o lamento de athlanda

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  • 7/28/2019 O Lamento de Athlanda

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    A Saga de

    Mitrax

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    O Lamento de

    Athlanda

    Autor:

    Srgio Roberto de Paulo

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    A fora irresistvel do holocausto se aproxima. Os elfos

    que sobrevivero sero aqueles que se escondero nos

    buracos e frestas insondveis. A Grande Floresta ser

    destruda. E com ela, a harmonia do continente. Sem as

    rvores, vir a poca do Vero Eterno e a terra ser ridae escaldante. Sem as rvores, as chuvas no viro. Ou

    viro torrencialmente, varrendo a colheita. Sem as rvores

    para regular as nuvens, no haver estaes e o tempo

    enlouquecer. Um tempo negro se abater sobre a terra,

    cobrindo com o seu manto todas as criaturas.

    Collinaw

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    Mar dos

    Monstros

    Rio Mgion

    Piramar

    Armon

    (Imprio Angelical)

    Rio Sanco

    Lumerae

    LagoSawagasa

    Beliria

    NenmenahReino das

    Ondinas

    Kalina Lothar(Lothar Prima)

    Monte Armon

    Dracmaraht

    Terra dos

    Gigantes

    Silvnia

    Floresta de

    Athlanda

    (~1000 a.EGRR)

    Lothar Eralda

    Ithra

    Maras

    Ew Dortas

    Sursardaw

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    Nerah chegou voando em zigue-zague epousou resfolegante na varanda. Procurou no fazer barulho, pois o pai dormia esparramado

    sobre a confortvel cadeira. Quando se colocou firmemente em p, a pequena elfa breas

    parou alguns instantes a pensar. Olhou para um lado e para o outro, com as sobrancelhas

    comprimidas contra os olhos. L fora, o Sol j se punha, fazendo com que as protuberantestorres de Lothar Eralda projetassem sombras compridssimas.

    -Nerah? sussurrou o rei.

    Nerah se virou, assustada. O pai havia acordado.

    -Por que chegaste to tarde?

    A menina abaixou a cabea e lentamente caminhou at o pai. Ela no disse nada,

    mas o charme foi irresistvel ao poderoso Rei Bhorgus. Ento, ele sorriu e abriu os braos.

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    Diante desse gesto, a menina sorriu, feliz da vida por no ser repreendida, e correu

    para os braos do pai. Este a apanhou e botou-a sobre o seu colo.

    -Onde esteve? indagou ele.

    -Voando atrs das fadinhas... respondeu a filhinha, com ar inocente.

    O rei pensou que ela j estava na idade de entender certas coisas, mas nada disse.

    Nerah, por sua vez, cansada, bocejou.

    -Ah, ests com sono, no ests? perguntou o pai, sorrindo.

    -Papai... conta uma histria? indagou a menina, cheia de charme - ...para me fazer

    dormir?

    Bhorgus sorriu novamente e pensou que havia uma histria que j estava na hora

    dela conhecer. Ento, limpou a garganta com um som caracterstico, para a voz sair maissuave, tratou de aconchegar a sua filha mais nova contra o peito e comeou a contar:

    O vento pressionava seu rosto conforme se precipitava dasalturas. Iblius vinha logo atrs, mas ele no era to rpido quanto ela. E isso lhe dava uma

    satisfao mpar, como raras na vida. Mas ele estava rindo, no estava chateado. Podia ouvir

    as suas gargalhadas, por isso sabia que estava logo atrs. E, de repente, como nenhum

    contentamento eterno, uma idia perturbadora invadiu o seu ser: e se ele a deixava ganhar

    todos os vos? E se, na verdade, ele fosse mais rpido, mas ficava propositadamente para

    trs? No, no podia ser. Eles estavam sempre disputando e ele adorava vencer!

