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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAJLIO DE MESQUITA FILHO Faculdade de Cincias e Letras Campus de Araraquara - SP

SLVIA MARIA GOMES DA CONCEIO NASSER

O LEITOR DOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS O LEITOR DOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

ARARAQUARA S.P. 2009

SLVIA MARIA GOMES DA CONCEIO NASSER

O LEITOR DOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Lingustica e Lngua Portuguesa da Faculdade de Cincias e Letras UNESP/Araraquara como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Lingustica e Lngua Portuguesa.

Linha de pesquisa: Estrutura, organizao e funcionamento discursivos e textuais Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina

ARARAQUARA S.P. 2009

SLVIA MARIA GOMES DA CONCEIO N ASSER

O LEITOR DOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS O LEITOR DOS CONTOS DE MACHADO DE ASSISDissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Cincias e Letras UNESP/Araraquara como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Lingustica e Lngua Portuguesa. Linha de pesquisa: Estrutura, organizao e funcionamento discursivos e textuais Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina

Data da defesa: 05/08/2009 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:

Presidente e Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina UNESP

Membro Titular: Prof. Dr. Luiz Gonzaga Marchezan UNESP

Membro Titular: Prof. Dra. Norma Discini de Campos- USP

Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Cincias e Letras UNESP Campus de Araraquara

Ao Ivan, ao Mario e ao Miguel.

AGRADECIMENTOS

Este trabalho realizou-se devido ajuda, compreenso, ao estmulo, ao companheirismo, amizade, confiana de vrias pessoas. A elas, um agradecimento especial: ao meu orientador, Prof. Dr. Arnaldo Cortina, cuja competncia, tica e dedicao um exemplo de vida acadmica, por ter acreditado em meu potencial e pela extrema pacincia e compreenso com que sempre me orientou; aos professores Luiz Gonzaga Marachezan e Tieko Yamaguchi Myizaki pelas contribuies a este trabalho na Qualificao; aos professores da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras, da UNESP, em especial professora Renata Coelho Marchezan pelo constante estmulo; aos funcionrios da Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da UNESP, pela ateno e ajuda; aos meus colegas Levi e Bruna, sempre dispostos a ajudar; aos meus pais, Yvani e Valentin, cujos ensinamentos foram os mais importantes da minha vida; ao meu marido Miguel, cujo apoio, carinho e estmulo foram decisivos para a realizao deste trabalho.

No sei se j alguma vez disse ao leitor que as idias, para mim, so como as nozes, e que at hoje no descobri melhor processo para saber o que est dentro de umas e de outras, seno quebr-las. Machado de Assis (2006, v.3, p.448).

RESUMO

Este trabalho pretende apresentar a imagem do leitor configurada nos contos de Machado de Assis. Busca-se, a partir da imagem materializada do leitor presente nos contos, (re)construir seu perfil elaborado no instante da enunciao. Para a realizao dessa anlise proposta, so considerados somente os contos machadianos em que o sujeito para quem o enunciador se dirige materializado no discurso. O suporte terico empregado para a conformao do perfil desse leitor a semitica greimasiana. Os elementos focalizados na anlise dos contos foram as relaes estabelecidas no discurso entre enunciao e enunciado e as projees do enunciatrio no enunciado - visto, ento, como narratrio. Tambm houve a preocupao de abordar os recursos argumentativos empregados, os temas e as figuras recorrentes e o emprego da intertextualidade como elementos indicadores do perfil do leitor machadiano. Da anlise dos contos, emergem perfis de leitores: o primeiro deles o leitor afeito ao sentimentalismo romntico a ele as referncias so sempre rpidas e superficiais. O segundo modelo de leitor aquele que Machado de Assis busca constituir para a nova literatura que inaugura, livre das amarras da narrativa convencional do incio do sculo XIX. um leitor que elaborado para ser crtico dos tipos humanos ou de flagrantes da vida. Presente como testemunha ficcional, recebe do narrador detalhes pormenorizados da narrativa que lhe permitem localizar-se diante dos fatos apresentados. Esses so talhados para corresponder s expectativas desse leitor. Ao mesmo tempo em que o narrador conquista a sua confiana, demonstra sutilmente a necessidade de se ter uma postura reflexiva e crtica diante dos episdios narrados. Esse mesmo leitor, alm de elaborado para ser um crtico dos valores humanos e sociais a ele apresentados, em alguns contos, constitudo para reconhecer a artificialidade dos procedimentos narrativos comuns poca. Com ele o narrador estabelece um dilogo metalingustico no qual discute os recursos empregados; desse modo, ao remeter o leitor para um texto que se volta sobre si mesmo, sobre sua prpria materialidade, elabora tambm um leitor capaz de construir, ao lado do escritor, uma literatura moderna livre das imposies dos textos ficcionais modelares. Palavras chave: Leitor. Machado de Assis. Contos. Semitica.

ABSTRACT This work intends to present the readers profile of Machado de Assis short stories. The researched data compiled to establish the corpus of this work was made through the short stories that present a concrete image of their readers. The theoretical plateau adopted to create the Machado de Assis short stories reader was based from the Paris School of semiotics. For the analysis of the reading matter, it were chosen the exam of the manifestations of the discourse enunciation, the projection of the enunciator and the enunciate. Also it had the concern to approach the recurrent resources employees, subjects and figures as indicating elements of the profile of the Machados reader. There are two profiles of readers. The first one is the typical reader of the romantic novels their references are always fast and superficial. The other one is the kind of reader that Machado de Assis would like to conform for the new literature that he begins, different from the conventional literature of the beginning of nineteenth. These readers are elaborated to be critical of the human types or instants of life. They are fictional witness and they receive the details of the stories that allow them to be situated ahead of the facts. The short stories elements correspond to the expectations of these readers, so the narrator conquests their confidence. Together, both of them are able to have a critical vision of the episodes. The readers are conformed to be a critical idea of the human and social values too and they are configured to recognize the artificial narrative procedures. The narrator establishes a metalinguistic dialogue in which discusses the resources used and he refers the readers to a text that turns on itself, on its own materiality. Thus also produces a reader capable of building, beside the writer, a modern literature free of charge model of fictional texts. Keywords: Reader. Machado de Assis. Short stories. Semiotic.

SUMRIO

INTRODUO ........................................................................................................................p. 9 1 O encontro com o leitor ........................................................................................................p. 12 2 O encontro com os leitores de Machado Assis....................................................................p. 18 3 O leitor de folhetins...............................................................................................................p. 27 4 O leitor crtico do ser humano .............................................................................................p. 33 5 A conformao de um novo leitor em Miss Dollar e A chave....................................p. 51 6 A interlocuo presente em O cnego ou metafsica de estilo.......................................p. 68 CONSIDERAES FINAIS...................................................................................................p. 79 REFERNCIAS.......................................................................................................................p. 83 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.........................................................................................p. 85

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INTRODUO

Todo texto estabelece um dilogo entre leitor e narrador. Quem escreve, escreve para dizer algo a algum. imperativo. Umberto Eco (2003, p. 304305) explicita a importncia do leitor:

Tenho me perguntado muitas vezes: escreveria ainda se me dissessem, hoje, que amanh uma catstrofe csmica destruir o universo, de modo que ningum poder ler aquilo que hoje escrevo? Em primeira instncia a resposta no. Por que escrever se ningum vai poder ler? Em segunda instncia, a resposta sim, mas somente porque nutro a desesperada esperana de que, na catstrofe das galxias, alguma estrela possa sobreviver e amanh algum possa decifrar os meus signos. Ento escrever, mesmo na vspera do Apocalipse, ainda teria um sentido. S se escreve para um leitor. Quem diz que escreve apenas para si mesmo no que minta. assustadoramente ateu. At mesmo de um ponto de vista rigorosamente laico. Infeliz e desesperado aquele que no sabe se dirigir a um leitor futuro.

O escritor produz o seu texto para um pblico real, presena fsica que l e consome a obra. Ambos, escritor e leitor real, no pertencem ao texto, mas a um momento histrico e caracterizam-se por traos culturais determinados pela sociedade qual pertencem. Esse autor, cultural e socialmente constitudo, ao produzir o seu texto, assume o papel de um enunciador de sentidos, de um sujeito produtor de um discurso. Assim, a pessoa real, presena concreta do escritor, desaparece, e emerge do texto o autor implcito, virtual. Transfigurado em narrador, suas marcas caractersticas se espalham por todo o seu discurso. Ao elaborar o seu texto, esse enunciador instaura tambm o seu interlocutor com quem estabelece um dilogo e com quem divide os valores expressos. Essa imagem de leitor construda pelo narrador no equivale integralmente ao leitor real que visualiza, que l a obra, presena fsica que consome o livro como uma mercadoria. Sua existncia deixa de ser biolgica, social e poltica. Emerge o leitor virtual, a imagem daquele para quem o texto foi construdo, capaz de estabelecer o dilogo prprio da leitura. Diferentemente do leitor concreto, de carne e osso, o leitor implcito no um mero espectador, mas um interventor: todas as escolhas do enunciador se fazem em funo da imagem que elaborou do seu destinatrio. O leitor, portanto, interfere tambm como filtro e produtor de sentidos. a partir dessa relao entre leitor e autor virtuais, da imagem projetada desse destinatrio ideal no discurso que se (re)constri a imagem do leitor dos contos de Machado

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de Assis. O interesse deste trabalho recai sobre a interao entre leitor implcito e texto no ato da leitura, ou entre narrador e narratrio no processo da narrao, e no sobre as condies materiais de circulao e recepo da obra. A escolha dos textos de Machado de Assis deve-se ao fato de que o autor dedica-se ao leitor com assiduidade: no s nos contos, mas tambm nos romances, nas crnicas e na crtica, h uma procura incessante de um status para essa figura. Em verso masculina ou feminina, passivo ou crtico, questionador ou compassivo, no jogo ficcional, o leitor uma figura onipresente. Implicado no ato da escrita, participa da estrutura interna do texto que, por definio, sempre quer estabelecer um processo de comunicao. A narrativa machadiana, que mostra toda a vida do Rio de Janeiro do incio ao fim do sculo XIX, evidencia as relaes sociais caractersticas presentes no interior das famlias, no exerccio das profisses, na vida pblica, focalizando-as, geralmente, entre pessoas situadas em nveis distintos. Alfredo Bosi (2003) ressalta a assimetria e a disparidade social como leis que regem a sociedade retratada por Machado de Assis e, principalmente, afirma que o retrato da sociedade fluminense repleta de desigualdades e diferenas que Machado nos fornece no se justifica pela ideologia cientificista que orientou a literatura realista. Segundo Bosi (2003, p.154),

O olhar com que Machado penetra aquele universo de assimetrias tende a cruzar o crculo apertado dos condicionamentos locais na direo de um horizonte ao mesmo tempo individual e universal. Interessam-no cada homem e cada mulher na sua secreta singularidade, e o ser humano no seu fundo comum.

