não apenas uma, mas várias outras

interpretações que fariam prevalecer um certo valor frente a outro poderiam ser

admitidas. Assim não se poderia dizer que uma, e apenas uma dessas

interpretações, seria a correta.92

Mas Dworkin afasta esta possibilidade, sustenta que é

sempre possível encontrar uma interpretação que seja a melhor, a única resposta

correta para o caso concreto. Mas para que isso ocorra, é necessário que se

recorra a juízos morais, que é precisamente a atividade realizada na etapa pós-

interpretativa.

Deste modo, conforme Vidal:

90 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 112 91 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 113 92 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica en la teoría del derecho contemporánea. p.

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O juiz dworkiniano deve se situar precisamente na etapa pós-interpretativa e sua tarefa consiste em resolver os casos concretos através da elaboração da melhor teoria que reconstrua todo o sistema jurídico. É neste sentido em que pode dizer-se que Dworkin adota uma visão holística ou integradora a respeito do fenômeno jurídico. 93

Ainda, a referida autora critica Dworkin no sentido de que

apesar de este sustentar que para chegar à etapa pós-interpretativa é necessária

uma identificação, um consenso a respeito da matéria jurídica na etapa pré-

interpretativa, Dworkin descuida desse aspecto fundamental para a teoria do

Direito: uma teoria das fontes do ordenamento jurídico.94

É a partir dessas fontes que se reconstrói toda a ordem

jurídica, mas Dworkin parece menosprezar a matéria de critérios de identificação

dos elementos jurídicos, embora estes sejam essenciais para determinar quais

são os padrões que os juízes têm o dever de aplicar e que, segundo sua própria

definição, conformam o conteúdo do direito. Além disso, Dworkin é um ferrenho

opositor à regra de reconhecimento de Hart, mas não oferece nenhuma teoria das

fontes de direito que satisfaça essa matéria.

Porém,

[...] a teoria de Dworkin acrescenta algo que não parece estar nas teorias como a de Hart e que pode contribuir para a melhor compreensão do fenômeno jurídico: a idéia de ‘coerência’, que é o que permitirá ver o Direito objetivo não como um mero conjunto de normas, mas sim como um conjunto de normas ‘orientadas’, a dizer, com certos objetivos. Este elemento parece inclusive

93 El juez dworkiniano se debe situar precisamente en la etapa postinterpretativa y su tarea

consiste en resolver los casos concretos através de la elaboración de la mejor teoría que reconstruya todo el sistema jurídico. Es em este sentido en el que puede decirse que Dworkin adopta una visión holística o integradora respecto al fenómeno jurídico. (tradução nossa) VIDAL, Isabel Lifante. La teoría de Ronald Dworkin : la reconstrucción del derecho a partir de casos. p. 44

94 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica en la teoría del derecho contemporánea. p. 331-332

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necessário para dar conta das funções que o próprio Hart atribui ao Direito como guia de conduta de uma determinada sociedade.95

A referida autora defende que no âmbito jurídico, as

decisões adotadas por qualquer instância devem apresentar-se como justificadas

juridicamente e, para isso, exige que estejam de acordo com o Direito como um

todo unitário (e não como um mero agregado de distintos materiais jurídicos).

Para tanto, em sua opinião, se exige levar a cabo o tipo de atividade interpretativa

construtiva de todos os materiais jurídicos, a qual Dworkin sustenta em sua

obra.96 O modelo construtivo seria, segundo a autora, o candidato plausível para

ser o critério de êxito de todas as formas de interpretação.

A importância da referência neste trabalho da teoria

argumentativa de Dworkin reside no fato de que a interpretação construtiva é a

chave para compreensão da argumentação jurídica de Dworkin. Na opinião de

Vera Karam de Chueiri:

A sofisticação de Dworkin está no fato de que a chave para a compreensão da sua proposta de uma filosofia liberal do direito está na compreensão da argumentação jurídica enquanto exercício de interpretação construtiva, no qual o direito consiste na melhor justificação das práticas jurídicas como um todo, na história narrativa que faz dessas práticas o melhor possível.97

A interpretação construtiva demonstra ser capaz de garantir,

simultaneamente, uma solução justa para um determinado caso e rejeitar a

95 La teoría de Dworkin añade algo que no parece estar en teorías como la de Hart y que puede

contribuir a la mejor comprensión del fenómeno jurídico: la ideia de ‘coherencia’, que es lo que permitiría ver al Derecho objetivo no como un mero conjunto de normas, sino como un conjunto de normas ‘orientado’ es decir, con ciertos objetivos. Este elemento parece incluso necesario para dar cuenta de las funciones que el proprio Hart atribuye al Derecho de guía de conducta de una determinada sociedad. (tradução nossa) VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica en la teoría del derecho contemporánea. p. 332

96 VIDAL, Isabel Lifante. La teoría de Ronald Dworkin : la reconstrucción del derecho a partir de casos. p. 46

97 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e modernidade : Dworkin e a possibilidade de um discurso instituinte de direitos. p. 65

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discricionariedade, onde a centralidade dos direitos fundamentais age como

condição possibilitadora da democracia.98

De forma a aprimorar o conceito interpretativo inicial e

formar o conceito dworkiniano de Direito, Dworkin apresenta três concepções

antagônicas de direito, três interpretações abstratas da prática jurídica:

“convencionalimo”, “pragmatismo jurídico” e “direito como integridade”. Assim o

faz na busca de respostas que cada uma dessas concepções possam oferecer à

três questões: (1) Qual a justificativa para o elo entre direito e coerção? Faz

sentido o uso da força pública somente de acordo com direitos decorrentes de

decisões políticas passadas? (2) Se tal sentido existe, qual é ele? (3) Que noção

de coerência com decisões precedentes é a mais apropriada?99

Conforme o autor, a resposta que uma concepção dá à

terceira pergunta determina os direitos e responsabilidades jurídicos concretos

que reconhece.100 A seguir será feita uma exposição sobre essas concepções,

com uma maior ênfase na terceira concepção, que é a chave mestra da teoria de

Dworkin.

2.2 CONVENCIONALISMO

Conforme a perspectiva de Dworkin, o convencionalismo

tem como tema que o “direito é o direito. Não aquilo que os juízes pensam ser,

mas aquilo que realmente é. Sua tarefa é aplicá-lo, não modificá-lo para adequá-

lo à sua própria ética ou política.101”

É uma reinterpretação do positivismo que se caracteriza por

duas teses principais: a primeira é uma tese positivista, onde o direito é

98 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade

em face da decisão judicial com base em princípios : a contribuição de Ronald Dworkin. p. 278

99 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 117-118 100 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 118 101 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 141

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constituído por convenções sociais às quais os juízes devem respeitar. Basta uma

análise fática sobre estas convenções para determinar o modo como as decisões

passadas justificam o emprego da coação.102

A segunda tese é negativa: não existe direito algum se, por

exemplo, nunca se decidiu através de lei ou precedente anterior sobre o tema em

pauta. Assim, nos casos em que não existe uma convenção estabelecida sobre o

tema em juízo, os julgadores devem exercitar o poder discricionário no seu

sentido forte, utilizando padrões extra-jurídicos para fazer o que o

convencionalismo considera um novo direito. “Depois, em casos futuros, a

convenção do precedente transformará esse novo direito em direito antigo.103”

No cerne do convencionalismo, assim como do positivismo,

está a questão de porque a política do passado é decisiva para os direitos do

presente. Assim, Dworkin demonstra o quão atraente esta teoria pode ser por

oferecer uma justificativa à coerção estatal:

As decisões políticas do passado justificam a coerção porque, e portanto apenas quando, fazem uma advertência justa ao subordinarem as ocasiões de coerção a fatos simples e acessíveis a todos, e não a apreciações recentes da moralidade política, que juízes diferentes poderiam fazer de modo diverso. Esse é o ideal das expectativas asseguradas.104

Desta forma, uma vez que um organismo, com legitimidade

e em conformidade com as convenções, decidiu de determinada maneira, os

juízes devem acatar essa decisão, mesmo achando que uma decisão diferente

seria a mais justa.

Portanto o convencionalismo oferece uma resposta

afirmativa à pergunta quanto à justificativa do elo entre direito e coerção, aceita a

idéia do direito; quanto à segunda pergunta, sustenta que o sentido da vinculação

102 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica en la teoría del derecho contemporánea. p.

263 103 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 145 104 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 145

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ao direito está esgotado pela previsibilidade e pela eqüidade processual, e em

resposta à terceira pergunta, propõe uma exposição nitidamente restrita da forma

de coerência a respeito das decisões anteriores: um direito só decorre de

decisões anteriores se estiver expresso nessas decisões ou se puder ser

explicitado por meio de técnicas convencionalmente aceitas pelos profissionais de

direito.105

Dworkin critica o convencionalismo afirmando que este se

ajusta mal às práticas jurídicas, que o insucesso desta corrente enquanto

interpretação do direito é completo. Conforme o autor, este fracassa como

interpretação da prática jurídica em função do seu aspecto negativo (de que não

existe direito a não ser aqueles que são extraídos por meio de técnicas

convencionalistas das decisões jurídicas), pois os juízes, aos se debruçarem

sobre as fontes convencionais de Direito, perderiam o interesse pela legislação e

pelo precedente assim que estas se esgotassem. Então entenderiam que não

existe o direito, passando a criar um novo direito (através da discricionariedade)

sem se preocupar com a coerência com o passado, “indagando qual lei

estabeleceria a legislatura em vigor, qual é a vontade popular ou o que seria

melhor para os interesses da comunidade no futuro.106”

Um traço distintivo da teoria de Dworkin é a coerência,

fundamental à demarcação do modelo construtivo da sua concepção

interpretativa do direito107, por isso cada vez que se decide sobre um caso sem

referência às decisões políticas passadas frustra-se a coerência, que é

fundamental na interpretação construtiva.

Dworkin estabelece a distinção entre dois tipos de coerência:

de estratégia e de princípio. A coerência de estratégia busca o ajuste do direito

criado ao conjunto de regras existentes e às possíveis regras futuras, de acordo

com os anseios e interesses da comunidade. Já a coerência de princípios exige

105 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 119 106 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p.159 107 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e modernidade : Dworkin e a possibilidade de

um discurso instituinte de direitos. Op. Cit. p. 115-116

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que os diversos padrões que regem o uso estatal da coerção contra os cidadãos

seja coerente no sentido de expressarem uma visão única e abrangente de

justiça.108

O convencionalismo difere do direito como integridade

exatamente por que nega a coerência de princípios como fonte de direitos,

enquanto o direito como integridade o aceita.

