o magistério de enrico tullio liebman

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98 O Magistério de Enrico Tullio Liebman no Brasil Ada Pellegrini Grinover (*) Professora Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo RESUMO: Enrico Tullio Liebman, emérito professor da Universidade de Parma, Itália, veio ao Brasil em 1940, após breve permanência na Argentina e no Uruguai. No País teve rápida passagem pelas universidades de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, acabando, por definitivo, na cidade de São Paulo a convite do então diretor da época da Faculdade de Direito. Na cidade paulistana, fulcro da efervescência jurídica, a pauta no Direito era a vigência do Código unitário, de 1939. Liebman era um mestre criativo e dedicado às atividades acadêmicas, reunindo jovens discípulos nas tardes de sábado na casa onde morava, à Alameda Ministro Rocha Azevedo. Ali, discutia os seus estu- dos, aprofundava discussões e se prodigalizava em inigualáveis lições, utilizando o método científico que, até então, aqueles encontros, era desconhecido do processua- lista brasileiro. Receberam influência do mestre italiano, Alfredo Buzaid, ex-ministro da Justiça, José Frederico Marques, Bruno Afonso de André e Benvindo Aires, dentre tantos outros que assitiam às aulas de Liebman. RESUME: Enrico Tullio Liebman, professeur émérite de 1'Université de Parme, Ita- lie, est arrivé au Brésil en 1940, après un court séjour en Argentine et à FUruguay. au Brésil il passa rapidement aux universités de Minas Gerais et de Rio de Janeiro, de- meurant définitivement à São Paulo après avoir été invité par le directeur de Ia Faculte de Droit. A Ia ville de São Paulo, centre de l'effervescence juridique, le thème du jour, en droit, était le code de 1'unité politique de 1939. Liebman était un Maitre créatif ^t três dédié aux activités académiques. II réunissait chez lui, à Alameda Ministro Rocha Azevedo, les samedis après-midi des jeunes élèves ei discutait avec eux ses études, se donnant entièrement à ces incomparables leçons, en utilisant une méthode scientifique, jusqu'a lors inconnue au procès brésilien. Alfredo Buzaid, l'ex-ministre de Ia Justice, José Frederico Marques, Bruno Afonso de André et Benvindo Aires, parmi beaucoup d'autres qui étaient présents aus leçons de Liebman, ont reçu 1'influence du Maitre ita- lien. Et ceux-ci, à leur tour, ont eu une grande influence sur les générations successives de spécialistes en procès, qui jusqu'à présent suivent les príncipes et les méthodes du Maitre. Recordar o magistério de Liebman no Brasil é olhar, num só relance, ao passado, ao presente e ao futuro. Olhar ao passado é ver o jovem professor ti- tular da Universidade de Parma desembarcar no Brasil em 1940, impelido pela tempestade política. Ele vinha de uma breve permanência na Argentina e no Uruguai, cujos vetustos códigos processuais não o haviam animado a trabalhos doutrinários, e haveria de encontrar inspiração e estímulo no Brasil, onde aca- bava de entrar em vigor o Código unitário de 1939. Após breve estada junto à (*) Texto redigido originalmente em italiano, para a Rivista di Diritto Processuale. Tra- dução de Cândido da Silva Dinamarca, aluno do 4- ano do curso de bacharelado da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.

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O Magistério de Enrico Tullio Liebman

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    O Magistrio de Enrico Tullio Liebman no Brasil Ada Pellegrini Grinover (*) Professora Titular da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

    RESUMO: Enrico Tullio Liebman, emrito professor da Universidade de Parma, Itlia, veio ao Brasil e m 1940, aps breve permanncia na Argentina e no Uruguai. N o Pas teve rpida passagem pelas universidades de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, acabando, por definitivo, na cidade de So Paulo a convite do ento diretor da poca da Faculdade de Direito. Na cidade paulistana, fulcro da efervescncia jurdica, a pauta no Direito era a vigncia do Cdigo unitrio, de 1939. Liebman era u m mestre criativo e dedicado s atividades acadmicas, reunindo jovens discpulos nas tardes de sbado na casa onde morava, Alameda Ministro Rocha Azevedo. Ali, discutia os seus estu-dos, aprofundava discusses e se prodigalizava em inigualveis lies, utilizando o mtodo cientfico que, at ento, aqueles encontros, era desconhecido do processua-lista brasileiro. Receberam influncia do mestre italiano, Alfredo Buzaid, ex-ministro da Justia, Jos Frederico Marques, Bruno Afonso de Andr e Benvindo Aires, dentre tantos outros que assitiam s aulas de Liebman.

