o o s s i Ê olocal e o global na modernidade cultural … · 2018-09-10 · colonial e...

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BH/UFC o o S S I Ê o LOCAL E O GLOBAL NA MODERNIDADE CULTURAL BRASILEIRA "As considerações ... [de ordem sernântico-Iexi- cais) mostram como a língua não é - por razões de estru- tura - o suporte natural da racionalidade. Para se tor- nar tal ela deve ser submeti- da a uma "retificação". Tal retificação, que anima o es- sencial do desejofilosóficopo- sitivo, aponta para uma dupla violência: a) tornar a língua unívoca globalmente; b) impor à língua a idéia de realidade objetiva como ní- vel de base. Isso implica, em primeiro lugar, o desenrai- zamento do sujeito cujo ideo- leto inconsciente organiza os estados do saber, excitados, singulares ou idiossin- cráticos. Isso implica, em se- guida, para uma língua doravante voltada para a objetividade como seu referente necessário e ideal, a redução de todo estado global à estrutura de campo local. Tal re- dução opera-se mediante um processo hierárqui- co de abstração que, à medida que a objetividade nele se torna constituída e constituinte, culmina na introdução de categorias. (...) Se abordarmos agora o universo das ciências encontramos evi- dentemente a metáfora "geográfica" das "regiões" disciplinares; mas a dialética local/global sofre aqui verdadeira mutação." nha fala introdutória, susci- tar certas indagações relaci- onadas mais diretamente com aquilo que está expli- citamente enunciado no seu título; incluindo aí reflexões de natureza geral e formal, para só depois encarar a especificidade da problemá- tica específica. ( Todavia, mesmo se eu me restringisse ao con- teúdo expresso no título, ainda assim seriam inúme- ros os ângulos pelos quais essa problemática poderia ser examinada. Num plano mais teórico e em sua gene- ralidade ontológica ou for- mal, posso partir do suposto que, grosso modo, as Ciên- cias Sociais têm enfrentado questões como as sugeridas na temática desta MR sem ultrapassar o nível do senso comum, embora possam ser competentes os seus praticantes. Não há, do meu conhecimento, nenhum trabalho conceptual e epistemológico sério e muito menos que en- care abertamente as contribuições de outros campos de conhecimento, onde a reflexão teó- rica sobre 'local/global' é mais densa e siste- mática. a verdade, tal binômio faz parte dessas grandes oposições (tais como: singular/uni- versal, forma! substância, objetivo/subjetivo, discreto/contínuo, etc.) cuja progressiva elucidação assegura à ciência um valor transcendental que excede o mero domínio metódico dos fenômenos empíricos. indubitavelmente no território das matemáticas onde tais questões estão mais amplamente de- senvolvidas: a geometria diferencial, a topologia EDUARDO DIATAHY B. DE MENEZES' RESUMO O texto examina a maneira pouco crítica através da qual as ciências sociais têm enfrentado a oposição locaVglobal. Circunscrita ao âmbito das grandes oposições (singular/universal, forma/substância, objetivo/subjetivo, discreto/contínuo, etc.), a polaridade locaVglobal presidiu a introdução de metalflguagens que permitiram reformular algumas das questões "dialéticas" mais criticas, propostas pela estrutura Iógico-sintático-semântica das línguas naturais. Em substituição à problemática proposta pelo senso comum, o texto aponta para uma reflexâo sobre a construção da nossa singularidade, para além das questões construídas sob a ótica da modemidade cultural em sua gênese colonial e estruturação periférica dependente. • Doutor, Professor Titular (Universidade Federal do Ceará e Universidade Estadual do Ceará); pesquisador l-A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), membro do Instituto Histórico do Ceará e da Academia Cearense de Letras, membro titular da Association Internationale des Sociologues de Langue Française (AISLF). JEAN PETITOT U ma vez que os demais participantes desta mesa-redonda irão analisar questões que contemplam outros aspectos do leque que recobre a temática proposta para discus- são, penso que seria relevante, nesta mi- 72 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 30 N. 1/2 1999

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BH/UFC

o o S S I Ê

o LOCAL E O GLOBAL NA MODERNIDADECULTURAL BRASILEIRA

"As considerações ...[de ordem sernântico-Iexi-cais) mostram como a línguanão é - por razões de estru-tura - o suporte natural daracionalidade. Para se tor-nar tal ela deve ser submeti-da a uma "retificação ". Talretificação, que anima o es-sencial do desejofilosófico po-sitivo, aponta para umadupla violência: a) tornar alíngua unívoca globalmente;b) impor à língua a idéia derealidade objetiva como ní-vel de base. Isso implica, emprimeiro lugar, o desenrai-zamento do sujeito cujo ideo-leto inconsciente organiza osestados do saber, excitados,singulares ou idiossin-cráticos. Isso implica, em se-guida, para uma línguadoravante voltada para a objetividade como seureferente necessário e ideal, a redução de todoestado global à estrutura de campo local. Tal re-dução opera-se mediante um processo hierárqui-co de abstração que, à medida que a objetividadenele se torna constituída e constituinte, culminana introdução de categorias. (. ..) Se abordarmosagora o universo das ciências encontramos evi-dentemente a metáfora "geográfica" das "regiões"disciplinares; mas a dialética local/global sofreaqui verdadeira mutação."