O direito como completude supõe que as pessoas têm direitos a uma extensão coerente e fundada em princípios, das decisões políticas do passado, mesmo quando os juízes divergem profundamente sobre seu significado. Isso é negado pelo convencionalismo: um juiz convencionalista não tem razões para reconhecer a coerência de princípio como uma virtude judicial, ou para examinar minuciosamente leis ambíguas ou precedentes inexatos para tentar alcançá-la.109

Para Dworkin, a coerência estratégica adotada pelos

convencionalistas se encaixaria muito bem com as doutrinas semânticas de

direito, mas o seu estudo é a respeito das interpretações essenciais da prática

jurídica. Portanto, “quem quer que pense que a coerência de princípio, e não

apenas de estratégia, deve situar-se no âmago da jurisdição, terá rejeitado o

convencionalismo – tenha ou não consciência disso.110”

O tema da coerência, fundamental na compreensão da

teoria dworkiniana, será retomado de forma mais ampla no terceiro capítulo deste

trabalho.

2.3 PRAGMATISMO

Teoria descendente do Realismo Jurídico, que versa sobre a

atividade judicial que determina que o direito é definido pela atividade realizada

108 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 163-164 109 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 164 110 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 164-165

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pelos juízes, os precedentes e a legislação seriam apenas fontes de informação,

sem que signifiquem um compromisso tal qual o é para os positivistas. Um juiz

pragmático não interpreta o direito, mas o constrói de forma política,

preocupando-se em decidir de maneira que melhor atenda às necessidades

sociais.

Diferente do que ocorre no convencionalismo, no

pragmatismo os juízes devem agir como se as pessoas tivessem direitos, porque

a longo prazo esse modo de agir servirá melhor à sociedade. “Voltado para o

futuro, o pragmatismo prescinde das leis e dos precedentes como fontes

exclusivas do direito, resultando na consecução daquilo que a comunidade elegeu

como melhor pra si.111”

De acordo com Dworkin:

O pragmático adota uma atitude cética com relação a pressuposto que acreditamos estar personificado no conceito de direito: nega que as decisões políticas do passado, por si sós, ofereçam qualquer justificativa para o uso ou não do poder coercitivo do Estado.112

Conforme Thamy Pogrebinschi são três as características

fundamentais que definem o pragmatismo jurídico: “contextualismo”,

“consequencialismo” e “anti-fundacionalismo”.

O contextualismo implica que toda e qualquer proposição seja julgada a partir de sua conformidade com as necessidades humanas e sociais. O consequencialismo, por sua vez, requer que toda e qualquer proposição seja testada por meio da antecipação de suas conseqüências e resultados possíveis. E, por fim, o anti-fundacionalismo consiste na rejeição de quaisquer espécies de entidades metafísicas, conceitos abstratos, categorias apriorísticas, princípios perpétuos, instâncias últimas, entes

111 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e modernidade : Dworkin e a possibilidade de

um discurso instituinte de direitos. Op. Cit. p. 117 112 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 185

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transcendentais e dogmas, entre outros tipos de fundações possíveis ao pensamento.113

O pragmatismo é entendido como uma teoria

comportamental, definido pela atividade realizada pelos juízes, onde estes

“fazem” o direito, e não simplesmente o “encontram”. Apregoa que o juiz deve

encontrar a justificativa necessária à coerção sem estar preso a convenções ou

precedentes, e se assim o fizer, a coerção que impõe “tornará o futuro da

comunidade mais promissor, liberado da mão morta do passado e do fetiche da

coerência pela coerência.114”

É uma concepção cética do direito porque nega a existência

de pretensões juridicamente tuteladas genuínas (e não estratégicas)115. Os juízes

não rejeitam a moral, a política, nem qualquer outra fonte que, assim como as

fontes de autoridade, são apenas fontes de informações para a atividade do

julgador pragmático, onde com todos esses recursos de informação vai operar de

um modo comparativo-consequencialista116, ou seja, irá avaliar todas as

possibilidades de resolução do caso concreto, optando pela que lhe parecer

melhor – aquela que melhor corresponder às necessidades humanas ou sociais.

Portanto, a norma jurídica constitui apenas um dos recursos

ao que o juiz pode recorrer, negando a existência do direito positivo pré-existente

à aplicação do juiz. A norma jurídica só passa a ter validade a partir de sua

aplicação por um julgador num caso concreto.

O pragmatismo se assenta sobre a política, seus juízes

sempre atuam num contexto político, não estando preocupados com a moral, e

muito menos com a história, no julgamento de uma lide. Porém Dworkin rechaça

esse posicionamento pragmático, conforme sustenta Thamy Pogrebinschi:

113 POGREBINSCHI, Thamy. O que é Pragmatismo Jurídico? Disponível em

http://www.cedes.iuperj.br/PDF/paginateoria/Dworkin%20Pragmatismo.pdf Acesso em: 20 setembro 2008. p. 1

114 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 185 115 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 195 116 POGREBINSCHI, Thamy.O que é pragmatismo jurídico? p. 2

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Essa posição figura como inconcebível para Dworkin, cuja coerência teórica se assenta justamente na permanência da história e da moral em sua teoria do direito. De acordo com ele, mesmo as grandes questões históricas julgadas pela Suprema Corte norte-americana são, necessariamente, questões morais, e não questões políticas. O contexto de sua atividade adjucativa é sempre um contexto moral, mesmo que essa moral seja retoricamente encarada como uma ‘moralidade política’. 117

Além disso, para Dworkin o pragmatismo ignora a grande

relevância das decisões passadas. Dworkin contraria o pragmatismo jurídico

principalmente por isso, ele dá importância aos precedentes que constroem a

história legal de uma comunidade, ao seu passado e tradição. “Dworkin olha pra

trás e para baixo, enquanto os pragmatistas olham para frente e para cima;

Dworkin olha para o passado, os pragmatistas olham para o futuro.118” Vale

ressaltar que esse aspecto de Dworkin de olhar para o passado não é absoluto,

sua teoria de integridade não exige coerência de princípio em todas as etapas

históricas do direito de uma comunidade, o processo interpretativo irá voltar ao

passado apenas na medida em que seu enfoque contemporâneo assim necessite.

A coerência exigida pela integridade é muito mais horizontal do que vertical ao

longo de toda a gama de normas jurídicas vigentes. 119

Para Dworkin, teorias como o pragmatismo ou o

convencionalismo não oferecem uma justificativa razoável quanto à legitimação

do poder coercitivo do estado. O direito é algo mais complexo do que o que tais

teorias supõem. Sustenta que tais correntes são insuficientes, pois não oferecem

a justificação necessária para o exercício da jurisdição. A atividade jurídica deve

ser coerente, fiel a princípios como equidade, justiça, legalidade e integridade.

Então Dworkin apresenta sua teoria alternativa às

apresentadas anteriormente: o direito como integridade. É sobre o princípio da

integridade que repousa a sua filosofia, tal princípio explica porque se devem 117 POGREBINSCHI, Thamy. Dworkin e o Pragmatismo Jurídico . Disponível em

http://www.cedes.iuperj.br/PDF/paginateoria/Dworkin%20Pragmatismo.pdf Acesso em: 20 setembro 2008. p. 1-2

118 POGREBINSCHI, Thamy. Dworkin e o pragmatismo jurídico. p. 3 119 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 273-274

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levar em conta as decisões juridicamente tuteladas. Explica porque os juízes

devem conceber o Direito como um todo unitário, e não como uma série de

decisões distintas que são livres para tomar ou emendar uma por uma, com nada

além de um interesse estratégico pelo restante. Assim, conforme Dworkin, é o

princípio da integridade que oferece uma alternativa às concepções

convencionalista e pragmática do direito.

2.4 DIREITO COMO INTEGRIDADE

O autor em estudo entende que existem, na teoria política,

certos ideais que devem ser perseguidos, são os ideais de uma estrutura política

imparcial, que oferece “uma justa distribuição de recursos e oportunidades e um

processo eqüitativo de fazer vigorar as regras e os regulamentos que os

estabelecem.120” Dworkin chama esses ideais de virtudes da eqüidade, justiça e

devido processo legal adjetivo.

Para Dworkin há um quarto ideal, que se coloca ao lado

destes e que com eles se relaciona, ao qual ele denomina “integridade”, que trata

da virtude exigida por uma moralidade política, e à qual ele usa para demonstrar a

ligação com a moral pessoal. O seu sentido pode ser captado pelo princípio da

igualdade, onde há a idéia de casos iguais devem ser tratados igualmente, mas a

ele não se resume.121

A integridade torna-se um ideal político quando exigimos o mesmo do Estado ou da comunidade considerados como agentes morais, quando insistimos em que o Estado aja segundo um conjunto único e coerente de princípios mesmo quando seus cidadãos estão divididos quanto à natureza exata dos princípios de justiça e eqüidade corretos. 122

120 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 199-200 121 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e modernidade : Dworkin e a possibilidade de

um discurso instituinte de direitos. Op. Cit. p. 122 122 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 202

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A integridade da concepção de eqüidade em uma

comunidade exige a aplicação dos princípios políticos necessários para justificar a

autoridade legislativa; a integridade da concepção de justiça exige que os

princípios morais para justificar as decisões legislativas sejam reconhecidos pelo

restante do Direito; a integridade da concepção de devido processo legal adjetivo

exige que os procedimentos nos julgamentos sejam reconhecidos e alcancem o

correto equilíbrio entre exatidão e eficiência na aplicação de algum direito. “A

integridade, mais que qualquer superstição de elegância, é a vida do direito tal

qual o conhecemos.123”

O princípio da integridade na legislação exige a coerência

das criações da lei quanto a princípios. A integridade no julgamento exige que

aqueles responsáveis em decidir o que é o direito, que o vejam e façam cumprir

de acordo com estes princípios.

Dworkin sustenta que a virtude da integridade política supõe

uma personificação de comunidade ou Estado, de forma a fluir o conceito de

integridade, onde este Estado ou comunidade estejam seriamente comprometidos

com os princípios de eqüidade, justiça e devido processo legal adjetivo. Essa

comunidade assume uma personalidade própria, que a caracteriza como uma

entidade distinta das pessoas que a integram124, a qual Dworkin denomina

comunidade de princípios.