Machado de Assis escreveu cerca de 200 contos entre 1858 e 1907 (faleceu em 1908). Neles possvel reconhecer o homem brasileiro integralmente: focalizou no s a sociedade carioca reflexo da sociedade brasileira , mas tambm revelou o universo humano ao analisar a alma humana os desejos, a dvida, a ambio, o egosmo, a falsa modstia, a superioridade. Desenhar seu leitor traar, tambm, o perfil de um homem marcado por caractersticas que ultrapassam sua poca, seu contexto social e sua cultura. Para resgatar o contorno dessa projeo do leitor nos contos machadianos, fez-se necessria uma seleo dos contos que constituem o corpus deste trabalho: so as narrativas em que as referncias ao narratrio so materializadas na lngua por meio de substantivos, pronomes, verbos, diticos espaciais e temporais elementos que remetem instncia da enunciao todos reveladores de sua presena e responsveis tambm pela produo de sentido. Nessas narrativas nas quais a imagem do leitor vem constituda, o narrador

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frequentemente estabelece um dilogo com o leitor, ou para instig-lo a refletir sobre a estrutura narrativa que, ao mesmo tempo em que a analisa, constri; ou para conduzi-lo pelo enredo, guiando-o pelos caminhos por ele constitudos. como contribuio para a construo dos sentidos dos contos machadianos que este trabalho se volta: delinear os perfis dos seus leitores desvendar elementos constituintes do seu sentido, uma vez que todas as escolhas do enunciador estiveram sujeitas imagem por ele construda do enunciatrio. O leitor no um mero expectador. Segundo Cortina (2004, p.184), [] a categoria do leitor determinante no processo de produo do texto, uma vez que este s existe em funo daquele. Na medida em que esse tipo de leitor uma instncia interna ao texto, por ele controlado. O propsito de restaurar o perfil do leitor machadiano realiza-se, neste trabalho, por meio de seis partes. A primeira delas expe o discurso terico que amparou as anlises e uma breve discusso sobre alguns conceitos de leitor. A segunda mostrar o contexto social e histrico ao qual esses contos pertencem, a ntima ligao de Machado de Assis com o jornalismo, os principais temas abordados e, principalmente, a sua preocupao com o leitor. A terceira seo abordar o leitor afeito esttica romntica, preso ainda literatura fantasiosa e idealizadora que povoa alguns contos elaborados at 1880. A quarta e a quinta partes traro as anlises de contos que revelaro dois tipos de leitores elaborados: primeiramente aquele que tem a orientao do narrador que o conduz a uma postura reflexiva diante de fatos ou tipos humanos; depois o leitor autnomo e crtico das estruturas narrativas convencionais, com quem o narrador sempre trava um dilogo metalingustico. A sexta seo apresenta uma anlise do conto O cnego ou metafsica do estilo, que se destaca dos demais porque narrativiza o ato da escrita. Nas consideraes finais, retomar-se-o as caractersticas dos leitores dos contos machadianos.

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1 O encontro com o leitor

[] a escolha que o autor faz de determinado aspecto do mundo decisiva na escolha do leitor, e, reciprocamente, que escolhendo o seu leitor que o escritor decide qual o seu tema. Assim, todas as obras do esprito contm em si a imagem do leitor a quem se destinam. Jean-Paul Sartre (1989, p.56).

Segundo Lajolo e Zilberman (1999), no possvel traar a biografia do leitor brasileiro, mas possvel narrar a sua histria. O leitor essa importante figura responsvel pela produo do sentido do texto tem sua histria iniciada na Europa do sculo XVIII a partir da Revoluo Francesa. Ao se distanciar das decises do mbito poltico, das quais o Estado se encarrega, a famlia burguesa torna-se agregadora, e a leitura invade o seu lar e passa a fazer parte da classe mdia. No Brasil, o leitor surge efetivamente com o desenvolvimento da imprensa; evolui com a ampliao do mercado do livro, com a alfabetizao das populaes urbanas e, como nos modelos europeus, com a valorizao da famlia. Nesse contexto, o livro torna-se tambm uma importante forma de lazer. Voltados para um pblico consumidor, os romances e contos brasileiros do sculo XIX tm como foco o leitor. Os escritores concentram-se em jornais e buscam profissionalizar-se; os leitores passam a ter grande importncia, pois se tornam os consumidores dos folhetins. A essa figura do leitor visto como consumidor, ser concreto, contrape-se a imagem de leitor virtual, idealizado no momento da produo do discurso. Tambm o escritor, nessa instncia a que a semitica denomina enunciao, deixa de ser real e passa a ser uma projeo. Ambos, autor e leitor virtuais, respectivamente enunciador e enunciatrio, sujeitos da enunciao, so os responsveis pelo sentido. Transfigurados em narrador e narratrio, suas marcas projetam-se no enunciado e revelam seus traos caractersticos. Assim, por meio da anlise do dilogo estabelecido entre eles, possvel traar no s o contorno do autor implcito, mas tambm o perfil do seu leitor virtual. Alm de Lajolo e Zilberman (1999), outros autores trataram da importncia da figura do leitor. Entre eles, Sartre (1989), que o v como elemento constituinte do sentido de um texto, ao afirmar que a imagem do leitor concretiza-se nas referncias que a obra faz a

[] instituies, costumes, a certas formas de opresso e de conflito, sabedoria ou loucura do dia, a paixes durveis e obstinaes passageiras,

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a supersties e conquistas recentes do bom senso, a evidncias e ignorncias [...]; enfim aos costumes e valores recebidos, a todo um mundo que o autor e o leitor tm em comum. (SARTRE, 1989, p.40).

Embora o conceito de leitor e autor para Sartre (1989) no faa distino entre o autor e o leitor enquanto figuras pertencentes ao mundo real e o autor e o leitor enquanto sujeitos construdos pelo discurso enunciador e enunciatrio, como prope a semitica , seus apontamentos trazem contribuies positivas para a elaborao do perfil do leitor e para o reconhecimento de sua importncia. Ao pressupor que leitor e escritor compartilhem o mesmo momento poltico e cultural, o que se reflete nos temas, nas formas e nas abordagens literrias, Sartre indica que possvel desenhar a imagem de ambos a partir desses elementos socioculturais caractersticos. Esse aceno possibilidade de se elaborar uma imagem do leitor tambm se realiza nas propostas de Wolfgang Iser. Segundo Luiz Costa Lima (2002), Iser partiu da formulao segundo a qual, nas interaes humanas, aos pares, a cada parceiro impossvel saber qual a imagem que o outro faz de si. Assim, no conhece precisamente o pleno sentido de uma informao, j que ela depende da imagem do locutor construda pelo seu interlocutor. Surgem, ento, lacunas nos enunciados que sero preenchidas pela interpretao dos locutores e interlocutores. Assim tambm ocorre na relao entre texto e leitor: este se v obrigado a preencher os vazios do texto. Ainda, segundo Lima (2002), Iser focaliza a ponte que se estabelece na leitura entre o texto com seus vazios a serem preenchidos e o leitor entidade textual implicada no ato da escrita e participante da estrutura interna do texto. Obrigado a preencher os seus vazios, o leitor atualiza o significado potencial de um texto, tornando-se seu co-autor. Apesar de sua proposta terica tambm se distanciar da teoria semitica Iser no distingue o conceito de enunciatrio e de leitor real , a proposio de que o leitor tambm responsvel pelos sentidos do texto revela o efetivo trabalho do leitor no texto da leitura. A ponte que se estabelece entre o leitor implcito e o texto com seus vazios a serem preenchidos , focalizados por Iser, ressoa nas propostas de Umberto Eco (2004) sobre o papel do leitor. Eco distingue os textos de expresso com maior complexidade pelo fato de serem entremeados do no-dito, a que ele atribui o significado de no manifestado em superfcie no nvel de expresso. E o papel do leitor seria decisivo para a atualizao do contedo. Em outras palavras, o autor afirma que o texto apresenta lacunas que precisam ser preenchidas a fim de que o seu sentido seja atualizado. E o responsvel por isso o

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destinatrio que, por meio de movimentos cooperativos, conscientes e ativos, introduz, nesses interstcios textuais, a valorizao do sentido de que todo texto necessita. A funo do leitor, portanto, de construir, juntamente com o autor, o sentido do texto: [] o texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa, embora costume ser interpretado com uma margem suficiente de univocidade. Todo texto quer que algum o ajude a funcionar. (ECO, 2004, p.37). Assim, todo texto pressupe o destinatrio como elemento indispensvel para a sua realizao, no s considerando o seu potencial comunicativo, mas tambm o seu potencial significativo. interessante notar as observaes de Umberto Eco (2004) a respeito do sentido do texto, uma vez que tangenciam a afirmao de Sartre (1989), citada no incio desta seo, de que um texto nada mais do que um dilogo entre o autor e o leitor que partilham o mesmo contexto sociocultural. Eco (2004), ao referir-se cooperao textual entre ambos, afirma que uma mensagem verbal, na comunicao escrita diferente do que ocorre na comunicao face a face, na qual concorrem elementos de reforo extralingusticos, tais como os gestos, as expresses faciais etc , deve conter estruturas que complementam ou auxiliam o sentido das expresses usadas pelo autor, a fim de que o leitor trilhe as possibilidades mais adequadas de interpretao. necessrio, portanto, que ambos, autor e leitor, possuam as mesmas competncias para que este seja capaz de cooperar para a atualizao textual como aquele havia engendrado, e tambm caminhar pelos sentidos do texto segundo aquele caminhou ao ger-los. Eco (2004) v, portanto, a participao efetiva do destinatrio na construo dos sentidos do texto. Denomina-o Leitor-Modelo e considera-o indispensvel, porque constitui elemento da comunicao e coopera para a atualizao textual, pois participou do processo gerativo do texto. Afirma ser tambm um enunciatrio que se pode construir, j que, ao escolher seu vocabulrio, suas estruturas sintticas, as relaes intertextuais, o enunciador est elaborando um prottipo de leitor capaz de mover-se com desenvoltura pelos significados propostos. Por outro lado, pode estar habilitando um leitor, dando-lhe subsdios necessrios para a participao do processo de construo de significado do discurso, o que implica tambm ser seu co-autor. Vale observar que Eco (2004) distingue dois tipos de destinatrio das mensagens, afastando-se do que afirma Benveniste (1995), para quem o eu que enuncia sempre um papel actancial. Eco (2004) prope que, em textos referenciais ou em textos que so lidos para adquirir informaes acerca de seu autor e das circunstncias de enunciao, o emissor e o destinatrio apresentam-se como polos do ato de enunciao. Distinguem-se do enunciador e