    Mas a corrida estava no fim. O cheiro de Ithra j invadia o ar. A torre funerria de

    Mardria j podia ser avistada, aparecendo dentre as nuvens, l onde o seu av haviaemanado, h cinqenta anos. E a torre lhe deu uma idia. Tinha que provar a si mesma que era

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    melhor no vo que o irmo, embora ele fosse melhor em todas as outras coisas. Ento,

    quando passou pela torre, repentinamente virou para a esquerda contornando-a. Iblius passou

    reto, pois no percebeu a manobra. Assim, depois de um segundo, Ithrannah apareceu

    imediatamente atrs dele e, sem que ele pudesse fazer qualquer coisa... arrancou as suas

    calas.

    Percebendo-se s de ceroulas, ele parou no ar. Colocou os punhos fechados contra a

    cintura e reclamou:

    -Ei!

    Mas Ithrannah flutuava no ar, se contorcendo de tanto rir, pressionando as calas do

    irmo contra a barriga.

    -No tem graa, Tix! disse ele, verde de raiva.

    Ela lhe atirou as calas. Ele sempre a chamava pelo seu nove de fada quando queriachate-la. Bem, para os elfos aquilo era a mesma coisa que chamar algum de criana. Nada

    mais ofensivo para uma pr-adolescente.

    Iblus vestiu rapidamente a cala e rumou para cima.

    -Ei! Papai disse para voltarmos antes da quinta hora! gritou a elfa breas.

    -Tchau! respondeu o irmo, j longe.

    Contrariada, Ithrannah voou at em casa. Logo avistou a grande paineira a beira do

    rio, prxima a um grande conjunto de cascatas projetando-se do alto das MontanhasChorosas, e pousou suavemente na varanda da frondosa casa de madeira que se confundia

    com a rvore. Estava um dia nublado, um pouco estranho, e, por isso, viu que o pai trabalhava

    no escritrio, pois uma bruxuleante luz de velas vazava pelas frestas das venezianas. Ele nunca

    deixava as janelas abertas por causa dos espies tuellais.

    Encontrou-o lendo uma carta, com uma cara de espanto. Quando ele percebeu a sua

    presena, baixou o pedao de papel e, depois de um breve instante sorriu. Depois voltou a

    ficar srio de novo e perguntou:

    -Onde est o seu irmo?

    -Voando por a... respondeu ela, casualmente.

    -Vai busc-lo disse ele, num tom entre uma ordem e um pedido.

    -Mas, pai, acabei de chegar! protestou a menina.

    Ento ele cruzou as mos sobre o colo e suspirou. claro que as mos no podiam

    ser vistas por trs da mesa, mas Ithrannah sups que ele tivesse feito isso, pela posio dos

    ombros. Depois ele se levantou com uma expresso de quem pedia pacincia para si mesmo,

    segurou uma das mos da filha e a puxou suavemente de volta para a varanda. Ali era ntido e

    forte o som das cascatas se chocando contra as pedras.

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    Ele se abaixou diante da filha, ficando de joelhos e segurou-a pelos ombros. Olhou-a

    profundamente, com os olhos parcialmente cobertos pelos prprios cabelos e disse:

    -Promete-me uma coisa, Ithrannah, que nunca sair de perto de teu irmo!

    -Mas, pai... disse ela, um pouco assustada com a atitude do elfo notus.

    -Promete-me, querida, que, no importa o que acontecer, estars sempre ao lado de

    teu irmo!

    -Por que, pai? indagou ela, j com um pouco de lgrimas nos olhos. Estars

    conosco tambm, no estars?

    -Um dia no estarei...

    -No! disse ela, balanando negativamente com a cabea. Sempre estars

    conosco!

    -Um dia todos morrem, Ithrannah. E no ser diferente comigo disse o pai,

    serenamente.

    -Mas isso ser daqui a muitos sculos, no ser?

    -Espero que sim, querida, espero que sim... disse ele, abraando-a.

    Depois afastou-a suavemente e completou:

    -Agora vai. Traze o teu irmo. Est na hora do almoo!

