o legado tradicional africano e as influências ocidentais

Upload: cantos

Post on 23-Feb-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    1/12

    7

    CONGRESSO IBRICO DE ESTUDOS AFRICANOS

    |

    7

    CONGRESO DE ESTUDIOS AFRICANOS

    |

    7

    TH CONGRESS OF AFRICAN STUDIES

    L

    ISBOA

    2010

    CIEA7 #21:

    LITERATURAS AFRICANAS ENTRE TRADICIONES Y MODERNIDADES.

    Renata Daz-Szmidt

    [email protected]

    O legado tradicional africano e as influncias ocidentais:a formao da identidade e da moambicanidade na literatura ps-colonialde Moambique

    O presente artigo apresenta os problemas dos quais trata a literatura moambicana ps-

    colonial. Os escritores como Mia Couto, Suleiman Cassamo, Ungulani Ba Ka Khosa e

    Paulina Chiziane tecem os seus discursos artsticos debatendo o tema da identidade

    nacional e enunciando uma hermenutica da hibridez. Os escritores contemporneos

    configuram um campo literrio prprio que se constri no entrecruzar das linhas entre o

    mundo dos valores tradicionais africanos e o mundo ocidental. A reflexo centrada na

    construo da moambicanidade literria caracteriza a mais recente literatura de

    Moambique.

    Literatura moambicana, Identidade, Moambicanidade.

    Universidade de Varsvia.

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    2/12

    Renata Daz-Szmidt 2

    As literaturas africanas de lngua portuguesa participam da

    tendncia quase um projecto de investigar a apreenso

    e a tematizao do espao colonial e ps-colonial e

    regenerar-se a partir dessa originria e contnua

    representao. (...) O que as literaturas africanas intentampropor nestes tempos ps-coloniais que as identidades

    (nacionais, regionais, culturais, ideolgicas, scio-

    econmicas, estticas) gerar-se-o da capacidade de

    aceitar as diferenas.

    Inocncia Mata

    Neste artigo proponho analisar a mais recente produo literria dos escritores

    moambicanos com o objectivo de reflectir nos problemas mais relevantes

    apresentados na literatura de Moambique hoje em dia. Interessa-me analisar osdiscursos literrios que debatem o tema da identidade nacional e cultural enunciando

    uma hermenutica da hibridez. As mais recentes obras moambicanas configuram um

    campo literrio autctone que se constri no entrecruzar das linhas entre o mundo dos

    valores tradicionais africanos e o mundo ocidental. Trinta e cinco anos depois da

    independncia (1975), depois de ter passado pela fase de contraliteraturas (Mouralis,

    1982) e de literaturas emergentes, Moambique elabora o seu prprio e original

    sistema literrio.

    A reflexo centrada na construo da moambicanidade literria e a

    preocupao com a definio da identidade moambicana por parte dos escritores

    ps-coloniais mais relevantes como Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Suleimann

    Cassamo e Paulina Chiziane caracterizam as mais recentes obras poticas e

    narrativas. Numa das entrevistas Paulina Chiziane confessa que est convencida de

    que a literatura moambicana ainda est a nascer, estamos a constru-la1. Segundo

    esta escritora, a primeira mulher que publicou romances em Moambique2, os livros

    dos autores moambicanos que publicam hoje em dia, todavia no os identificam

    suficientemente como moambicanos. Escrevem na lngua do outro, s vezes ainda

    na esttica do outro e s nos ltimos anos investem na busca do seu prprio

    imaginrio literrio. Qual este imaginrio? Como se constri a moambicanidade

    literria no nvel temtico e quais estratgias lingusticas e metaliterrias usam os

    escritores ps-coloniais para tornar os seus textos mais moambicanos?

