o niilismo da vontade de poder: maquinação e...

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290 Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) O Niilismo da vontade de poder: maquinação e desertificação da terra Luís Thiago Freire Dantas * RESUMO A interpretação de Heidegger acerca dos pensadores apresenta uma ruptura com o modo recorrente de compreender um específico pensador. Isto se deve em grande parte, porque Heidegger parte da distinção entre a história (Gesichte) e o historiológico (Histörie). Com isso, o presente texto procura pensar como a compreensão de Heidegger sobre a vontade de poder em Nietzsche corresponde a um momento essencial na história do ocidente porque constata o niilismo enquanto propulsor da crise do fundamento, já que averigua que os valores normativos estão em decadência. Contudo, procurando afastar de qualquer tipo de interpretação historiológica, pois, a partir dessa interpretação que Heidegger torna-se a mostra que o niilismo se configura como fenômeno interno da lógica do Ocidente por sempre procurar a fundamentação do ente no seu ser. Assim, ao conceito vontade de poder nietzschiano Heidegger o relaciona como pertencente ao âmbito metafísico sendo incapaz de pensar a essência do niilismo, e sim o intensifica, já que, na procura da conservação-elevação do próprio poder através dos entes, modifica-se a concepção de verdade, não mais a certeza do representar, mas o asseguramento factível do ente pelo cálculo incondicionado da vontade que Heidegger denomina como Maquinação. Esse termo tem correspondência direta com a concepção heideggeriana da vontade de poder de Nietzsche, já que na sua predominância a “era da ausência de sentido” é promovida, ou seja, o âmbito projetivo é fechado ao homem e como conseqüência ocorre a desertificação da terra, que corresponde ao soterramento do ente para com todas as possibilidades frente ao ser. Porque, de acordo com Heidegger, a essência do niilismo corresponde ao abandono do ser diante do ente. PALAVRAS-CHAVE: niilismo, vontade de poder, Heidegger, Nietzsche, maquinação. * Pós-graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista REUNI. E-mail: [email protected]..

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

O Niilismo da vontade de poder: maquinação e desertificação da terra

Luís Thiago Freire Dantas*

RESUMO

A interpretação de Heidegger acerca dos pensadores apresenta uma ruptura com o modo

recorrente de compreender um específico pensador. Isto se deve em grande parte, porque

Heidegger parte da distinção entre a história (Gesichte) e o historiológico (Histörie). Com isso, o

presente texto procura pensar como a compreensão de Heidegger sobre a vontade de poder

em Nietzsche corresponde a um momento essencial na história do ocidente porque constata o

niilismo enquanto propulsor da crise do fundamento, já que averigua que os valores normativos

estão em decadência. Contudo, procurando afastar de qualquer tipo de interpretação

historiológica, pois, a partir dessa interpretação que Heidegger torna-se a mostra que o niilismo

se configura como fenômeno interno da lógica do Ocidente por sempre procurar a

fundamentação do ente no seu ser. Assim, ao conceito vontade de poder nietzschiano

Heidegger o relaciona como pertencente ao âmbito metafísico sendo incapaz de pensar a

essência do niilismo, e sim o intensifica, já que, na procura da conservação-elevação do próprio

poder através dos entes, modifica-se a concepção de verdade, não mais a certeza do

representar, mas o asseguramento factível do ente pelo cálculo incondicionado da vontade que

Heidegger denomina como Maquinação. Esse termo tem correspondência direta com a

concepção heideggeriana da vontade de poder de Nietzsche, já que na sua predominância a

“era da ausência de sentido” é promovida, ou seja, o âmbito projetivo é fechado ao homem e

como conseqüência ocorre a desertificação da terra, que corresponde ao soterramento do ente

para com todas as possibilidades frente ao ser. Porque, de acordo com Heidegger, a essência do

niilismo corresponde ao abandono do ser diante do ente.

PALAVRAS-CHAVE: niilismo, vontade de poder, Heidegger, Nietzsche, maquinação.

* Pós-graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista REUNI. E-mail:

[email protected]..

