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Fepal - XXVI Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis "El legado de Freud a 150 años de su nacimiento" Lima, Perú - Octubre 2006 1 O MENINO LOBO ¹ Fernanda Sivaldi Roberti Passalacqua ² ¹ Trabalho a ser apresentado no XXXVI CONGRESSO LATINO AMERICANO DE PSICANÁLISE, em Lima, Peru. ² Candidata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto – São Paulo.

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Fepal - XXVI Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis "El legado de Freud a 150 años de su nacimiento" Lima, Perú - Octubre 2006

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O MENINO LOBO ¹

Fernanda Sivaldi Roberti Passalacqua ²

¹ Trabalho a ser apresentado no XXXVI CONGRESSO LATINO AMERICANO

DE PSICANÁLISE, em Lima, Peru.

² Candidata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto – São

Paulo.

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O MENINO LOBO

“Uma corrente de água que encontra obstáculos no leito do rio, fica

represada e reverte para velhos canais que antes pareciam fadados a secar”.

Freud (1905)

INTRODUÇÃO

Neste trabalho tento mostrar as experiências clínicas vividas com

Marcelo, com 9 anos, que parece ter sofrido um desastre mental em

decorrência da preservação de mecanismos primitivos, associado ao

sentimento de abandono. A queixa principal dos pais refere-se à atitude do filho

em cheirar os próprios pés e mãos, tentativas às vezes com êxito, em cheirar

os órgãos sexuais dos outros. Está em análise há 3 anos.

O estabelecimento da sensorialidade se dá pela inter-relação mãe-

bebê, como uma forma de comunicação através do tato, visão, audição.

Quando esta reciprocidade falha ou é insuficiente, o bebê pode permanecer

usando este recurso ao sensório, buscando re-inventar o “outro”. Esta

reinvenção, penso eu, se dá a nível narcísico, já que uma vez o bebê sentindo

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sua ligação amorosa com a mãe obstruída, sente a sua existência perdida, e

recria ilusoriamente a si mesmo.

Isto representaria a meu ver, uma expressão da incapacidade de

tolerar um objeto com existência própria. Tem a função de negar uma realidade

distinta da própria pessoa. Mas há também o sentimento de esperança: detrás

do espelho haveria alguém a ser encontrado.

Suponho que as falhas de reverie materna e paterna contribuem para

que o bebê, nas fases iniciais da vida, mantenha estados primitivos de mente

como um refúgio desesperado ao sentimento de abandono.

A incapacidade de tolerar frustração, favorece o desenvolvimento de

sentimentos de intensa destrutividade e ódio. Ocorre um “entupimento” de

elementos beta que não abre espaço para promover a capacidade para pensar.

Eu sentia muitas dificuldades no contato com esta criança. Na

tentativa de qualquer intervenção verbal ou movimento físico, a criança

berrava, tentando agredir-me verbalmente e fisicamente.

Passei a buscar angustiadamente junto com a criança, meios para

promover uma comunicação criativa e produtiva.

Observando o clima emocional durante as sessões, atenta as

identificações projetivas dele, mas também ao meu contra-sonho,

instrumentalizo-me a criar condições possíveis e favoráveis de mudança de

vínculo destrutivo inicialmente estabelecido.

A criança passa a estimular a minha criatividade para possibilitar que

a sua história traumática seja narrada e transformada.

Surge então nas nossas dramatizações, como um modelo, a história

de Mogli, o menino lobo, do filme de Walt Disney. A história desta criança que

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por desconhecer-se possuidor de uma mente humana, vive como um animal

que cheira tudo para se orientar.

O INÍCIO ASSUSTADOR

Marcelo entra na sala de análise, descalço, de cabeça baixa. Joga

com força os gibis sobre a mesa, derruba violentamente a caixa de lego no

chão, chuta uma almofada para longe. Em seguida, se coloca embaixo da

mesa, onde começa a cheirar um dos pés e depois o outro, alternadamente.

Ele grita, com tom de voz autoritário: “Lê”.

Eu me sinto assustada, confusa. Começo a ler, tentando acalmar-me

e quem sabe a ele também. Ele pula para cima da mesa, começa a cheirar os

braços. Demonstra ouvir o meu tom de voz, muito mais do que o conteúdo da

leitura que eu faço da estória do gibi. Passa a chupar a gola da camiseta.

Pula para debaixo da mesa novamente, cheirando os pés.