    RESUME: Enrico Tullio Liebman, professeur mrite de 1'Universit de Parme, Ita-lie, est arriv au Brsil en 1940, aprs un court sjour en Argentine et FUruguay. au Brsil il passa rapidement aux universits de Minas Gerais et de Rio de Janeiro, de-meurant dfinitivement So Paulo aprs avoir t invit par le directeur de Ia Faculte de Droit. A Ia ville de So Paulo, centre de l'effervescence juridique, le thme du jour, en droit, tait le code de 1'unit politique de 1939. Liebman tait un Maitre cratif ^ t trs ddi aux activits acadmiques. II runissait chez lui, Alameda Ministro Rocha Azevedo, les samedis aprs-midi des jeunes lves ei discutait avec eux ses tudes, se donnant entirement ces incomparables leons, en utilisant une mthode scientifique, jusqu'a lors inconnue au procs brsilien. Alfredo Buzaid, l'ex-ministre de Ia Justice, Jos Frederico Marques, Bruno Afonso de Andr et Benvindo Aires, parmi beaucoup d'autres qui taient prsents aus leons de Liebman, ont reu 1'influence du Maitre ita-lien. Et ceux-ci, leur tour, ont eu une grande influence sur les gnrations successives de spcialistes en procs, qui jusqu' prsent suivent les prncipes et les mthodes du Maitre.

    Recordar o magistrio de Liebman no Brasil olhar, num s relance, ao passado, ao presente e ao futuro. Olhar ao passado ver o jovem professor ti-tular da Universidade de Parma desembarcar no Brasil em 1940, impelido pela tempestade poltica. Ele vinha de uma breve permanncia na Argentina e no Uruguai, cujos vetustos cdigos processuais no o haviam animado a trabalhos doutrinrios, e haveria de encontrar inspirao e estmulo no Brasil, onde aca-bava de entrar em vigor o Cdigo unitrio de 1939. Aps breve estada junto

    (*) Texto redigido originalmente e m italiano, para a Rivista di Diritto Processuale. Tra-duo de Cndido da Silva Dinamarca, aluno do 4- ano do curso de bacharelado da Faculdade de Direito do Largo de So Francisco.

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    universidade de Minas Gerais e no Rio de Janeiro, chegava a So Paulo, a con-vite do diretor da Faculdade de Direito, com u m contrato para o curso especial que haveria de ministrar at 1946. Assim iniciava ele o seu magistrio, primeiro em italiano e logo depois em portugus, demonstrando uma excepcional facili-dade de adaptao lngua, ao ambiente e ao direito brasileiro, de cujas ori-gens, histria, e tradies se assenhoreou e m pouco tempo.

    O momento da chegada de Liebman era o mais oportuno possvel para o desenvolvimento da cincia processual. O novo Cdigo trazia algumas inova-es inspiradas pelos ordenamentos europeus mais avanados: o procedimento oral com seus postulados fundamentais; o despacho saneador do sistema portu-gus; o aumento dos poderes do juiz na direo e valorao da prova e, sobre-tudo, o cunho publicista do processo, como instrumento estatal destinado ad-ministrao da justia. O terreno era frtil, tendo tambm em conta os estudos do passado, especialmente em So Paulo, onde a ctedra de direito processual sempre gozou de inegvel prestgio.