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O Ocidente na reflexão empreendida por Heidegger se estabelece num dos modos

concernente à distinção entre a História (Gesichte) e a historiologia (Histörie). O primeiro termo

indica os acontecimentos que determinam uma época, enquanto o segundo são os fatos

passados colhidos à mercê do conhecimento presente. Essa distinção se torna crucial porque,

como Heidegger (1996, p.11) escreve na preleção sobre Heráclito, “uma coisa é produzir

historiologicamente uma imagem do passado para o respectivo presente, outra é pensar

historicamente, isto é, experimentar o que foi essencialmente (das Gewesen) como o porvir

(das Künftige) que já está essencializando. Todos os renascimentos historiológicos do passado

não passam de más fachadas para equívocos históricos”.

Todavia, Heidegger adverte que a nossa época é dominada pela historiologia,

impedindo o acontecimento da essência da História, pois impele ao caráter não epocal do

pensamento acerca do ser. Contudo, na medida em que há uma tentativa no pensamento

heideggeriano para superar este estatuto historiológico, o qual não se aplica apenas numa

substituição, mas que a História deve ser tomada pelo pensamento no caráter da historicidade

que se perfaz ao modo daquilo que acontece na nossa época. Contudo, Heidegger explica que

perduramos num tempo em que o ser mesmo já não é mais lembrado, a metafísica caminha

para seu acabamento e o ente se constitui cada vez mais no abandono para com o ser. Com

isso, Heidegger procura propiciar ao pensamento a experiência para com o ser através da

análise dos pensadores, que na compreensão do filósofo foram cruciais para formação do

Ocidente, por exemplo, Heráclito, Parmênides, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Nietzsche.

Mas, é notório a “violenta” interpretação que Heidegger realiza acerca dos pensadores

“essenciais” do ocidente, já que procura se afastar do modo habitual e frequente de um

pensador ser interpretado para trazer à tona o que ainda não foi dito, por exemplo, Nietzsche é

pensado como o último pensador metafísico “uma vez que retorna o início do pensamento

grego, assumindo esse início a sua maneira e assim fecha o anel formando o curso do

questionamento sobre o ente como tal na totalidade” (HEIDEGGER, 2007b, p. 362).

Sendo que a compreensão de Heidegger acerca da filosofia nietzschiana perpassa

invariavelmente pela confrontação que Nietzsche realiza acerca do niilismo, já que o estabelece

como crise dos valores no pensamento ocidental. Ainda mais, para Heidegger, o ocidente é

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determinado pelo pensar metafísico por procurar instituir o ente no seu ser, ou seja, provoca o

esquecimento da diferença que há entre o ser e qualquer ente. Dessa forma, a interpretação

heideggeriana do acabamento da metafísica parte do que vem a ser as doutrinas nietzschianas:

vontade de poder e eterno retorno, onde, como Heidegger escreve, o ser se torna uma mera

palavra vazia e sem qualquer referência aos entes. Por isso, a partir do modo como Heidegger

concebe a relação da vontade de poder para com o eterno retorno como variantes explícitos de

que o niilismo não é um fenômeno concernente apenas a nossa contemporaneidade, e sim se

instaura na lógica do ocidente, tomaremos de início explicitar como esses conceitos

nietzschianos comparecem na interpretação realizada por Heidegger, contudo não para

apresentar o pensamento de Nietzsche em sua profundidade, mas como essa interpretação

intensifica a compreensão heideggeriana do fenômeno do niilismo.

II

Heidegger explica que devemos tomar o título “vontade de poder” não de maneira

óbvia, sem maiores explicações, e sim pensá-lo como uma posição metafísica, não somente em

uma de suas fases, mas no interior da essência da metafísica. A partir daí, alcançaremos o

sentido primordial do pensamento nietzschiano sobre o problema do “ser”, o ente na

totalidade, diante do que Heidegger denomina como a metafísica da vontade de poder. Com

isso, ao identificarmos que a vontade de poder exerce uma conformação de domínio situado no

próprio querer, pois o próprio Nietzsche escreve no Assim falou Zaratustra (1999, p.147-148)

que “onde encontrei o vivente, aí encontrei vontade de poder; e mesmo na vontade de servo

encontrei a vontade de ser senhor”, comparece justamente esse querer-ser-senhor consistindo

numa rede de comando que se dispõe claramente nas possibilidades da atuação ativa. Pois, não

ocorre uma supressão do servo, já que este ainda está inserido no próprio querer, mas ele vem

a ser o comandante no momento em que segue essa disposição ao fim de obedecer a si mesmo

através do caráter de comando.