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do enunciatrio papis actanciais presentes em textos direcionados para um pblico mais amplo, como romances, discursos polticos etc., que so no mais seres reais, mas projees no enunciado. Conclui que, embora distintos, autor e Leitor-Modelo devem ser entendidos como estratgias textuais. Os conceitos de Eco (2004), Sartre (1989) e Iser (apud COSTA LIMA, 2002), embora distintos entre si e da teoria semitica, evidenciam a importncia do leitor no ato da leitura como co-autor do texto. Neste trabalho, a conformao dos leitores dos contos de Machado de Assis se faz a partir da imagem de autor e leitor vistos como enunciador e enunciatrio, ambos instaurados no momento da enunciao, segundo a perspectiva semitica projetados no enunciado como narrador e narratrio. A semitica busca os sentidos de um texto por meio da anlise de seu plano de contedo, que se estrutura em um processo gerativo de sentido: do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Essa passagem faz-se por meio de trs etapas denominadas nveis. Cada um deles tem sua gramtica, uma sintaxe e uma semntica que estruturam a significao. Tem-se, ento, o nvel fundamental, que estrutura o sentido em uma oposio bsica, por exemplo, vida versus morte, bem versus mal, liberdade versus privao. Em seguida, o nvel narrativo estabelece a organizao da narrativa por meio da mudana do estado inicial de um sujeito para um estado final, ambos caracterizados pela juno ou disjuno de um objeto de valor e pela disposio eufrica ou disfrica em relao a esse objeto. O terceiro patamar, mais complexo e superficial, o nvel discursivo. Nele, as categorias de tempo, espao e pessoa revestem-se de figuras escolhidas pelo sujeito da enunciao. Uma anlise do nvel discursivo revela a enunciao, pois nele se veem projetados os elementos do nvel narrativo. A imagem do enunciatrio dos contos de Machado de Assis privilegiar o estudo do nvel discursivo, j que este revela [] as projees da enunciao no enunciado, os recursos utilizados pelo enunciador para manipular o enunciatrio, a cobertura figurativa dos contedos narrativos abstratos. (BARROS, 1990, p. 53). Na enunciao, ato de produo do discurso, h o dilogo entre um eu pressuposto enunciador e um tu, seu enunciatrio. O produto da enunciao o enunciado traz a projeo tanto do enunciador quanto do enunciatrio. As imagens do eu e do tu projetados passam a ser denominadas, respectivamente, narrador e narratrio. a figura desse narratrio, presena materializada do leitor no discurso, que revela a imagem do enunciatrio, construda no instante da enunciao. No discurso, enunciador e enunciatrio transformam-se no sujeito produtor de sentidos, pois o enunciador faz as escolhas em funo do enunciatrio que elaborou. Ao

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mesmo tempo, o dilogo caracterstico da enunciao somente se concretiza se baseado em um contrato fiducirio entre os sujeitos. A anlise desses contratos ser relevante para se elaborar o perfil desse leitor machadiano. Se o enunciador prope que um discurso X deve ser lido como X, ou seja, um acordo entre enunciado e enunciao, o enunciatrio segue a narrativa nos limites da previsibilidade, da certeza; consegue perceber o jogo entre verdades e falsidades. Crente, acompanha as orientaes do enunciador e v suas previses concretizarem-se. De outro lado, se h um conflito, uma oposio entre o que o enunciador prope e a leitura que deve ser feita pelo enunciatrio o discurso X deve ser lido como no X este enfrenta um discurso repleto de surpresas, imprevisibilidades, que, embora seja surpreendente, construdo em meio a falsidades, disfarces e mentiras, produz novos saberes. O contrato estabelecido, portanto, configura o leitor: pode ser o que se move com desenvoltura pela narrativa, ou aquele cuja disposio seguir os apontamentos do narrador. Tambm as marcas da enunciao no enunciado constituem importantes indicadores do enunciatrio. O mecanismo responsvel por essa projeo a debreagem revela efeitos de sentido diferentes de acordo com as pessoas, tempos e espaos que instaura. O efeito de subjetividade e a debreagem chamada enunciativa, quando se projeta no enunciado o eu/aqui/agora; um efeito de sentido de objetividade gerado e a debreagem enunciva, se instaurado no enunciado um ele/l/ento. A anlise da debreagem, portanto, determinante na constituio do narratrio dos contos machadianos. Na semntica discursiva, tem-se a concretizao das mudanas de estado do nvel narrativo. Torna-se, portanto, importante a sua anlise, pois reveladora da instncia da enunciao, momento em que se projeta a imagem do enunciatrio. As formas de concretizao do sentido processam-se por meio da tematizao e da figurativizao. Enquanto esta responsvel por revestir os actantes do nvel narrativo, transformando-os em atores do nvel discursivo, composta por um conjunto de figuras lexemticas relacionadas concretizao de um tema; aquela remete ao tema propriamente dito, aos aspectos morais, ticos implicados pelas figuras. A anlise dos percursos figurativos e temticos revela os efeitos de realidade ou irrealidade no texto e a sua implicao ideolgica. Sustentam, com a coerncia que estabelecem no discurso, o fazer persuasivo do narrador e o fazer interpretativo do narratrio. Tambm a intertextualidade tem um papel fundamental no estudo da imagem do leitor enquanto um construtor de textos, pois o processo que estabelece na leitura o de produo de [] um texto que tinha como referente outro texto. (CORTINA, 2000, p.58).

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Percursos figurativos e temticos e intertextualidade, alm da projeo da enunciao no enunciado e dos contratos estabelecidos pelo enunciador so os elementos analisados para se chegar configurao do leitor dos contos machadianos.

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2 O encontro com os leitores de Machado de Assis

BONS DIAS! Vejam os leitores a diferena que h entre um homem de olho alerta, profundo, sagaz, prprio para remexer o mais ntimo das consequncias (eu, em suma), e o resto da populao. Toda a gente contempla a procisso na rua, as bandas e bandeiras, o alvoroo, o tumulto, e aplaude ou censura, segundo abolicionista ou outra coisa; mas ningum d a razo desta ou daquela coisa; ningum arrancou aos fatos uma significao, e, depois, uma opinio. Creio que fiz verso. Machado de Assis (2006, v.3, p. 448).

A segunda metade do sculo XIX perodo da produo machadiana caracterizouse como uma poca sem autonomia, instvel porque estava em transformao: era a passagem de uma estrutura colonial para uma republicana, de uma sociedade escravista e rural para uma sociedade burguesa e urbana. Esse novo painel que comea a se conformar vem pintado de novas ideologias, mas ainda apresenta contornos distantes e antigos. Desde a sua formao, o Brasil estruturou-se numa sociedade rural, constituda de uma aristocracia que empregava a mo-de-obra escrava para produzir suas riquezas: inicialmente a cana-de-acar, depois o caf. Paralelamente a essa aristocracia e massa de escravos, Faoro (2006) afirma que surge uma nova classe social formada por comerciantes e donos de capitais que possibilitavam o estabelecimento desse sistema rural. So responsveis no s pelo fornecimento de escravos e equipamentos, mas tambm pela compra da produo. Essa nova classe social engrossar e constituir a base da sociedade burguesa urbana brasileira. Enquanto na sociedade colonial a tradio e a origem ilustre garantem o status social elevado, a nova sociedade burguesa que emerge estrutura-se em classes: o dinheiro a mola impulsora, a garantia da ascenso social. Apesar de firmar-se no mais alto nvel econmico, a burguesia no domina o campo social, nem detm o poder poltico, porque a estrutura emergente, apesar de nova, mantm, como resqucio de sculos da dominao da nobreza, a mesma concepo de poder: ele sempre estar nas mos daqueles cujos nascimentos ilustres os tornam legtimos governantes. Resta burguesia o reconhecimento social, o qual somente consegue ao empregar seu poder econmico na compra de patentes e ttulos que, como um verniz, escondem a mcula dessa classe emergente: a sua origem comum. Apesar de rica e depois reconhecida, a burguesia da segunda metade do sculo XIX ainda no domina nem

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governa: apoia-se na estrutura tradicional que decide os rumos polticos do Brasil, distribui os cargos e os empregos pblicos. Segundo Faoro (2006), h, portanto, duas faixas distintas na ao: a classe burguesa em ascenso, sem autonomia poltica, e a aristocracia, que constitui [] o estamento poltico, que orienta e comanda o Segundo Reinado. (FAORO, 2006, p. 14). Ainda segundo Faoro (2006), Machado de Assis teria assumido como sucessor da literatura nacionalista de Jos de Alencar, que romanticamente exaltara a natureza e valorizara os costumes e o passado colonial uma nova poca, caracterizada pelo tom urbano da sociedade brasileira e pelo fim do sistema escravista e da hegemonia do poder do imperador. Ao conformar a imagem dessa sociedade em transformao em sua obra, estilizou os fatos e os homens, construindo um modelo artificial dessa transio. Isso se justifica no s porque molda um mundo ficcional, mas tambm pelo fato de que as concepes que regem a sociedade da poca so muito divergentes, impossibilitando a construo de um painel que a retrate fielmente. Sensvel a essas transformaes, o leitor do sculo XIX no se convence mais com os modelos antigos de personagens ficcionais e, ao mesmo tempo, v com desprezo e desconfiana os novos modelos forjados. Machado de Assis, quando opta por adequar seus personagens, criando para eles um status intermedirio, transitrio como a sociedade em que esto inseridos, parece corresponder s expectativas desse seu pblico leitor. Na obra machadiana, ento, emerge a personagem cujo status no garantido somente pelo dinheiro. As circunstncias externas origem, cunhagem, poder econmico concorrem para a ascenso social, mas somente a disposio individual marcar o ritmo da escalada social; a ambio e a paixo da personagem so determinantes para o seu reconhecimento. O poder acessvel para aqueles que se dispem a conquist-lo. Na obra machadiana, portanto, as estruturas sociais so movidas pelos desejos individuais. a ambio que leva o indivduo ascenso social e, consequentemente, busca do poder. Crtico de sua poca, mas principalmente do ser humano, de viso agudssima, Machado de Assis mostrou, em sua fico, uma preocupao constante com a configurao da alma humana, evidenciando o paradoxal jogo entre os interesses humanos e as imposies sociais. Isso se evidencia em quase toda a obra que escreveu e publicou em mais de quarenta peridicos existentes no Brasil desde o incio de sua carreira na dcada de 1850: so crticas, crnicas, poemas, contos, romances, peas de teatro, polmicas, discursos, homenagens e tradues.

