o ofício de etnólogo ou como ter anthropological blues, roberto damata

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o Ofício de Etnólogo, ou como Ter"Anthropological Blues" *

ROBERTO DA MATA

This g/ory. the sweetest, the true..or rather the only true glory. awaitsyou. encompasses you already; youwÜ/ know al/ its bril/iance on thatday 01 triumph and ioy on which.returning to your country. we/comedamid our delight. you will arrive inour walls. loaded with the niost pre.cious apoils. and bearers 01 happytidings 01 our brothers scattered inthe uttermost confines 01 the Universe.

Degérando..

Introdução

Em EtnoIogia, como nos "ritos de passagem", existem trêsfases (ou pJanos) fundamentais quando se trata de discorrer sobre

. Trablllho apresentado na Universidade de Brasfiia, junto ao Departa-mento de Ciências Sociais. no Simpósio sobre Trabalho-de-Oampo, alirealizado. Expresso meus agradecimentos aos Profs. Roberto Cardoso deOliveira e Kenneth Taylor. que na época eram, rc;spectivamente, Chefedo Departamento de Ciências Sociais"" Coordenadot' do Curso de..Mes-trado de Antropologia Social, pelo convite. Posterionnente, o texto foipublicado no Museu Nacional como Comunicação n.O I, Setembro, 1974,em edição mimeografada. Desejo agradecer a Gilberto Velho, Luiz deCastro Faria e Anthony Seeger pelas sugestões e encorajamento, quandoda preparação das duas versões deste trabalho... loseph-Marie Degérando. The Observation 01 Savage Peop/es (1800).traduzido. do francês por F.C.T. Moore, Berkeley e Los Angeles: Uni-versity Of Califomia Press. 1969.

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24 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

as etapas de uma pesquisa, vista pelo prisma do seu cotidiano. Aprimeira, é aquela caracterizada pelo uso e até abuso da cabeça,quando ainda não temos nenhum contato com os seres humanosque, vivendo em grupos, constituem-se nos nossos objetos de tra.balho. ~ a fase ou plano que denomino de teórico-intelectual, mar-cada pelo divórcio entre o futuro pesquisador e a tribo, a classesocial, o mito, o grupo, a categoria cognitiva, o ritual, o bairro, osistema de relações sociais e de parentesco, o modo de produção, osistema político e todos os outros dominios, em sua lista infindá-vel, que certamente fazem parte daquilo que se busca ver, enca-rar, enxergar, perceber, estudar, classificar, interpretar, explicar,etc. .. Mas esse divórcio - e é bom que se diga isso claramente- não diz respeito somente à ignorância do estudante. Ao contrá.rio, ele fala precisamente de um excesso de conhecimento, mas deum conhecer que é teórico, universal e mediatizado não pelo con-creto e sobretudo pelo específico, mas pelo abstrato e pelo nãovivenciado. Pelos livros, ensaios e artigos: pelos outros.

Na fase teórico-intelectual, as aldeias são diagramas, os ma.trimônios ,se resolvem em desenhos geométricos perfeitamente si.métricos e' equilibrados, a patrolJ4lgem e a clientela política apa.recem em regras ordenadas, a' própria espoliação passa a seguirleis' ~ os índiOs são de papel. Nunca ou muito raramente sepensa em coisas específicas; que dizem respeito à minha experiên.cia, quando o conhecimeJ;1toé permeabilizado por cheiros, cores,dores é amores. Perdas, ansiedades e medos, todos esses intrusosque os livros, sob,.,tudo os famigerados "manuais" das CiênciasSociais teimam por ignorar. "

Uma segunda fase, que vem depois dessa que acabo de apre-sentar, pode ser denominada de período prático. Ela diz respeito;essencialmente,_a nossa antevéspera de p~squisa. De fato, trata.sedaquela semana que tooos cuja pesquisa implicou uma mudançadrástica experimentaram, quando a nossa preocupação muda subi-tamente das teorias mais universais para os problemas maisbanalmente concretos. A pergunta, então, não é mais se o grupo Xtem ou não linhagens segmentadas, à moda dos Nuer, Tallensi ouTiv, ou se a tribo Y tem corridas de tora e metades cerimoniais,como os Krahó ou Apinayé, mas de planejar a quantidade de arroze remédios que deverei levar para o campo comigo.