Tanto mais porque, como explica Heidegger, o comandar condiz a uma auto-superação

e não somente um ditar ordens a outros; o que indica a dificuldade maior do comandar do que

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o obedecer; assim, quando o comandante se torna incapaz de obedecer a si mesmo, sua

própria vontade de poder, nesse momento ele já precisa de alguém para comandá-lo. Essa

dificuldade ao que comanda é mais visível pelo fato da vontade sempre aspirar a mais, não

porque esteja ausente, faltando algo que a subsiste, ao contrário, ela aspira mais poder porque

ela já o tem. Por isso, no título “vontade de poder” torna cada vez mais visível que a vontade

quer a si mesma, enquanto comando, na requisição daquilo querido por ela. Assim Heidegger

explica que vontade e poder não tem uma coligação somente na junção vontade de poder, mas

esse título constitui a essência do poder, assinalando a incondicionalidade da vontade que quer

a si mesma enquanto mera vontade. De tal modo, a vontade de poder não pode ser

contraposta a, por exemplo, uma “vontade de nada”, pois o próprio Nietzsche já advertiu que a

vontade prefere querer o nada a nada querer e Heidegger (2003, p. 497) ainda acrescenta, “O

‘nada querer’ não significa de modo algum querer como meta a ausência de tudo o que é real.

Ao contrário, ele visa sim justamente querer o que é real, mas este sempre e em toda a parte

como um nada, e a partir deste querer, a nadificação”.

A partir desse prevalecimento da vontade de poder perante todo o real, Heidegger

acentua para o fato de que a sua essência é o traço fundamental de tudo o que é real no

pensamento de Nietzsche. E na tentativa de ultrapassar o respectivo estágio através da

dominação de si mesmo, esse estágio já tem de estar assegurado e fixado, pois é no

asseguramento do respectivo estágio de poder que se assegura a condição necessária para

elevar poder dentro de um instaurar que visa primordialmente à condição do querer-para-

além-de-si-mesma. Entretanto, se a vontade almeja sempre o dominar de si mesma não

permanecendo imóvel a nenhum estágio, então ela retorna a si enquanto a mesma e como se

dirige ao ente na totalidade, a sua essência se configura através da “vontade de poder” e a sua

existência se refere ao “eterno retorno do mesmo”. Assim, se apresenta nessa condição o que

para Heidegger são as duas expressões fundamentais da metafísica nietzschiana: vontade de

poder e eterno retorno.

Além do que, a interpretação acerca do eterno retorno parte da disposição que pensa

o ente na totalidade de tal modo que os termos desse modo de apreender o ente como aquilo

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que é, configura num elemento fundamental do acabamento da metafísica que Heidegger

(2007d, p. 4) explica do seguinte modo:

O ‘retorno’ pensa a transformação do que vem a ser em algo permanente para o asseguramento do devir do que vem a ser na duração de seu devir. O ‘eterno’ pensa a transformação dessa constância em algo permanente no sentido da circulação que volta a si e segue em direção a si. No entanto, o devir não é o progressivamente outro do múltiplo que se altera infinitamente. O que vem a ser é o próprio mesmo, isto é, o um e o mesmo (o idêntico) na respectiva diversidade do outro.

Inclusive porque, na interpretação de Heidegger, o eterno retorno do mesmo é o

modo de o inconstante se tornar presente enquanto tal, com o intuito de que nesse presentar-

se proporcione a mais elevada dotação de constância visando unicamente determinar a

incessante possibilidade do potencializar-se. A partir daí percebemos mais claramente porque a

“vontade de poder” designa aquilo que o ente é na sua constituição e o “eterno retorno do

mesmo” indica o modo como o ente, dotado dessa constituição, é. Porém, Heidegger (2007a, p.