    Como no possvel analisar num artigo a rica produo literria dos escritores

    ps-coloniais moambicanios, concentrar-me-ei aqui s nos problemas mais

    1Um Moambique de histrias, http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11899 (10.08.2010)

    2Balada de Amor ao Vento(1ed. 1990 e 2003 por Caminho) Ventos do Apocalipse(1999por Caminho), OStimo Juramento (2000), Niketche: Uma Histria de Poligamia (2002) e O Alegre Canto da Perdiz (2008)

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    3/12

    O legado tradicional africano e as influncias ocidentais3

    relevantes, limitando-me aos escassos exemplos. Desde j preciso sublinhar que o

    debate acerca da expresso da identidade moambicana na literatura no novo e

    acompanha a criao literria de Moambique desde os seus comeos. A escrita

    apareceu nesta ex-colnia portuguesa bastante tarde, j que o prelo chegou a s em

    1856. Segundo Pires Laranjeira at aos anos quarenta do sculo XX, no se podefalar contudo duma actividade literria significativa (1995: 256). Constatando este facto

    temos de ter em conta que falamos da literatura escrita em portugus, ento numa

    lngua europeia trazida pelos colonizadores portugueses. A literatura oral (oratura)

    muito mais antiga e desenvolve-se nas lnguas autcnonas. Quando Moambique

    alcanou a sua independncia em 1975, no houve literatura escrita nas lnguas

    africanas nem houve quem fosse capaz de tentar a transcrever em portugus.

    Considera-se que o primeiro autor da literatura escrita em Moambique foi o

    poeta Campos Oliveira (1847-1911), autor de trinta e um poemas escritos nos anos

    sessenta, setenta e oitenta do sculo XIX. Pires Laranjeira considera Campos um

    representante da corrente do Negrorealismo3ideologicamente parecida aos negrismos

    americanos4. As poesias de Campos foram recolhidas e editadas numa colectnea

    intitulada Mancebo e torvadorpelo primeiro estudioso de literaturas africanas de lngua

    portuguesa, Manuel Ferreira, em 1985. Em 1925, Joo Albasini publicou O Livro da

    dore em 1946 foram editadosSonetosde Rui de Noronha, escritos nos anos 1932-

    1936. Rui de Noronha, fascinado pelo poeta lusitano Antero de Quental, demonstrou

    nos seus poemas a grande admirao pelos padres da literatura da metrpole

    imitando a esttica da terceira gerao dos romnticos portugueses.

    A leitura das obras em cima mencionadas permite chegar concluso que a

    literatura moambicana escrita at aos anos quarenta do sculo XX, sofreu uma

    grande influncia da esttica europeia que foi tambm muito bem visvel na literatura

    colonial (Noa, 2002). No h dvida que nos seus comeos a literatura moambicana

    inspirou-se na literatura portuguesa. Os escritores imitavam os moldes e as formas

    dos escritores europeus de mentalidade e sensibilidade muito diferentes.As mudanas importantes na literatura moambicana datam dos anos quarenta

    do sculo XX, quando os poetas Rui Knopfli (1932-1997) e Orlando Mendes (1916-

    1990) marcaram timidamente a sua autonomia literria e tentaram separar-se dos

    modelos impostos pela metrpole (Chabal, 1994: 46). Durante os anos cinquenta a

    Negritude contribuiu de um modo decisivo para a formao da conscincia grupal dos

    3Pires Laranjeira. Mia Couto e as literaturas africanas de lngua portuguesa,http://revistas.ucm.es/fll/0212999x/articulos/RFRM0101220185A.PDF (25. 07.2010)4

    O movimento Black Renaissanceconhecido tambm como Harlem Renaissancefoi um moviemto dosafricanos que tentavam acentuar na cultura dominante a sua presena e a diversidade culturalrepresentada por africanos residentes nos Estados Unidos. Os representantes mais famosos destemoviemto foram Paul Robeson (1898-1976), Langston Hughes (1902-1967) i Nicols Guilln (1902-1989)

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    4/12

    Renata Daz-Szmidt 4

    colonizados que se aperceberam dos valores positivos representados pelas suas

    culturas africanas autctones. Na literatura dos anos cinquenta destacou a figura de

    Nomia de Sousa (1926-2002), chamada me da poesia moambicana e de Jos

    Craveirinha (1922-2003), conhecido como o paidesta poesia. Em 1952, Joo Dias

    publicou a colectnea de contos Godido e outros contos considerada a primeira obraficcional moambicana. No mesmo ano apareceu o primeiro e o nico nmero da

    revista cultural Msaho. Os seus autores propuseram criar um programa que facilitasse

    o desenvolvimento da literatura moambicana na perpectiva da moambicanidade,

    entendida naquela altura ainda atravs dos conceitos de nativismo, telurismo e

    casticismo.