Observo que a oscilação do pêndulo da existência para taisquestões - onde vou dormir, comer, viver - não é nada agra.dável. Especialmente quando o nosso treinamento tende a ser ex.cessivamente verbal e teórico, ou quando somos socializados numacultura que nos ensina sistemll'\camente o conformismo, esse filho

A VERSÃo QUALJTA11VA 25

(

da autoridade com a generalidade,a lei e a regra. No plono prá-tico, portanto, já não se trata de citar a experiência. de algum he-rói-civilizador da disciplina, mas de colocar o problema fundamen-tal na Antropologia, qual seja: o da especificidade e relatividade desua própria experiência. .

A fase final, a terceira, é a que. chamo de pessoal ou emten.cial. Aqui, não temos mais divisões nítidas entre as etapas danossa formação científica ou acadêmica, mas por uma espécie deprolongamento de tudo isso, uma certa visão de conjunto que cer-tamente deve coroar todo o nosso esforço e trabalho. Deste modo,enquanto o plano teórico-intelectual é medido pela competênciaacadêmica e o plano prático pela perturbação de uma realidade quevai se tornando cada vez mais imediata, o plano existencial dapesquisa em Etnologia fala mais das lições que devo extrair dómeu próprio caso. ~ por causa disso que eu a considero como. es-sencialmente globalizadora e integradora: ela deve sintetizar a bio-grafia com a teoria, e a prática do mundo com a do ofício.

Nesta etapa ou, antes, nesta dimensão da pesquisa, eu não meencontro mais dialogando com índios de papel, ou com diagramassimétricos, mas com pessol!S.Encontro-me numa aldeia concreta:-calorenta e distante de tudo que conheci. Acb.o-me fazendo' face alamparmas e doença. Vejo-me diante de gente .de carne 8 osso.Gente boa e antipática, gente llabida e estúpida, gente feia e boníta.Estou, assim, submerSo nUD;1mundo que se situava, e depois da pes-quisa volta a se situar, entre a realidade e o livro.

~ vivenciando esta fase que me dou conta (e não sem susto)que estou entre dois fogos: a ~ha cultura e uma outra, o meumundo e um outro. De fato, tendo me preparado e me colocadocomo tradutor de um outro sistema para a miriba própria lingua.gem, eis que te~o que inici~ minha tarefà. E então verifico" inti.mamente satisfeito, que o meu ofício - voltado para o' estudo,'doshomens - é análogo à própria caminhada das sociedades hllmenas:sempre na tênue linha divisória que' separa os Rnimms na detemii.nação da natureza e os deuses que, dizem os crentes, forjam o seupróprio destino. . . " ,,:),

Neste trabalho, procuro desenvolver esta última dimensão;.da,pesquisa em Etnologia. Fase que, para mim e talvez para outros,foi tão importante. . .

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I

Durante anos, a Antropologia Social esteve preocupada emestabelecer com precisão cada vez maior suas rotinas de pesquisa

26 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

ou. como é também chamado o exercício do ofício na sua práticamais imediata, do trabalho de campo. Nos cursos de Antropologiaos professores mencionavam sempre a necessidade absoluta da co-leta de um bom material, isto é, dados etnográficos que permitis.sem um diálogo mais intenso e mais profícuo com as teorias c0-nhecidas,. pois daí, certamente, nasceriam novas teorias - segundoa velha e, porque não diZer, batida dialética do Prof. RobertMerton.

Desse esforço nasceram alguns livros - na América e foradela -- ensinando a realizar melhor' tais rotinas. Os dois mais fa.mosos são o notório No'es and Queries in An'hropoloB)'. produzidopelos ingleses e, diga.se de passagem, britanicamente. produzido

. com zelo missionário, colonial e vitoriano, e o não menos famosoGuio de Investigação de Dados Cul'urais, livro inspirado pelo Hu.man Relations Area Files, sob a égide dos estudos "cross-culturais"do Prof. George Peter Murdock.