218) ainda esclarece que, “Porquanto o eterno retorno do mesmo distingue o ente na

totalidade, ele é um caráter fundamental do ser que se mostra como co-pertinente com a

vontade de poder; e isso apesar de o ‘eterno retorno’ denominar um ‘devir’”.

Todavia, com o início da metafísica ocidental compreendendo o ser no sentido

da constância do presentar-se, quer dizer, no se fazer presente, já no seu acabamento

comparece como o mesmo que retorna àquilo que sempre uma vez mais precisa trazer dotação

de constância, ou seja, o eterno retorno se torna a maior dotação de constância àquilo

desprovido de consistência. Isso significa, de acordo com Heidegger, que para Nietzsche o

conceito de ser permanece ainda preso as noções metafísicas como o consistente, firme,

solidificado e rígido contraposto ao devir, enquanto que o ser nesse estágio da metafísica

pertence ao cerne da vontade de poder, que assegura sua consistência a partir de um dotar de

constância, que procura unicamente ultrapassar-se, ou seja, vir a ser. Por isso, Nietzsche em

uma das suas anotações afirma que a mais alta vontade de poder é justamente imputar sobre o

devir o caráter de ser e isso está totalmente em correspondência com os traços fundamentais

da filosofia nietzschiana, já que “Ser e devir só se inserem aparentemente em uma contradição

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porque o caráter de devir da vontade de poder é, em sua essência mais íntima, eterno retorno

do mesmo, e, com isso, a constante dotação de consistência ao que é desprovido de

consistência” (HEIDEGGER, 2007d, p. 218).

III

Entretanto, se no acabamento da metafísica há um superar daquela distinção entre o

mundo “verdadeiro” e o mundo “aparente” a partir de uma inversão, a qual procura

transformar o mais baixo, o sensível, como ponto mais alto da hierarquia, contudo após a

supressão do mundo supra-sensível qualquer dicotomia que venha ter o caráter de avaliar a

partir de um ideal perde totalmente o sentido, porque apenas o “mundo do devir” é que se

torna a fonte de todo o valor. Porém, Heidegger atenta que apesar deste afastamento em

relação ao pensamento da tradição, a diferença pertencente ao “o que é” e “o fato de ser”

ainda continua impensada, sendo que nessa relação “o fato de ser” não concorda ao “o que é”

em momentos que lhe convém, e sim que sempre está junto por acontecer igualmente no

pensar valorativo. Desse modo, a partir da coesão do “fato de ser” com o “o que é”, Heidegger

denota que a vontade de poder e o eterno retorno não precisam mais se compertencer como

algo que venha a determinar o ser, e sim necessitam agora que venham dizer o mesmo, o qual,

em termos metafísicos, o eterno retorno deve remontar ao fim da história, na medida em que

não há metas ou fins, e a vontade de poder concerne ao modo do caráter fundamental da

entidade do ente no âmbito da consumação da modernidade.

Além do que, a consumação da modernidade se encaminha, de acordo com Heidegger,

na história da metafísica que para Nietzsche condiz à questão dos valores, acarretando numa

tentativa de transvaloração dos valores. Por isso, pensar essa história a partir de Nietzsche

concerne a compreender que o pensamento valorativo pressupõe, mesmo que tacitamente,

toda a metafísica até aqui. Do mesmo modo, toda a metafísica que precede o modo de pensar

o “ser” como vontade de poder também pertence a essa vontade que impõe, cria valores,

regulando o pensamento valorativo. Porém, se ao lermos a filosofia de Nietzsche e tratarmos

essa compreensão da história de maneira branda, como se estivesse ao meio de tantas outras,

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apenas acumulamos conhecimento e então adentraremos num estudo historiológico do

pensador, fato proeminente entre os séculos XIX e XX, onde Heidegger (2007b, p.81) observa

que,

a historiologia erudita representou a história da filosofia, ora no campo de visão da filosofia kantiana ou da filosofia hegeliana, ora no campo de visão da Idade Média, e certamente, com maior freqüência ainda, em um campo de visão que, por meio de uma mistura das doutrinas filosóficas mais diversas, dá a impressão ilusória de uma amplitude e de uma validade universal, por meio das quais desaparecem todos os mistérios da história do pensamento.