    O esprito generoso e criativo do Mestre foi capaz de compreender em to-da sua plenitude as circunstncias favorveis. E sua atividade acadmica, ele somou uma outra, que produziu resultados permanentes. Reunindo os jovens discpulos nas tardes de sbado na modesta residncia da Alameda Rocha Aze-vedo, discutia os seus estudos, aprofundava-as discusses e se prodigalizava e m inigualveis lies utilizando o mtodo cientfico at aquele momento desco-nhecido do processualista brasileiro. Talvez nem o prprio Liebman soubesse com preciso quais seriam os resultados daqueles encontros. Talvez no o sou-bessem nem os discpulos dos sbados tarde: Vidigal, o primeiro a conquistar a ctedra; Buzaid, com os seus escritos rigorosamente cientficos e caracteriza-dos por profundas consideraes histricas e de direito comparado; Jos Frede-rico Marques, que se preparava para a ctedra na Pontifcia Universidade Cat-lica de So Paulo; Bruno Afonso de Andr e Benvindo Aires, com sua inteli-gncia penetrante e profundo preparo humanstico. Mas tais resultados esto vivos at hoje.

    A tudo isso somava-se a produo cientfica do Mestre, que envolvia os discpulos e era acolhida com entusiasmo pela comunidade jurdica. E m primei-ro lugar, a traduo das Instituies de Chiovenda, confiada a Menegale e enri-quecida com notas de adaptao ao direito brasileiro, profundos estudos sobre os diversos institutos processuais. Depois, a traduo da Eficcia e autoridade da sentena, a cargo de Buzaid e Benvindo Aires, tambm acompanhada de notas de adaptao e de novos estudos. Escreve, alm disso, ex novo e e m portugus, o Processo de execuo, a propsito do qual disse Carnelutti, alu-dindo ao exlio de Liebman no Brasil: " quelque chose malheur est bon!".

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    J na Itlia, onde volta em 1946, mantm contato com o Brasil, publican-do em 1947 os Estudos sobre o processo civil brasileiro, coletnea de artigos, conferncias e pareceres; e, em 1952, com o mesmo mtodo empregado na Efi-ccia e autoridade da sentena, os Embargos do executado, traduo da obra em italiano Le opposizioni di mrito nel processo di esecuzione.

    No somente Liebman ficou ligado ao Brasil. Mas a influncia que as suas lies e a sua presena tiveram em So Paulo alargar-se- pouco a pouco, transparecendo em todos os processualistas brasileiros. So prova disso os tra-balhos de Calmon de Passos, na Bahia; de Galeno Lacerda e Mendona Lima, no Rio Grande do Sul; de Barbi, em Minas Gerais; de Moniz de Arago, no Pa-ran; de Elizer Rosa, Moraes e Barros, Barbosa Moreira e Srgio Bermudes, no Rio de Janeiro; e, naturalmente, de todos os processualistas de So Paulo: Celso Neves, Lobo da Costa, Botelho de Mesquita, Dinamarco, Arajo Cintra, todos da Universidade de So Paulo; Mariz de Oliveira, Arruda Alvim e Donaldo Armelin, na Universidade Catlica. E tantos outros, que seria impos-svel enumerar.

    Pode-se dizer, pois, que aquela que foi chamada Escola processual de So Paulo, por Alcal-Zamora, se transformou depois na Escola brasileira, cuja unidade metodolgica e cuja doutrina remontam seguramente ao esprito criador e aglutinador de Enrico Tullio Liebman: de Liebman Escola processual de So Paulo e desta moderna processualstica brasileira, em uma continuidade de pensamento hoje reconhecida em toda parte, e mais que nunca na Itlia.

    Por isso, recordar o magistrio de Liebman no Brasil tambm olhar ao presente. A comear pelo Cdigo de Processo Civil de 1973, cujo nico autor. Alfredo Buzaid, proclamaria trinta-e-cinco anos depois da partida do Mestre: "este Cdigo u m monumento imperecvel de glria a Liebman". N e m se omita o florescimento de estudos processuais acerca do novo Cdigo, por parte dos discpulos da primeira hora e dos respectivos discpulos. Lembrando ainda as novas edies das obras do Mestre, atualizadas e adaptadas ao Cdigo por notas dos "processualistas de segunda gerao" e a traduo do Manuale, com as agudas observaes de Dinamarco.