Quando tento falar algo, ele grita: “Cala a boca, filha da puta,

desgraçada, vou te encher de porrada”.

Sinto-me ameaçada, com muito medo. Depois de alguns minutos, me

recomponho, e calmamente digo: “Hoje você está muito bravo”...

Ele me interrompe e grita mais alto: “Cala a boca”. Ele vem até mim

com o braço levantado, ameaçando me bater. Coloca o dedo no nariz e em

seguida põe na boca.

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Eu sinto náusea. Ele começa a lamber o joelho e fica envolvido nesta

atividade por vários minutos.

Penso que ali eu não existo, ou que não posso existir tamanho é o

envolvimento dele com ele mesmo. Esta cena me remete a uma imagem de um

animal ferido, que lambe sua ferida tentando cicatrizá-la, ou então, pelo menos,

amenizar sua dor. É uma ação solitária, em que eu observo tristeza, desalento,

mas também um pedido de socorro: ele não esconde sua dor, mas desconfia

que eu possa ajudá-lo.

Ele pula novamente para cima da mesa e faz o seguinte desenho;

Enquanto ele desenha, eu sinto certa tranqüilidade, fico inclinada em

comunicar isto a ele. Quando então tento fazê-lo, ele pega as peças do lego

que estão espalhadas no chão, e atira em mim, com força. Sinto-me como num

tiroteio, sem escapatória. Ele corre para fora da sala, e vai embora.

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Esta sessão mostra, a meu ver, que a dificuldade no contato com ele,

se deve a negação do outro. Ele é o seio que o alimenta, não precisa de

ninguém. Partes do corpo são sentidas como uma extensão dele, assim como

eu, quando ele manda que eu leia o gibi. Meu tom de voz é uma parte dele,

que ele aciona quando quer. Assim sendo, se eu falo com minha própria voz, e

não como porta voz dele, ele sente-se ameaçado pela minha existência.

Através do desenho, ele dramatiza sua experiência de ter uma mente

com tantos pensamentos assustadores e persecutórios. Como se ele estivesse

numa floresta repleta de animais ferozes e perigosos, que podem acabar com

ele a qualquer momento. Portanto, uma floresta-mente impenetrável.

Mas nesta mente tão desorganizada, existe uma porta e uma janela,

partes saudáveis dele que ficaram preservadas. São estas partes que lhe dão

esperança, e a mim também, de abrirmos uma possibilidade de contato, de

entrada e de saída, de existir um outro - analista, que possa compartilhar com

ele todo o desespero, terror.

Quando ele me manda “calar a boca”, ele tenta atacar esta

possibilidade, atacando as conexões da minha mente. Ele não agüenta a

desorganização da própria mente. Ele comunica que não consegue pensar, é

levado pelo impulso da ação, o que acarreta sentimentos muito dolorosos.

Uma mente que funciona tão precariamente gera violência,

destrutividade, como uma forma de evacuar elementos beta.

As peças de lego, separadas, des-ligadas umas das outras,

representam a fragmentação da personalidade em minúsculos pedaços, que

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sugerem levar a excessiva projeção destes fragmentos da personalidade nos

objetos externos.

UM LOBO NA SALA DE ANÁLISE

Quando fui chamá-lo na sala de espera, ele me disse para eu esperar

que entraria logo. Eu fui para a sala de atendimento e fiquei esperando. Após

alguns minutos, ele entra, joga a caixa de brinquedos com toda força no chão,

(o que restava dela, pois ele já havia em sessões anteriores, destruído grande

parte desta). Sinto um medo terrível. Ele então despejou o lego na mesa e

disse gritando para eu montar alguma coisa. Ele canta alguma coisa, sem

palavras, emitindo apenas sons de maneira muito suave.

Eu ainda assustada disse: “Quem canta os males espanta”.

MARCELO - Fica quieta ou você vai levar um soco. (Ele ergue um

dos braços me ameaçando).

ANALISTA - Que pavor quando o lobo está solto, feroz.

MARCELO - Vou te dar um soco se você falar mais alguma coisa,

filha da puta, burra, imbecil.

Eu fico em silêncio, pego as peças de lego sobre a mesa e começo a

montar uma casinha. Ele me olha com olhos arregalados.

MARCELO - Posso fazer as paredes?

ANALISTA - Pode sim, as paredes são importantes, elas separam um

lugar do outro, definindo cada um.

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MARCELO - O que mais pode ter na casa?

ANALISTA - Podemos projetar juntos.