    Ela tentou sorrir e voou, dizendo:

    -Volto logo!

    E, de fato, em menos de meia hora estava de volta com o irmo. Sentaram-se os trs

    mesa e foram servidos pelo casal de zephyros que os atendiam h dcadas. Traziam os

    pratos sobre badejas colocadas em cima das cabeas. Tinham um aspecto permanentemente

    triste como muitos zephyros e tambm eram mudos, como a maioria deles. Por dcadas,

    Ithrannah tentara faz-los rir, fazendo ccegas nas suas barrigas, mas o mais que conseguira

    com aquilo fora que eles se transformassem em eureus e sassem voando por a. E, quando

    isso acontecia, ficavam quase uma semana sem aparecer e o pai ficava aborrecido. Ento,

    desistira.

    -Eu no quero comer cenoura. Isso comida de gnomo! protestou o jovem Iblus.

    -Ento come o resto! disse o pai, tentando resolver o problema da maneira mais

    rpida possvel.

    Mas, tirando as cenouras, o voraz rapazinho no fez cerimnia em devorar o resto.

    Ithrannah observou atnita e um tanto enojada o irmo misturar po, tomate, folhas, cebola e

    uma abundante quantidade de mel e enfiar grandes quantidades daquilo na boca, fazendouma baba amarronzada escorrer pelos cantos da boca.

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    -Nesta tarde, quero que fiqueis em casa, estais me entendendo? H tuellais

    rondando na cidade e vou estar fora, trabalhando declarou o pai.

    -Os bandidos esto dando trabalho, pai? perguntou o menino, com vivo interesse e

    a boca parcialmente cheia.

    -Um pouco... respondeu o pai, sem muito entusiasmo.

    -E quando vais me ensinar a ser um ailand?

    -Em trs ou quatro dcadas... respondeu Bohnarius, o grande caador de tuellais.

    Precisas aprender a ter disciplina primeiro!

    O menino elfo nada disse, limitou-se a olhar o pai de boca cheia, sem mastigar por

    alguns instantes, com cara de que no poderia esperar tanto tempo.

    Algumas horas mais tarde, Bohnarius caminhava nas escuras e apertadas vielas do

    bairro norte da cidade. Ali, as rvores eram bastante juntas e tinham troncos espessos,

    restando pouco espao para as barracas de vendedores que se espremiam uns sobre os

    outros. Para piorar, uma multido de elfos em todas as fases transitava em todas as direes.

    Assim, no somente o cho estava repleto de ps notus e zephyros, como tambm o ar estava

    repleto de elfos breas e eureus. E, nessas condies, para o chefe da polcia local, o faro

    funcionava muito melhor que a viso. Ento, dentre aquela mirade toda de diferentes aromas

    e fedores, ele sentiu um leve trao de um elfo apeliotes. Leve, mas inconfundvel.

    Poucos tinham um dom to apurado para farejar tuellais, mas Bohnarius era um

    mestre nessa arte. Mas no podia ser reconhecido, assim, cobriu a cabea com o capuz do

    manto.

    Seguiu o cheiro, abrindo pacientemente caminho entre a multido, e no demorou

    muito para encontrar o seu alvo. Muito bem disfarado, tambm usando um manto, estava

    um elfo suspeito, conversando com um outro na fase notus. Era discreto e tinha certeza que os

    transeuntes estavam prximos a um tuellai e, portanto, corriam perigo. De longe, observando

    por dentre as pequenas brechas mveis formadas entre os transeuntes que passavam, pde

    observar o elfo notus entregando um pedao de papel ao tuellai. Este o colocou

    cuidadosamente no bolso. Observou atentamente o rosto do notus, para gravar-lhe a

    fisionomia, mas era hora de agir.