Desse modo, não é porque, na interpretação heideggeriana, Nietzsche interpreta a

história da metafísica a partir da vontade de poder, que devemos analisar de forma

historiológica como se o filósofo colocasse “visões” próprias nas doutrinas dos pensadores

anteriores. Mas sim que, a essência da história é tomada agora pela vontade de poder, pois se

abriu um novo horizonte interpretativo pelo qual a “metafísica da vontade de poder” institui

um mundo que se posiciona como um transvalorar de toda a metafísica, e somente a partir

desse acontecimento histórico é que se abre a possibilidade do estudo historiológico e não o

contrário. Já que, como Heidegger ressalta, a tentativa de imputar a interpretação nietzschiana

da história, a partir da vontade de poder como transfiguração da imagem da história, mesmo

sendo estranho indicar aos pensadores anteriores tal modo de interpretar o ente na totalidade,

requer um pensamento meditativo, por que

mesmo se precisarmos admitir que a interpretação nietzschiana da história não coincida com aquilo que a metafísica mais antiga ensina, essa admissão carece antes de qualquer coisa de uma fundamentação que vai além da comprovação meramente historiológica da diferença entre a metafísica de Nietzsche e a metafísica mais antiga (HEIDEGGER, 2007b, p.84).

Por isso, na procura de comprovarmos a estranheza que o pensamento valorativo

possui à metafísica da tradição, nos depararemos com o fato de que sua origem é mais

profunda e não será um estudo historiológico que revelará com propriedade o horizonte aberto

pela filosofia nietzschiana, e sim como Heidegger afirma, precisamos olhar o pensamento de

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outrora a partir do campo de visão do nosso pensamento. A partir dessas considerações de

Heidegger acerca do modo como Nietzsche compreende a história da metafísica, explicita-se a

própria maneira pela qual Heidegger interpreta os pensadores, ou seja, procura-se distanciar de

qualquer tipo de historiologia, pois não pretende realizar uma hierarquia comparativa entre as

doutrinas de modo a satisfazer o pensamento atual. Mas procura atentar a maneira pela qual

essas doutrinas acontecem no mundo e esses acontecimentos se apropriam dos entes,

permitindo a configuração de uma época.

Desse modo, Heidegger escreve que nosso tempo é o da indigência, a qual pode ser

sintetizada na sentença nietzschiana: “Deus está morto”. Visto que, apresenta um fenômeno

não pertencente apenas a nossa época, e sim que se situa no interior da articulação

investigativa do ocidente: o Niilismo. Esta constatação de acordo com Heidegger (2009, p.85)

nos leva a retomar o pensamento acerca da história, porque, “se o niilismo europeu não é

apenas um movimento histórico, se ele é o movimento fundamental da nossa história, então a

interpretação do niilismo e a tomada de posição em relação a ele dependem do modo como e

do lugar a partir do qual a historicidade do ser-aí humano é determinada”.

Contudo, devemos lembrar que para Heidegger a filosofia de Nietzsche não é a

superação do niilismo, mas sua adoção mais extrema, com isso, Heidegger compreende que