MARCELO - Nós vamos ser os pedreiros.

Eu sinto um bom contato entre nós, mas de repente, ele me atira um

lego acertando na minha testa.

ANALISTA - Assim não Marcelo, deste jeito a casa desmorona, e não

podemos ficar nela não.

MARCELO - Desgraçada, filha da puta. (Gritando e muito irritado).

Ele pega as peças de lego, e tenta insistentemente atirar em mim. Eu

seguro o braço dele, ele me ameaça com o outro braço, eu seguro os dois de

uma só vez.

ANALISTA - Este lobo precisa de abrigo, e não de uma jaula.

Ele se debate, eu o seguro com mais força, tenta me chutar com

ambos os pés. Eu o agarro com força, aos poucos ele vai se acalmando,

devagar vou diminuindo minha força até soltá-lo. Ele se joga nas almofadas,

parecendo estar exausto. Eu me posiciono ao lado dele, e assim

permanecemos até o final da sessão.

Mogli, o menino lobo, foi encontrado na selva por uma pantera que

ouviu o seu choro. Ela fica num impasse em ajudá-lo ou deixá-lo onde estava.

Decide levá-lo para junto de uma família de lobos, para ser amamentado pela

mãe-loba. Mogli vai crescendo na selva, até que um dia, para não ser morto

pelo leão que odiava o homem por sentir-se ameaçado por ele, é levado para a

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civilização. Ele resiste, mas a pantera não desiste, o acompanha até ele

encontrar uma menina, humana como ele.

Penso que nesta sessão, ele entra como o Mogli, assustado pelo

mundo desconhecido (sala de análise-floresta), habitado pela analista -

pantera, e pelos personagens (objetos internos). Um mundo cheio de

perseguidores que o ameaçam como ao leão. Sua saída inicial é apelar para a

arrogância: ele entra na sala quando ele quiser, se eu quiser vê-lo, eu tenho

que esperar.

A analista diante da violência dele, sente medo, e tenta construir uma

casinha, um continente-abrigo para ambos, analista e analisando. Marcelo

aceita a oferta da analista, e juntos começam a construir uma mente que possa

abrigar pensamentos e sentimentos tão selvagens.

Penso aqui, em ruínas que continuam ativas na mente de Marcelo, e

que buscam ser reapresentadas no vínculo comigo, em busca de reconstrução.

Neste trabalho de reconstrução de entrar num território arqueológico, é

necessário tolerância de ambas as partes. Neste sentido, Bion diz sobre a

importância por parte do analista, de observar as diferentes funções que estão

em jogo na conduta verbal e não verbal do paciente e deduzir os fatores

(hipóteses) que participam em cada uma delas. É no presente que temos que

ter um método de formulação que possa penetrar a barreira.

Não existe ainda uma sustentação suficiente: ele explode, as paredes

caem. Há uma descrença de que ele possa desenvolver recursos para tolerar

os desabamentos mentais e ter ao seu lado uma pantera companheira. Ele

reage violentamente, com medo de ser aprisionado pela analista, representante

de seus próprios impulsos hostis.

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A analista sente o drama do desabamento, quase se irrita, tenta

segurá-lo. É um movimento de construção-desabamento-construção, um

modelo que se repete em busca de uma relação mais sólida.

Segundo Francis Tustin, a função do analista seria de um “útero

mental” que amortece o impacto do desmoronamento. Ao segurá-lo

fisicamente, representaria a meu ver, naquele momento da sessão, um

manancial necessário para suportar o que se sente ser insuportável.

Há uma confusão entre jaula e abrigo: ele é o Mogli que se enjaula na

selva, nos mecanismos primitivos para evitar o contato com emoções

profundas, civilizadas, que ele sente não suportar. Seria algo aproximado a

uma experiência de encapsulamento, para evitar qualquer coisa que não seja

não-eu, já que mobiliza sentimentos de intenso terror.

Em outros momentos, ele busca abrigo na contenção afetiva da

analista, dando vazão ao menino assustado, indefeso, solitário.

Freud faz referência sobre a importância da verdade histórica.

Verdade que é buscada e construída entre analista e analisando, num contato

de intimidade e reciprocidade. Neste ponto, acredito que os aspectos

contratransferenciais da analista são de suma importância. Eu sentia medo e

terror diante do menino-lobo. Ele convidava-me a encontrar com minhas

vivências primitivas, provavelmente para que eu pudesse entendê-lo e juntos

encontrarmos uma saída.