nha fala introdutória, susci-tar certas indagações relaci-onadas mais diretamentecom aquilo que está expli-citamente enunciado no seutítulo; incluindo aí reflexõesde natureza geral e formal,para só depois encarar aespecificidade da problemá-tica específica. (

Todavia, mesmo seeu me restringisse ao con-teúdo expresso no título,ainda assim seriam inúme-ros os ângulos pelos quaisessa problemática poderiaser examinada. Num planomais teórico e em sua gene-ralidade ontológica ou for-mal, posso partir do supostoque, grosso modo, as Ciên-

cias Sociais têm enfrentado questões como assugeridas na temática desta MR sem ultrapassaro nível do senso comum, embora possam sercompetentes os seus praticantes. Não há, domeu conhecimento, nenhum trabalho conceptuale epistemológico sério e muito menos que en-care abertamente as contribuições de outroscampos de conhecimento, onde a reflexão teó-rica sobre 'local/global' é mais densa e siste-mática. a verdade, tal binômio faz parte dessasgrandes oposições (tais como: singular/uni-versal, forma! substância, objetivo/subjetivo,discreto/contínuo, etc.) cuja progressivaelucidação assegura à ciência um valortranscendental que excede o mero domíniometódico dos fenômenos empíricos. E éindubitavelmente no território das matemáticasonde tais questões estão mais amplamente de-senvolvidas: a geometria diferencial, a topologia

EDUARDO DIATAHY B. DE MENEZES'

RESUMOO texto examina a maneira pouco crítica atravésda qual as ciências sociais têm enfrentado a oposiçãolocaVglobal. Circunscrita ao âmbito das grandesoposições (singular/universal, forma/substância,objetivo/subjetivo, discreto/contínuo, etc.), apolaridade locaVglobal presidiu a introdução demetalflguagens que permitiram reformular algumasdas questões "dialéticas" mais criticas, propostaspela estrutura Iógico-sintático-semântica das línguasnaturais. Em substituição à problemática propostapelo senso comum, o texto aponta para umareflexâo sobre a construção da nossasingularidade, para além das questões construídassob a ótica da modemidade cultural em sua gênesecolonial e estruturação periférica dependente.

• Doutor, Professor Titular (Universidade Federaldo Ceará e Universidade Estadual do Ceará);pesquisador l-A do Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico(CNPq), membro do Instituto Histórico do Cearáe da Academia Cearense de Letras, membrotitular da Association Internationale desSociologues de Langue Française (AISLF).

JEAN PETITOT

Uma vez que os demais participantes destamesa-redonda irão analisar questões quecontemplam outros aspectos do leque querecobre a temática proposta para discus-são, penso que seria relevante, nesta mi-

72 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 30 N. 1/2 1999

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algébrica, a teoria das catástrofes e da mor-fogênese, etc. 'Baseada originariamente na in-tuição espacial, a oposição entre local e global,com o desenvolvimento teórico dos últimos tem-pos, presidiu à introdução de metalinguagensque permitiram reformular algumas das ques-tões "dialéticas'' mais críticas, propostas pelaestrutura lógica-sintática-semântica das línguasnaturais.

Essa seria, porém, uma discussão queultrapassaria o quadro de nossas preocupa-ções no momento, nem teria competênciasuficiente para desenvolvê-Ia a contento. Nãoobstante, mesmo que nos centremos no ter-reno de nossa modernidade cultural, com suagênese colonial e sua estruturação periféri-ca e dependente, não será difícil constatarcerta leviandade da discussão atual em tornoda problemática do local/global nessa esfe-ra. Ora, historicamente, sempre fomos"globalízados". Nesse quadro mais amplo,portanto, o desafio reside em perseguir econstruir nossa singularidade (local).

Pessoalmente, ao invés de privilegiar, porexemplo, a formação do Estado no Brasil, ouseja, a dimensão política da questão como espi-nha dorsal desse processo de gênese de nossasingularidade, minhas preferências teóricas melevam a repor decididamente a ênfase sobre osaspectos histórico-culturais desse questio-namento. Nessa perspectiva, é fácil perceber quenumerosas questões estão subsumidas nestaproblemática, mesmo quando tomada apenaspor esse plano:

• Antes de mais nada, em que sentidocompreender aí o local e o global? Em que es-cala devem ser tomadas tais dimensões?