A respeito desse tema, Stephen Guest esclarece:

A comunidade propriamente dita é aquela em que a associação fraternal fornece a justificação para a obrigação política, enfatiza a preocupação pelo bem-estar e eqüidade. Dworkin chama tal comunidade de ‘comunidade de princípios’ [...]. A comunidade de princípio, diz ele, faz a responsabilidade de cidadania especial porque cada cidadão deve respeitar os princípios de imparcialidade e justiça que estão inseridos nos acordos políticos de uma comunidade em particular. A comunidade de princípios,

123 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 203 124 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 204-205

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portanto, fornece a melhor defesa da legitimidade, bem como, a defesa de nossa própria cultura política. 125

Na comunidade de princípios existe um sentimento coletivo

de responsabilidade e comprometimento. Nesta comunidade, os cidadãos

encaram as responsabilidades da comunidade como pessoais, desprezam o

sentimento egoísta ao resolver um conflito:

[...] promove a união da vida moral e política dos cidadãos: pede ao bom cidadão, ao decidir como tratar seu vizinho quando os interesses de ambos entram em conflito, que interprete a organização comum da justiça à qual estão comprometidos em virtude da cidadania. 126

Ainda,

Uma sociedade política que aceita a integridade como virtude política se transforma, desse modo, em uma forma especial de comunidade, especial num sentido que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva. 127

Uma comunidade de princípios se rege pela integridade.

Trazem consigo a promessa que de que o direito será escolhido, alterado,

desenvolvido e interpretado de um modo global, fundado em princípios.128 Seus

membros partilham de responsabilidades que reforça o caráter de culpa e

vergonha coletiva quando agem de forma injusta.

O autor em estudo sustenta que um Estado que aceita a

integridade como ideal político “tem um argumento melhor em favor da

125 A proper community, one in which it is fraternal association that provides the justification for

political obligation, places weight on concern for well-being and equality. Dworkin calls such a community a ‘community of principle’ […]. The community of principle, he says, makes the responsibilities of citizenship special because each citizen must respect the principles of fairness and justice that are embedded in the political arrangements in his particular community. The community of principle, therefore, provides a better defense of political legitimacy as well as a defense of our own political culture. (tradução nossa) GUEST, Stephen. Ronald Dworkin . p. 70

126 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 230 127 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 228 128 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 258

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legitimidade que um Estado que não a aceite.129” Portanto, sustenta que as

práticas políticas têm por base essa virtude onde a coerção do direito é legitimada

por essa autoridade moral do Estado. Para que o Estado seja totalmente legitimo,

“o principio da integridade deverá está presente na tomada de decisão de todas

as instituições, bem como, nas atitudes ordinárias de seus cidadãos, reforçando a

idéia de comunidade.130”

Dworkin, assim como Habermas, tem a interpretação jurídica

como indissociável de uma concepção centrada na noção de Estado Democrático

de Direito. Argemiro Martins alerta que apesar desse traço de comunitarismo,

Dworkin é fundamentalmente um liberal. “Trata-se de um liberalismo baseado na

igualdade, orientado pelo princípio de que as pessoas devem ser tratadas com

igual interesse e respeito pela comunidade.131”

Dworkin intenta atingir dois propósitos importantes com a

idéia de integridade: moldar a atitude do intérprete do direito de forma a excluir o

recurso à discricionariedade, e legitimar a decisão judicial de acordo com

princípios relativos à eqüidade, justiça e devido processo legal.

Em síntese, a proposta da integridade busca legitimar uma decisão judicial que considere todos os aspectos fáticos, normativos e morais relevantes para a solução do caso. Com isso, cria as condições para impedir a discricionariedade do intérprete, pois a magnitude da tarefa não deixa margem a escolhas arbitrárias. Ao contrário, exige do julgador um esforço hercúleo para construir uma decisão que integre materiais vastos e, não raro, conflitantes entre si.132

129 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 232 130 SOARES, Natália Lourenço. Uma relação entre o tipo ideal de legislação de jer emy

waldron e o juiz – modelo Hércules de Ronald Dworki n. In: XV Congresso Nacional do CONPEDI 2006, Manaus-AM. Anais do XV Congresso Nacional do CONPEDI. Manaus: COMPEDI, 2006. p.10

131 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em face da decisão judicial com base em princípios : a contribuição de Ronald Dworkin. p. 279

132 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em face da decisão judicial com base em princípios : a contribuição de Ronald Dworkin. p. 280

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Para Dworkin, a integridade oferece uma melhor

interpretação construtiva das práticas jurídicas do que o convencionalismo e o

pragmatismo, assim como uma melhor interpretação “do modo como nossos

juízes decidem os casos difíceis nos tribunais.133”

O princípio da integridade na prestação da justiça não é de modo algum superior a propósito do que os juízes devem fazer cotidianamente. Esse princípio é decisivo para aquilo que um juiz reconhece como direito. [...] O princípio da integridade na deliberação judicial, portanto, não tem necessariamente a última palavra sobre de que modo usar o poder de coerção do Estado. Mas tem a primeira palavra, e normalmente não há nada a acrescentar àquilo que diz.134

O princípio da integridade na prestação jurisdicional oferece

a terceira concepção de direito, que é o “direito como integridade”, uma

concepção interpretativa do Direito que se diferencia das concepções do

convencionalismo e do pragmatismo por basear-se no princípio da integridade.

[...] o direito como integridade aceita sem reservas o direito e as pretensões juridicamente asseguradas. [...] supõe que a vinculação ao direito beneficia a sociedade não apenas por oferecer previsibilidade ou eqüidade processual, ou em algum outro aspecto instrumental, mas por assegurarem, entre os cidadãos, um tipo de igualdade que torna sua comunidade mais genuína e aperfeiçoa sua justificativa moral para exercer o poder político que exerce.135

O direito como integridade nega o traço convencionalista de

direito unicamente como relato de fatos estabelecidos no passado, ou do

pragmatismo como programas de estratégia voltados para o futuro. Abarca o

direito como uma atividade interpretativa, combina elementos voltados tanto para

o passado quanto para o futuro. Interpreta a prática jurídica como uma atividade

dinâmica, o direito em processo de desenvolvimento contínuo. Assim, o direito

como integridade rejeita, por considerar inútil, “a questão de se os juízes 133 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 260 134 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p.262-263 135 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 119-120.

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descobrem ou inventam o direito; sugere que só entendemos o raciocínio jurídico

tendo em vista que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas.136”

No direito como integridade, as proposições jurídicas são

verdadeiras se constam ou derivam de princípios de justiça, eqüidade e devido

processo legal adjetivo, os quais oferecem a melhor interpretação construtiva da

prática jurídica de uma comunidade. Os juízes são instruídos a identificar direito e

deveres legais, partindo do pressuposto de que foram criados por um único autor

– a comunidade personificada – expressando uma concepção coerente de justiça

e eqüidade.137

Verbicaro pontua que através do direito como integridade

chega-se a uma interpretação a ser aplicada ao caso concreto, porém:

Não aceitar a possibilidade de se chegar a uma interpretação correta do Direito significa a negação de sua força normativa, abrindo-se espaço a decisionismos e arbitrariedades, incompatíveis com a preservação e respeito aos direitos fundamentais contemplados pelos ideais democráticos.138

Mas o direito como integridade não é apenas o produto da

interpretação da prática jurídica, mas também sua fonte de inspiração, pede aos

juízes que exerçam uma atividade contínua de interpretação do mesmo material

que afirmam já terem interpretado com sucesso. 139

Essa característica do direito como integridade expressa a

dinamicidade da teoria de direito dworkiniana, que conforme Chueiri:

Esse dinamismo faz com que o direito se recicle constantemente, revigorando sua estrutura ante a atrofia ameaçadora dos

136 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 271 137 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 272 138 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ron ald Dworkin .

p. 12 139 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 273

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esqueletos esclerosados do positivismo e do utilitarismo que lhe oferecem uma frágil, quase inepta sustentação.140

Ainda conforme essa autora, o direito como integridade

segue a lógica do pensamento moderno, “da qual a razão é a fundadora e cujas

unidades constitutivas funcionam, harmonicamente, a interagir uma com a

outra.141” Desta forma, esta julga o direito como integridade como a melhor

concepção do direito e, ao mesmo tempo, como unidade constitutiva de um

projeto de sociedade.

Dworkin pontua que a interpretação criativa busca sua

estrutura formal na idéia de intenção, na medida em que pretende impor um

propósito à tradição que se está interpretando.

Pode o jurista afirmar [...] que o impacto da lei sobre o Direito é determinado pela pergunta de qual a interpretação, entre as diferentes possibilidades admitidas pelo significado abstrato do termo, promove melhor o conjunto de princípios e políticas que oferecem a melhor justificativa política para a lei na época em que foi votada.142

O autor então faz uma comparação do Direito com a

atividade literária, argumentando que em uma interpretação legal, os juízes agem

como autores e críticos.

Para ilustrar melhor esse processo de interpretação legal,

Dworkin utiliza hipoteticamente a figura do “romance em cadeia” que seria um

projeto no qual um grupo de romancistas escreveria um romance em série, no

qual cada romancista interpreta os capítulos que recebeu para, a partir desse,

escrever um novo capítulo, que então é analisado pelo romancista seguinte e

adicionado de um novo capítulo, e assim por diante.

140 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e modernidade : Dworkin e a possibilidade de

um discurso instituinte de direitos. p. 130 141 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e modernidade : Dworkin e a possibilidade de

um discurso instituinte de direitos. p. 131 142 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios . p. 190

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A atividade do intérprete do romance pode ser comparada à

do intérprete de uma lei num caso difícil. Um grupo de romancistas deve escrever

uma novela, onde cada autor escreve um trecho, e a atividade do último novelista

é sempre a de interpretar os argumentos dos antecessores e conforme suas

próprias convicções escrever a continuidade do texto, de forma coerente, com

consistência narrativa. “A complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de

decidir um caso difícil de direito como integridade.” 143

Comparada à atividade jurídica, o juiz ao analisar o caso

difícil também deve dar uma continuidade coerente à história da comunidade, ser

criterioso e estar ciente do seu papel único no romance, agir de forma que

justifique os rumos que irá dar na história do romance.

Assim como um autor no romance em cadeia, cada juiz

deve:

Ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance coletivo escrito até então.144

Ao decidir um novo caso, o juiz deve considerar-se como

parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual um imenso número

de decisões, estruturas, convenções e práticas formam sua história; e ao juiz

cabe dar uma continuidade coerente a essa história no futuro, consciente de que

deve interpretar o que aconteceu antes e levar adiante a incumbência que tem em

mãos, e não partir em alguma nova direção.145

Conforme Vianna, Dworkin tem em sua tese uma concepção

de revolução permanente, onde o direito é uma atividade de progressão contínua

tendo em vista a realização dos princípios de liberdade e igualdade.