Nietzsche permanece no interior das reflexões acerca do ser ou do ente, ou da verdade no

modo da fixação da vontade de poder para uma conservação, porque sendo a verdade uma

condição da conservação de poder, ela se torna um valor distanciando das outras

interpretações como o desvelamento do ente, adequação de um conhecimento com um objeto

e até da certeza asseguradora do representado. Entretanto, porque procura fixar de maneira

diversa aquilo que é para além do movimento e deveniente, a “mais elevada vontade de

poder”, enquanto dotação de consistência ao devir, ela seria uma falsificação, ou seja, no

pensamento nietzschiano a verdade torna-se um erro. Um determinando “tipo de erro”, pois

detém o caráter de que apenas é demarcada como tal desde que seja pensada a essência da

verdade concomitante com a essência do ser: a vontade de poder. Isso porque o eterno retorno

do mesmo diz como o ente é na totalidade, isto é, não possui nenhum valor ou meta além dos

entes, configurando no que Heidegger (2007 d, p.15) indica como a era da “ausência de sentido

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consumada”, a qual “insiste em sua própria essência de maneira mais ruidosa e violenta

possível. Ela busca se salvar de maneira irrefletida em seu ‘além-mundo’ mais próprio e assumir

a derradeira confirmação do predomínio da metafísica na figura do abandono do ser em

relação ao ente”.

IV

Sendo que essa ausência de sentido consumada está em correspondência ao que

Heidegger interpreta como a consumação de todas as possibilidades metafísicas, provocando

um cerceamento no âmbito projetivo do homem ao ser. Além do que, a consideração sobre a

verdade do ente é despojada de qualquer tentativa de pensar a essência da verdade. Pois,

como salienta Heidegger, a mudança da adaequatio para certeza e deste para o asseguramento

do ente em sua factibilidade passível de ser constituída, instaura o predomínio da entidade

como maleabilidade. “A entidade como maleabilidade permanece sob o predomínio do ser que

se entregou à constituição de si mesmo pelo cálculo e à factibilidade do ente que lhe é próprio

por meio do planejamento e do arranjo incondicionado” (HEIDEGGER, 2007d, p.13).

Sendo que através desse domínio do planejamento e arranjo incondicionado é que se

perfaz o ímpeto da maquinação. Este termo significa a factibilidade do ente, numa procura que

tudo seja feito de tal forma que aumente o seu grau de eficiência, para que assim, as crises

sejam suplantadas no próprio interior da maquinação. Pois, a maquinação atua impedindo

qualquer “fundamentação” de projetos que estão além do seu poder, fornecendo à ausência de

sentido “metas” maquinacionais, que procuram erigir novos valores para a “vida”. Já que esta

vida agora repercute em si a mobilização total enquanto a organização da ausência

incondicionada de sentido a partir da vontade de poder e para a mesma. Desse modo,

Heidegger escreve que o objeto não é mais representado em sua objetidade (Gegenstand), mas

que se dispõe como dispositivo (Bestand) aplicado ao modo de empresa estabelecendo as

“visões de mundo” que buscam somente a ampliação do poder, porque como Heidegger

atenta:

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Essas visões de mundo impelem toda a calculabilidade do representar e produzir ao extremo porque emergem, segundo a sua essência, de uma auto-instauração colocada sobre si mesmo, do homem no ente e no domínio incondicionado do homem sobre todos os meios de poder sobre a face da Terra e sobre a própria Terra (HEIDEGGER, 199, p. 18).

Com isso, a maquinação provoca de forma velada, porém atuante, o que Heidegger

denomina como desertificação da terra. Desertificação aqui diverge de destruição, a qual, de

acordo com Heidegger, procura apenas eliminar aquilo que até então cresceu e foi construído,

enquanto que a desertificação é o constante impedimento do começo, ou seja, apenas algo

pode vir a acontecer se estiver presente no cerne do controle e do funcionamento aos entes.

Tanto que no interior da maquinação as crises são suplantadas, a partir de um desenraizamento

total de tudo sempre na medida de um empenho de “política cultural” que procura instaurar

vivências quais seriam a finalidade da desertificação. Por isso, Heidegger (1999, p.18) indica

que,

A desertificação da Terra pode caminhar junto tanto com a obtenção de um elevado padrão de vida para o homem como a organização de um estado uniforme de felicidade de todos os homens. A desertificação pode ser o mesmo com ambos e, do modo mais sinistro, transitar por toda parte, precisamente porque ela se oculta.