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Quase todos os seus contos foram tambm originalmente publicados em jornais e em revistas, fato que, segundo Gledson (2006), justifica em parte a extenso das histrias, feitas sob medida para o espao que iriam ocupar, e at mesmo identifica o pblico para o qual foram escritos. Trinta por cento deles foram aproveitados para a publicao da sua obra definitiva em prosa. O resultado so os sete volumes de contos por ele organizados: Contos fluminenses (1870), Histrias da meia-noite (1873), Papis avulsos (1882), Histrias sem data (1884), Vrias histrias (1895), Pginas recolhidas (1899) e Relquias da casa velha (1905). Machado publicou sessenta e trs contos no Jornal das Famlias (1863 1878), nos perodos de junho de 1864 a janeiro de 1869 e de junho de 1872 a novembro de 1873. Dessas histrias, onze foram selecionadas para constituir as duas primeiras coletneas por ele organizadas: Contos fluminenses, de 1870, e Histrias da meia-noite, de 1873. O Jornal das Famlia, segundo Gledson (2006), era uma publicao ilustrada, recreativa e artstica que circulou no Rio de Janeiro na segunda metade do sculo XIX. Conservadora, inicialmente de tom religioso e moralizador, tinha como alvo a famlia e destinava vrias sees s mulheres, que ali encontravam orientaes sobre moda, higiene e culinria. Mas o grande atrativo desse peridico encontrava-se na seo Romances e Novelas, localizada na parte central do Jornal das Famlias. Ocupando a metade do contedo das pginas desse jornal (cerca de trinta, no total), estava destinada literatura: continha contos, novelas e poesias. Os contos machadianos a publicados apresentam histrias voltadas para esse pblico leitor essencialmente feminino e abordam temas como o amor e o casamento, desenvolvidos no contexto ideolgico da poca, caracterizado pelas rgidas imposies sociais. As narrativas, em sua maioria, giram em torno do amor como fora poderosa, nico meio de realizao e felicidade a quem a ele se submete. Para aqueles que no conseguem concretiz-lo por meio do casamento, restam somente o sofrimento e at a morte. A fora positiva do amor o tema de muitos desses contos publicados no Jornal das Famlias: Linha reta e linha curva (1865) no qual os protagonistas, inicialmente obedientes aos seus propsitos pessoais, negam-se ao amor; este, invencvel, conduz os amantes a, enfim, gozarem a plena e real felicidade atingida com o enlace matrimonial , As bodas de Lus Duarte (1873) que narra o dia do casamento de Lus Duarte e Carlota, desde os preparativos at o final da cerimnia, depois de longo tempo de namoro e Ernesto de tal (1873) narrativa na qual, aps atribulaes no namoro, o casamento vem trazer a felicidade ao casal. Como o amor a nica via que conduz plena e superior realizao, aqueles que no o encontram ou esto impossibilitados de realiz-lo sucumbem decepo,

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frustrao. Esse destino desastroso revelado no conto Frei Simo, de 1864: enganado pela prpria famlia que lhe dissera estar morta a mulher amada, o protagonista faz da prpria existncia como religioso o seu calvrio. Resta-lhe a amargura de nunca ter ao seu lado o verdadeiro amor. Os enredos mudam, mas o tema do amor aliado ao casamento como fator determinante da felicidade o cerne desses contos. Embora Gledson (2006) afirme que Machado de Assis percebeu a dificuldade de dramatizar tenses como a escravido e o amor entre pessoas de classes sociais diferentes, pois eram tabus fortes para serem discutidos na sociedade brasileira do fim do sculo XIX, a obra machadiana evidencia um enunciador crtico, consciente da sociedade que retrata e que, na maioria das vezes, emite juzos de valor. Machado no se conformou como um escritor sujeito a esquemas narrativos pr-concebidos, fossem eles romnticos ou realistas. Seus contos traam a trajetria de um autor cuja linguagem aos poucos se vai amalgamando, assumindo uma forma indita e autnoma. Ao mesmo tempo em que constri a sua fico, vai tambm elaborando o seu leitor. Junto com Machado, conduzido pelo brao ou na posio de um observador crtico, esse leitor ideal tambm evolui capaz de realizar uma leitura crtica e reflexiva. o que se evidencia em contos como Lus Soares (1864), O segredo de Augusta (1968), Aurora sem dia (1873) e O relgio de ouro (1873), todos tambm publicados no Jornal das famlias. Embora sejam voltados para o pblico desse peridico, ora abordam temas inusitados, provocadores de reflexo e com tendncias crticas sociedade e ao homem da poca, ora exigem do leitor uma postura mais atenta em relao ao esquema narrativo que constri, repleto de surpresas que se resumem constante quebra de expectativas criadas pelo prprio narrador, com o intuito de apresentar uma nova configurao para os clichs esquemticos to comuns s narrativas seguidoras das tendncias literrias daquele momento. Nesses contos, o amor deixa de ocupar o espao central para ceder lugar anlise de caracteres humanos e ao enfoque dos problemas sociais. Surgem enredos que abordam, de forma diferente, temas inadequados segundo os conceitos morais da poca: a preocupao com a aparncia, o valor excessivo dado ao dinheiro, o adultrio e o egocentrismo humano desenvolvem-se sutilmente, mas nunca superficialmente nos contos. Em Lus Soares (1864), a convivncia em uma sociedade, na qual somente o cumprimento das suas regras garante a sobrevivncia fsica e o reconhecimento social, leva Lus Soares ao suicdio aps ter dissipado sua fortuna e ver-se merc do desprezo social a que tinha que se submeter. A necessidade de ser destaque em uma sociedade que valoriza os bens materiais e a aparncia fsica tambm o tema de O segredo de Augusta (1868), que

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mostra a vida de D. Augusta condicionada sua aparncia: o amor prpria beleza levou -a a um egosmo tal que no aceitava o casamento da filha, temendo a ideia de ser av e, consequentemente, de envelhecer. Lus Tinoco, de Aurora sem dia (1873), cr que a sua existncia deve ser grandiosa e, compondo versos, caminharia para o reconhecimento pblico. Torna-se, mais tarde, deputado conhecido pelos discursos inflamados de imagens e figuras. Em plena cmara, um adversrio poltico ridiculariza seus versos e seu estilo. Incapaz de se projetar socialmente, abandona a poltica e se afasta do convvio social. O tema do adultrio surpreende e provoca reflexo em O relgio de ouro (1873): Lus Negreiros encontra um relgio masculino, que no seu, em seu quarto. Desconfia de que seja de um provvel amante de Clarinha, sua esposa. Tortura-a com palavras, tentando faz-la confessar a traio. No final, Clarinha lhe mostra o bilhete revelador que acompanhara o relgio quando foi entregue: era um presente de aniversrio que a amante de Lus Negreiros lhe enviara. Essas rpidas referncias aos temas desenvolvidos por Machado nesses contos, em sua maioria publicados no Jornal das famlias, revelam um escritor que, ao elaborar suas histrias, desenvolve mecanismos inovadores: ora a abordagem de temas comuns inusitada, provocando um postura mais reflexiva do leitor, ora a apresentao de problemas sociais e humanos exige criticidade desse leitor. Machado constri uma narrativa cujo leitor um parceiro vivaz e apto a julgar ou examinar o homem e a sociedade que, ao longo de sua histria, ajudou a construir. A partir de 1879, Machado de Assis passa a colaborar com A Estao e, em 1881, com a Gazeta de Notcias. Esses dois peridicos apresentam produes machadianas mais arrojadas. A Estao era um jornal ilustrado para a famlia, mais luxuoso e moderno que o Jornal das Famlias. Publicado quinzenalmente, trazia novidades sobre moda. Apesar de impresso na Alemanha, apresentava um suplemento literrio feito no Rio de Janeiro. A colaborao de Machado na Gazeta de Notcias inicia-se em 1881 e se estende ininterruptamente at 1897, [] voltando duas vezes em 1899, quatro em 1900, uma em 1902 e outra em 1904. (SOUSA, 1955, p.225). Alm das trs colunas semanais que assinava A Semana, Bons Dias e Balas de Estalo , o escritor publicou tambm nesse peridico quarenta e sete contos. A Gazeta de Notcias foi o primeiro jornal popular: seus exemplares avulsos eram vendidos nas ruas por garotos-jornaleiros; enquanto os demais, somente por assinatura. Essa iniciativa provocou um aumento expressivo nas vendas. Era especialmente formulado para os letrados da capital federal (enquanto o Brasil apresentava um ndice de analfabetismo de

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82,3% em 1872; o Rio de Janeiro, em 1890, tinha aproximadamente 270 mil pessoas 50% da sua populao capazes de ler e escrever 1) que desejavam literatura amena de romancesfolhetins e apreciavam pequenas colunas de crnicas de variedades. Ao mesmo tempo em que consagrava os escritores dando-lhes colunas em suas pginas, a Gazeta de Notcias tambm se consolidava como um jornal que prezava a literatura: o espao a ela reservado dava importncia ao jornal popular, conferindo-lhe um status elevado, e tambm material de leitura atraente para a elite letrada. O esprito liberal de A Estao e da Gazeta de Notcias e de seus novos leitores encontra correspondncia em Machado de Assis. Um escritor com abordagens estilsticas e temticas arrojadas surge no romance Memrias Pstumas de Brs Cubas, em 1881, e, no ano seguinte, na coletnea de contos Papis Avulsos. Isso se constata no tema predominante nos contos subsequentes: a oposio constante entre os desejos, os sonhos, a vida interior, a essncia do ser humano e as regras sociais, o rito claro e pblico e a aparncia. Esse jogo entre a essncia do ser humano e as regras impostas pela sociedade resvalam sempre no apagamento do indivduo e, consequentemente, na sua sujeio s imposies sociais. Segundo Bosi (2003), o sujeito na obra machadiana no tem autonomia, para ele arriscado viver fora das convenes sociais; portanto a nica sada para a sobrevivncia cotidiana agarrar-se s instituies sociais que asseguram o pleno direito vida material e sua sobrevivncia. O tema fundamental desses contos de Machado de Assis publicados em A Estao e, principalmente, na Gazeta de Notcias, no somente a oposio entre a essncia do ser humano e as imposies sociais e a sujeio do indivduo coletividade; o ponto nevrlgico de suas narrativas o questionamento desses valores sociais e das escolhas a que o homem se sujeita. Nas suas histrias, a sociedade, cujas normas so reguladoras dos relacionamentos e da sobrevivncia do homem, impede a realizao pessoal. Todas as atitudes humanas voltadas para a concretizao de seus desejos so reprimidas porque no valorizam o indivduo, que constitudo de um carter frouxo e inconstante porque movido pelos sentimentos. A obedincia s imposies da sociedade determina no s a sua sobrevivncia, mas tambm o seu prestgio e o seu reconhecimento social. Desprezar esses valores sucumbir, ter ameaada a vida e ser discriminado.

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Cf. EL FAR, 2004.

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Pai contra me publicado originalmente em Relquias da casa velha, em 1906 exemplifica esse poder da sociedade sobre as disposies humanas: Cndido Neves, cujo ofcio era pegar escravos fugidos, v o momento de entregar seu filho roda dos enjeitados porque no tinha mais meios para sustent-lo. Depara-se com Arminda, uma escrava fugida. Captura e a entrega ao dono. A escrava, aps lutar pela liberdade, cheia de medo e dor, diante de Candinho e do seu senhor, abortou. Ambos, pai e me, buscam a realizao de seus desejos que se resumem na preservao da famlia, na garantia da presena e da vida do filho, mas h a diferena social entre eles: ela cativa; ele, caador de escravos. Na luta pela sobrevivncia, a sobrevida tambm depende das normas sociais. Vitria de Candinho. Em O caso da vara, de 1891, Damio foge do seminrio e, por temer a reao do pai, procura a proteo de Sinh Rita, viva e suposta amante de Joo Carneiro, padrinho do seminarista. Ela assume a causa do rapaz, prometendo-lhe resolver o problema. Apela ao amante para que interceda por Damio junto ao compadre, chegando at a lhe enviar um recado afirmando que a manuteno do relacionamento deles dependia da proteo de Damio. Durante todo o dia em que Damio aguarda os reflexos da interveno da senhora, passa horas agradveis contando-lhe piadas que faziam rir tambm Lucrcia, uma escrava ao p de Sinh. Ao cair da noite, diante do trabalho no realizado, Sinh Rita vai castigar Lucrcia com uma vara e pede a Damio que a pegue para ela. Mesmo tendo pensado anteriormente em apadrinhar a escrava, Damio v-se levado a no interferir no castigo da menina, mesmo diante de seus pedidos desesperados para que a protegesse. Contrariar Sinh Rita seria arriscar a sua liberdade; por outro lado, a escrava somente sofria porque suas anedotas haviam-na distrado. Na busca pela realizao dos seus anseios, Damio, branco e rico, v as chances de realiz-los ao apoiar as aes violentas da senhora contra sua cria. Esta, escrava, tem a sua vida determinada pelas regras sociais: est sujeita justia e aos desmandos de sua senhora. A sociedade retratada nos contos publicados na Gazeta pune tambm aqueles que ameaam a integridade econmica e moral da famlia. Na segunda metade do sculo XIX, os casamentos eram regidos por interesse, portanto as paixes adlteras encontravam espao amplo para se abancarem nos coraes e nas mentes ociosas femininas. Venancinha, do conto D. Paula (1884), desespera-se ao se indispor com o marido Conrado porque flertara com Vasco. Enquanto ameaa s estruturas familiares modelares, o adultrio deveria ser punido drasticamente: a separao e a suspeita de traio da esposa eram determinantes para que a mulher fosse desprezada e discriminada pela sociedade da poca.