143 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 276 144 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios . p. 238 145 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios . p. 238

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O roman à chaîne como um processo ininterrompido da criação do direito reclama uma interpretação construtivista em que cada juiz, para chegar a uma decisão, especialmente quando mobilizado pelo julgamento dos hard cases, deve ter como ponto de partida uma teoria que satisfaça a condição de se apresentar como uma reconstrução racional da ordem jurídica de que ele faz parte. 146

É importante fazer referência ao romance em cadeia para

compreender mais claramente a proposta de Dworkin quanto à interpretação

judicial. Para que o romance em cadeia tenha coerência, é necessário que haja

respeito aos capítulos anteriores e uma devida justificação para a elaboração do

capítulo seguinte.

Não significa propriamente que a história deve seguir uma

direção rígida iniciada pelo primeiro romancista, isso seria contrariar o caráter

dinâmico da interpretação construtiva, mas sim que cada capítulo escrito tenha

coerência com os anteriores e demonstre uma justificativa plausível para os novos

rumos a serem tomados. O aplicador do direito deve estar sempre disposto a

abandonar soluções jurídicas adotadas no passado para consagrar novas

diretrizes jurídicas.147

Traçando um paralelo entre o romance em cadeia e a

atividade jurisdicional, Dworkin sustenta que:

O direito como integridade [...] pede ao juiz que se considere como um autor na cadeia do direito consuetudinário. Ele sabe que outros juízes decidiram casos que, apesar de não exatamente iguais ao seu, tratam de problemas afins; deve considerar as decisões deles como parte de uma longa história que ele tem de interpretar e continuar, de acordo com suas opiniões sobre o melhor andamento a ser dado à história em questão. (Sem dúvida, para ele a melhor história será a melhor do ponto de vista da moral política, e não da estética.) [...] O veredito do juiz - suas conclusões pós-interpretativas – deve ser extraído de uma

146 VIANNA, Luiz Werneck. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Op.

cit. p. 36 147 ARÊAS, Paulo André Morales. Um estudo comparativo entre a doutrina de Dworkin e a

súmula de efeitos vinculantes – E. C. n° 45, Brasil , 2005. Revista da Faculdade de Direito de Campos. Ano VI, n° 6 – junho, 2005. p. 581

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interpretação que ao mesmo tempo se adapte aos fatos anteriores e os justifique, até onde isso seja possível. 148

Dworkin admite que a interação entre adequação e

justificação é complexa, assim como na literatura a interpretação vai ser marcada

pelas convicções artísticas e literárias de cada romancista, no direito, a decisão

judicial vai ser influenciada pelas convicções políticas e morais do julgador.

O autor explora mais detalhadamente esse processo

interpretativo realizado pelo julgador a partir da alegoria de Hércules, um juiz

imaginário que aceita o direito como integridade. Através dos passos de Hércules,

Dworkin explora a atividade jurisdicional e aprofunda seus argumentos em defesa

de sua tese. Para uma melhor compreensão do papel do julgador na construção

do direito, objetivo deste trabalho, será estudado no terceiro capítulo o

personagem Hércules e como ele aplica a coerência de princípios na atividade

jurisdicional, de forma a obter uma melhor compreensão do papel do Poder

Judiciário na concepção de Dworkin.

148 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 286

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CAPÍTULO 3

O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA CONSTRUÇÃO DO DIREIT O

3.1 HÉRCULES E A COERÊNCIA NA DECISÃO JUDICIAL

Para expor melhor a complexa estrutura da interpretação

jurídica e sustentar a sua teoria de interpretação construtiva, Dworkin utiliza um

juiz imaginário ao qual ele chama de Hércules, que é um juiz-filósofo com

capacidade, sabedoria e paciência sobre-humanas, competente para, de maneira

criteriosa e metódica, selecionar as hipóteses de interpretação dos casos

concretos a partir do filtro da integridade149.

Hércules é um filósofo consciente da complexidade da tarefa

da decisão judicial, tem capacidade e tempo ilimitados, conhece a letra da lei e a

história de sua comunidade, toma decisões dentro dos critérios de adequação e

justificação.

É importante frisar esse traço de juiz-filósofo de Hércules,

posto que para Dworkin:

O voto de qualquer juiz é, em si, uma peça de filosofia do direito, mesmo quando a filosofia está oculta e o argumento visível é dominado por citações e listas de fatos. A doutrina é a parte da jurisdição, o prólogo silencioso de qualquer veredito.150

Por tal razão sustenta que a parte clássica da filosofia moral

e política deve fazer parte da formação dos profissionais de direito, porque os

Juízes carecem de informação, controle e legitimidade para concretizar os direitos

sociais, econômicos e financeiros.151 Não bastam apenas conhecimentos da

149 PEDRON, Flávio Quinaud. Comentários sobre as interpretações de Alexy e Dwor kin.

Revista CEJ, Brasília n. 30, p. 70-80, 2005. p. 74 150 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 113 151 DWORKIN, Ronald. O papel dos juízes nas democracias constitucionais . IN: I Congresso

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técnica jurídica, mas uma ampla capacidade de raciocínio filosófico que muitos

juristas insistem em ignorar.

É perfeitamente compreensível que os juristas temam a contaminação pela filosofia moral, particularmente pelos filósofos que falam sobre direitos, porque as nuanças fantasmagóricas desse conceito assombram o cemitério da razão. [...] Não é necessário que os juristas desempenhem um papel passivo no desenvolvimento de uma teoria dos direitos morais contra o Estado, assim como não foram passivos no desenvolvimento da sociologia e da economia jurídicas. Eles devem reconhecer que o direito não é mais independente da filosofia do que essas outras disciplinas.152

Junto com esse juiz-filósofo, somos levados a acompanhar

todo o paciente processo de análise de um caso e as possibilidades

interpretativas que Hércules considera. Dworkin propõe uma série de questões e

demonstra de forma didática como Hércules analisa e decide as questões,

usando os princípios, a lei, os fatos, tudo sob o prisma da integridade.

Hércules interpreta não só o texto da lei, mas também sua vida, o processo que se inicia antes que ela se transforme em lei e que se estende para muito além desse momento. Quer utilizar o melhor possível esse desenvolvimento contínuo, e por isso sua interpretação muda à medida que a história vai se transformando.153

Dworkin assinala, com o exemplo de Hércules, que o juiz, ao

decidir uma lide, deve capturar a “força gravitacional” dos precedentes que atuam

nas decisões judiciais, que é sustentada pelos argumentos de princípios. Ainda,

que a decisão deve ser como uma “teia inconsútil”, ou seja, como uma trama que

Internacional de Direito Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro, organizado pela Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro, 2005. Resenha de CASTRO, Caterine Vasconcelos de. O papel dos juízes nas democracias constitucionais segundo Ronald Dworkin . Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado do Acre. N. 4. p. 195-200. 2004/2005. p. 199

152 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 233-234 153 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 416

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não apresenta emendas ou costuras, sem fendas e sem interromper o fio

argumentativo.

Hércules concluirá que sua doutrina da eqüidade oferece a única explicação adequada da prática do precedente em sua totalidade. Extrairá algumas outras conclusões sobre suas próprias responsabilidades quando da decisão de casos difíceis. A mais importante delas determina que ele deve limitar a força gravitacional das decisões anteriores à extensão dos argumentos de princípio necessários para justificar tais decisões.154

Como já foi dito anteriormente neste trabalho, Dworkin preza

pela coerência na interpretação jurídica, demonstrando por meio de Hércules de

que modo essa coerência é atingida. Este, ao julgar uma lide, deve construir um

esquema de princípios abstratos e concretos que possam fornecer uma

justificação coerente a todos os precedentes do direito costumeiro e, “na medida

em que estes devem ser justificados por princípios, também um esquema que

justifique as disposições constitucionais e legislativas.155”

Dworkin sustenta que, tanto na esfera jurisdicional quanto

legislativa, é necessária uma coerência de forma que não se trate os direitos

individuais de forma arbitrária, o mandamento de coerência inclui todos os

argumentos de princípios, dos quais uma comunidade política obtém a sua

legitimidade. “Em caso de qualquer tratamento arbitrário que violar um dos

princípios pleiteados por motivos legítimos, a própria legitimidade estará em

jogo.156” Os princípios oferecem os meios argumentativos para se construir o

argumento jurídico necessário para que este valha como normativamente

justificado.

Conforme Habermas:

Dworkin exige a construção de uma teoria do direito, não de uma teoria da justiça. A tarefa não consiste na construção filosófica de

154 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 177 155 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 182 156 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação.

Tradução de Cláudio Molz. São Paulo: Landy Editora, 2004. p. 408

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uma ordem social fundada em princípios da justiça, mas na procura de princípios e determinações de objetivos válidos, a partir dos quais seja possível justificar uma ordem jurídica concreta em seus elementos essenciais, de tal modo que nela se encaixem todas as decisões tomadas em casos singulares, como se fossem componentes coerentes.157

Hércules deve oferecer uma coerência de justificação

vertical e também horizontal. O coerência vertical vai ser expressa pelo respeito à

hierarquia das leis, pela autoridade, onde Hércules deve “organizar a justificação

de princípio em cada um desses níveis, de tal modo que a justificação seja

consistente com os princípios que fornecem a justificação dos níveis mais

elevados158.”

A coerência horizontal vai exigir de Hércules que decida de

forma a abarcar os juízos de valor, princípios e preceitos dogmáticos de uma

comunidade, construindo o argumento jurídico dentro de um contexto de

justificação abrangente de todos os direitos relevantes em uma comunidade159,

justificando a decisão em um nível em que deve ser consistente com a justificação

de outras decisões oferecidas neste mesmo nível.160

Portanto, para Dworkin não bastam apenas explicações a

respeito do rumo das decisões preferidas na comunidade, mas é necessária uma

justificação:

Qualquer conjunto de leis e decisões pode ser explicado histórica, psicológica ou sociologicamente, mas a consistência exige uma justificação, e não uma explicação, e a justificação deve ser plausível, e não postiça. Se a justificação que Hércules concebe estabelece distinções que são arbitrárias, e se vale de princípios

157 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e a validade. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. I. p. 263 158 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 183 159 GÜNTHER, etc. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. p.