Marcelo não admite uma história que ele não seja o autor, diretor,

tendo os personagens sob seu controle rígido e autoritário. Pois é assim que

ele se relaciona, controlando, impondo, um leão rei da selva, não para cuidar,

mas para reinar. Há a impossibilidade de usufruir do prazer em estar com a

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analista, pelo medo de que esta se transforme no leão, pronta para massacrá-

lo.

A ARTE DE CONTER O LOBO

Marcelo entra na sala rapidamente, se jogando nas almofadas,

sugerindo esconder algum objeto. Ele me olha e faz sinal que gostaria de me

mostrar algo.

ANALISTA - O que será que você trouxe aí?

Ele se levanta, se aproxima de mim, escondendo as mãos para trás.

MARCELO - Você sabe o que é?

Antes que eu dissesse alguma coisa, ele estendeu o braço na minha

direção, indicando para eu pegar. Eu assim fiz.

ANALISTA - Ah, um cartão de telefone!

MARCELO - Você está vendo um número aí em cima? 50?

ANALISTA - Estou.

MARCELO - Pode ligar 50 vezes.

ANALISTA - Como está chegando as férias, é um jeito de você se

sentir tranqüilo que podemos ficar ligados um no outro.

MARCELO - É de presente para você, eu tenho outro em casa.

Vamos brincar de pique-pega?

ANALISTA - Este cartão é uma pacto para nós não esquecermos um

do outro.

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Ele sorri e começa a me explicar como é a brincadeira. Nós iríamos

correr em volta da mesa, imitando um bicho de cada vez. Ele iria à minha frente

escolhendo o bicho que nós dois imitaríamos. Começamos, de vez em quando

eu tomo a frente. O primeiro bicho que ele escolhe é um gato. Observo que não

importava quem pegava quem, e sim que eu o seguisse nas imitações. Ele

expressa alegria.

ANALISTA - Você está feliz tendo minha companhia, visitando estes

animais.

Ele imita um cachorro.

ANALISTA - Qual a raça deste cachorro?

MARCELO - É um poodle.

Ele começa a latir mais forte.

ANALISTA - Agora surge um cachorro mais bravo.

Ele late ainda mais forte, fazendo caretas.

ANALISTA - Será que este é um pitbull?

MARCELO - Acertou. E agora, que bicho é este?

Ele range os dentes e mostra certa apreensão.

ANALISTA - Eu sou a domadora que vai dando nome para a

bicharada, te ajudando a ver cada um. Começamos pelo gatinho, agora acho

que estamos perto do leão.

MARCELO - Acertou.

Ele imita um gorila, fica agitado.

ANALISTA - O gorila causou agitação, será que ele está com medo

do leão?

MARCELO - Muito, muito medo mesmo.

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Neste momento, eu me recordo que na história do Mogli, o gorila

aprisiona o menino-lobo, para tirar dele o segredo do homem que é o fogo,

porque é o único meio de desbancar o leão.

ANALISTA - Quem sabe não podemos enfrentar o leão juntos?

MARCELO - Por que eles não podem ser amigos?

ANALISTA - Você quer acabar com esta guerra aí dentro de você,

descobrir um menino bom, fazer da selva uma boa moradia.

Ele se joga nas almofadas.

MARCELO - Deixa eu descansar um pouco. (Silêncio). Vamos brincar

de arminha?

ANALISTA - Vamos enfrentar o leão.

MARCELO - Cada um faz a sua arma, você pode pegar quantas

peças de lego quiser e eu também.

Eu observei que ele estava livre ali comigo, com regras iguais. Então

tomei o cuidado para não fazer uma arma que pudesse sugerir ser melhor que

a dele.

MARCELO - Deixa eu ver como ficou a sua, ficou legal. Agora a

gente faz o esconderijo, eu vou precisar de uma almofada e dois bancos.

ANALISTA - Legal é quando você percebe que é bom ficar junto. Eu

vou pegar a outra almofada e a mesa.

MARCELO - Você vai virar a mesa de lado?

ANALISTA - Por quê?

MARCELO - Ah, porque você não deixa eu fazer isto, pelo menos

nunca deixou.

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ANALISTA - Direitos iguais, porque assim ninguém fica em

desvantagem.

Ele começa o tiroteio, me atira com a sua arma, eu caio

dramatizando.

MARCELO - Pegou só de raspão, vai levanta.