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Machado de Assis, ao analisar o ser humano em busca de sua realizao interior, revela-nos uma nova faceta dessa luta: como as pessoas sempre buscam a concretizao dos seus anseios de modo egosta, os obstculos no so somente sociais, so tambm pessoas que tentam efetivar as prprias vontades, e, portanto, destroem as esperanas das demais. o que acontece com Vilela, de A cartomante (1884). Vivia uma suposta felicidade: ao lado de Rita, sua esposa, sentia-se realizado emocionalmente; com o melhor amigo Camilo dividia seu dia-a-dia. A descoberta do caso amoroso de Rita com Camilo destruiu-o totalmente, pois a frustrao amorosa no encontraria o amigo em quem se apoiar. Foi uma dupla traio. As pessoas que mais amava foram os obstculos para a sua felicidade. Restou-lhe somente matlas. O desejo de o garoto Pilar, em Conto de escola (1884), de conseguir sua pratinha vendendo seu conhecimento ao filho do mestre Raimundo, no se realiza: Curvelo, colega de classe, delata-os. Novamente a interveno de um ser tambm desejoso do mesmo objeto, ou invejoso daqueles que tm a posse do objeto pretendido, impede a realizao plena de outros indivduos. O conto Identidade, de 1887, tambm aborda a ambio humana refreada pela inveja dos indivduos. Em vez do convencional incio composto de referncias temporais e espaciais que antecedem a apresentao das personagens e do enredo, to comum nos textos folhetinescos da segunda metade do sculo XIX, comea com um prembulo em que o narrador, em tom amistoso, apresenta o tema da semelhana entre pessoas que no tm parentesco:

Convenhamos que o fenmeno da semelhana entre dois indivduos no parentes coisa mui rara, talvez ainda mais rara que um mau poeta calado. Pela minha parte no achei nenhum. Tenho visto parecenas curiosas, mas nunca ao ponto de estabelecer identidade entre duas pessoas estranhas. (ASSIS, 2006, v.2, p.1.064).

Descrente da igualdade total entre dois indivduos de famlias diferentes, o narrador afirma ser esse, portanto, um mote para a narrativa que apresentar, baseada em um papiro de trs mil anos encontrado em Tebas. O leitor, preparado para um enredo que foi apresentado como verdadeiro, depara-se com o incio tpico dos contos fabulares Era uma vez (ASSIS, 2006, v.2, p.1065). Quebra-se, portanto, novamente a expectativa do leitor. Na verdade, o narrador conforma a sua narrativa como mgica por no crer na veracidade de tal histria e coloca diante do narratrio um enredo cujo tema no a semelhana fsica entre pessoas de famlias e castas distintas, como foi proposto, mas a semelhana entre as almas humanas, que

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se caracterizam pela ambio e pela inveja. Revela-nos a faceta subterrnea dos indivduos a sua essncia sempre encoberta pela falsidade de atitudes. Ao constituir sua narrativa como um jogo entre o que vai ser narrado e o que efetivamente narrado, o narrador elabora um novo leitor que tambm busca formas inusitadas de expresso do mundo. A sociedade e suas imposies, as outras pessoas e seus desejos egostas no so os nicos culpados pelas decepes dos homens. Tambm ele, o prprio homem, concorre para a sua frustrao: nem todos podem realizar-se, pois muitas vezes necessrio vocao, disposio natural. Mestre Romo, de Cantiga de esponsais (1883), brilhante regente, nutria o desejo de ser um grande compositor, mas no tinha vocao. Durante vinte e sete anos tentou, em vo, compor um canto esponsalcio que traduzisse a felicidade ao lado da esposa amada. Morreu aos sessenta anos sem t-lo terminado. A melancolia de Mestre Romo era nunca ter conseguido comunicar-se pela msica. A sua realizao dependia de uma habilidade que no possua. Esse tema tambm emerge de Um homem clebre (1888). Hbil

compositor de polcas, Pestana reconhecido e tem sucesso, mas tinha o desejo de compor uma obra clssica aos moldes de Bach, Beethoven e Chopin. Com a morte da mulher, inicia um Requiem, que nunca conseguiu terminar, pois fatava-lhe esse talento. Morreu de mal consigo mesmo. Machado construiu uma nova literatura que aborda temas vinculados ao homem e sociedade de sua poca. Mais do que isso, inaugurou entre ns uma prosa que foge aos esquemas artificiais e fantasiosos do melodrama romntico. Seus contos, em sua maioria, so reveladores dessa sua inteno antipassadista: mostram-se avessos temtica e estrutura narrativa que dominava o ambiente literrio brasileiro de sua poca. Ao apontar e demolir os anacronismos da literatura da primeira metade do sculo XIX, Machado de Assis, simultaneamente, pretende atrair um pblico leitor capaz de compreender e fruir a literatura inovadora que cria. E o grande responsvel pelo envolvimento do leitor nesse seu projeto o narrador: ao constitu-lo, institui tambm o leitor que quer atingir, ou configura um leitor afeito ao gosto romntico cujos impulsos interpretativos tenta coibir e sugere um mundo ficcional que se ope ao artificialismo das narrativas repletas de elementos sentimentais e imaginosos a que esses leitores estavam acostumados.

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3 O leitor de folhetins

[] o amor to valente como a prpria morte Machado de Assis (2006, v.2, p. 573).

Machado de Assis constitui, em alguns de seus contos, um tpico narrador da literatura sentimental e imaginosa. Segundo Bosi (2003), esse fato justifica-se por Machado ser colaborador de revistas femininas da poca entre 1870 e 1880 seus contos voltam-se s leitoras de folhetins, mas isso no o torna, a rigor, romntico. Ao buscar conquistar seus primeiros leitores, Machado de Assis elabora seus textos de forma a no criar uma tenso entre narrador e narratrio. O que constri uma narrativa que aponta para um acordo entre eles. O dilogo constante estabelecido com o leitor uma das marcas caractersticas da nova literatura que Machado inaugura , nessas histrias, inexiste e est reduzido a poucas referncias que em nada o motivam ou provocam. A maneira de chamar a ateno do leitor uma forma indireta: as histrias so recheadas de tramas turbulentas, reviravoltas, traio, abandono, cime e dominadas por um excesso de sentimentalismo. O conto Virginius, publicado no Jornal das Famlias em 1864, uma narrativa na qual Machado de Assis empregou recursos que condenou muitas vezes em seus contos posteriores. A narrativa dominada por um tom confessional e subjetivo, alcanado, em parte, pelo emprego da primeira pessoa: No me correu tranquilo o S. Joo de 185 (ASSIS, 2006, v.2, p.737). O narrador inicia seu relato em tom de mistrio: convocado por um bilhete sem assinatura e de letra desconhecida a defender um ru em uma vila tambm no nomeada. Apesar de ser uma situao estranha, a curiosidade do narrador o conduz a aceitar a oferta e a empreender a jornada que o levaria a vivenciar uma situao to dramtica quanto a de uma novela. Nesse ponto da narrativa, o que se tem um contrato entre narrador e narratrio: a histria que apresentar ser pautada na estrutura dos romances repletos de aes excitantes e heroicas:

Li e reli este bilhete; voltei-o em todos os sentidos; comparei a letra com todas as letras dos meus amigos e conhecidos Nada pude descobrir.

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Entretanto, picava-me a curiosidade. Luzia-me um romance atravs daquele misterioso e annimo bilhete. [] oito dias depois de receber o bilhete tinha porta um cavalo e um camarada para seguir viagem. (ASSIS, 2006, v.2, p.737).

Assim h a sucesso de acontecimentos inesperados que constituem os ingredientes da histria que props narrar. Logo aps partir, o narrador lembra-se de um antigo amigo companheiro de academia, em cuja casa se hospeda e de quem consegue informaes preciosas sobre o protetor do ru Pio, conhecido como Pai de todos pelo senso de justia e pelo esprito abnegado e voltado para a caridade. O leitor depara-se, ento, com o tom dramtico de novela: toma conhecimento de tudo por meio daquilo que o narrador vive. E este adia, por momentos, a revelao dos fatos e o conhecimento do ru, apresentando descries e aes que em nada adiantam a narrativa. Desse modo, a curiosidade do leitor aumenta, e ele v que o narrador cumpre seu propsito: a fico que constri realiza-se segundo o contrato por ele estabelecido de apresentar uma narrao nutrida de expectativas e mistrios. A passagem em que a visita cadeia, a qual lhe traria as informaes a respeito do ru Julio e do crime que cometera, deixada para o dia seguinte, aps uma noite de descanso e uma manh de passeios, um exemplo desse recurso. Quando finalmente os fatos so apresentados, o narrador o faz detalhadamente. Julio, empregado e protegido de Pio, morava com sua nica filha Elisa, que teve, na infncia, a amizade pura de Carlos, filho de Pio. Distanciam-se logo que crescem: ela, simples filha de um empregado, mora com o pai e dedica-se aos cuidados domsticos; ele, filho do fazendeiro, parte para estudar e torna-se bacharel. O rapaz retorna diferente nos hbitos, nas ideias e nos sentimentos. Avesso ao trabalho e ao conhecimento, dedica-se somente caa. Seus maus intentos em relao Elisa revelam-se logo, e Julio intervm. Carlos, fingindo ser honesto, promete-lhe respeitar a filha. Mas o que ocorre o descumprimento da promessa. Elisa desonrada por Carlos, e o fato flagrado por Julio, que impedido de ajudar a filha pelos capangas do rapaz, que o amarram, enquanto Carlos, em sua vilania, busca uma autoridade que prenderia o empregado, a quem acusaria de tentativa de homicdio. Tomado de revolta, o pai mata a prpria filha para livr-la da desonra. Preso, Julio encontra em Pio a compreenso e a ajuda de que precisava. O narrador encerra a exposio desses fatos carregados de forte tenso, comparando-os ao episdio que precedeu a queda dos decnviros 2 na antiga Roma. Entre eles havia pio Cludio que, por no conseguir conquistar Virgnia, quer tom-la 2

Cada um dos dez magistrados superiores da repblica romana, incumbidos de redigir as leis das Doze Tbuas, e que detiveram o governo por dois anos. (DICIONRIO HOUAISS DA LNGUA PORTUGUESA. Decnviro. Disponvel em < http://houaiss.uol.com.br >. Acesso em 10 dez. 2008.).