São suas peças impressionantes, como são impressionantes asmonografias dos etnólogos, livros que atualizam de modo corretoe impecável essas rotinas de "como comecei fazendo um mapa daaldeia, colhe~do duramente as genealogias dos nativos, assistindoaos ritos funerários, procurando delimitar o tamanho de cadaroça" e "terminei descobrindo um sistema de parentesco do tipoCnJw.Omaha, etc... ". Na realidade, livros que ensinam a fazerpesquisa são velhos na nossa disciplina, e pode-se mesmo dizer -sem medo de incorrer em exagero - que eles nasceram com a sua~dação, já' que foi Henry Morgan, ele próprio, o primeiro a des-cobrir. B. utilidade de tais rotinas, quando preparou uma série deqUestionários de campo que foram enviados aos distantes missioná-rios e. 'agentes diplomáticos norte-americanos para escrever o seusupercláSsico Sys'ems 01 Consanguini&y anil Alfinity 01 the HumonFamily. (1871)1. Tal tradição é obviamente necessária e não émeu propósito aqui tentar denegri-Ia. Não sou D. Quixote e reco-nheço .muito bem os frutos que dela nasceram e poderão aindanascer..E mesmo se estivesse contra ela, o máximo qUe o bomsenso me permitiria acrescentar é que essas rotinas são como ummal, necessário.

.! . Desejo, porém, neste trabalho. trazer à luz todo um "out~lado" desta mesma tradição oficial e explicitamente reconhecidapelos antropólogos, qual seja: os aspectos que aparecem nas ane.dotas e nas reuniões de antropologia, nos coquetéis e nos momen-

1 Republicado em 1970, Anthropologiçal Publications: Oosterhout N.B.:..:..:Holanda. Veja-se, em relação ao que foi mencionado acima, pp. viii eix' do Prefácio e o Apêndice'à Parte IlI, 'pp.' SlS e 55.

A VERSÃO QUALITATIVA 27

','o.

tos menos formais. Nas cstórias que elaboram de modo tragicômicoum mal-entendido entre o pesquisador e o seu melhor informante,de como foi duro chegar até a aldeia, das diarréias, das dificulda.des de conseguir comida e - muito mais importante - de comofoi difícil comer naquela aldeia do Brasil Central.

Esses são os chamados aspectos "românticos" da disciplina,quando o pesquisador se vê obrigado a atuar como médico, cozi.nheiro, contador de histórias. mediador entre Índios e funcioná-rios da FUNAI, viajante solitário e até palhaço, lançl;lndo mãodestes vários e insuspeitados papéis para poder bem realizar asrotinas que infalivelmente aprendeu na escola graduada. ~ curiosoe significativo que tais aspectos sejam cunbados de "anedóticos"e, como já disse, de "românticos", desde que se está consciente- e não é preciso ser filósofo para tanto - que a AntropologiaSocial é uma disciplina da comutação e da mediação. E com issoquero simplesmente dizer que talvez mais do que qualquer outramatéria devotada ao estudo do Homem, a Antropologia é aquelaonde necessariamente se estabelece uma ponte entre dois universos(ou subuniversos) de significação, e tal ponte ou mediação é reali.zada com um mínimo de aparato institucional ou de instrumen-tos de mediação. Vale dizer, de modo artesanal e paciente, depen-dendo essencialmente de humores, temperamentos, fobias e todosos outros ingredientes das pessoas e do contato humano.. . Se é possível e permitido uma interpretação, não há dúvida

de que todo o anedotário referente às pesquisas de campo é ummodo muito pouco imaginativo de depositar num lado obscuro dooficio os seus pontos talvez mais importantes e mais significativos.~ uma maneira e - quem sabe? - um modo muito envergonhadode não assumir o lado humano e fenomenológico da disciplina, comum temor infantil de revelar o quanto vai de subjetivo nas pesqui.sas de campo, temor esse que é tanto maior quanto mais voltadoestá o etnólogo para uma idealização do rigor nas disciplinas s0-ciais. Numa palavra, é um modo de não assumir o ofício de etnó-logo. integralmente, é o medo de sentir o que a Dra. Jean CarterLave denominou, com rara felicidade, numa carta do campo, oanthropological blues.