410 160 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 183

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que não são convincentes, então ela não pode, de modo algum, contar como uma justificação.161

Hércules adota o Direito como integridade, vez que está

convencido de que este oferece tanto uma melhor adequação quanto uma melhor

justificativa da prática jurídica como um todo. Ressalte-se que a integridade é

exigida tanto na legislação, uma vez que os legisladores devem legislar de forma

a tornar o sistema jurídico o mais coerente possível, quanto no momento da

aplicação. Além disso, uma teoria como a do direito como integridade é capaz de

reduzir as incertezas e insegurança mediante a justificação de critérios

objetivos.162

O autor em estudo alerta que as respostas às várias

questões que Hércules lida em seus exemplos não supõem que estas definem o

direito como integridade como uma concepção geral do direito, são apenas as

respostas que lhe parecem as melhores. O direito como integridade consiste

numa abordagem, em perguntas mais do que em respostas, e outros julgadores

poderiam dar respostas diferentes das de Hércules às perguntas colocadas por

essa concepção do direito, mas rejeitar os pontos de vista distintos por considerá-

los pobres ou insuficientes enquanto interpretações construtivas da prática

jurídica não significa uma rejeição ao direito como integridade, mas sim que o

julgador ter-se-á unido a sua causa.163

O direito como integridade tem uma atitude mais complexa

com relação aos ramos do direito. Seu espírito geral os condena, pois o princípio

adjucativo de integridade pede que os juízes tornem a lei coerente como um todo,

até onde lhes seja possível fazê-lo, e isso poderia ser mais bem-sucedido se

ignorassem os limites acadêmicos e submetessem alguns segmentos do direito a

uma reforma radical, tornando-os mais compatíveis em princípio com os outros.

“Contudo, o direito como integridade é interpretativo, e a compartimentalização é

161 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 186 162 CALSAMIGLIA, Alberto. Apresentación. IN: DWORKIN, Ronald. Derechos en Serio . Texto

traduzido por Patrícia Sampaio. Barcelona: Ed. Ariel; 1984. p. 15 163 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 287

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uma característica da prática jurídica que nenhuma interpretação competente

pode ignorar.164”

Hércules responde a esses impulsos antagônicos

procurando uma interpretação construtiva da compartimentalização165, é um juiz

cuidadoso e criterioso, de forma metódica seleciona diversas hipóteses para

corresponderem à melhor interpretação dos casos precedentes, partirá de uma

análise completa e criteriosa da legislação, dos precedentes e da história

institucional como um movimento constante, assim como a leitura feita pela

própria sociedade dos princípios jurídicos que se aplicam à situação e as suas

convicções sobre os valores que circundam a situação, quando Hércules fixa

direitos jurídicos, “já levou em consideração as tradições morais da comunidade,

pelo menos do modo como estas são capturados no conjunto do registro

institucional que é sua função interpretar.166”

De acordo com Habermas:

O juiz Hércules dispõe de dois componentes de um saber ideal: ele conhece todos os princípios e objetivos válidos que são necessários para a justificação; ao mesmo tempo, ele tem uma visão completa sobre o tecido cerrado dos elementos do direito vigente que ele encontra diante de si, ligados através de fios argumentativos. Ambos os componentes traçam limites à construção da teoria. O espaço preenchido pela sobre-humana capacidade argumentativa de Hércules é definido, de um lado, pela possibilidade de variar a hieraquia dos princípios e objetivos e, de outro lado, pela necessidade de classificar criticamente a massa do direito positivo e de corrigir ‘erros’.167

Ao decidir um caso difícil, Hércules sabe que os outros

juízes decidiram casos que, apesar de não guardarem as mesmas características,

tratam de situações afins. Deve, então, considerar as decisões históricas como

164 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 301 165 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 301 166 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 196 167 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e a validade. p. 263

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parte de uma longa história que ele deve interpretar e continuar, de acordo com

suas opiniões sobre o melhor andamento a ser dado à trama em questão.

Hércules deve se posicionar, formar sua própria opinião

sobre o problema apresentado, assim como um romancista em cadeia deve

encontrar alguma maneira coerente de ver um personagem e um tema, “tal que

um autor hipotético com o mesmo ponto de vista pudesse ter escrito pelo menos a

parte principal do romance até o momento em que lhe foi entregue.168”

Mas existe um limite para o uso das convicções do juiz ao

decidir um caso, conforme demonstra Dworkin, Hércules não deve, em momento

algum, fazer nenhuma escolha entre suas próprias convicções políticas e aquelas

que ele considera como as convicções políticas do conjunto da comunidade. Ao

contrário,

sua teoria identifica uma concepção particular de moralidade comunitária como um fator decisivo para os problemas jurídicos; essa concepção sustenta que a moralidade comunitária é a moralidade política que as leis e as instituições da comunidade pressupõem. Ele deve, por certo, basear-se em seu próprio juízo para determinar que princípios de moralidade são estes, mas essa forma de apoio é a segunda daquelas que distinguimos, uma forma que é inevitável em algum nível. 169

Dworkin parte da decisão de casos difíceis para fazer uma

forte crítica ao positivismo, que, como vimos, sustenta que nos casos difíceis

onde não há uma norma aplicável, o juiz usa de seu poder discricionário para

“criar” um direito. Nosso autor ataca a teoria discricionária com a sua tese da

“resposta correta”.

Para Dworkin, mesmo quando não há uma norma concreta

para um caso, não significa que não haja um princípio aplicável. Todo o conjunto

utilizado por Hércules, como a normas, diretrizes políticas e morais, princípios e

168 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 288 169 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 197-198

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costumes de uma comunidade, são suficientes para que se encontre a resposta

correta.

Hércules encontra-se norteado por princípios que o auxiliam

na composição de uma teoria que explica e justifica a decisão como a única

correta. Desta forma, compreende-se o porquê do nome Hércules, dada a

grandeza do trabalho do juiz.

Mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma das

partes pode, mesmo assim, ter o direito de ganhar a causa. Ao juiz cabe descobrir

quais são os direitos das partes, que é preexistente à atividade jurídica. Quando

Dworkin trata de direitos jurídicos, este concebe que quando um sujeito tem um

direito, o juiz, ao decidir a controvérsia, toma a decisão favorável suportada pelo

direito afirmado.

A maneira que esta resposta correta será encontrada,

depende de um exaustivo e criterioso processo de análise e comparação dessas

fontes do direito como integridade, sem dúvida alguma, um trabalho de

dimensões hercúleas.

A interpretação dada por Hércules a um caso difícil será

sempre assentada sobre a moral, mesmo que a moral política; e a fonte da

moralidade no direito como integridade está nos princípios. Hércules, com sua

paciência sobre-humana, verifica cada hipótese jurídica que sua decisão acarreta,

qual delas seria a decisão que melhor oferecesse uma adequada justificação para

uma comunidade de princípios.

O direito como integridade pede que os juízes admitam, na medida do possível, que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a eqüidade e o devido processo legal adjetivo, e pede-lhes que os apliquem nos novos casos que se lhes apresentem, de tal modo que a situação de cada pessoa seja justa e eqüitativa segundo as mesmas normas. Esse estilo de deliberação judicial respeita a ambição que a

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integridade assume, a ambição de ser uma comunidade de princípios.170

Ao decidir um caso difícil, Hércules estaria, segundo o direito

como integridade, obrigatoriamente vinculado a um compromisso de oferecer uma

justificativa de acordo com a história legislativa, moral e política do contexto em

que tal caso se assenta, assim como, demonstrar que sua decisão foi baseada

em princípios e não em compromissos ou estratégias políticas.

Importa lembrar que os casos difíceis são aqueles que

apresentam-se para qualquer juiz quando sua análise preliminar não fizer

prevalecer uma entre duas ou mais opções de interpretação de uma lei, ele então

deve fazer uma análise construtiva das interpretações possíveis, perguntando-se

qual delas apresenta em sua melhor luz, do ponto de vista da moral política, a

estrutura das instituições e decisões da comunidade, suas normas públicas como

um todo. Sua decisão vai refletir não apenas suas opiniões sobre a justiça e a

eqüidade, mas suas convicções de ordem superior sobre a possibilidade de

acordo entre esses ideais quando competem entre si.

Dworkin desenvolve todos os exemplos de interpretação

judicicial baseado nos casos difíceis, e o justifica sustentando que Hércules não

precisa de método para os casos difíceis e outro para os fáceis, pois nos casos

fáceis as respostas às perguntas parecem óbvias, tanto que não se percebe se

há uma teoria interpretativa em operação.

Dworkin supera, com a análise criteriosa de Hércules sobre

os casos difíceis, a teoria da “vontade do legislador”, que assegura a validade da

aplicação de determinada norma jurídica na concepção positivista, se essa é

reconhecidamente a intenção inicial do legislador que formulou tal regra. A teoria

da intenção legislativa exige que “as leis devem ser interpretadas não de acordo

com o que os juízes acreditam que iria torná-las melhores mas de acordo com o

que pretendiam os legisladores que realmente a adotaram.171”

170 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 291 171 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 378.

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Nosso autor admite que na prática jurídica norte-americana

os juízes freqüentemente recorrem às múltiplas declarações feitas por membros

do Congresso e outros legisladores nos relatórios das comissões a respeito da

finalidade de uma lei. Tais declarações formam uma “história legislativa” a que os

juízes devem respeitar. Tal teoria:

supõe que a legislação é uma ocasião ou um exemplo de comunicação, e que os juízes se voltam para a história legislativa quando uma lei não é clara, para descobrir qual era o estado de espírito que os legisladores tentaram comunicar através de seus votos.172

Dworkin apregoa que é impossível saber qual foi a intenção

de um legislador ao votar uma lei há trezentos anos, e, mesmo se houvesse a

possibilidade de saber exatamente qual foi a intenção deste legislador ao

promulgar a lei, esta intenção seria incoerente com a situação contemporânea, e

conseqüentemente, com a interpretação construtiva da tese dworkiniana.