ANALISTA - Eu sou a pantera que pode te proteger quando você está

muito feroz, mas também posso estar com você quando você está calmo.

O tiroteio recomeça, ele atira na minha barriga. Meus tiros nunca o

acertam.

ANALISTA - Ai minha barriga, o lobo queria ser o único a ficar perto

da mãe loba.

Ele coloca o polegar na boca, pede para eu esperar um pouco. Ele

vai até a mãe na sala de espera. Volta trazendo um boneco super-herói.

Mostra-me e me pergunta se eu acho bonito.

ANALISTA - Você está desapontado, o que foi?

MARCELO - Minha mãe prefere a Mulher Maravilha.

Isto me faz pensar nas fantasias dele de que se ele tivesse nascido

menina ele seria mais amado pela mãe. Ele é filho único e na entrevista inicial

a mãe me contou que quando engravidou queria uma menina.

ANALISTA - O que te faz achar que ela prefere?

MARCELO - Ela sempre diz isto. A Mulher Maravilha é fortona, acaba

com todo mundo.

ANALISTA - Bom, mas se ela tirar o cinturão e a coroa, ela fica

humana.

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MARCELO - O Batman também não pode ter amigos né, porque

ninguém pode descobrir o segredo dele.

ANALISTA - Você sabe qual o segredo dele?

MARCELO - Que ele é homem, ora. O Superman também.

ANALISTA - Então, você fica preocupado de ser um menino humano

e ser fraco, e ninguém gostar de você.

MARCELO - Amanhã eu vou trazer os meus super - heróis para te

mostrar. Tem homem, mulher, e tem um que eu não sei bem o que é.

ANALISTA - Você está na dúvida se você é homem, mulher, ou o

quê.

Logo no início da sessão, Marcelo mostra a sua angústia de

separação em decorrência da aproximação do período de férias. Esta angústia

reflete o medo de ser esquecido numa selva cheia de animais selvagens

perigosos, em que ele sente-se ameaçado pela sua violência interna.

Ele teme a crença de que o tempo e a distância desfaça na sua

mente a possibilidade de salvar os registros de nossos encontros.

Ao trazer o cartão telefônico, ele tenta certificar-se que permanece

uma linha de contato (vínculo) de extensão entre nós. Mas é uma linha que ele

não sabe bem a espessura, se é firme o suficiente para tolerar a ausência sem

sentir-se abandonado; ou se é tão fina que pode vir a romper a qualquer

movimento impulsivo, descontrolado ou de desespero. Haveria então uma linha

muito tênue entre o impulso e a ação, onde a capacidade para pensar pode ser

obstruída.

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Sugiro que Marcelo deva ter sofrido uma experiência traumática na

relação inicial com a mãe. Tenho observado na clínica, que certas crianças

desenvolvem reações de evitação para lidarem com uma consciência

traumática de separação física e psíquica da mãe, antes da possibilidade de

introjeção de um bom objeto (mãe nutriz). A mãe dele sofreu depressão pós -

parto, sentindo-se impossibilitada em amamentá-lo como também dedicar-se

aos cuidados ao bebê. O pai sentia-se inseguro e relatou-me que a mãe não

permitia que ele tentasse cuidar do filho, pois a criança tinha saído de dentro

dela, portanto, era mais dela do que do marido. No início do trabalho a mãe

mantinha um contato comigo ambivalente. Se por um lado, ela cuidava em

manter a análise, cumprindo os horários e honorários, por outro, ela temia que

eu pudesse “arrancar” o filho dela. Eu imagino que ela tentava manter uma

“gravidez eterna”, uma relação fusionada com seu filho, em que nada e

ninguém pudessem agir com a função de “obstetra”, de separá-la de seu bebê.

Margareth Mahler cita o rompimento psicótico com a realidade devido

a perda ter ocorrido em um estado tão imaturo de organização psíquica que

não é capaz de superar o pesar e o luto pela perda. O mamilo perdido não

alcançou a condição de objeto, foi experimentado com um conjunto de

sensações.

Ele então propõe o jogo de pique-pega, um movimento de

experimentação de aproximação e distanciamento. Inclui neste jogo a imitação,

que me faz considerar como a mais precoce experiência de uma relação

objetal, e que um relacionamento que não seja recíproco desde o início é

inconcebível. Na verdade, eu me sentia muito estimulada a exercer a minha

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função de reverie, atenta as identificações projetivas, como também aos

aspectos contratransferenciais.