• No âmbito interno, a questão crucial setransforma desde logo na oposição ou, antes,na distinção entre nacional e regional (ou pro-vinciano).

• Nesse caso, instala-se de imediato aindagação sobre qual o critério que permitiriaestabelecer que um ato ou uma expressão sim-bólica ou estética é "nacional" e outros são "re-gionais", sem incluir nessa operação inevitávelimplicação ideológica. Isso nos remete ao eixodo poder no campo das práticas simbólicas,

eixo que institui os pontos centrais do espaçocultural e os dispositivos ou instâncias de con-sagração, que, por sua vez, atribuem reconheci-mento segundo as regras de uma lógica dadominação e da recepção. Ora, é este um terri-tório historicamente variável e cujo jogo de ali-anças e trocas de prebendas ou honrasestamentais está articulado com os centros moto-res da economia e demais dimensões do sistemaglobal, as quais são também conjunturalmentemutáveis.

• Mas, além da distinção 'nacional/regio-nal', há outras questões pertinentes, como porexemplo as relações e antagonismos entre cul-tura das elites e cultura de massas, entre eruditoe popular, entre central e marginal, entre pro-dução de vanguarda e rotina cultural, entre re-volução e tradição, etc., etc. E, no nosso casoespecífico, existem ainda as oposições entreNorte e Sul, Litoral e Sertão, que eram os eixosprimordiais segundo os quais o Brasil era lido einterpretado por nossa inteligência, pelo menosdesde os anos 70 do século passado até os anos40 do nosso século, isto é, até a vigência daterceira geração modernista, para não dizermesmo após ...

• Se passarmos para o plano externo, emescala mundial, portanto, a oposição 'local/glo-bal' muda de significação e novas questões seapresentam.

• Num país resultante de longo legadocolonial, com as marcas profundas e duradou-ras do escravismo, com o perfil artificial damaioria de suas instituições, com o caráterpatrimonial de sua organização sociopolítica(que confunde a toda hora a ordem privada e aesfera pública), com sua permanente dependên-cia econõmica, etc., impõe-se desde logo a pro-blemática do autêntico e do espúrio na nossaprodução e nosso consumo cultural.

• Onde situar e visualizar nossa singula-ridade, nossa originalidade, nesse domínio? Euteria a tentação de dizer que, assim como noplano tecnológico e científico em que nossacontribuição original é mínima, também na es-fera mais propriamente cultural nossa ação émuito assemelhada a das montadoras ou demeros consumidores. Eis por que, no final dos

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anos 50, os teóricos do ISEB caracterizavam a"cultura brasileira" como exemplarista, a sa-ber, ela se espelhava e se espelha ainda, amplae permanentemente, em modelos externos.

• Mas aqui é mister fazer uma retificaçãonessa tese: numa sociedade ordenada por dife-renças abissais e discriminações perversas, nota-se que suas elites culturais estão muito maisvinculadas aos centros mundiais do setor e sóse avaliam como legítimas à medida que sãocapazes de imitação ou semelhança aos padrõesestrangeiros e de se esmerarem em sua repro-dução, numa como antropofagia mimética eregurgitante, ao passo que suas camadas popu-lares, a despeito das antigas sobrevivências sim-bólicas de seu imaginário, são portadoras deforças criativas mais livres e originais. É signifi-cativo assinalar que algumas de nossas melho-res criações coletivas vêm do povo, assim comoalgumas de nossas mais expressivas obras cul-turais foram o fruto de mestiços como AntõnioFrancisco Lisboa (Aleijadinho), Padre José Mau-rício, Machado de Assis, Cruz e Souza, LimaBarreto, Mário de Andrade, etc.

• Enfim, faz parte do "exernplarismo"de nossas elites culturais o estarmos sujeitos,permanentemente e com baixo nível crítico,a todos os modismos intelectuais queavassalam nossa inteligência. E, o que é maisgrave, a sua vigência é cada vez mais curta.Nesse sentido, é possível escrever nossa his-tória cultural pela periodização de autores econceitos importados, que nos invadem des-de sempre, mas sobretudo após a Indepen-dência política.

• Para concluir, proponho mais algumasindagações: Por exemplo, que significam real-mente para o Brasil, como povo-cultura-e-na-ção, noções como pós-modernidade eglobaJização?Que pretende de fato escondero barulho produzido em tomo dessas palavras?Que outras vozes não são ouvidas enquantoisso perdura e não é substituído por outros mo-dismos? Quando superaremos essa esquizofreniacultural que leva a construir um corpo nacionalmonstruoso cuja cabeça repudia as suas entra-nhas? Quando seremos capazes de ousar pen-sar com mentes e corações brasileiros?

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