    Em 1962, vrios grupos polticos formaram o Frente da Libertao de

    Moambique (FRELIMO) que, em Setembro de 1964, empreendeu a luta armada

    contra os portugueses. A literatura dos anos sessenta e do comeo dos setenta foi

    formada sobretudo pela poesia revolucionria, de forte cunho ideolgico. Na

    perspectiva literria a nica obra que merece destaque foi a colectnea de contos Ns

    matmos o co tinhoso (1964) de Bernardo Honwana, fascinado pelo Neorealismo e

    pela mitologia do anti-heri inspirada em Macunama do escritor brasileiro Mrio de

    Andrade. Os contos de Honwana constituem um ataque aberto do escritor

    administrao e ideologia coloniais (Laban, 1998: 657-662). Com o mesmo objectivo

    Orlando Mendes escreveu em 1965 o romance Portagem.

    Desde 1965 at ao ano 1975 no apareceu na literatura moambicana

    nenhuma obra realmente destacvel. A data da independncia (1975) tambm no

    introduziu grandes novidades na literatura que se engajou na luta poltica entre a

    FRELIMO de orientao marxisto-leninista e a RENAMO. O conflito entre o governo e

    a oposio criada em 1979 conduziu guerra civil que durou em Moambique at

    1992. Por conseguinte, os primeiros anos da independncia foram marcados pela

    criao literria altamente ideologizada de baixo nvel artstico.

    O ano 1975 foi um ano importantssimo na histria de Moambique mas aindependncia no cambiou imediatamente a sua literatura. O que teve de mudar

    radicalmente foi a mentalidade das pessoas, que depois de quinhentos anos da

    colonizao aprenderam que eram moambicanos e que comearam a ter o seu

    prprio pas. Surgiu ento o problema em definir a identidade prpria que no comeo

    da independncia era hbrida e confusa. No comeo, as novas elites moambicanas

    tentaram negar toda a influncia europeia de acordo com as palavras de Senghor que

    falava da necessidade de esquecer Europa no corao de Senegal. Contudo, os

    moambicanos deram-se rapidamente conta que o projeto de Senghor era utpico eimpossvel de realizar. Durante cinco sculos da colonizao portuguesa Moambique

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    5/12

    O legado tradicional africano e as influncias ocidentais5

    sofreu um processo irreversvel de hibridizao e de mestiagens mltiplas. Durante

    os primeiros dez anos da independncia os escritores tiveram ento de se colocar de

    novo a pergunta sobre o conceito de moambicanidade compreendida agora como um

    projecto de criao duma nova identidade nacional, cultural e ps-colonial.

    Uma data importante na literatura moambicana foi o ano 1983, quando MiaCouto (n. 1955) publicou a sua primeira colectnea de poemas Razes de orvalho com

    a qual rompeu com a literatura engajada politicamente. Os poemas ntimos cujo sujeito

    lrico preocupa-se com os problemas existenciais e com o mundo dos sentimentos

    interiores causou estranheza entre os leitores e crticos literrios. Mia Couto decidiu

    introduzir essas innovaes na literatura moambicana conscientemente para mostrar

    que a literatura de Mombique pode ser considerada moambicana mesmo que no

    trate dos assuntos polticos e histricos concretos. A procura da moambicanidade

    no consiste mais em negar as influncias europeias mas em interpret-las, adapt-

    las e transorm-las dum modo criativo (Afonso, 2004: 78). A transculturao em todas

    as suas manifestaes influi no imaginrio moambicano.

    A reformulao do conceito de moambicanidade foi o alvo dos escritores e

    intelectuais reunidos na redaco da revista cultural Charua (1984) - Ungulani Ba Ka

    Khosa, Hlder Muteia, Pedro Chissamo e Juvenal Bucuane. Foi justamente nos anos

    oitenta que se deu uma grande transformao da literatura moambicana. Peter

    Petrov, no seu interessante artigo Transparncias e ambiguidades na narrativa

    moambicana contempornea, analisa detalhadamente as mudanas estticas e

    metaliterrias na narrativa moambicana antes e depois de 19755. Petrov constata que

    na prosa escrita antes de 1975 reparamos com a transparncia discursiva e

    semntica. As narrativas de ndole neo-realista e negritudinista desmascararam

    realidades sociais e a opresso colonial usando as mais variadas estratgias formais e