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Por omhropological blues se quer cobrir e descobrir, de um~ocJo mais sistemático, os aspectos interpreta tivos do ofício de etnÓologo. Trata.se de incorporar no campo mesmo das rotinas oficiais,já legitimadas como parte do treinamento do antropólogo, aqueles

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.1~:

aspectoS extraordinários, sempre prontos a emergir em todo o rela.cionamento humano. De fato, só se tem Antropolop Social'qwm..do se tem de algum modo o exótico, e o exótico depende int'ár,iavel-mente da distância social, e a distância social tem como compOnen-te a marginalidade (relativa ou absoluta), e a marginalidade se ali~menta de um sentimento de segregação e a segregaçãó' .unpUcaestar só e tudo desemboca - para comutar rapidamente essa-longacadeia - na liminaridade e no estranhamento.

De tal modo que vestir a capa de etnólogo é aprender a 'reali-zar uma dupla tarefa que pode ser grosseiramente ~ontida nas se-guintes fórmulas: (a) transformar o exótico no familiar o(ou (b)transformar o familiar em exótico. E, em ambos os casOs,é' neces-sária a presença dos dois termos (q~e representam dois universoilde significação) e, mais basicamente,' wiui vivência dos dóiS domí-nios por um mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá.lo~; Numa'certa perspectiva, essas duas transforl,Daçõesparecem se~' ~e per-to os momentos críticos da história da própria disciplina- ASSiDiéque a primeira transformação - do exóti~ em familiar -.-:.corres:.ponde ao movimento original da Antropoiogia quando os e~~logosconjugaram o seu esforço na busca delibe~ada dos enigm~ ~iaíSsituados em universos de significaçãosabidamente incQ~~~ncji-dos pelos meios sociaiS do seu tempo. E foi assim.que ~ redpZlu.:etransformou- para citar apenas um caso elássico-9 k.u.({arinSdos melanésios num sistema. compreensível de trocas, 8UJnentadaspor práticas rituais, políticas, jurídicas, econômicas e . religiosas,descoberta que veio, entre outras, permitir a criação, por MareeIMauss, da noção basilar de fato social total, desenvolvida, logo,.apóias pesquisas de B. Malinowsk.i."2 . . .. :

A segunda transformação parece. corresponder ao momentopresente, quando a disciplina se volta para a nossa própria.socieda-de, num movimento semelhante a um' auto-exorcismo, Pois já nãose trata maiS de depositar no selvagem africano ou melalÍésico' omundo de práticas primitivas que se deseja objetificar e inventariar,mas de descobri-Ias em nós, nas nossas instituições, na nossa práti-ca política e religiosa. O problema é, então, o de tirar. à 'capa' demembro de uma classe e de um grupo social especüico para poder- como etnólogo - estranhar alguma regra social familiar e as-sim descobrir (ou recolocar, como fazem as crianças quando per-

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II

12 Permito-me lembrar ao leitor que Malinowski publicou o se';;, Argc:in,-auts 01 the Western Pacijic em 1922 e que a primeira ediçio (ranccsa..doEssai sur le Don 6 de 1925. . ; :::~.

A VERSÃO QUALITATIVA 29

guntam OS"porquês") o exótico no que está petrüicado dentro denÓSpela reHicação e pelos mecanismos de legitimação.a

Essas duas transformações fundamentais do ofício de etnólogoparecem guardar entre si uma estreita relação de homologia. 'Comoo desenrolar de uma sonata,. onde um tema é apresentado clara-mente no seu início, desenvolvido rebuscadamente no seu curso e,finalmente, retomado no seu epílogo. No caso das transformaçõesantropológicas, os movimentos sempre conduzem a um encontro.Deste modo, a primeira transformação leva ao encontro daquilo quea cultura do pesquisador reveste inicialmente no envelope do bi-zarro, de tal maneira que a viagem do etnólogo é como a viagem doherói clássico, partida em três momentos distintos e interdependen.tes: a saída de sua sociedade, o encontro com o outro nos confinsdo seu mundo social e, finalmente, o "retorno triunfal" (comocoloca Degérando) ao seu próprio grupo com os seus troféus. Defato, o etnólogo é, na maíoria dos casos, o último agente da socie-dade colonial já que após a rapina dos bens, da força de trabalho eda terra segue o pesquisador para completar o inventário caniba-lístico: ele, portanto, busca as regras, os valores, as idéias - numapalavra, os imponderáveis da vida social que foi colonizada.