    Ento, comeou a andar na direo dos dois. No se apressou, para no levantar

    suspeitas. Aproximava-se olhando fixamente para os dois. Cinco metros. Eles pareciam no t-

    lo percebido, pois continuavam conversando. Quatro metros. No conversavam normalmente

    mas, antes, cochichavam. Trs metros. Logo daria a ordem de priso. Mas, embora eles no o

    houvessem percebido, algo aconteceu. Um grito. Um terceiro. Um vigia.

    -Ailand!

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    No havia tempo de identificar de onde a voz havia partido. Os dois suspeitos, ao

    ouvirem o grito, olharam para todos os lados e o viram. Hora de correr.

    Bohnarius disparou na direo dos dois. Estavam perto, mas havia ainda muita gente

    no caminho. Derrubou vrios, mas o notus correu pela esquerda e o ailand correu atrs do

    tuellai. Este era gil, mais magro e rpido que Bohnarius. Aos poucos, ento, foi sedistanciando por entre a multido, derrubando vrios. Jamais o pegaria assim.

    Mas, felizmente, ele rumou pela rua baixa dos Murmrios. O ailand, portanto,

    seguiu pela esquerda, para passar pelo elevado. Era a sua nica chance de peg-lo. Enquanto

    corria, derrubando elfos e barracas, podia ver o tuellai l em baixo, tambm avanando

    forando a passagem dentre a multido.

    Bohnarius correu o mais que podia, comeando a perder o flego. Tinha que

    melhorar a sua forma, pensou. E, ento, se jogou do elevado, quase sem olhar.

    Veio a cair justamente sobre o bandido, machucando vrios transeuntes, e tratou

    logo de agarrar-lhe o manto. Como o havia derrubado, procurou posicionar o seu corpo sobre

    o dele, para prend-lo. O tuellai, enraivecido, o mirou com olhos vermelhos, to vermelhos

    como Bohnarius jamais vira num elfo negro, e que o assustou. Ao mesmo tempo, o bandido

    vociferou:

    -Idiota! Esto todos perdidos aqui!

    -Miservel! gritou o ailand. Quem te mandou aqui?

    O tuellai apenas riu e, num movimento rpido e preciso, deu uma cotovelada norosto do policial, que resultou num hematoma que jamais sararia, tirando-o de cima do

    bandido. Bohnarius rolou para o lado, repleto de dor, mas ainda segurando firmemente o

    manto. Mas este ficou leve, pois o tuellai se desvencilhou desse item de sua roupa e fugiu

    rapidamente. Mas, assim, com o rosto inchado e sangrando, com a face manchada de verde,

    cercado pela multido atnita, Bohnarius sorriu, feliz, pois, na sua mo direita, segurava o

    pedao de papel que fora entregue ao tuellai.

    #######

    Na manh seguinte, o pai mastigava alguma coisa na mesa, absorto, parecendo

    perdido em seus pensamentos. Os gmeos cochichavam e sorriam. Ento, um deles tomou

    coragem e perguntou:

    -Pai, podemos ir ao festival? indagou Iblus.

    Mas o pai, preocupado com os seus pensamentos, nem prestou ateno direito na

    pergunta, e respondeu automaticamente:

    -Claro...

    Assim, as crianas sorriram e gritaram:

    -Oba!

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    E saram correndo. Foi somente ento que Bohnarius voltou a si e percebeu que

    respondera sem refletir. Bem, no muito seguro andar pelas ruas hoje em dia, pensou,

    mas, depois de ontem, no acredito que novos tuellais surjam to cedo. E depois... tambm

    estarei l!.