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fora, escravizando-a. A fim de livr-la do ultraje, seu pai, Virginius, mata-a com uma facada no peito. Assim explica o ttulo do conto, conferindo-lhe um tom universal, j que tem como tema a honra ultrajada e o triunfo da maldade. Por meio da narrao de fatos estimulantes com uma forte carga emocional, o narrador consegue, ao mesmo tempo, cumprir o que propusera inicialmente elaborar um discurso caracterizado pelo excesso de acontecimentos surpreendentes e sentimentais e manter presa a ateno do leitor. No h, at ento, referncia materializada ao narratrio que dele exija qualquer postura diante dos fatos narrados. Mero expectador, corresponde ao fazercrer do narrador, que dele consegue a confiana e a fidelidade na leitura. A primeira vez que sua imagem surge no enunciado de forma rpida e apenas para retomar e esclarecer uma ideia j anteriormente exposta: No insisto em observar a circunstncia de ser o velho fazendeiro quem se interessava pelo ru e pagava as despesas da defesa nos tribunais. J o leitor ter feito essa observao []. (ASSIS, 2006, v.2, p.745) Apesar de no ser convocado, o narratrio acompanha atento todas as aes apresentadas, pois elas correspondem sua expectativa. Quando o narrador apresenta Pio castigando seu prprio filho, obrigando-o a tornar-se soldado e, simultaneamente, apoiando Julio moral e economicamente, tem-se o esquema romanesco tpico, marcado pela forte oposio entre o bem e o mal. No constante embate entre eles, o mal aparentemente triunfa quando Carlos desonra Elisa e provoca o assassinato dela pelo prprio pai e a consequente priso deste. Mas o bem deve se impor. No caso, o prprio pai do rapaz que ser seu instrumento. D seu apoio a Julio e o desprezo a seu filho. A oposio natureza versus cultura tambm concretiza o estilo marcadamente folhetinesco. Apesar de Carlos ser um bacharel, ter, em tese, o domnio do conhecimento, age de forma bestial e imoral. incapaz de incorporar o respeito e pratic-lo. Julga-se superior em funo da posio social elevada que ocupa como filho do fazendeiro. Do lado oposto, Julio um ignorante, empregado da fazenda, mas que tem como leme a moral. Age de maneira, inicialmente, respeitosa e humilde. Diante da desonra da filha, a sua justia se vira para a pessoa que mais ama, no para o verdadeiro culpado. A cultura, enquanto polo dessa oposio, desdobra-se em civilizao. Carlos, cujo carter foi moldado pela vivncia no mundo urbano, cometeu um crime duplo contra aqueles que viviam no ambiente natural da fazenda: desonrou uma donzela e destruiu a felicidade de dois pais Julio, que matou a prpria filha, e Pio, o Pai de todos, cuja bondade da alma e integridade de carter no encontraram reflexo no prprio filho.

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O narrador, ao iniciar a apresentao do julgamento de Julio, faz a ltima rpida referncia ao narratrio: Dispenso os leitores da narrao do que se passou no jri. (ASSIS, 2006, v. 2, p.747). Por tratar-se de um episdio carregado de emoo, o narrador opta por no fornecer os detalhes do julgamento, mas concentr-lo na oposio que o determinou. As provas concretas do assassinato juntamente com a confisso do ru levaram-no condenao de dez anos de priso; mas juiz, promotor e jurados evidenciaram a compaixo e a admirao por aquele homem. A lei forjada sobre a razo humana afrouxada, em parte, para atender ao apelo do corao. A justia dos homens prevaleceu, mas os sentimentos humanos tambm foram considerados. O conto, embora no tenha a presena concreta e constante do narratrio, composto de elementos que o destinam a um leitor formado para a leitura de textos que valorizam a atmosfera sentimental. No h oposio entre narrador e narratrio, pois aquele conforma as aes de modo a corresponder s expectativas deste. Mantm a confiana do narratrio ao seguir as prprias indicaes ficcionais, no se desviando daquilo que prope narrar, nem da forma como o faz. Esse leitor vido por narrativas repletas de mudanas repentinas e traies tambm est delineado em Casada e viva (1865). O conto focaliza, no incio, o idlio em que vive o casal Eullia e Meneses, cuja felicidade chama a ateno de todos os que o conhecem. Um narrador em terceira pessoa focaliza o par exaltando as qualidades de ambos e o sincero amor que nutrem um pelo outro. Um casal amigo Cristiana e Nogueira ocupa por alguns dias a casa de Meneses e Eullia, devido demora dos arranjos da mudana de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. Cristiana e Nogueira tinham um relacionamento construdo no respeito mtuo e na placidez de sentimentos, o que contrastava com o fervor dos sentimentos de Eullia e Meneses. Ao final de cinco dias de convvio, Meneses questiona Cristiana sobre um envolvimento que tiveram na adolescncia. A moa afirma-lhe ter esquecido, pois o namoro no passara de arroubos juvenis, mas o rapaz no aceita e quer explicaes, mostrando-se enganado por ela, j que afirmava ter uma carta que continha declaraes amorosas de Cristiana. Esta teme que Meneses revele a carta e destrua a felicidade de todos, principalmente a da amiga Eullia. A mudana para a nova residncia distancia os casais, mas no tranquiliza Cristiana, que suspeitava das intenes de Meneses. Um dia, espera de Eullia, que iria v-la, Cristiana, sozinha, recebe a visita inesperada de Meneses, que lhe declara seu amor e diz estar ao lado de sua esposa por convenincia. Suas palavras so ouvidas por Eullia, que entra desesperada. Buscava na amiga um conselho, pois descobrira duas cartas reveladoras de traies do

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marido. Assim elaborada a trama de Casada e viva. A mulher que dedica sua vida ao amor v-se trada. Sua vida ao lado do marido, preservando as aparncias provoca-lhe extremo sofrimento. Apesar de casada, sente-se viva, pois no mais partilha efetivamente a sua vida com o esposo. O narrador, em quase todo o texto, emprega a debreagem enunciva, criando um efeito de objetividade. A opo pelo tom aparentemente distante um recurso empregado por ele para atrair a ateno para o enredo que constri. Este vem com muitos pormenores idealizadores das personagens e das situaes. Satisfaz, dessa forma, o leitor de folhetins afeito narrativa marcadamente idealizada. As referncias ao narratrio so poucas e, quando ocorrem, se do de maneira cordial e afvel, sem demonstrao de querer transformar o leitor. A primeira delas vem logo no incio do conto e serve para confirmar a personalidade mpar de Eullia, que conjuga beleza fsica e lealdade de sentimentos:

Mas cumpre dizer, para inspirar amor a maridos tais como Jos Meneses, era preciso mulheres tais como Eullia Martins. [] Tanto era um milagre de beleza carnal, como era um prodgio de doura de elevao e de sinceridade de sentimentos. E, sejamos francos, tanta cousa junta no se encontra a cada passo. (ASSIS, 2006, v. 2, p.748).

O emprego dos verbos cumpre e sejamos no presente provoca um efeito de sentido subjetivo: o narrador estabelece um dilogo explcito com o narratrio, confirmando o carter idealizado da personagem feminina. A debreagem enunciativa temporal mescla-se com a actancial sejamos francos, confirmando o acordo entre ambos. Aps a apresentao das personagens, o narrador pretende iniciar o relato da tentativa de seduo realizada por Meneses, ingrediente caracterstico do drama sentimental que prope relatar. Para isso, deixa de se ocupar com fatos que seriam dispensveis, j que em nada contribuiriam para a construo da atmosfera tensa que emerge desse tipo de narrativa. Surge novamente a debreagem enunciativa Deixo ao esprito do leitor ajuizar como seria o encontro de amigos que se no veem h muito. (ASSIS, 2006, v. 2, p.750). O narrador, que iniciou o seu relato obedecendo estrutura da narrativa romanesca e que, ao longo dele vai optando por seus ingredientes caractersticos, leva o enunciatrio a aderir ao discurso porque este se identifica com esses elementos empregados. As demais referncias a esse narratrio so bem rpidas e nada acrescentam a ele (se julgarmos, os leitores sabem). O foco est no drama que o leitor espera encontrar, nas peripcias que lhe so apresentadas.

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Algumas das primeiras produes machadianas, portanto, voltam-se para o leitor acostumado s tendncias folhetinescas da literatura da primeira metade do sculo XIX. So contos que abordam a temtica da valorizao extrema do amor, subordinando a vida e a felicidade das personagens concretizao desse sentimento. So eles: Lus Soares, Frei Simo, Linha reta e linha curva, de Contos fluminenses (1870); As bodas de Lus Duarte, Ernesto de Tal, A parasita azul, publicados em Histrias da meia-noite (1873), alm dos contos denominados avulsos, no pertencentes a nenhuma antologia organizada por Machado. Publicados em A Estao, esto Letra vencida e O programa, em 1882, e O caso do Romualdo em 1884; presentes no Jornal das Famlias, Miloca e A ltima receita, ambos de 1875, e O sainete, publicado em 1875 em A poca. Alm da exaltao do sentimento amoroso, Machado de Assis tambm empregou em seus textos situaes marcadas pelo excesso de tenso provocado por elementos melodramticos como seduo e separao, presentes em Casada e viva, e obsesso e suicdio, explorados em Virginius, ambos publicados no Jornal das Famlias.

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4 O leitor crtico do ser humano

[] o texto tambm procura e cria o seu leitor: ele o inventa o mais prximo possvel da linguagem, na sua substncia e nas suas formas, suscitando a dvida, a inquietitude e a surpresa. Por meio da diversidade dos modos de crena que a leitura prope, eis que se reencontram, invertidas, a experincia sensvel da lngua e a experincia cultural do mundo. (Denis Bertrand, 2003, p. 413).