Na segunda transformação, a viagem é como a do xamã: ummovimento drástico onde, paradoxalmente, não se sai do lugar. E,de fato, as viagens xamanisticas são viagens verticais (para dentro.ou para cima) muito mais do que horizontais, como aeontece naviagem clássica dos heróis homéricos.~ E não é por outra razãoque todos aqueles que realizam tais viagens para dentro e para cimasão xamãs, curadores, profetas, santos e loucos; ou seja, os que dealgum modu se dispuseram a chegar no fundo do poço de sua pró-pria cultura. Como conseqüência, a segunda transformação conduzigualmente a um encontro com o outro e ao estranhamento.

As duas transformações estão, pois, intimamente relacionadase ambas sujeitas a wna série de resíduos, nunca sendo realmenteperfeitas. De fato, o .exótico nunca pode passar a ser familiar; e ofamiliar nunca deixa de ser exótico.

Mas, deixando os paradoxos para os mais bem preparados,essas transformações indicam, num caso, um ponto de chegada (defato, quando o etnólog~ consegue se familiarizar com UID8culturadiferente da sua, ele adquire competência nesta cultura) e, no ou-

3 Estou usando as noções de reificação e de legitimaçio como Bergere Luckmann no seu A Construção Social da Realidade (Petrópolis:Vozes, 1973).4 Foi Peter Riviêre de Oxrord quem me sugeriu esta idéia da viagemxamanística.

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30 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

tro, O ponto de partida, já que o único modo de estudar um ritualbrasileiro é o de tomar tal rito como exótico. Isso significa que a.apreensão no primeiro processo é realizada primordialmente poruma via intelectual (a transformação do exótico em familiar é rea- .lizada fundamentalmente por meio de apreensões cognitivas), aopasso que, no segundo caso, é necessário um desligamento emocio- .nal, já que a familiaridade do costume não foi obtida via intelecto,mlls via coerção. socializadora e, assim, veio do estômago para ac~a. Em ambos os casos, porém, a mediação é realizada por umcorpo de princípios guias (as chamadas teorias antropológicas) econduzida num labirinto de conflitos dramáticos que servem comopano de fundo para as anedotas antropológicas e para acentuar otoque romântico da nossa disciplina. Deste modo, se o meu insightestá correto, é no processo de .transformação mesmo que devemoscuidar de buscar a definição cada vez mais precisa dos anthropolo-gical blues.

Seria, então, possível iniciar a demarcação da área básica doanthropological blues como aquela do elemento que se insinua naprática etnológica, mas que não estava sendo esperado. Como umblues, cuja melodia ganba força pela repetição das suas frases demodo a cada vez mais se tomar perceptível. Da mesma maneira quea tristeza e a saudade (também blues) se insinuam no processo dotrabalho de campo, causàndo surpresa ao etnólogo. g quando elese pergunta, como fez Claude Lévi-Strauss, "que viemos fazer aqui?Com que esperança? Com que fim?" e, a partir desse momento,pôde ouvir claramente as intromissões de um rotineiro estudo deChopin, ficar por ele obsecado e se abrir à terrível descobertade que a viagem apenas despertava sua própria subjetividade: "Porum singular paradoxo, diz Lévi-Strauss, em lugar de me abrir a umnovo universo, minha vida aventurosa antes me restituía o antigo,enquanto aquele que eu pretendera se dissolvia entre os meus dedos.Quanto mais os homens e as paisagens a cuja conquista eu partiraperdiam, ao possuí-los, a significação que eu deles esperava, maisessas imagens decepcionantes ainda que presentes eram substituí-das por outras, postas em reserva por meu passado e às quais eu nãodera nenhum valor quando ainda pertenciam à realidade que merodeava." (Tristes Trópicos, São Paulo: Anhembi, 1956, 402 ss.).