    #######

    O Grande Festival de Ithra Maras ocorria sempre no dia 14 de maio. Acontecia numa

    extensa pradaria, ao sul da cidade, onde se armavam imensas tendas decoradas por um sem

    nmero de fitas coloridas. Olhando-se para o norte, as grandes torres ithrianas podiam ser

    vistas, despontando por cima do dossel. Dezenas de milhares de elfos se concentravam ali,

    para o festival, sendo vrios de outras grandes cidades de Athlanda, como Lothar Eralda,

    Sursardaw e da capital, Kalina Lothar. Mas, naquele ano de 1017 da Era dos Elfos, ningum de

    Ew Dortas e Nenmenah, as maiores cidades do norte, havia vindo. A ausncia dos respectivos

    estandartes imediatamente foi notado por Ithrannah, mas, quando os gmeos perguntavam a

    qualquer adulto a razo daquela ausncia, notavam um constrangimento na resposta. aguerra, diziam alguns. Muito arriscado vir aqui, afirmavam outros. Mas evitavam falar

    muito naquilo.

    -Eu sei o que est acontecendo! disse Iblus, resoluto, enquanto caminhavam

    passeando por entre as tendas.

    -O que? indagou a irm.

    -As salamandras destruram essas cidades! respondeu ele, com um tom trgico.

    Iriannah no sabia se o irmo de fato pensava aquilo ou estava tentando amedront-la. Assim, retrucou apenas:

    -Credo! Vira essa boca pra l!

    Ento, avistaram um conhecido e sorriram.

    -Olha! o Easrius!

    Um elfo notus, alto e esguio, a uns vinte metros de distncia, ajeitava a sela de um

    drago verde, cujos arreios estavam sendo seguros por dois criados humanos.

    -Ei, Easrius! gritou Iblus, acenando de longe.

    Ao ouvir o seu nome, o elfo se virou e sorriu. Andou apressado at as crianas e,

    abrindo os braos, disse:

    -Seus pestinhas!

    E abraou-as.

    -Vais competir, Easrius? indagou Ithrannah.

    - claro! Trouxeram fitas?

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    Ento, as crianas reviraram os bolsos e tiraram longas fitas coloridas. A de Iblus era

    azul e a de Ithrannah, amarela.

    -timo! disse o notus, apanhando as fitas. Vinde!

    Conduziu-as at o drago de longo pescoo e cauda. J tinha muitas fitas amarradasnessas partes de seu corpo. Algumas j estavam bem gastas e desbotadas, pois haviam sido

    postas em festivais passados.

    -Esse o Idomeus disse, apontando o drago. Podem acarici-lo, manso!

    As crianas olharam admiradas o drago. Aos poucos, foram tomando coragem e

    acariciaram a sua cabea, que ele abaixara na direo do dono. Como todo drago verde,

    aquele tinha a cabea pequena, do tamanho do tronco de um homem adulto.

    -Agora vou amarrar as fitas disse o elfo notus.

    -Amarra a minha logo abaixo da cabea! pediu Ithrannah.

    Assim ele o fez, colocando a fita de Iblus logo em seguida.

    -Vais ganhar os jogos, no vais, mano? indagou o menino.

    -Ora! H outros competidores muito bons. Imonarion o favorito!

    -H exclamou Ithrannah, tu derrotas ele!

    O irmo mais velho sorriu mas, de repente, o sorriso se foi, pois seus olhos haviam

    avistado outra pessoa:

    -Ol, Easrius disse a pessoa.

    O elfo notus ficou ereto, saindo da posio mais abaixada, que usava para falar com

    as crianas.

    -Ol, pai... respondeu ele, demonstrando pouco nimo.

    -No vais abraar o teu velho pai? indagou Bohnarius.

    O jovem notus ento sorriu, caminhou para frente e abraou o pai.

    Mais tarde, ambos, Bohnarius e Easrius caminhavam atravs do parque onde fora

    montado o festival. Passavam pela multido de transeuntes. Elfos de todas as fases brancas

    compravam bugigangas e conversavam animadamente.

    -E ento, indagou o pai, enquanto caminhava, - ainda no desististes dessa idia de

    se dedicar vida militar?

    -No, pai respondeu o filho, pensativo. o que quero para a minha vida. Sabesque no consigo ficar parado num lugar s!