À medida que eu sobrevivo aos seus ataques (tiroteio) e que

permaneço viva com a minha capacidade para pensar, ele tem a experiência

de que sua violência não é tão grande, como na sua fantasia. Ele reintrojeta um

objeto tranqüilizador, transforma a presença de uma mãe morta (André Green)

numa presença de uma analista-mãe viva. É uma nova vivência, desconhecida,

mas que sempre ressurge a ameaça de aniquilamento.

Pode-se também observar as configurações edipianas que existem

no mundo interno de Marcelo. John Steiner ressalta que se o paciente

“negocia” o complexo de édipo de um modo relativamente saudável, ele tem

um modelo interno de relações sexuais que são no geral, uma atividade

criativa. Caso contrário, a fantasia de que uma ligação forma um casal bizarro

ou predominantemente destrutivo parece resultar em formas de pensamento

danificadas, perversas ou gravemente inibidas.

Penso que Marcelo tenta, na relação comigo, buscar esta

negociação, e transformar nosso encontro, cada vez mais fértil, criativo e

produtivo.

Nós dois temos “armas” iguais, dando vazão a uma competição de

igual para igual. Ele atira em mim, atingindo-me, eu não o atinjo, como uma

representação não de um duelo de vida ou morte, mas em busca de vida. Isto

se dá quando ele diz que me acertou só de raspão, ele me quer viva para viver

comigo o que até então ficou reprimido: o desejo de matar o pai, e ficar com a

mãe. Ele então sai em busca de sua identidade sexual, de sua masculinidade,

até agora tão indiferenciada.

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Mas pode ele alcançar a culpa e fazer reparação? Ele regride, põe o

dedo na boca, e vai ao encontro da mãe. Ele tem consciência que vem outras

crianças ao meu consultório além dele. Ele busca a mãe para se re-assegurar

que seus ataques em fantasias não a danificaram (ele disparou tiros na minha

barriga). Ele volta a ser o bebê para ter dela o aconchego, mesmo de uma

forma fusionada, primitiva.

Ele retorna para a sala desiludido, sofre a desilusão de “descer para

a terra” da experiência extasiante do estado sublime de unidade jubilosa com a

mãe. A mãe prefere a Mulher Maravilha. Só que neste momento seu

funcionamento psíquico está mais sólido, ele agüenta a dor da frustração, e

quer conversar sobre esta dor. Questiona sobre os super-heróis, se colocando

à parte dos personagens, sinalizando uma tridimensionalidade.

Ferro A. (1992) diz que os personagens são nós de uma rede de

relações intra-psíquicas, os fatos narrados o fundo são um disfarce

comunicável de realidade interna do paciente considerada, porém, já como

dada, à espera de um intérprete que esclareça seu funcionamento,

reencontrando sua raiz nas fantasias inconscientes.

Mogli só consegue se separar da selva (mundo primitivo) quando

descobre o amor. Não só pela menina humana, mas antes pela segurança de

se sentir amado e amar. Esta segurança no amor, é que contribui para dar os

primeiros passos para a posição depressiva: separação do objeto, individuação

e liberdade para ser o que se é.

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O LOBO E A PANTERA

Marcelo estava encostado na porta assim que eu abri. Aflito disse-me

que tinha trazido o teclado e perguntou-me se poderia tocar uma música para

mim. Eu aceno positivamente. Cuidadosamente ele pega o instrumento e a

mãe fica nos olhando, demonstrando sentir-se excluída. Ela se levanta

segurando o livro de música fazendo movimento de entrar na sala também. Eu

me ofereço sorrindo gentilmente para ela, tentando mostrar que eu a

compreendia. Ela retribui o sorriso, entrega-me o livro, pega uma revista e

senta-se novamente. Noto o empenho de Marcelo em arrumar o teclado no

chão da sala, como se estivesse orgulhoso em mostrar-me um pênis criativo e

potente.

MARCELO - Custou 9 mil reais.

ANALISTA - É mesmo muito valioso.

Ele começa a tocar “Serenata de Amor” de Mozart. Eu sinto uma

intensa emoção, ocorre-me uma imagem de estar diante de um rapaz que

mostra os dotes afetivos (principalmente o afeto). Ele termina de tocar, olha

para mim esperando minha reação. Eu bato palmas, ele sorri, eu emociono-me.

MARCELO - Qual foi o acontecimento mais feliz da sua vida?

ANALISTA - Eu estou feliz em te ver assim, tão compenetrado e

entregue a esta música.