Seria possível dizer que o elemento que se insinua no trabalhode campo é o sentimento e a emoção. Estes seriam, para parafrasearLévi-Strauss, os hóspedes não convidados da situação etnográfica. Etudo indica que tal introsão da subjetividade e da carga afetiva queveJp.com ela, dentro da rotina intelectualizada da pesquisa antropo-lógica, é um dado sistemático da situação. Sua manifestação assu-

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me várias formas, indo da anedota infame contada pelo falecidoEvaos.Pritchard, quando disse que estudando os Nuer pode-se fa-cilmente adquirir sintomas de "Nuerosis"li, até as reações mais vis-cerais, como aquelas de Lévi-Strauss, Chagnon e Maybury-Lewis6quando se referem à solidão, à falta de privacidade e à sujeira dosíndios.

Tais relatos parecem sugerir, dentre os muitos temas que ela-boram, a fantástica surpresa do antropólogo diante de um verda-deiro assalto pelas emoções. Assim é que Chagnon descreve suaperplendade diante da sujeira dos Yanomano e, por isso mesmo,do terrível sentimento de. penetração num mundo caótico e semsentido de que foi acometido nos seus primeu'os tempos de traba-lho de campo. E Maybury-Lewis guarda para o último parágralodo seu livro a surpresa de se saber de algum modo envolvido e ca-paz de envolver seu informante. Assim, é no último instante doseu relato que ficamos sabendo que Apowen - ao se despedir do

antropólogo - tinha lágrimas nos olhos. g como se na escola gra.duada tivessem nos ensinado tudo: espere um sistema matrimonialprescritivo, um sistema político segmentado, um sistema dualista,etc., e jamais nos tivessem prevenido que a situação etnográfica nãoé realizada num vazio e que tanto lá, quanto aqui, se pode ouvir osanthropological blues!

Mas junto a esses momentos cruciais (a chegada e o últimodia), há - dentre as inúmeras situações destacáveis - um outroinstante que ao menos para mim se configurou como crítico: o mo.mento da descoberta etnográfica. Quando o etnólogo consegue des-cobrir o funcionamento de uma instituição, compreende finalmentea operação de uma regra antes obscura. No caso da minha pesquisa,no dia em que descobri como operava a regra da amizade formali.zada entre os Apinayé, escrevi no meu diário em 18 de setembrode 1970:

"Então ali estava o segredo de uma relação social mui.to importante (a relação entre amigos formais), dadapor acaso, enquanto descobria outras coisas. Ele mos-trava de modo iniludível a fragilidade do meu traba-lho e da minha capacidade de exercer o meu ofício cor-

$ CI. Bvans-P~ard, The Nuer, Oxford: at the Clarendon Press,)940: J3.

6 Pura Lévi-Strauss, veja o já citado Tristes Trópicos; para Chagnon eNfaybury-Lewis confira, respectivamente, Yanomanu: The Flerce People.Nova York: Rolt, Rinehart e Winston, 1968, e The Savage and The Inno-cenl, Boston: Beacon Press, 1965.

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32 A BUSCADA REALIDADE OBJE11V A

retamente. Por outro lado, ela revelava a contingênciado ofício de etnóIogo, pois os dados, por assim dizer,caem do céu como pingos de 'chuva. Cabe ao etnóIogonão só apará-los, como conduzi-Ios em enxurrada parao oceano das teorias correntes. De modo muito nítidoverifiquei que uma cultura e um informante são comocartolas de mágico: tira-se alguma coisa (uma regra)que faz sentido num dia; no outro, só conseguimos fi-tas coloridas de baixo valor. . .Do mesmo modo que estava preocupado, pois haviamandado dois artigos errados para publicação e tinhaque corrigi-los imediatamente, fiquei também eufórico.Mas minha euforia teria que ser guardada para o meudiário, pois não havia ninguém na aldeia que comigopudesse compartilhar de minha descoberta. Foi assimque escrevi uma carta para um amigo e visitei o encar-regado do Posto no auge da euforia. Mas ele não es.tava absolutamente interessado no meu trabalho. E,mesmo se estivesse, não o entenderia. Num dia, à noite,quando ele perguntou por que, afinal, estava eu ali estu-dando índios, eu mesmo duvidei da minha resposta,pois procurava dar sentido prático a uma atividadeque, ao menos para mim, tem muito de artesanato, deconfusão e é, assim, totalmente desligada de uma rea-lidade instrumental.E foi assim que tive que guardar segredo da minhadescoberta. E, à noite, depois do jantar na casa do en-carregado, quando retomei à. minha casa, lá só pude di.zer do meu feito a dois meninos Apinayé que vierampara comer comigo algumas bolachas. Foi com eles ecom uma lua amarela que subiu muito tarde naquelanoite que eu compartilhei a minha solidão e o segredo daminha minúscula vitória."