Hércules [...] entende a idéia do propósito ou da intenção de uma lei não como uma combinação dos propósitos ou intenções de legisladores particulares, mas como o resultado da integridade, de adotar uma atitude interpretativa com relação aos eventos políticos que incluem a aprovação da lei.173

Nosso autor sustenta que os métodos de Hércules oferecem

uma interpretação melhor da verdadeira prática judicial, ele entende a idéia do

propósito ou da intenção de uma lei não como uma combinação de intenções de

legisladores particulares, mas como o resultado da integridade, de adotar uma

atitude interpretativa com relação aos eventos políticos que incluem a aprovação

da lei. “Ele anota as declarações que os legisladores fizeram no processo de

aprová-la, mas trata-as como eventos políticos importantes em si próprios, não

como evidência de qualquer estado de espírito por detrás delas.174”

172 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 379. 173 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 380 174 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 380

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Hércules deve então encontrar uma justificativa que se

ajuste à lei que lhe pedem que aplique, que essa justificativa seja coerente com a

legislação em vigor. Assim, deve buscar uma combinação de políticas, princípios,

na busca do melhor exemplo para aquilo que os termos da lei claramente

requerem. Sua interpretação deve refletir não apenas suas convicções sobre

justiça, mas também seus ideais de integridade e eqüidade política, na medida

em que esses se aplicam à legislação vigente em uma democracia.175

Hércules interpreta a história em movimento, porque o relato que ele deve tornar tão bom quanto possível, é o relato inteiro através de sua decisão e para além dela. Não emenda leis antiquadas para adaptar-se a novos tempos, como sugeriria a metafísica da intenção do locutor. Reconhece em que se transformaram as velhas leis desde então.176

A teoria desenvolvida por Dworkin através de Hércules

reconcilia a história com a justiça, de forma que concilia “as decisões

racionalmente reconstruídas do passado com a pretensão à aceitabilidade

racional no presente.177”

Não pode o magistrado romper com o passado, porque a escolha entre os vários sentidos que o texto legal apresenta não pode ser remetida à intenção de ninguém in concreto, mas sim deve ser feita à luz de uma teoria política e com base no melhor princípio ou política que possa justificar tal prática.178

Dworkin discorre também sobre o modo como as leis

Constitucionais devem ser tratadas. Enfatiza que uma lei Constitucional é

diferente de uma lei comum, pois a Constituição é o fundamento para a

elaboração de outras leis. Aqui, Hércules usará de um método voltado às

questões constitucionais, considerando a convicção popular e a tradição nacional,

bem como a justificativa para a soberania nacional; utilizará deste quadro para dar

à decisão a sua melhor luz, respeitando os princípios do direito como integridade. 175 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 405 176 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 419 177 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e a validade. p. 265 178 PEDRON, Flávio Quinaud. Comentários sobre as interpretações de Alexy e Dwor kin. p. 74

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Hércules tem seu jeito de lidar com as leis. Interpreta cada uma delas de modo a, considerados os aspectos, fazer seu histórico chegar ao melhor resultado possível. Isso exige julgamentos políticos, mas estes são especiais e complexos e, de modo algum, iguais aos que faria se estivesse votando uma lei a respeito dos mesmos problemas. Suas convicções sobre a justiça ou a política sábia se vêem inibidas em seu julgamento interpretativo geral, não apenas pelo texto da lei, mas também por um grande número de considerações sobre a eqüidade e a integridade.179

Dworkin, ao buscar aplicar o ideal da integridade na

Constituição, a diferencia da legislação ordinária, considerando-a como uma lei

incomum, razão pela qual desenvolve uma aplicação diferenciada da estratégia

de princípios. Segundo Dworkin, a Constituição é o fundamento para a criação de

outras leis, e por esse motivo a interpretação dada por Hércules ao documento

como um todo, bem como às suas cláusulas abstratas, deve ser também

fundamental. Deve ajustar-se às disposições mais básicas do poder político da

comunidade e ser capaz de justificá-las, o que significa que deve ser uma

justificativa extraída dos aspectos mais filosóficos da teoria política. “Os juristas

são sempre filósofos, pois a doutrina faz parte da análise de cada jurista sobre a

natureza do direito, mesmo quando mecânica e de contornos pouco nítidos.180”

Hércules não é um historicista, tampouco tem o estilo aventureiro às vezes satirizado sob o epíteto de ‘direito natural’. Ele não acha que a Constituição é apenas o que de melhor produziria a teoria da justiça e da eqüidade abstratas à guisa de teoria ideal. É guiado, em vez disso, por um senso de integridade constitucional.181

Os argumentos de Hércules abrangem a convicção popular

e a tradição nacional sempre que estas forem pertinentes à questão da soberania:

qual interpretação da história constitucional apresenta essa história geral em sua

melhor luz. “Pela mesma razão, e com o mesmo objetivo, eles se baseiam em

179 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 453-454 180 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 454 181 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 474

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suas próprias convicções sobre justiça e eqüidade e na correta relação entre

elas.182”

Nosso autor comenta que a atividade judiciária sofre

limitações institucionais, como as impostas pela supremacia legislativa e a do

precedente estrito. Mesmo que Hércules esteja convencido de que estes padrões

institucionais possuam erros, este deve respeitar estes institutos, por ser este um

traço do direito como integridade.

Se Hércules houvesse decidido ignorar a supremacia legislativa e o precedente estrito sempre que a ignorância dessas doutrinas lhe permitisse aperfeiçoar a integridade do direito, considerada por si só, matéria relevante, então ele teria violado totalmente a integridade. Pois qualquer interpretação geral bem-sucedida de nossa prática legal deve reconhecer essas limitações institucionais.183

Calsamiglia sustenta que a teoria de Dworkin da atividade

judiciária evita vários problemas importantes, como a de que o juiz não se

constitua em legislador, “o que significa que o poder judiciário tem como função

garantir direitos preestabelecidos184”; ainda, que é compatível com o postulado da

separação dos poderes, posto que o juiz está subordinado à lei e ao direito.

Hércules, o autor do romance em cadeia, não é um “semi-

deus” qualquer, pois ele não pode ignorar a supremacia legislativa, nem a força

gravitacional dos precedentes, apesar de possuir muitos outras capacidades, tais

como, a capacidade de criar todo um sistema coerente em suas decisões do caso

concreto, sempre de acordo com os princípios explícitos e implícitos da

comunidade na qual ele atua. “Ele nunca será um tirano que impõe suas própria

vontade em suas decisões, pois sempre aplicará os direitos previamente

estabelecidos pela própria sociedade.185”

182 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 474 183 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 479 184 CALSAMIGLIA, Alberto. Apresentación. IN: DWORKIN, Ronald. Derechos en serio . p. 15 185 SOARES, Natália Lourenço. Uma relação entre o tipo ideal de legislação de jer emy

waldron e o juiz – modelo Hércules de Ronald Dworki n. p. 10-11

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Críticos como o juiz norte-americano John T. Noonan186.

acusam Dworkin de ser excessivamente abstrato na construção de seu modelo

teórico, sustentando que um juiz de verdade tem muito menos tempo do que até

um professor de direito, para construir suas decisões imitando Hércules.

Estes críticos sustentam que as prerrogativas de tempo e

paciência ilimitados que Hércules possue são irreais, um juiz real jamais disporia

de tais vantagens. Além disso, Dworkin teria elevado a coerência a uma exigência

infinita e a interpretação a uma temporalidade impossível que só pode ser

cumprida pelas capacidades super-humanas de Hércules.

Frank Michelman sugere que:

O que está faltando na concepção de direito de Ronald Dworkin como integridade (jurídica) [...] é diálogo. Hércules, o juiz mítico de

Dworkin, evita outras pessoas. Ele é também excessivamente

heróico. Suas construções narrativas são monólogos. Ele não conversa com ninguém, exceto através de livros. Ele não tem

encontros. Ele não se reúne com ninguém. Nada o estremece. Nenhum interlocutor viola o isolamento inevitável de sua experiência e perspectiva. Mas, depois de tudo, Hércules é só um

homem. Ele não é toda a comunidade. Nenhum homem ou mulher pode ser toda a comunidade.187

Porém Dworkin faz um alerta em “O Império do Direito” de

que é consciente de que a sua tese interpretativa e sua noção de integridade não

se aplicam de maneira perfeita, admite que não seria possível reunir em um único

e coerente sistema de princípios todas as normas e padrões exigidos pela

integridade política, legal e legislativa.188

Porém o compromisso com a integridade nos leva a

considerar isso como um defeito, onde temos Hércules e o ideal de integridade

como uma meta a ser alcançada de forma a evoluir a atividade jurisdicional.

186 NOONAM, John T. Hercules and the snail darter . in The New York Times, 25/maio de 1986 187 MICHELMAN, Frank, 1985. apud DUTRA,Delmar José Volpato. A teoria discursiva da

aplicação do direito: o modelo de habermas. Veritas. Porto Alegre. v. 51. n. 1. p. 18-41. Março, 2006. p. 21

188 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 261

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Dworkin admite que uma interpretação plena como a de

Hércules é humanamente impossível, nenhum juiz poderia impor nada que de

uma vez só pudesse abranger todo o direito de uma comunidade. Se um juiz real

decidisse imitar Hércules nos menores detalhes, tentando em cada caso defender

uma teoria do geral do direito, iria ver-se paralisado enquanto sua pauta de

causas se tornaria cada vez mais sobrecarregada.

É por isso que imaginamos um juiz hercúleo, dotado de talentos sobre-humanos e com tempo infinito a seu dispor. Um juiz verdadeiro, porém só pode imitar Hércules até certo ponto.189

Um juiz experiente terá um conhecimento suficiente do

terreno em que se move seu problema e decide a maioria dos casos de maneira

bem menos metódica, mas Hércules nos mostra a estrutura oculta de suas

sentenças, deixando-as abertas ao estudo e à crítica. Ele o faz como o que os

demais juízes fariam se tivessem toda uma carreira a dedicar a uma única

questão; precisam não de uma concepção do direito diferente da dele, mas de

algo que ele nunca precisou cultivar: eficiência e capacidade de administrar com

prudência.190

Stephen Guest argumenta que:

Hércules é um juiz ideal e então é inútil supor que ele realmente existe. Este ponto de vista é tão banal mas ainda é surpreendente como isso é criticado em Dworkin. [...] A idéia econômica de mercado perfeito é semelhantemente um ideal. Nós julgamos as imperfeições no mundo real pela referência daquele ideal sem sentir a necessidade de dizer que há mercados perfeitos no mundo real. Então porque deveríamos nos sentir incomodados que uma pessoa como Hércules não exista? 191

189 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 294 190 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 316 191 Hercules is an ideal judge and so it is pointless to suppose that he really exists. This point is so

banal but is surprising how common it is to criticise Dworkin on this ground. […] The economist’s idea of the perfect market is similarly such an ideal. We judge imperfections in the real world by reference to that ideal without feeling that there is any need to say that there are perfects markets in the real world. So why should we be bothered that no such person as Hercules exists? (tradução nossa) GUEST, Stephen. Ronald Dworkin . p. 39

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Para este autor, a dificuldade que os leitores têm com

Hércules é devido ao fato de que o seu esquema de argumento legal é mais bem

complexo do que, por exemplo, o fornecido pela regra de reconhecimento de Hart.