Ao empreender uma literatura que abordasse uma crtica ao ser humano e no mais uma repetio das frmulas que sobredouravam a realidade, to usuais na literatura romntica, Machado de Assis viu a necessidade de instituir um leitor que no fosse afeito a um discurso que se distanciava da realidade social da segunda metade do sculo XIX. Seus contos passam, ento, a focalizar tipos humanos to variados quanto aqueles que povoavam a sociedade brasileira da poca. Portanto era necessrio lapidar um leitor que no s compreendesse a crtica que Machado elaborava, mas tambm concordasse com esse ponto de vista. Assim muitos dos contos que Machado de Assis elaborou, a partir de 1880, inovam tanto na abordagem temtica quanto na sua formulao. Apesar de modernos, foram recebidos por um pblico leitor cujo gosto ainda era o das histrias marcadamente romnticas. Era preciso, ento, mudar essa predileo pela tendncia fantasiosa da narrativa do sculo XIX. O leitor desses contos deve ser conquistado. Para isso, o narrador emprega recursos que, em primeiro lugar, estabelecem um vnculo de confiana entre ele e o narratrio. Estabelecido o contrato fiducirio, o narrador conduz o leitor pela narrativa, apontando-lhe os aspectos originais que focaliza nas personagens e nas situaes. Distante da literatura fantasiosa, o narrador proporciona ao leitor assistir a uma fico que, alm de apresentar perfis humanos prximos daqueles que povoam a sociedade da poca, aponta, de modo crtico, as falhas de carter dessas personagens. o que ocorre em D. Benedita. Publicado originalmente em A Estao, em 1882, esse conto integra o volume Papis avulsos (1882). Visto, ao lado de Memrias pstumas de Brs Cubas (1881), como um divisor da obra machadiana, esse conjunto de histrias apresenta, efetivamente, uma abordagem temtica ousada se comparado aos dois primeiros volumes Contos fluminenses (1870) e Histrias da meia-noite (1873). Aqui o foco deslocase: da viso marcadamente sentimental das relaes humanas, Machado passa a vislumbrar a preocupao excessiva do homem com sua aparncia fsica, com o olhar da sociedade que o

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promove, ou que o condena, traando retratos humanos que criticam o egosmo e a valorizao dos conceitos sociais que categorizam as pessoas pela funo social que desempenham. O conto D. Benedita aborda a superficialidade de carter de uma mulher. Inicia-se com a observao do narrador a respeito da idade da personagem que o nomeia:

A cousa mais rdua do mundo, depois de governar, seria dizer a idade exata de D. Benedita. Uns davam-lhe quarenta anos, outros quarenta e cinco, alguns trinta e seis. Um corretor de fundos descia aos vinte e nove; mas esta opinio, eivada de intenes ocultas, carecia daquele cunho de sinceridade que todos gostamos de achar nos conceitos humanos. (ASSIS, 2006, v.2, p.307).

Ao nomear o seu conto com um nome feminino D. Benedita e acrescentar-lhe o subttulo Um retrato , tem-se o primeiro contrato estabelecido entre narratrio e narrador: este prope construir o retrato da personagem. O cumprimento desse contrato fiducirio surge j nas primeiras linhas do conto, nas quais, alm de citar a idade de D. Benedita, o narrador vai-lhe acrescentando caractersticas fsicas e pinceladas psicolgicas que j prefiguram o seu perfil amadurecida na idade, preservava as graas juvenis; era uma mulher volvel, leviana em suas vontades, enfim um carter veleitrio. A partir da, o fazercrer do narrador encontra correspondncia no narratrio, que nele cr. Aps essa rpida apresentao da personagem, o narrador descreve o cenrio da festa de aniversrio de quarenta e dois anos de D. Benedita. Surge a sala de jantar repleta de convidados, a comida, as conversas, o brinde:

A alegria dos convivas, a excelncia do jantar, certas negociaes matrimoniais incumbidas ao cnego Roxo, aqui presentes, e das quais se falar mais abaixo, as boas qualidades da dona da casa, tudo isso d festa um carter ntimo e feliz. O cnego levanta-se para trinchar o peru. (ASSIS, 2006, v.2, p.308).

Ao descrever essa cena, o narrador emprega marcadores de debreagem enunciativa temporal (o presente do indicativo nas formas verbais d e levanta-se) e espacial (o advrbio aqui) cujo objetivo aproximar o narratrio da cena, alm de tambm garantir a manuteno do contrato fiducirio. Note-se tambm que a confiana inicial que se estabeleceu entre narrador e narratrio se fortalece quando aquele realiza duas intervenes: a primeira delas, metalingustica, adianta o que vai ser relatado das quais se falar mais abaixo. A outra, em primeira pessoa do plural novamente a debreagem enunciativa , marca a

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mudana de foco da mesa de jantar para os convidados, confirmando a antecipao sugerida anteriormente: Venhamos, porm, aos demais convivas, que esto parados, conversando; reina o burburinho prprio dos estmagos meio regalados, o riso da natureza que caminha para a repleo; um instante de repouso. (ASSIS, 2006, v.2, p.308). o cumprimento do contrato: o que prope fazer, o narrador o faz. A partir desse ponto, o narrador elabora uma narrativa cujas aes e acontecimentos convergem unicamente para a elaborao do perfil de D. Benedita. Para construir a imagem e, principalmente, o carter veleitrio, volvel dessa personagem, o narrador emprega a debreagem enunciativa temporal: os verbos no presente do indicativo constituem o recurso para aproximar o narratrio do retrato que pinta:

D. Benedita fala, como suas visitas, mas no fala para todas, seno para uma, que est sentada ao p dela. [] D. Benedita no se contenta de falar sombra gorda, tem uma das mos desta entre as suas; e no se contenta de lhe ter presa a mo, fita-lhe uns olhos namorados []. No os fita, note-se bem, de um modo persistente e longo, mas inquieto, mido, repetido, instantneo. (ASSIS, 2006, v.2, p. 308).

Aps essas apresentaes iniciais da personagem, o mecanismo da debreagem enunciva temporal passa a ser o recurso empregado pelo narrador para descrever as cenas que D. Benedita ocupa e suas aes: o tempo verbal o pretrito. H, portanto, um distanciamento do narrador, que se coloca como um observador comum de suas reaes:

D. Benedita levantou-se, no dia seguinte, com a ideia de escrever uma carta ao marido, uma longa carta em que lhe narrasse a festa da vspera []. A mala fechava-se s duas horas da tarde, D. Benedita acordara s nove, e, no morando longe [], um escravo levaria a carta ao correio muito a tempo. D. Benedita arredou a cortina da janela, deu com os vidros molhados []. (ASSIS, 2006, v.2, p.310).

Logo em seguida, assumindo o foco em primeira pessoa, dirigindo-se ao narratrio como a segunda pessoa do discurso e empregando os verbos no presente do indicativo e no imperativo, o narrador provoca uma aproximao da personagem: ele convoca o leitor a estar ao seu lado e a observar o que aponta em D. Benedita. novamente a debreagem enunciativa agora actancial e temporal responsvel pela conduo do olhar do narratrio, levando-o a construir um retrato j forjado anteriormente pelo narrador e agora, elaborado a partir da caracterizao fsica, acentua o perfil inconstante dessa personagem:

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Enquanto ela compe os babadinhos e rendas do roupo branco, um roupo de cambraia que o desembargador lhe dera em 1862 [] convido a leitora a observar-lhe as feies. V que no lhe dou Vnus; tambm no lhe dou Medusa. Ao contrrio de Medusa, note-se-lhe o alisado simples do cabelo, preso sobre a nuca. Os olhos so vulgares, mas tm uma expresso bonach. A boca daquelas que, ainda no sorrindo, so risonhas, e tem esta outra particularidade, que uma boca sem remorsos nem saudades, podia dizer sem desejos [] Toda essa cabea que no entusiasma, nem repele, assenta sobre um corpo antes alto que baixo, e no magro, nem gordo []. Para que falar-lhe das mos? H de observ-las logo, ao travar da pena e do papel. (ASSIS, 2006, v.2, p.311).

interessante notar que a imagem de D. Benedita difcil de ser forjada pelo narratrio, pois o narrador no d a ela nenhum elemento marcante, determinante: seu perfil aparece to indefinido quanto as suas vontades, como as suas aes e seus pensamentos. Seu retrato to vago quanto a inconstncia de seus propsitos. Convocado a observar D. Benedita num tom amistoso e ntimo, como se estivesse presente na cena e pudesse visualiz-la, o leitor segue acompanhando o narrador, o qual mantm o foco nessa personagem, cuja personalidade vai adquirindo contornos cada vez mais fortes com a descrio de suas atitudes marcadamente inconstantes: ao mesmo tempo em que se mostra caprichosa com o arranjo de si mesma e de suas coisas, destri-as em impulsos de impacincia, que no chegam a durar pouco mais de meio minuto. (ASSIS, 2006, v.2, p.311). Aps essa apresentao em tom subjetivo, o narrador, cumpridor de suas proposies e j conhecedor da adeso do narratrio, prossegue a narrativa. Assume, ento, um tom objetivo, resultado da debreagem enunciva:

Olhou alguns instantes para a filha, como desejosa de lhe dizer alguma cousa grave, ao menos difcil, tal era a expresso indecisa e sria dos olhos. Mas no chegou a dizer nada; a filha repetiu que o almoo estava na mesa, pegoulhe do brao e levou-a. (ASSIS, 2006, v.2, p. 312).

A narrativa elaborada a partir de um prisma objetivo cede espao para a narrativa de tom subjetivo, com a reiterao da debreagem enunciativa:

Deixemo-las almoar vontade; descansemos nessa outra sala, a de visitas []. Me, filha e filho almoaram. Deixemos o filho que no nos importa []. Eullia interessa-nos []. (ASSIS, 2006, v.2, p.312).

Ao ser colocado na cena ficcional, o narratrio tem a impresso de poder ver o que narrador lhe indica, mas no passa de iluso: a imagem que o narratrio pensa construir a

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imagem que o narrador construiu. A debreagem enunciativa o recurso empregado para que o narratrio tenha a iluso de, sozinho, ter elaborado o cenrio e as aes apresentadas. Ao atingir esse objetivo, o narrador dispensa o tom subjetivo e passa a apresentar os fatos de forma direta e impessoal, pois j garantiu a adeso do seu leitor. O esboo que se vai delineando da personagem construdo por meio de elementos que sucessivamente vo compondo o seu retrato. O narrador, consciente da confiana que conquistou do narratrio, estabelece um novo parmetro para a sua narrativa: trata-se do contrato de veridio. As consideraes apresentadas no enunciado refletem a enunciao, ou seja, tudo o que o narrador mostra, no mbito da fico, verdadeiro. O sentido emerge de um acordo entre a enunciao e o enunciado. Assim, constri o retrato de D. Benedita colocando o leitor como testemunha dos fatos narrados Enquanto ela compe os babadinhos e rendas do roupo branco, () convido a leitora a observar-lhe as feies. (ASSIS, 2006, v.2, p.310) ou, quando o narratrio no est presente no enunciado, elabora os elementos do enredo de modo pormenorizado:

Era-lhe to enfadonho escrever cartas compridas! Esta palavra, fecho do captulo passado, explica a longa prostrao de D. Benedita. Meia hora depois de cair no sof, ergueu-se um pouco, e percorreu o gabinete com os olhos, como procurando alguma cousa. Essa cousa era um livro. Achou o livro, e podia dizer achou os livros, pois nada menos de trs estavam ali, dous abertos, um marcado em certa pgina, todos em cadeiras. Eram trs romances que D. Benedita lia ao mesmo tempo. (ASSIS, 2006, v.2, p.315).