Esta passagem me parece instrutiva porque ela revela que, nomomento mesmo que o intelecto avança - na ocasião da descober-ta - as emoções estão igualmente presentes, já que é preciso com-partilhar o gosto da vitória e legitimar com os outros uma desco-berta. Mas o etnólogo, nesse momento está só e, deste modo, teráque guardar para si próprio o que foi capaz de desvendar.

E aqui se coloca novamente o paradoxo da situação etnográ.fica: para descobrir é preciso relacionar-se e, no momento mesmoda descoberta, o etnólogo é remetido para o seu mundo e, deste

A VERSÃO QUALITATIVA 33

. modo, isola-se novamente. O oposto ocorre com muita f~eqüência:. envolvido por um chefe político que deseja seus favores e sua opi-nião numa disputa, o etnólogo tem que calar e isolar-se. Emocionadopelo pedido de apoio e temeroso por sua participação num conflito,ele se vê obrigado a chamar a razão para neutralizar os seus senti-mentos e, assim, continuar de fora. Da minha experiência, guardocom muito cuidado a lembrança de uma destas situações e de outra.muito mais emocionante, quando um indiozinho que era um mistode secretário, guia e filho adotivo, ofereceu-me um colar. Trans-crevo novamente um longo trecho do meu diário de 1970:

{,

"Pengi entrou na minha casa com uma cabacillha presaa uma linha de tucum. Estava na minha mesa remoen-

do dados e coisas. Olhei para ele com o desdém do~ canosados e explorados, pois que diariamente c a todo o mo-mento minha casa se enche de índios com colares paratrocas pelas minhas missangas. Cada uma dessas trocasé um pesadelo para mim. Socializado numa culturaonde a troca sempre implica uma tentativa de tiraro melhor partido do parceiro, eu sempre tenho uma re-beldia contra o abuso das trocas propostas pelos Api-nayé': um colar velho e mal feito por um punhado sem-pre crescente de ~as. Mas o meu ofício (em des-ses logros, pois missangas nada valem para mim e, noentanto, aqui estou zelando pelas minhas pCqUlHUlSbolas coloridas como se fosse um guarda de um lmllco.Tenho ciúme delas, estou apegado ao seu valor..- (!ueeu mesmo estabeleci. .. Os índios chegam, ofen~ccm oscolares, s~m que eles são mal feitos, mas sabem queeu vou trocar. E assim fazemos as trocas. São ('e7e-

nas de colares por milhares de missangas. Até 'Lu" dasacabem e a notícia corra por toda a aldeia. E, então, fi.carei livre desse incômodo papel de comerciante. Te-rei os colares e o trabalho cristalizado de quase todasas mulhf'res Apinayé. E eles terão H1issarl~!ls !Jara ou-tros colares.

Pois bem, a chegada de Pengy era sinal de mais umatroca. "Mas ele estendeu a mão rapidamente: - Esse épara o teu ikrá (filho), para ele brincar. . .E, ato contínuo, saiu de casa sem olhar para trás. Oobjeto estava nas minhas mãos e a saída rápida do in-diozinho não me dava tempo para propor uma recom.pensa. Só pude pensar no gesto como uma gentileza.

"'0.

34 A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA

mas ainda duvidei de tanta bondade. Pois ela não exis-te nesta sociedade onde os homens são de mesmo V8-lor."7

Que o leitor não deixe de observar o meu último parágrafo.Duvidei de tanta bondade porque tive que racionalizar imediata.mente aquela dádiva, caso contrário não estaria mais solitário. Masserá que o etnólogo está realmente sozinho?