MARCELO - Não, um acontecimento, o seu casamento, o nascimento

dos teus filhos?

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ANALISTA - Fico feliz em ver um Marcelo nascendo aí, quem sabe

um futuro músico, formando uma parceria comigo.

MARCELO - Hum, talvez, tenho pensado nisto. Mas eu acho que

você ficou feliz com o seu casamento. Vou tocar uma música, vê se você

adivinha.

Ele toca “Marcha Nupcial” de Mendell.

MARCELO - Agora você escolhe uma música.

Imediatamente me ocorre “Asa Branca” de Luís Gonzaga. (Esta

música já foi tema de conversa entre nós).

MARCELO - Eu tinha certeza que você ia escolher esta.

ANALISTA - Por quê?

MARCELO - Porque você gosta de música sertaneja e de...

liberdade.

Enquanto ele toca, olha-me fixamente. Surge em minha mente, o

modelo da relação entre mãe-bebê, em que o olhar da mãe desperta interesse,

curiosidade, vínculo amoroso, e que o bebê capaz de recebê-lo, interage

positivamente com a mãe.

MARCELO - Agora vou tocar a minha música preferida: La

Cucaracha.

Ele toca de um modo engraçado, despojado, fazendo caretas,

agitando o corpo. Ao terminar, propõe brincarmos de pique-pega, tendo como

música de fundo La Cucaracha, que ele programou no instrumento. A regra do

jogo é que temos que correr em volta da mesa, dançando seguindo o ritmo da

música. Começamos a brincadeira, o clima emocional é descontraído, divertido

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para nós dois. De repente ele começa a querer impor como eu devo fazer,

como devo dançar, mostrando-se tenso.

ANALISTA - Espera um pouco, você está assustado e tem que

mandar. O que foi?

MARCELO - Cala a boca. (gritando).

ANALISTA - Estava tão gostoso, mas como está terminando o nosso

tempo hoje, você acha que de tão gostoso você vai sentir tanta falta... (ele me

interrompe).

MARCELO - Que horas são?

ANALISTA - Você acha que eu te mando embora, então tentando

estragar a gostosura aqui você acha que fica mais seguro, será mesmo?

MARCELO - Dá para tocar mais uma música?

ANALISTA - Quero muito ouvir.

Ele toca uma música de sua autoria, com melodia triste e despede-se

de mim.

Nesta sessão, Marcelo aproxima-se da Posição Depressiva,

abandonando momentaneamente seu pensamento onipotente, integrando suas

percepções da realidade externa e interna, demonstrada pela preocupação em

mostrar-me o seu teclado-pênis-potente.

Mas mostra também sua ambivalência: pode ele amar e ser amado

com liberdade? Ele propõe-me casamento, uma relação diferente, não mais de

imposição, sedução de lutas de forças. Ele quer construir junto comigo uma

relação de troca, dada a experiência emocional vivida pelo par.

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Ele encontra-se com a sua criatividade mais de perto, através da

música, como uma linguagem de expressão de seus sentimentos.

“Serenata de Amor” pode ser ouvida como uma música de fundo para

dormir-sonhar-acordar.

“Asa Branca”, para libertar terrores, os medos persecutórios e ser um

prelúdio para uma mudança catastrófica.

Penso que há um movimento de restaurar e reintrojetar um casal de

pais que sejam amorosos, férteis, criativos, para que desta relação possa

nascer um filho amoroso, criativo.

É uma nova musicalidade que aos poucos vai sendo introduzida pelo

trabalho conjunto da dupla analítica, alternando-se os papéis de autores,

intérpretes, personagens, em favor da fantasia inconsciente do analisando.

Quando Melanie Klein faz referência a figura dos pais combinados,

representando uma figura de poder e autoritarismo, vejo também uma

expressão de um superego cruel e assassino. Muitas vezes ainda Marcelo

apresenta traços perversos, pela falta de consideração com o objeto (ele ainda

me atira peças do lego), expressa a sua necessidade em usar o objeto e não

usufruí-lo.

Ele dá as cartas para não ser engolfado pelo objeto.

O encontro com a música sugere uma tentativa de viver uma nova

experiência, onde o ódio e a destrutividade abrem caminho para o amor,

crescimento e desenvolvimento.

Há uma sexualidade que agora está podendo aparecer através da

música, do componente corporal, de busca de entrosamento, complementação.