Porque se a desertificação impede todo o começo através do erigir das “vivências” nas

quais o ente é elevado ao maior grau da hierarquia deixando-o solto à maquinação, então esse

ocultamento provoca a própria ausência da história, visto que os entes não requisitam nada

mais do que uma vontade imersa num querer proveniente de uma finalidade que reside

simplesmente no nada anulador, desconhecendo o saber de sua própria e completa nulidade.

Desse modo, a desertificação da terra começa como processo voluntário, que não é e nem

pode ser descoberto em sua essência, apenas nos deixa a constatação de que “se o ente

soterra e desenraiza toda e qualquer possibilidade de início do ser e, assim, continua impelindo

para frente o ente, conduzindo, porém, a uma desertificação que não destrói, mas sufoca o

inicial no erigir e no ordenar” (HEIDEGGER, 2007c, pg. 363).

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Ademais, diante da desertificação da terra, a historiologia comparece como única

possibilidade essencial referente à história, acarretando no historicismo que Heidegger depõe

em transformar a história num mero cômputo do passado em vista do presente e nesse

caminho o homem a cada vez tem sua essência aproximada ao historiológico e não do histórico.

Visto que, com o domínio da historiologia através da consumação do homem moderno (a

subjetividade), o animal rationale agora se transforma em animal historicum, essa

transformação está em curso pelo fato de que “o animal historiológico não visa, por exemplo,

ao animal que se torna ‘historiológico’ e que pertence ao passado, mas ao animal que a tudo

pro-duz, para o qual o ser do ente desponta na produtibilidade e se oculta ao mesmo tempo

em seu caráter maquinacional” (HEIDEGGER, 2009, p. 156).

V

Porém, como podemos superar ao estatuto historiológico? Heidegger escreve que o

pensar meditativo precisa ser retomado atentando à diferença entre o ser e qualquer ente

para, por conseguinte, a história se afastar do círculo da objetivação característica da

historiologia, pois esta depreendida de sua produção representacional reaparece na decisão

entre ser e ente de forma a colocar em jogo a essência da época. E por mais que o termo

“decisão” esteja atualmente desgastado, para Heidegger, ele remonta à cisão mais intrínseca e

à distância mais extrema entre o ente na totalidade e o ser. De tal forma que, “A decisão mais

elevada que pode ser tomada e que se transforma respectivamente é aquela entre o

predomínio do ente e dominação do ser. Por isso, quando quer e como quer que o ente na

totalidade seja propriamente pensado, o pensamento já reside aí na esfera dos perigos

inerentes a essa decisão” (HEIDEGGER, 2007b, p. 371).

Assim, o pensamento se aproxima do que “aconteceu” numa determinada época,

lembrando que esse acontecer para Heidegger (2007b, p. 374) significa:

O que a história suporta e impõe, o que dissolve as contingências e fornece de antemão às resoluções o seu campo de jogo, isso que, no interior do ente representado objetiva e situacionalmente, no fundo é o que é. Nós nunca

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experimentamos o que aconteceu por meio de constatações históricas em relação ao que “se deu”. Tal como essa expressão nos dá bem a entender, o que “se deu” é aquilo que passa por nós no primeiro plano e no pano de fundo dos palcos públicos das ocorrências e das opiniões emergentes quanto a essas ocorrências. O que acontece nunca pode ser conhecido historiologicamente; só pode ser conhecido pelo pensamento em meio à concepção do que a metafísica que determina previamente a época trouxe ao pensamento e à palavra.

Portanto, na medida em que Heidegger intitula os pensadores como aqueles que

“fundam” um mundo histórico a partir da abertura do ser. Heidegger comparece na nossa

história não como pensador que procura pôr um novo fundamento ao nosso pensar, mas

aquele que prepara o pensamento à transição ao outro início, no qual a essência da história

comparece a favor do ser-aí, não como um elemento apreendido pelo ser-aí, mas por

manifestar um compartilhamento nas decisões históricas, pelas quais, o que foi essencialmente

é repetido pelo porvir, conjugando desse modo na possibilidade de ultrapassarmos o niilismo

da factibilidade maquinacional.

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