Dworkin nem poderia fornecer um esquema de premissas de interpretação

dedutiva simplesmente porque ele não pensa o Direito desta forma. Sua teoria

critica esse ponto de vista formalista e positivista por ser, em sua opinião, simples

demais.192

3.2 IGUALDADE, DIREITOS INDIVIDUAIS E A JUDICIALIZ AÇÃO DA

POLÍTICA

Podemos observar nas obras de Dworkin que a sua filosofia

está baseada nos direitos individuais, que triunfam frente ao direito da

comunidade, caso estes venham a interferir nos direitos do indivíduo. A

legitimidade de um objetivo social só é alcançada se respeitarem os direitos dos

indivíduos, como os de “igual consideração e respeito”.

Temos na democracia um fórum de princípios, onde “[...] a

justiça, no fim, é uma questão de direito individual, não, isoladamente, um

questão do bem público.193” O papel do sistema jurídico é garantir a proteção dos

direitos individuais contra agressões dos governos, sejam quais forem os

objetivos de suas ações. É apenas partindo dos direitos individuais que se

alcança a justiça e a equidade.

A teoria de Dworkin se baseia na melhor interpretação moral

das práticas sociais existentes. Sua teoria de justiça é a de que todo juízo de

política deve ter como base o princípio de que todas as pessoas são iguais, não

importando as condições e circunstâncias em que nasceram. 194

192 GUEST, Stephen. Ronald Dworkin . p. 39 193 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios . p. 39 194 GUEST, Stephen. Ronald Dworkin . Op. cit. p. 1

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O cerne da sua teoria liberal do direito consiste nos direitos

individuais, ou seja, direitos baseados em princípios e anteriores aos direitos

criados por um poder legislativo que podem ser interpostos contra o Estado, este

enquanto instituição criadora de direito.195

O cerne de uma pretensão de direito, mesmo na análise desmitologizada dos direitos que estou utilizando, é que um indivíduo tem direito à proteção contra a maioria, mesmo à custa do interesse geral. Sem dúvida, o conforto da maioria exigirá alguma adaptação por parte das minorias, mas apenas na medida necessária para a preservação da ordem.196

Nas palavras de Vera Karam de Chueiri, Dworkin trabalha

com uma racionalidade interna baseada na prática jurídica, de onde pode-se

extrair as questões de justiça presentes nas decisões judiciais, o que remete à

questão da eqüidade:

Nesta marcha, que parte da consideração dos direitos individuais como princípio político-jurídico fundamental, cuja defesa encontra-se na coerente argumentação jurídica, chegar-se-á à justificação de uma particular forma de liberalismo, que se assenta, sobretudo, numa ética de eqüidade.197

Para Dworkin, apenas os argumentos de princípio podem

desempenhar a tarefa de resolver de forma justa os casos judiciais,

principalmente os casos controversos, e são os princípios que atendem as

exigências da “Integridade”, que é o cerne da teoria Dworkiniana.

Uma vez que os argumentos de princípio estabelecem

direitos individuais e argumentos de orientação política estabelecem metas

coletivas, são os primeiros que devem servir de fundamentação para a decisão

jurídica. A competência primária do poder Judiciário é o de decidir controvérsias a

respeito do direito, o que só pode ser analisado partindo do ponto de vista do

195 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e modernidade : Dworkin e a possibilidade de

um discurso instituinte de direitos. Curitiba: J. M, 1995. p. 63 196 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 230 197 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e modernidade : Dworkin e a possibilidade de

um discurso instituinte de direitos. p. 65

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indivíduo envolvido na lide, o que implica numa prioridade dos direitos individuais

frente às metas coletivas.

Para Dworkin, os direitos fundamentais devem restringir a

soberania do povo a fim de se resguardar os direitos e liberdades individuais, pois

nem sempre uma lei pautada na vontade da maioria ou no bem estar social será

uma lei justa. Democracia não é a simples obediência à regra da maioria, mas sim

o respeito aos direitos individuais e o direito a igual consideração e respeito.198

O argumento dele contra a premissa majoritária baseia-se no respeito aos direitos individuais, que são relacionados com valores superiores à ordem jurídica, mas que são determinantes na sua aplicação. A concepção constitucional da democracia rejeita a tese de que o valor supremo da democracia encontra-se na vontade transitória da maioria dos cidadãos, ainda que plenamente informados e racionais em suas decisões.199

Os princípios jurídicos possuem um papel de destaque na

teoria de Dworkin, por meio dos quais o julgador deverá construir um raciocínio

jurídico interpretativo que confira aos direitos individuais relevância frente aos

direitos coletivos.

A atividade positivista discricionária não resguarda esse

papel central dos princípios, uma vez que ao se defrontar com um caso

controverso, abandona à irracionalidade e ao sentimento subjetivo do juiz a

solução da lide, deixando os direitos individuais desprotegidos e a mercê da

vontade pessoal do juiz.

Portanto, os princípios devem ser a base das decisões

proferidas pelos juízes, “na busca da racionalidade e da coerência nas decisões

judiciais e em nome da preservação dos direitos e garantias individuais

contemplados nas democracias contemporâneas.200”

198 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ron ald Dworkin .

Anais do XIV Congresso Nacional do CONPEDI. – Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. p.8 199 DWORKIN, Ronald. O papel dos juízes nas democracias constitucionais . p. 198 200 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ron ald Dworkin .

p. 12

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Para Dworkin, o Poder Judiciário exerce um papel de

guardião dos direitos fundamentais individuais e também um papel garantidor

desses direitos. Por isso, os fundamentos de sua teoria são construídos a partir

de uma visão interna da atividade judicial:

[...] tenta apreender a natureza argumentativa de nossa prática jurídica ao associar-se a essa prática e debruçar-se sobre as questões de acerto e verdade com as quais os participantes deparam.201

Dworkin nega que o Poder Judiciário exerça um papel

passivo, de apenas oferecer uma resposta a um caso quando for invocado. Para

ele, o Poder Judiciário possui um papel estratégico com poder de afirmar e

proteger os princípios democráticos ao lidar com uma série de questões que

envolvem aspectos centrais de uma democracia nacional.

Ao questionar-se a invasão da atividade judiciária no terreno

da atividade legislativa e, conseqüentemente, a invasão aos princípios de divisão

dos poderes e reflexos democráticos, Dworkin sustenta que:

[...] os juízes desempenham atividade substancialmente diversa à atividade desenvolvida pelos membros do Poder Legislativo, uma vez que estes foram eleitos para concretizar políticas públicas ditadas pela comunidade; pautam as suas atividades por princípios de política. Os juízes, ao contrário, são guiados, mesmo nos casos difíceis, por argumentos de princípios, não de política.202

Sem dúvida alguma a democracia está nas mãos do povo e

o reflexo desse poder são os legisladores eleitos pela maioria por meio do voto.

Mas Dworkin sustenta que em muitos momentos os legisladores estão sujeitos a

pressões políticas a que os juízes não estão. Os magistrados não dependem de

apoio político para manutenção de seu dever e, portanto, podem decidir sem

temor de uma insatisfação popular.

201 DWORKIN, Ronald. O império do direito . p. 19 202 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ron ald Dworkin .

p. 13

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Ainda que numa democracia o poder esteja nas mãos do

povo, o caráter igualitário desse poder apresenta muitas falhas, nenhuma

democracia proporciona a igualdade genuína do poder político.203 Para corrigir

essas falhas, verifica-se a transferência das atribuições institucionais do Poder

Legislativo ao Poder Judiciário, “conferindo-se, assim, poder político a alguns

indivíduos outrora excluídos desse processo.204”

Os indivíduos ganham com essa transferência de atribuição

institucional, pois:

Eles têm o direito de exigir, como indivíduos, um julgamento específico acerca de seus direitos. Se seus direitos forem reconhecidos por um tribunal, esses direitos serão exercidos, a despeito do fato de nenhum Parlamento ter tido tempo ou vontade de impô-los. 205

Assim, o aumento da capacidade de acesso ao Poder

Judiciário aumenta a possibilidade de indivíduos ou grupos minoritários de verem

seus direitos atendidos ou preservados, pois parte-se do pressuposto de que as

liberdades individuais são constantemente desrespeitadas pela vontade da

maioria.

Assim, observa-se uma especial forma de resolver ou

esclarecer conflitos políticos na esfera judicial, chamado de judicialização da

política206. O fundamento desse processo de judicialização da política “reside no

próprio modelo de Constituição concebido por Dworkin – Constituição como

203 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios . p. 31 204 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ron ald Dworkin .

p. 14 205 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios . p. 31 206 Conforme Verbicaro, essa terminologia não é usada de maneira expressa por Dworkin. O autor

fala em “transferência de questões políticas ao Poder Judiciário; ou transferência de questões do campo da batalha política de poder para o fórum do princípio, o que nada mais é, em essência, do que o fenômeno da judicialização da política.” VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ronald Dworkin . p. 15

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integridade -, que garante a indisponibilidade dos direitos e das liberdades

fundamentais.207”

O Juiz é o intérprete da justiça na prática social, responsável

pela evolução do direito e a sua atividade deve favorecer a agenda igualitária,

sem prejuízo da liberdade e dos direitos individuais.

Em nome da integridade, autoriza-se o instituto da “revisão

judicial”, que autoriza os tribunais a declarar inconstitucionais os processos

políticos que contenham normas que atentam contra os princípios contemplados

na Constituição.

A revisão judicial assegura que as questões mais fundamentais de moralidade política serão finalmente expostas e debatidas como questões de princípio e não apenas de poder político, uma transformação que não pode ter êxito [...] no âmbito da própria legislatura.208

Esse instituto não afronta os ideais democráticos, mesmo

quando atua contra processos majoritários de formação de vontade política, pois

a sua função é garantir o respeito aos direitos garantidos constitucionalmente, a

defesa dos direitos fundamentais do indivíduo. “As cortes passam a

desempenhar, dessa maneira, um papel destaque à construção de uma

democracia que esteja em consonância com a preservação e respeito aos direitos

individuais.209”

Vianna (et al.) critica essa visão dworkiniana sustentando

que fazer com que a efetividade dos direitos sociais seja subsumida ao campo

judicial:

[...] conduziria a uma cidadania passiva de clientes, em nada propícia a uma cultura cívica e às instituições da democracia [...]. A igualdade somente daria bons frutos quando acompanhada por

207 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ron ald Dworkin .

p. 15 208 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios . p. 102 209 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ron ald Dworkin .

p. 16

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uma cidadania ativa, cujas práticas levassem ao contínuo aperfeiçoamento dos procedimentos democráticos, pelos quais o direito deve zelar, abrindo a todos a possibilidade de intervenção no processo de formação majoritária.210

O crítico ressalta que tal visão do Poder Judiciário é

paternalista, além de arriscada ao confiar ao Judiciário a efetividade da cidadania,

caracterizando-o como portador de uma “justiça de salvação”. Porém,

controvérsias a parte, reconhece que o Poder Judiciário possui posição

estratégica nas democracias, não estando limitado apenas à função meramente

declarativa do direito.