    expressivas (p.ex. a caracterizao directa das personagens, o uso da tcnica

    cinematogrfica e do portugus padro, a omniscncia narrativa). Por sua vez, a

    literatura escrita depois de 1975 apresenta-nos posies anti-doutrinrias e umamaior heterogeneidade bem como a maior liberdade criadora (Ibid). Escritores ps -

    coloniais introduzem na literatura tcnicas modernas e ps-modernas cujo melhor

    exemplo sem dvida o livro Ualalapi (1987) de Ungulani Ba Ka Khosa de difcil

    classificaco genrica e que modernizou a fico moambicana. Petrov constata que a

    obra dos prosadores contemporneos como a Ba Ka Khosa e a de Mia Couto explora

    universos ambguos nos planos semntico-pragmticos e tcnico-constructivos da

    semiose literria (Ibid).

    5www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeI/TRANSPARENCIAS%20E%20AMBIGUIDADES.pdf(12.08.2010)

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    6/12

    Renata Daz-Szmidt 6

    Em 1986 saiu a primeira colectnea de contos de Mia Couto Vozes Anoitecidas

    em que o autor experimentou com a lngua portuguesa formando os neologismos e

    brincando com as palavras portuguesas para oralizar a escrita ou para dar um novo

    significado s palavras. Como repara Jos de Sousa Miguel Lopes Mia Couto recria a

    oralidade (...) atravs de uma lngua literria sustentada por uma exuberantecriatividade lexical e uma sintaxe que faz a ponte entre a oralidade e a pura inveno,

    em que o contexto comunicativo, esttico, possibilita a partilha da mensagem de

    ruptura6. O escritor moambicano retomou os passos do escritor irlands James

    Joyce, o brasileiro Guimares Rosa e o angolano Luandino Vieira que, usando a

    lngua dos colonizadores, tentavam romper com as suas normas gramaticais e

    sintcticas, transform-la e tornar original.

    Outros escritores tambm mostram-se preocupados com a moambicanizao

    da lngua portuguesa. Paulina Chiziane, Suleimann Cassamo, Borges Coelho e

    Ungulani Ba Ka Khosa, tal como Mia Couto, introduzem nas suas narrativas escritas

    em lngua europeia as palavras das lnguas chope e ronga atribuindo-lhes o carcter

    dos contos orais contados noite volta da fogueira. Por isso Alioune Tine afirma que

    a literatura africana se define como uma literatura situada entre a oralidade e a

    escrita (1985: 99). Ficando na fronteira entre dois modos bem diferentes de formar os

    discursos, os escritores introduzem na escrita as retardaes, citaes dos ditos e das

    sabidurias populares tpicas para a oratura (Paulina Chiziane, Llia Mompl, Suleiman

    Cassamo), pem muitas partes dialogadas (Suleiman Cassamo, Mia Couto) e colocam

    os provrbios no comeo dos captulos (Ungulani Ba Ka Khosa). Como repara Russel

    Hamilton em Moambique h tentativas de transmitir vrios aspetos da oralidade

    atravs da palavra escrita (1988: 5). Os escritores usam a estrategia da oralizao

    das narrativas para dar conta da sua africanidade mas, ao mesmo tempo,

    testemunham a transculturao da prosa escrita em portugus.

    O projecto da moambicanizao da literatura vai para alm das estratgias da

    oralizao da escrita e realiza-se tambm no campo metaliterrio e temtico.Como uma das carectersticas mais relevantes da nova narrativa moambicana

    pode ser destacada a ambiguidade com a qual tratado o realismo. Por um lado, os

    escritores demonstram uma grande preocupao com as tradies e costumes

    autctones. No recorrem mais s tradies dos colonizadores mas procuram os

    valores das suas culturas. As obras dedicadas recuperao dos valores autctones

    africanos caracterizam-se por um realismo agudo, quase naturalista. O conto A

    Fogueira da colectnea Vozes Anoitecidasapresenta uma histria dum casal idoso e

    pobre que vive s numa misria completa. O homem sentido que se aproxima morte,

    6 www.catjorgedesena.hpg.ig.com.br/html/.../miguel_lopes.doc (10.08.2010)