Os manuais de pesquisa social quase sempre colocam o pro-. blema de modo a fazer crer que é precisamente esse o caso. Deste

modo, é o pesquisador aquele que deve se orientar para o grupoestuaado e tentar identificar-se com ele. Não se coloca a contrapar-tida deste mesmo processo: a identificação dos nativos com o siste.ma que o pesquisador carrega com ele, um sistema formado entreo etnólogo e aqueles nativos que consegue aliciar - pela simpatia,amizade, dinheiro, presentes e Deus sabe mais como I - para que

lhe digam segredos, rompam com lealdades, forneçam.lhe lampejosnovos sobre a cultura e a sociedade em estudo.

Afinal, tudo é fundado na alterilidade em Antropologia: poissó existe antropólogo quando há um nativo transformado em in-formante. E só há dados quando há um processo de empatia cor-rendo de lado a lado.'É isso que permite ao informante contar maisum mito, elaborar com novos dados uma relação social e discutiros motivos de um líder político de sua aldeia. São justamente essesnativos (transformados em informantes e em etnólogos) que sal-vam o pesquisador do marasmo do dia-a.dia da aldeia: do nascer epôr.do-sol, do gado, da mandioca, do milho e das fossas sanitá-rias.

Tudo isso parece indicar que o etnólogo nunca está só. Real-mente, no meio de um sistema de regras ainda exótico e que é seuobjetivo tomar familiar, ele está relacionado - e mais do quenunca ligado - a sua própria cultura. E quando o familiar come-ça a se desenhar na sua consciência, quando o trabalho termina, oantropólogo retoma com aqueles pedaços de imagens e de pessoasque conheceu melhor do que ninguém. Mas situadas fora do aI.cance imediato do seu próprio mundo, elas apenas instigam e tra.zem à luz uma ligação nostálgica, aquela dos anthropological blues.

., Para um estudo da organização social desta sociedade, veja-se Rober.to Da MaUa, Um Mundo Dividido: A Estrutura Social dos ApinaY'.Petr6DOIis: Vozes, 1976.

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"1,:.: A VERSÃO QUALITATIVA 35

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'Mas o que se pode deduzir de todas essas observações e de to-t.das essas impressões que formam o processo que denominei ano. thropological blues?. Uma dedução possível, entre muitas outras, é a de que, emAntropologia, é -preciso recuperar esse lado extraordinário das rela-ções pesquisador/nativo. Se este é o lado menos rotineiro e omais difícil de ser apanhado da situação antropológica, é certamen-te porque ele se constitui no aspecto mais humano da nossa rotina.É o que realmente permite escrever a boa etnografia. Porque semele, como coloca Geertz, manipulando habilmente um exemplo dofilósofo inglês Ryle, não se distingue um piscar de olhos de uma pisocadela marota. E é isso, precisamente, que distingue a "descriçãodensa" - tipicamente antropológica - da descrição inversa, fo-

. tográfica ou mecânica, do viajante ou do missionário.8 Mas paradistinguir o piscar mecânico e fisiológico de uma piscadela sutil ecomunicativa, é preciso sentir a marginalidade, a solidiío e a sau-dade. É preciso cruzar os caminhos da empatia e da humildade. .

Essa descoberta da Antropologia Social como materia interpre-tativa segue, por outro lado, uma tendência da disciplina. Tendên-cia que modernamente parece marcar sua passagem de uma ciên-cia natural da sociedade, como queriam os empiricistas ingleses eamericanos, para uma ciência interpretativa, destinada antes detudo a confrontar subjetividades e delas tratar. De fato, neste pIa.no não seria exagero afirmar que a Antropologia é um mecanismodos mais importantes para deslocar nossa própria subjetividade. Eo problema, como assume Louis Dumont, entre outros, não pilre-ce propriamente ser o de estudar as castas da lndia para 'conhece-Ias integralmente, tarefa impossível e que exigiria muito mais doque o intelecto, mas - isso sim - permitir dialogar com as for-mas hierárquicas que convivem conosco. É a admissão - roman-tismo e anthropological blues aparte - de que o homem não se en.xerga sozinho. E que ele precisa do outro como seu espelho e seuguia. .

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'o;.---" Cf. Clifford Geertz, The Interpretation of Cultures. Nova Yorki. BasieBooks, 1973. [A ser publicado brevemente por Zahar EditQres.}

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