Porém, Verbicaro frisa que:

A efetividade dos direitos individuais e sociais dos cidadãos nas democracias contemporâneas exige uma participação cada vez mais ativa do Judiciário, não cabendo a ele ser deferente à política [...] nos casos que envolvam objetivos coletivos da comunidade, mas, ao contrário, ser um poder estratégico capaz de garantir a respeitabilidade a toda amplitude de direitos dos cidadãos – Judiciário como guardião dos princípios e valores fundamentais da democracia e como importante instrumento de transformação social do país. 211

Importa ressaltar que essa atuação do Judiciário no campo

político requer que a atividade jurisdicional seja calcada apenas em princípios, e

não em fundamentos políticos. A aplicação metodológica dessa atividade é

aquela fornecida pelo direito como integridade, que Dworkin incansavelmente

expõe através de suas alegorias e, também, exemplos práticos da história jurídica

inglesa e americana.

210 VIANNA, Luiz Werneck (et al). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.

Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 23 211 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ron ald Dworkin .

p. 19

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3.3 A ATIVIDADE JUDICIÁRIA ALÉM DA POLÍTICA

Enfim, chega-se ao último questionamento levantado na

parte inicial deste trabalho, a respeito de se os juízes exercem ou não um papel

político na comunidade em que atuam.

No segundo capítulo deste trabalho foi exposto que Dworkin,

ao se referir ao termo “política” está se referindo àquele tipo de padrão que

estabelece um objetivo a ser alcançado, que em geral está ligado a alguma

melhoria econômica, política ou social da comunidade.

O autor sustenta que, naturalmente, as decisões que os

juízes tomam “devem” ser políticas em algum sentido212, porém isso não significa

que as decisões judiciais devem ser guiadas por políticas, ou o que o juiz deve

exercer um papel efetivamente político na comunidade.

Dworkin diferencia dois tipos de argumentos políticos dos

quais os juízes podem se fazer valer numa decisão: argumentos de princípios

políticos quer visa proteger e garantir os direitos políticos individuais dos

cidadãos; e o argumento de procedimento político, “que exigem que uma decisão

particular promova alguma concepção do bem-estar geral ou do interesse

público.213”

Para este autor, a visão correta é a de que os juízes devem basear

seus julgamentos de casos controvertidos em princípios políticos individuais e não

em estratégias políticas. Como foi visto, Dworkin dá suma importância aos direitos

individuais frente aos direitos coletivos, o papel do sistema jurídico é garantir a

proteção dos direito individuais contra agressões dos governos, sejam quais

forem os objetivos de suas ações.

O governo não irá restabelecer o respeito pelo direito se não conferir à lei alguma possibilidade de ser respeitada. Não será capaz de fazê-lo se negligenciar a única característica que distingue o direito da brutalidade organizada. Se o governo não

212 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios . p. 3 213 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios . p. 6

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levar os direitos a sério, é evidente que também não levará a lei a sério.214

Além disso, a democracia exige que os juízes apliquem a

legislação de forma coerente com o princípio da integridade de forma a proteger

os direitos individuais e não que devam tomar decisões independentes baseados

em estratégias políticas.

Conforme Calsamiglia, de um modo ou de outro “conceder

poder político ao juiz supõe trair o sistema de legitimação do estado democrático

e também supõe a aceitação de leis retroativas.215”

Para este autor, a linha de análise de Dworkin sugere a

negação do poder político do juiz sem reduzir sua atividade a uma mera operação

mecânica, “em seu modelo o juiz é garantidor do direito e não criador deles.216”

Portanto, o poder judiciário não quebra a legitimação da democracia, está

subordinado a princípios superiores, e para os que acreditam no equilíbrio destes

poderes e na superioridade dos princípios legais, constitucionais ou mesmo

morais, o modelo de Dworkin da função judicial será atrativo.

Dworkin, em seus trabalhos, ressalta a importância da

decisão judicial, pois ela é fundamental para a construção do direito de uma

comunidade, é um fator até decisivo nos rumos que o direito de uma comunidade

vai seguir. De acordo com sua teoria, os cidadãos têm o direito a que todas as

decisões judiciais estejam baseadas em princípios aplicados de maneira

consistente, condenando, portanto, as sentenças fundadas em decisões

caprichosas.

Assim como condena as decisões com razões políticas e

utilitaristas, rejeitando a idéia de bem comum em detrimento dos direitos

individuais dos membros que integram a comunidade, ou as interpretações

convencionalistas que considera a melhor interpretação a de que os juízes

214 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 314 215 CALSAMIGLIA, Alberto. Apresentación. IN: DWORKIN, Ronald. Derechos en serio . p. 16 216 CALSAMIGLIA, Alberto. Apresentación. IN: DWORKIN, Ronald. Derechos en serio . p. 16

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descobrem e aplicam o direito, ou ainda o pragmatimo que atribui ao juiz um

papel de arquiteto de um futuro melhor e livre das exigências coibidoras.

Nosso autor defende o direito como integridade, que

compreende a doutrina e a jurisdição, faz com que o conteúdo do direito não

dependa de “convenções especiais ou cruzadas independentes, mas de

interpretações mais refinadas e concretas da mesma prática jurídica que começou

a interpretar.217”

O objetivo da presente investigação foi o de analisar a

concepção de Dworkin quanto ao papel exercido pela atividade judiciária e

compreender melhor porque é importante o modo como os juízes decidem as

causas, como isso pode influenciar não só sobre o direito das partes mas em toda

a história legal da comunidade e na formação de seu direito. Há uma dimensão

moral envolvida em cada decisão judicial e por conseqüência um risco de se

cometer uma injustiça pública. Os danos de uma decisão injusta afetam não só a

vida de um membro na comunidade, mas toda a concepção de justiça que essa

mesma comunidade deve absorver.

Portanto, nosso autor defende que é de crucial importância

que a atividade judiciária esteja norteada por princípios como (e principalmente) a

integridade, que vai possibilitar uma adequação esclarecedora das práticas

jurídicas de uma comunidade.

As obras de Dworkin são fontes inesgotáveis de referências

para discussões acadêmicas, com inúmeras abordagens que são substanciais em

nosso âmbito jurídico, na qual a busca de apenas um referente é insuficiente para

demonstrar todo o aparato filosófico que Dworkin nos fornece em sua obra.

Embora haja muitos detratores das idéias de Dworkin, é

inegável que sua teoria despertou discussões que vão além dos limites que seus

críticos desejariam. Dworkin é um fenômeno e independente da aprovação de sua

teoria pelos pensadores jurídicos contemporâneos, merece toda a produção

literária a seu respeito. 217 DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 489

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente monografia teve como objeto o estudo do papel

do Poder Judiciário na construção do direito na teoria de Ronald Dworkin, como

requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito na Universidade do

Vale do Itajaí – UNIVALI.

A pesquisa teve como objeto a análise do pensamento de

Ronald Dworkin para determinar como este autor concebe o Poder Judiciário e

sua função social nos sistemas jurídicos das sociedades contemporâneas, assim

como sua visão a respeito da atividade do julgador e dos limites valorativos que

se aplicam à atividade exercida pelos juízes, bem como no sentido que a

instituição judiciária adquire ao exercer suas atividades e o seu papel social na

construção do Direito.

Assim, o presente trabalho dividiu-se em três capítulos:

teoria do direito em Dworkin; o processo interpretativo; e finalmente, o papel do

Poder Judiciário na construção do direito, temas estes devidamente pesquisados

nas doutrinas jurisfilosóficas de Ronald Dworkin e também de seus críticos e

comentadores.

Com o estudo realizado foi possível compreender o

posicionamento de Dworkin a respeito do papel do Poder Judiciário, que na

concepção deste, exerce um papel ativo e estratégico na proteção dos princípios

democráticos, atuando como guardião dos direitos fundamentais individuais e

garantidor desses direitos.

No que tange à previsibilidade judicial, foi possível, através

de exemplos como o do romance em cadeia, compreender a interpretação

construtiva de Dworkin e a forma como este preza pela coerência nas decisões

judiciais, proporcionando medidas capazes de se atingir uma adequação do

Direito às transformações sociais sem que, com isso, haja um sacrifício absoluto

do valor de previsibilidade das decisões judiciais.

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Foi possível compreender porque a decisão judicial é tão

importante e como isso pode influenciar não só sobre o direito das partes mas em

toda a história legal da comunidade e na formação de seu direito.

Avaliou-se como o autor compreende os limites postos pelo

sistema jurídico ao uso de juízos valorativos individuais do julgador, que em

momento algum deve fazer uma escolha entre suas próprias convicções e

aquelas que ele considera como as convicções da comunidade. A moralidade

política comunitária deve prevalecer, de forma a se tomar a decisão que melhor

corresponde ao ideal de integridade.

Por fim, e com base em todo o estudo realizado, retornam-

se as hipóteses levantadas para a presente pesquisa:

A primeira hipótese restou confirmada, para Dworkin, o Juiz

e a atividade jurisdicional são fundamentais na construção do direito, onde o

Poder Judiciário possui um papel estratégico com poder de afirmar e proteger os

princípios que orientam a comunidade de direitos.

Também a segunda hipótese restou confirmada, conforme o

autor em tela, o Poder Judiciário exerce um papel ativo, em condição estratégica

de afirmar e proteger os princípios democráticos de uma comunidade, estando

seu limite de atuação condicionado à integridade que rege a atividade do juiz na

teoria de Dworkin.

E quanto à terceira hipótese, restou confirmada que a

previsibilidade e segurança jurídicas residem no fato de que cada decisão deverá

estar revestida de integridade, o princípio mais invocado em sua teoria, que

obriga a atividade judiciária a obedecer uma vinculação com os princípios, a

história legislativa e com o contexto em que está inserido, oferecendo uma

justificação de princípios em todas as decisões preferidas.

E por último, confirma-se a hipótese de que para Dworkin, o

Juiz não possui um papel político, mas sustenta que sua atividade está além da

política.

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O método utilizado na fase de investigação foi o indutivo e

na fase do Relatório da Pesquisa também foi à base indutiva.

Foram acionadas as técnicas do referente, da categoria, dos

conceitos operacionais, da pesquisa bibliográfica e do fichamento.

Finalmente observa-se que não houve a intenção por parte

da pesquisadora de esgotar o assunto, mas apresentar alguns elementos para a

discussão.

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