Não é de penetração sádica, de forçar-me a fazer o que ele quer. É de uma

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penetração em que se torna possível nascer novos frutos: pensamentos,

idéias, associações.

CONCLUSÃO

Tenho observado o empenho de Marcelo em deixar de ser um animal

para se transformar em homem, já que uma mente disponível se oferece à ele

para as suas projeções. Nosso trabalho é árduo (ele ainda mostra-se agressivo

comigo), o cenário (sala de análise) é muitas vezes uma selva povoada de

perigos tanto para ele como para mim também.

Às vezes, tomada pelo medo, eu me sinto impossibilitada de pensar,

sofro o impacto da violência dele de modo a sentir-me paralisada, não

encontrando uma sintonia entre nós. Ele exige de mim muita rapidez para

acompanhá-lo, e que em certos momentos acabo recorrendo a “falsas

interpretações”, ao invés de brincar de forma que possa oferecer

transformações.

À medida que se torna possível compartilhar os personagens no “aqui

e agora” da sessão analítica, desbravando seu mundo interno selvagem,

repleto de pensamentos primitivos, abre-se um novo caminho para o encontro

de si e do outro.

Isto permite uma transformação das turbulências proto-emocionais

em pensamentos e emoções pensáveis.

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O sadismo começa a perder sua força, dando espaço para a

experiência de prazer. Através da reverie da analista, ele pode vivenciar

possíveis relações de segurança. Quando nas sessões ele se joga nas

almofadas, acredito haver um movimento psíquico de incorporar o seio-

analista, mantendo um estado fusional. Depois, toma uma outra direção, que é

a de buscar e usufruir um seio, que possa alimentá-lo. O movimento seguinte é

de poder desenvolver e encontrar este seio continente dentro dele, que o ajude

a suportar o que ele sente ser insuportável.

Esta movimentação psíquica sofre oscilações freqüentes, que é fruto

de uma elaboração que vem sendo buscada exaustivamente. Esta oscilação

segue um padrão de repetição. Quanto mais íntimo o relacionamento, maior a

dependência potencial e, portanto, maior a necessidade de recuar para a

combinação específica de defesas.

No encontro analítico há uma busca incessante por reconstruir

verdades muitas vezes inevitáveis e por encontrar meios de simbolizá-las de

um modo que nos impele a reviver e continuar mais adiante esta busca. O

encontro com a música é fundamental. De início, a musicalidade era expressa

quase que unicamente através de seus gritos e berros, tornando inaudíveis as

intervenções da analista. Agora, está disponível um outro grito, como

instrumento musical acessível de escuta, com várias configurações, inclusive

de um choro ainda retido, pelo medo de afogar-se em lágrimas. Sonhar um

sonho a dois, no contato entre duas mentes, abre-se a possibilidade de um dia

Marcelo poder narrar sua história, observando os personagens, com um

conhecimento real do objeto, com seus aspectos bons e maus.

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A história de Mogli, que surgiu no contato entre nós dois, propiciou

uma possibilidade de usar uma linguagem acessível ao diálogo, re-visitando

um mundo tão selvagem para ambos, analista e analisando.

Havendo o encontro de um continente que receba as projeções

violentas do paciente, abre-se a possibilidade de se efetuar a cisão entre a

parte psicótica e a parte capaz de relação. Assim, Marcelo começa a passar

por transformações importantes para seu crescimento: de lobo para menino, a

analista, de pantera, vem sendo vista, segundo as próprias palavras dele, como

a “dra. ajudadora de gente”.

RESUMO

Através do atendimento de uma criança que apresenta mecanismos

muito primitivos na maneira de agir e pensar, levou a autora a investigar formas

de comunicação e uso de linguagem para estabelecer um vínculo entre a dupla

analista e analisando. A autora propõe que a falha da função materna e

paterna sobrecarregam a criança, desde o início da vida, com impulsos

agressivos e destrutivos, gerando um sentimento de terror no contato com

qualquer objeto externo. Isto deve-se a introjeção de objetos internos

ameaçadores e persecutórios, delineando o mundo interno e externo da

criança. Através da reverie da analista, este mundo amplia-se para um mundo

mais civilizado, tornando possível um contato com a criança consigo mesma e

com os outros. A autora se utiliza partindo do estímulo do analisando, da

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história de Mogli, do filme de Walt Disney, que enriquece o sentimento de

esperança em desenvolver um vínculo amoroso, passando e re-visitando o

mundo primitivo da mente da criança.

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