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    7/12

    O legado tradicional africano e as influncias ocidentais7

    prope sua mulher que a vai matar e que lhe vai preparar o tmulo. A mulher no

    protesta e comporta-se duma maneira muito diferente do que esperaria um leitor

    europeu, agradecendo ao seu marido a preocupao. Compreende que a proposta do

    marido resulta do seu amor por ela, j que ele no a quer deixar s no mundo, onde

    ningum vai poder a enterrar. Segundo as crenas africanas, no h maior desgraado que no ter um enterro digno feito pela famlia. A morte no provoca medo dum

    africano e percebida como uma passagem ao outro mundo. O naturalismo e o

    realismo agudo no conto transforma-se, neste momento, em realismo mgico. As

    narrativas de Mia Couto e, depois, tambm de outros escritores moambicanos como

    Suleiman Cassamo e Paulina Chiziane, esto cheias dos mortos que falam com os

    vivos, dos humanos que se transormam em animais, das rvores que conversam com

    as pessoas e dos feitieiros capazes de mudar o rumo da vida humana graas

    magia. Para os africanos tudo isso possvel. Por isso os escritores angolanos

    Pepetela e Henrique Abranches no falam do realismo mgico nas literaturas

    africanas, deixando este termo narrativa sul-americana (Garca Marquez, Carlos

    Fuentes) e, para a prosa africana, propem a designao realismo animalista

    (Laranjeira, 1995: 375). Parece-nos justificado constatar que os elementos do

    realismo animalista presentes em muitas obras dos escritores moambicanos

    constituem um reflexo do imaginrio transmitido nas narrativas orais. Por isso Loreno

    Rosrio afirma que a literatura de tradio oral se encontra refletida na literatura

    escrita na forma e no contedo (1994: 11).

    A nvel temtico, o entrecruzar das tradies autctones africanas com a

    cultura ocidental constitui o eixo das narrativas da maioria dos escritores

    moambicanos. Deste modo, Suleiman Cassamo, Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa e

    Paulina Chiziane constroem um novo espao transcultural na literatura seguindo os

    passos de Homi Bhaba, que anima os escritores ps-coloniais a criar third space of

    enunciation (1994: 7).

    Suleiman Cassamo (n.1962), um ano depois de publicar os contos Amor deBaob, publicou em 1997, uma outra colectnea, O Regresso do Morto, na qual

    encontramos uma histria intitulada Madalena, xiluva do meu corao. O narrador

    Fabio lembra-se duma rapariga da sua aldeia natal por quem ficou apaixonado. O

    rapaz partiu para a capital, estudou, tornou-se numa outra pessoa que come com

    garfo e faca, que sabe amarrar gravata e que tem vergonha das suas razes e dos

    costumes tradicionais. Por isso, sofre uma grande crise identitria: que, sabes, eu

    sou dois ao mesmo tempo. Sou o que estudava para ser algum, que j no quer ser

    Fabio. Fabio?...Hoje o Neves. Est atrs dos culos e no te aperta a mo. Se ofaz, olha antes para todos os lados. (1997: 41). Fabio gostaria de casar com a xluvia

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    8/12

    Renata Daz-Szmidt 8

    do seu corao, mas no o faz e pergunta Madalena como te aceitariam os amigos

    do Neves, tu, uma inculta? (Ibid: 42).

    Muitos jovens que chegam do meio rural s cidades parecem-se ao Fabio de

    Cassamo. Tm vergonha da sua provenincia, deixam as suas tradies e crenas e

    adaptam costumes alheios. O velho Mungoni do romance Ventos do Apocalipse dePaulina Chiziane comenta esta situao dizendo: O povo perdeu a ligao com a sua

    histria. As religies que professa so importadas. As ideias que predominam so

    importadas. Os modos da vida tambm so importados. O confronto entre a cultura

    tradicional e a cultura importada causa transtornos no povo e gera a crise de

    identidade (1999: 267). Os mesmos problemas identitrios tem a maioria dos

    protagonistas dos romances de Mia Couto. O protagonista de A Varanda do

    Frangipani, Izidine Nata, um polcia que viaja para uma ilha onde funciona um lar de

    idosos para investigar o assassinato do director da instituio, um moambicano

    negro mas europeizado e, por isso, tratado pelas pessoas da aldeia como um

    mezungo, homem branco. Izidine sente uma confuso identitria que o impede, alis,

    levar a investigao, j que ningum lhe faz confiana e ningum quer falar com ele.