Distante do marido, desembargador no Par, vivia com seus dois filhos uma moa, Eullia, e um garoto de doze anos. O retrato de D. Benedita vai sendo moldado aos poucos atravs da descrio de suas aes. Inicialmente forte e marcante, cheia de rompantes, afirma que a filha deve obedecer-lhe cegamente e casar-se com o filho da melhor amiga, mesmo que essa no seja a vontade de Eullia. Aos poucos, essa imagem vai-se definhando na narrativa, para, no final, transformar-se em um perfil carregado nos traos negativos. D. Benedita um carter que se define pela inconstncia, pela volubilidade. Impaciente, inicia vrias atividades ao mesmo tempo e dificilmente leva-as a cabo: livros cuja leitura iniciara quase que simultaneamente sem levar nenhuma at o final; a promessa de obrigar a filha a se casar com o filho de sua mais recente amiga que no se concretizou, pois substituiu amiga e genro; a viagem ao Par para rever o marido que nunca se realizou. Suas atitudes vagueiam sem constncia. O final fantasioso do conto a ltima pincelada no retrato de D. Benedita: viva e

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em dvida se aceitaria um pedido de casamento, numa noite surge diante dela uma imagem nebulosa, vaga, sem contornos definidos que afirmou ser sua fada-madrinha: a Veleidade. Contrapondo-se inconstncia de D. Benedita, est a filha Eullia, moa decidida e resoluta. Conhecedora da leviandade da me, a cada nova meno de um projeto, Eullia repetia: Isso acaba. (ASSIS, 2006, v.2, p.318). Aparentemente dcil e submissa, a verdadeira manipuladora da me, pois capaz de sempre ser paciente e aguardar a mudana de planos de D. Benedita, ou sugerir projetos para o prprio benefcio. Desse modo, engendrou uma nova amizade da me com a futura sogra, o que lhe rendeu o to sonhado casamento com o tenente Mascarenhas, por quem sempre fora apaixonada. Ao elaborar uma narrativa que se sustenta na previsibilidade, na verdade, que conduz o narratrio pelos caminhos da certeza, Machado configura um leitor cuja adeso conquista. Agua a sua curiosidade, nele criando expectativas a respeito da trama da qual o narrador se mostra o mais profundo conhecedor, desvendando-a aos olhos do leitor. Pode, assim, direcionar o leitor para o enfoque que quer dar histria. O leitor, por sua vez, deixa-se levar, aceitando e assumindo o mesmo ponto de vista do narrador. Para esse narratrio convergem todas as observaes sobre as personagens e sobre o enredo, todas as referncias pormenorizadas dos elementos da narrativa; so um guia para a construo do sentido j estabelecido pelo narrador. Conduzido pelos meandros ficcionais, esse leitor abarca os sentidos propostos pelo narrador sem question-los; confiante o cumprimento dos contratos promoveu uma harmonia entre enunciado e enunciao, poupando o narratrio de armadilhas d assentimento s afirmaes do narrador, comunga com as opinies e analisa os problemas com a mesma lente. Revela, portanto, o seu papel de co-autor do conto. A esse leitor o narrador tambm apresenta as figuras que concretizam o tema da inconstncia do carter de D. Benedita. As descries iniciais focalizam suas aes como transitrias No os fita, note-se bem, de um modo persistente e longo, mas inquieto, mido, repetido, instantneo. (ASSIS, 2006, v.2, p.308). Os adjetivos inquieto, repetido e instantneo apontam para a veleidade da personagem, bem como os constantes planos por ela calculados, mas nunca concretizados. A apresentao da imagem da fada madrinha no final do conto personifica essa inconstncia:

Primeiramente uma claridade opaca, espcie de luz coada por um vidro fosco []. Nesse quadro apareceu-lhe uma figura vaga e transparente, trajada de nvoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos, porque morriam todos no ar. [] A figura achou um princpio de riso, mas perdeu-o

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logo; depois respondeu que era a fada que presidira ao nascimento de D. Benedita: Meu nome Veleidade, concluiu; e, como um suspiro, dispersouse na noite e no silncio. (ASSIS, 2006, v.2, p.323).

As figuras claridade opaca e luz coada por um vidro fosco criam uma atmosfera indefinida da qual emerge a imagem vaga, vestida de nvoas, sem contornos definidos, porque morriam todos no ar como o carter fugaz de D. Benedita. Tal qual a personagem principal, as atitudes da fada so passageiras, como o riso que se perde rapidamente. Seus traos so acentuados: suspiro e dispersou-se marcam a brevidade das sua vontades e de seus desejos. D. Benedita constitui um retrato de uma personagem cuja aparncia e atitudes so reflexos da sua personalidade. O conto construdo sobre elementos que, espalhados ao longo do texto, vo, aos poucos, configurando no s a imagem de sua personagem principal como uma mulher cujo carter marcado pela inconstncia, mas tambm revelando o tom crtico que o narrador paulatinamente imprime a esse tipo de personalidade veleitria que D. Benedita representa. Ao conduzir as aes que conformam o conto, o narrador chama a ateno do leitor, conduzindo-o pelas veredas ficcionais que vai, aos poucos, abrindo. A cada sequncia de aes que comprovam o carter de D. Benedita, sempre se segue uma ironia do narrador, que tem a finalidade de provocar no leitor tambm a mesma viso negativa que o narrador imprime s aes da personagem. Essa fina ironia de inteno crtica vem fechar o episdio da carta que D. Benedita escreve ao marido. No dia seguinte comemorao de seu aniversrio, ela levantou-se com o propsito de redigir [] uma longa carta em que lhe narrasse a festa da vspera, nomeasse os convivas e os pratos, descrevesse a recepo noturna e, principalmente, desse notcias das novas relaes com D. Maria dos Anjos. (ASSIS, 2006, v.2, p.310). Mas suas aes, marcadas por consecutivas disperses, adiam o seu intento e, da longa carta proposta inicialmente, ela escreve um breve resumo de tudo e termina-o exausta. Para encerrar a cena, vem a ironia: A carta era muito comprida apesar de no dizer tudo; e era-lhe to enfadonho escrever cartas compridas! (ASSIS, 2006, v.2, p.314). Alm de acentuar o carter inconstante da personagem, ter valor crtico, esse recurso torna essa personalidade ridcula aos olhos do narratrio. , portanto, a maneira como o narrador conduz o narratrio para o tom que quer imprimir a esse carter constitudo. Outros exemplos desse recurso vm logo depois dessa cena. Aps denominar ironicamente de a longa prostrao de D. Benedita a meia hora durante a qual ficou repousando no sof, o narrador focaliza-a lendo um livro e afirma: D. Benedita ama os romances, natural; e adora os romances bonitos, naturalssimo. No admira que esquea

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tudo para ler este []. (ASSIS, 2006, v.2, p. 315). Para acentuar o interesse de D. Benedita pela leitura, o narrador mostra que ela esqueceu-se de tudo envolvida que estava pela leitura. Mas o que vem em seguida a esse relato desconstri o que se afirmou: D. Benedita dormia e o livro jazia no cho. Novamente a ironia vem mais do que criticar ridicularizar esse retrato humano da veleidade. Alm da ironia, a mudana de ritmo de algumas passagens D. Benedita falou-lhe da vida do mar; ele pediu-lhe a filha em casamento. (ASSIS, 2006, v.2, p. 320) no s indica uma acelerao, mas uma forma de criticar a inconstncia da personagem, pois, mesmo assustada diante do pedido direto e inesperado do rapaz, recobrou em instantes o pasmo e respondeu afirmativamente. D. Benedita dirigido a um leitor que, convocado a apreciar as atitudes da personagem principal, encontra sempre indicaes que o auxiliam na construo desse retrato. configurado para um leitor crtico, capaz de reconhecer, a partir dos elementos engendrados pelo narrador, um estudo da superficialidade e da inconstncia feminina. Constitui, ao lado de outros contos como Habilidoso (1885) e Anedota pecuniria (1883), narrativas inovadoras inseridas em um projeto anti-romntico num momento em que o gosto pela literatura sentimental e fantasiosa predominava no cenrio literrio nacional. Nesses contos, em vez do enredo convencional marcado pela busca incondicional da realizao amorosa, o que Machado de Assis apresenta so esboos de situaes cujas expectativas geradas pelo narrador so frustradas, ou perfis psicolgicos que revelam o lado egosta do ser humano. Publicado, em 1885, na Gazeta de Notcias, Habilidoso constitui, como D. Benedita, um retrato: Jos Maria, impelido pela pobreza, mora com a esposa e um filho pequeno num beco pobre. Dono de uma loja de trastes velhos, passa seus dias esperando a notoriedade e pintando telas. O conto inicia-se como se narrador e narratrio estivessem lado a lado e interrompessem uma marcha imaginria para observar um beco pobre. o espao de onde emerge a personagem principal do conto. A descrio fsica desse local e da personagem feita nos trs pargrafos iniciais e tem como objetivo estabelecer um contrato fiducirio entre narrador e narratrio, j que este convocado constantemente para acompanhar aquele na construo do cenrio:

Paremos neste beco. H aqui uma loja de trastes velhos, e duas dzias de casas pequenas, formando tudo uma espcie de mundo insulado. Choveu de noite, e o sol ainda no acabou de secar a lama da rua, nem o par de calas que ali pende de uma janela, ensaboado de fresco. [] v-se chegar rtula a cabea de uma mocinha, que acabou agora mesmo o penteado, e vem mostr-lo c fora; mas c fora estamos apenas o leitor e eu, mais um menino,

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a cavalo no peitoril []. (ASSIS, 2006, v. 2, p.1050).

Para criar esse vnculo de confiana, o narrador recorre constantemente ao recurso da debreagem enunciativa: os verbos paremos e estamos, conjugados no imperativo e no presente do indicativo, respectivamente, e na primeira pessoa do plural, explicitam a presena do leitor ao lado do narrador e acentuam a aproximao entre eles. Essas debreagens enunciativas actanciais vm acompanhadas de outros marcadores debreagens enunciativas temporais e espaciais cujo efeito de sentido o de presentificao das aes: agora mesmo, c fora. Ao projetar o eu/aqui/agora da enunciao no enunciado, o fazer-crer do narrador encontra correspondncia no narratrio que nele cr, pois reconhece a parceria que se estabelece entre ambos: inserido no mundo ficcional, o narratrio no um mero expectador das cenas, ele as presencia. Construdo o cenrio, estabelecido o vnculo entre narrador e narratrio, a vez de Jos Maria, personagem principal, surgir aos olhos do leitor:

A loja pequena, e no tem muito o que vender, cousa pouco sensvel ao dono, Jos Maria, que acumula o negcio com a arte, e d-se pintura nas horas que lhe sobram da outra ocupao, e no so raras. Agora mesmo est diante de uma pequena tela, to metido com o trabalho, que podemos examin-lo a gosto antes que d por ns. (ASSIS, 2006, v. 2, p.1050).

No excerto acima, que inicia a caracterizao de Jos Maria, o que se observa que, ao se referir personagem, o narrador emprega a debreagem enunciva dono, d-se, lhe, est, -lo, d ; mas, ao convocar o narratrio a observ-lo, novamente as debreagens enunciativas actancial e temporal de que so exemplos ns, c, agora reforam a confiana entre narrador e narratrio, do atualidade cena, mantm o efeito de subjetividade caracterstica desse mecanismo, aproximando o narratrio das aes. Assim, mal inicia o contorno da personagem, o emprego da primeira pessoa do plural o recurso que traz o leitor para o espao ficcional: [] podemos examin-lo a gosto, antes que d por ns.(ASSIS, 2006, v. 2, p.1050).

A reiterao da d