    Por todo esse tempo, o constante contato de Liebman com os jovens pro-cessualistas brasileiros, intensificado sobretudo a partir de 1968, havia dado incio a u m incessante intercmbio intelectual e pessoal entre os dois pases, o qual prosseguiu depois por obra dos discpulos italianos. Tambm as revistas italianas abriram as portas aos estudiosos brasileiros, os quais cooperam em coletneas de estudos e participam de encontros e seminrios, ao mesmo tempo que os processualistas italianos se aproximam cada vez mais ao direito brasilei-ro e realizam programas de visitas e aulas no Brasil. Tudo isso obra do Mes-tre, que nunca ps fim ao seu magistrio brasileiro. Foi bem por isso que o Bra-

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    sil, pelo qual ele nutria amor e gratido, expressou por sua vez o seu eterno re-conhecimento ao Mestre, condecorando-o, e m 1977, com o mais elevado grau honorfico destinado a autoridades estrangeiras: a comenda da Ordem do Cru-zeiro do Sul.

    Agora, o mestre j se foi. Mas record-lo, no Brasil, tambm olhar para o futuro. As suas lies no s se mantm presentes na firmeza dos resultados obtidos, mas ainda mais: elas se projetam no futuro, atravs de uma nova escola que, sem negar o passado e mesmo apegando-se a ele, toma impulso com pro-psitos renovados: os estudos constitucionais do processo, e m que as atenes se voltam ao dados jurdico-constitucional, como resultante das foras polticas e sociais de determinado momento histrico; a transformao do processo, de meio puramente tcnico, e m instrumento tico e poltico de atuao da justia e garantia das liberdades; a total aderncia do processo realidade scio-jurdica a que se destina, para o integral cumprimento da sua vocao primordial, que , afinal de contas, a de servir efetiva atuao dos direitos materiais. Assim, a vertente dos estudos dos novos processualistas brasileiros desloca-se para o instrumentalismo substancial do processo e para a efetividade da justia, pas-sando todo o sistema processual a ser considerado como o instrumento indis-pensvel para atingir os escopos polticos, sociais e jurdicos da jurisdio, e a tcnica processual, como u m meio para a obteno de cada u m destes.

    Mas, a verdadeira novidade dessa orientao, que a distingue de outras de tendncia sociolgica, a estrita fidelidade ao mtodo tcnico cientfico. E em So Paulo que ainda uma vez os processualistas, a partir do movimento de renovao de Liebman, se identificam em uma perfeira unidade de pensamento, caracterizando aquela que se poderia chamar a Nova escola processual de So Paulo. Conciliando e fundindo o pensamento e o mtodo tcnico-cientfico com as preocupaes scio-polticas, a nova escola congrega processualistas civis e penais que, a partir de uma teoria geral, se dedicam aos problemas atuais do processo, na plena observncia dos mais rigorosos cnones cientficos e empre-gando escrupulosamente a tcnica processual para atingir os diversos escopos da jurisdio. N o seio da nova escola, j vai-se formando uma pliade de jo-vens processualistas - os processualistas de "terceira gerao" -, que so aqueles dos quais, no futuro, se espera a continuidade do pensamento e do m-todo de Liebman, passando atravs de Buzaid, Vidigal, Celso Neves e de seus discpulos, hoje professores titulares.

    Hoje pode-se afirmar a existncia de uma Escola brasileira de processo que deixa suas razes na Escola paulista, originria dos ensinamentos do mestre.

    E em So Paulo, na Faculdade de Direito, o surgimento de uma Nova Es-cola, aberta s tendncias sociolgicas, mas apegada ao mtodo tcnico-cient-fico herdado de Liebman.

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    assim que se perpetua no Brasil o magistrio do Mestre. assim que se preserva a sua memria, passando-a s geraes futuras. E assim que se vence a dor pela perda do Amigo paterno e inesquecvel.

    So Paulo, maro de 1987