    Finalmente, dum modo absurdo, todos os idosos do lar declaram-se culpveis.

    Tambm em Terra Sonmbula no quinto caderno de Kindzuobservamos os problemas

    do rapaz com a definio da sua identidade quando ele admite que se sente dividido

    entre dois mundos: africano e europeu (Couto, 1992: 103).

    Tambm Paulina Chiziane (n.1955), em todos os seus cinco romances, retrata

    o Moambique actual, dividido entre a tradio e a vida moderna, as culturas

    ancestrais e autcnes e outras que vieram posteriormente, por influncia do Islo, da

    China, da India e, sobretudo, do Cristianismo. Falando da diversidade e das

    transformaes culturais, Paulina Chiziane confessa: Em Moambique temos dois

    mundos familiares distintos: por tradio, um mundo matriarcal no norte e um mundo

    patriarcal no sul. Contudo, com a influncia do islamismo no norte, este tornou-se

    patriarcal e poligmico; e o sul, tradicionalmente poligmico, viu essa prtica serproibida com o socialismo e contestada pelo catolicismo. Ora estes processos de

    mudana geram conflitos e tenses que perduram (apud Gomes: 2001).

    Obviamente, os conflitos e tenses, sempre presentes na sociedade

    moambicana, afectam o dia-a-dia das famlias e, principlamente, das mulheres que

    continuam a viver muitas situaes de injustia social neste pas africano.

    No presente turbulento, as protagonistas dos romances de Paulina Chiziane

    devem enfrentar-se com o choque cultural que supe o des/encontro entre as culturas

    ocidentais e as autctonas africanas, efectuado nos perodos colonial e ps-colonial,e, ao mesmo tempo, com as contradices que resultam da sua situao enquanto

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    9/12

    O legado tradicional africano e as influncias ocidentais9

    mulheres, que, por uma parte, devem responder s exigencias da tradio africana, e,

    por outra, s novas demandas e normas que a sociedade moderna introduz na cultura

    moambicana. justamente o confronto entre a tradio e a modernidade em

    Moambique e as suas consequencias na vida das mulheres que despertam o vivo

    interesse da escritora. Deste modo, Chizine faz parte dos escritores que apresentam odesenvolvimento de situaes de transculturao, geradores de fuses e penetraes

    entre a cultura do colonizador e a cultura do colonizado sem reduzir o contacto entre

    ambas a uma relao de submisso da segunda e imposio hegemnica da primeira

    (Fonseca, 2002: 101-102).

    Entre vrios problemas que preocupam a Paulina, h dois que parecem

    especialmente relevantes: 1) poligamia contraposta ao modelo da famlia mongama

    (Balada de Amor ao Vento, Niketche. Uma histria de poligamia) e 2) crenas

    tradicionais, ritos de passagem, o mundo dos feitios e da magia contraposto s

    religies crists impostas pelo colonizador portugus (O Stimo Juramento, O Alegre

    Canto da Perdiz). O que interessa a Paulina o lugar da mulher neste entrecruzar das

    mentalidades, crenas e costumes diferentes.

    O problema da poligamia e do lobolo, sempre polmicos, aparecem

    constantemente nos romances de Chiziane. O tema permanece polmico pelas razes

    sociais e econmicas. Paulina Chiziane, confessando que fica contra a ideia da

    poligamia na entrevista com Michel Laban admite: Numa situao de poligamia, os

    filhos tm todos um lar, tm todos um pai, uma me, no so filhos desemparados o

    que j no acontece nos dias de hoje. Bem, a sociedade moambicana actual vem da

    poligamia e os homens ainda no esto habituados ideia da monogamia. Ento,

    oficialmente, para todo o mundo ver, so casados com uma mulher, mas tm sempre

    duas, trs, quatro, e vo fazendo filhos por a. (...) Os filhos esto por a, perdidos, no

    conhecem o pai, no tm ligaes com a famlia, enfim, no tm aquele afecto

    comunidade. Ficam um bocadinho sem a tal identidade o que numa famlia

    tradicional no acontece (op.cit: 976-977).Na mesma linha do pensamento situa-se a seguinte reflexo de Hilary Owen:

    Official opposition to polygamy was an important point of ideological

    continuity linking Christian colonial missions and post-independence

    marxism-leninism. Monogamy became a notorious source of hypocrisy

    and double-speak among FRELIMO men, who had much to gain from

    practicing public monogamy and clandestine polygamy. As Chiziane

    points out, it also licensed serial monogamy as a covert form of polygamy

    without providing the economic structures for maintaining more than onefamily. Chiziane consequently refuses to draw a neat defining line

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    10/12

    Renata Daz-Szmidt 10

    between polygamous forms of social organization and the institution of

    monogamy, which maybe serialized into a form of de facto, non-

    simultaneous polygamy (2004: 172-173).

    Por outro lado, por motivos psicolgicos, emocionais e sentimentais, a

    necessidade de compartilhar o marido no sistema da poligamia com outras mulheres,

    constitui uma experincia dolorosa e provoca um profundo e prolongado mal-estar das

    mulheres.

    O tema das crenas tradicionais e da sua confrontao com o Cristianismo o

    tema de outro romance da escritora O Stimo Juramento. O protagonista do romance,

    David, um director duma empresa que, perante o primeiro obstculo, recorre aos

    antepassados e mergulha no mundo da magia negra para resolver problemas que lhe

    acontecem sem hesitar em pr em perigo a vida da sua famlia. A sua mulher, Vera,tenta desfazer os feitios da magia negra e salvar os seus prximos. A mulher revolta-

    se contra o seu marido, mas a feitieira da magia branca faz-lhe compreender que o

    seu marido tambm uma vctima, ele tambm abusado, perdido entre a realidade

    em que no sabe viver e encontrar o seu lugar e o mundo mgico cruel e

    incompreensvel:

    Chamas ento monstro ao homem que te amou e te levou ao altar?

    Como chamars ento queles que e em nome da globalizaco fazem

    os povos abandonar os seus deuses para seguirem os mandamentos do

    deus da tecnologia, das bombas nucleares (...)? Que pensas ento dos

    que queimaram os nossos mutundos e as nossas magons, fazendo

    acreditar que no ventre das mes existe apenas a escurido e o feitio?

    Como chamars ainda aos que te ensinaram a olhar para o cu como

    salvao enquanto te tiraram a terra e a tradio, deixando-te na

    absoluta misria para depois te derem uma esmola tirada do seu prprio

    suor, dando-te lies de tecnologias bsicas para aliviar a pobreza em

    nome da ajuda humanitria? Diz-me com franqueza o que pensas dosque te trazem a civilizao, obrigando-te a abandonar a natureza porque

    selvagem, (...) para depois ficarem a desfrutar a riqueza do paraso

    verde por ti renunciado? (Chiziane, 2000: 228-229).

    Assim, se David recorre magia negra porque se sente perdido no mundo

    que o rodeia, no sabe como actuar e porque perdeu os valores. responsvel por

    todas as suas escolhas e por todos os seus actos, mas o seu comportamento

    resultado do cmbio drstico das condies de vida de muitos moambicanos que se

    tornaram ricos nas zonas urbanas. As pessoas, tanto homens como mulheres, que

    vm das zonas rurais para as cidades, sentem-se deslocadas mas, ao mesmo tempo,

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    11/12

    O legado tradicional africano e as influncias ocidentais11

    tm vergonha das suas razes. Os seus filhos voltando s aldeias tambm se sentem

    deslocadas, no conhecem cdigos culturais, no entendem as lnguas, no se

    reconhecem como herdeiros do patrimnio dos seus avs e dos antepassados. Ana

    Mafalda Leite considera O Stimo Juramento um romance mtico-histrico e de viagem

    alegrica, ou seja inicitica pelos meandros da cultura anmico-religiosa, recuada notempo, no entanto acrnico, que permanece latente, incrustado no presente (2003:

    100).

    Resumindo as nossas reflexes sobre a problemtica identitria expressa nas

    mais recentes narrativas moambicanas, podemos constatar que a sociedade ps-

    colonial moambicana um espao de coexistncia de distintos modos de vida, cujas

    tenses entre estes expressam-se atravs da ruptura entre a tradio secular e a

    modernidade, introduzida pela colonizao ocidental e tratada instrumentalmente. Isto

    explica, em parte, no s a crise actual do estado-nao, seno tambm a difcil

    situao social, poltica e econmica de Moambique. Mia Couto em Pensatempos

    (2005) analisa pormenorizadamente a confuso identitria comum hoje em dia entre

    os moambicanos. Ao mesmo tempo no h dvida de que os moambicanos

    desejam construir e saber definir a sua prpria identidade nacional e cultural. O desejo

    dos escritores encontrar novas formas literrias capazes de expressar esta

    identidade em constante construo, na e pela literatura, usando vrias estratgias

    narrativas analisadas por Peter Petrov. Oralizando os seus discursos, introduzindo

    ambiguidades discursivas, experimentando duma maneira modernista e ps-

    modernista com as formas e estruturas literrias, os escritores moambicanos

    procuram moambicanizar as suas narrativas e dar conta do carcter nico e original

    da prosa e do imaginrio moambicano nela reflectido. Deste modo, os escritores

    afirmam, cada vez dum modo mais convincente, a sua presena e o inquestionvel

    valor literrio das suas obras no panorama fascinante das letras africanas ps-

    coloniais.

    BIBLIOGRAFIA

    Afonso, Maria Fernanda (2004) O Conto moambicano. Escritas ps-coloniais, Caminho,Lisboa.

    Bhabha, Homi (1994)The Location of Culture, Routledge, Londres.Cassamo, Suleimann (1997) O Regresso do Morto, Caminho, Lisboa.Chabal, Patrick (1994) Vozes moambicanas. Literatura e Nacionalidade, Vega, Lisboa.Chiziane, Paulina (2000) O Stimo Juramento, Caminho, Lisboa.______________ (1999) Ventos do Apocalipse, Caminho, Lisboa.Couto, Mia (1997)A Varanda do Frangipani, Caminho, Lisboa.

    __________ (1992) Terra Sonmbula, Caminho, Lisboa.__________ (1986) Vozes Anoitecidas, Caminho, Lisboa.Fonseca, Ana Margarida (2002) Projectos de encostar mundos, Difel-Difuso, Algs.

  • 7/24/2019 O Legado Tradicional Africano e as Influncias Ocidentais

    12/12

    Renata Daz-Szmidt 12

    Gomes, Jlio (2001) Contadora de histrias entrevista em Jornal de Letras, Artes e Idias,Lisboa (21 de Maro).

    Hamilton, Russel (1988) Dinmica da oralidade fica esttica na escrita em Domingo. Maputo,18/12.

    Laban, Michel (1998)Moambique: encontro com escritores, Fund. Eng. Antnio de Almeida,vol 3, Porto.

    Laranjeira, Pires (1995)Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa, Universidade Aberta,Lisboa._________ Mia Couto e as literaturas africanas de lngua portuguesa, consultadi em

    ucm.es/fll/0212999x/articulos/RFRM0101220185A.PDF (25. 07.2010)Leite, Ana Mafalda (2003) Literaturas Africanas e Formulaes Ps-Coloniais, Colibri, Lisboa.Lopes, Jos de Sousa Miguel Cultura acstica e cultura letrada : o sinuoso percurso da

    literatura em Moambique, consultado emwww.catjorgedesena.hpg.ig.com.br/html/.../miguel_lopes.doc (10.08.2010)

    Mouralis, Bernard (1982)As Contraliteraturas, Almedina, Coimbra.Noa, Francisco (2002)Imprio, mito e miopia. Moambique como inveno literria, Caminho,

    Lisboa.Owen, Hilary (2004) The serpents tongue: gendering autoethnography in Paulina Chizianes

    Balada de amor ao vento em Lusophone Studies, University of Bristol: Departament of

    Hispanic, Portuguese and Latin American Studies, n 2, Outubro, pp.169- 184.Petrov, Peter Transparncias e ambiguidades na narrativa moambicana contempornea,consultado em www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeI ((12.08.2010)

    Rosrio, Loureno do (1994) Introduo em: Godinho, Maria Lusa e Rosrio, Loureno do. Oconto moambicano: da Oralidade Escrita, Te Cor Editora, Rio de Janeiro.

    Tine, Alioune (1985) Pour une thorie de la litterature africaine crite em: Prsence Africaine,n.o133-134.

    Um Moambique de histrias,entrevista com Paulina Chiziane, consultado emhttp://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11899 (10.08.2010)