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    O pai parou. No se conformava com a escolha do filho, mas falou da maneira mais

    suave possvel, desta vez:

    -Filho... vem trabalhar comigo... Sabes que tens talento em caar tuellais!

    -Pai... discutimos isso milhares de vezes... ento Easrius baixou a cabea econfessou: - Fui destacado para Kalina Lothar...

    -No vai, filho. suicdio! implorou o pai.

    -H numerosas foras concentradas l, pai. Nada vai me acontecer!

    J estavam parados, olhando-se mutuamente, mas Bohnarius comeou a andar de

    um lado para o outro, nervoso, gesticulando.

    -Eu vi os exrcitos de fogo, Easrius... No h como lutar contra aquilo!

    -Pai, vamos deter as salamandras. Vamos par-las antes que cheguem a meio

    caminho de Ew Dortas. Athlon sabe o que faz!

    -Athlon no sabe de nada! H tuellais ajudando as salamandras, Easrius, tuellais!

    -Pai, vs tuellais em todas as coisas! Sei que teu trabalho, mas...

    -Interceptei uma mensagem... confessou o pai, em voz baixa. Os exrcitos de fogo

    no vo rumar para Ew Dortas, Easrius, vo atacar diretamente a capital!

    -Kalina Lothar? Bogabem! retrucou o filho, espantado. Jamais cometeriam tal

    suicdio! Elas jamais tomariam a cidade... No, fortificada demais... E os ventos...

    -Jamais imaginamos que tomariam Nenmenah, no verdade? insistiu o pai, agora

    falando mais brandamente, mas demonstrando temor. Afinal, quem imaginaria que

    salamandras tomariam a cidade das guas? Mas elas tomaram, Easrius, contra todas as

    nossas expectativas!

    - verdade isso, pai? Essa mensagem...

    -Por acaso ests duvidando de teu prprio pai?

    Easrius olhou bem para o pai, atnito, mas as trombetas soaram, chamando oscompetidores para os jogos.

    -Vai disse o pai, imaginando que aquela conversa no terminara ali. Ests

    atrasado!

    Easrius fez um sutil gesto com a cabea e se encaminhou apressadamente para o

    seu drago.

    #######

    O vento comeou a soprar para leste. Uma singular direo, para aquela poca. Oscompetidores se ajeitaram em suas montarias. Drages verdes, todos com um nico chifre no

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    alto da testa, todos abundantemente enfeitados com fitas coloridas. Segundo a tradio lfica,

    os que portavam mais fitas eram aqueles que carregavam maior nmero de esperanas, e a

    esperana era capaz de grandes feitos. E o de Easrius era um dos mais enfeitados. Fitas notas

    e fitas antigas. A mais significativa delas, a fita da me, vermelha, desbotada e rasgada,

    colocada na base do pescoo do drago pouco antes dela ir. Easrius acariciou a fita, enquanto

    tentava se concentrar na competio. Eram dezoito nessa bateria. Os jogos estavam apenas

    comeando.

    A trombeta soou. Todos largaram rapidamente, voando pelo cu com as suas

    montarias. Easrius ficou para trs. Estava distrado nos pensamentos e no percebeu direito o

    instante da largada. Os competidores passaram pelas argolas. Trs. Situadas a vinte e cinco

    metros do cho. Fixadas em colunas de madeira. Eram estreitas. Mal dava para o drago

    passar. Mas todos passaram com facilidade. Easrius era o ltimo e imaginou que no seria

    fcil naquele ano. Mas rapidamente recuperou espao. Ultrapassou os oito mais lentos e

    continuou avanando. A trajetria consistia em voltas em torno do campo. Assim, todos

    poderiam ver o que acontecia. Agora era a vez das argolas mveis. Eram suspensas por cabos e

    presas em estruturas de madeira. Todo competidor deveria passar por trs delas em

    sequncia. Era difcil. Aquele que tocasse nos aros era desclassificado. Dois ou trs tocaram,

    mas os outros passaram. E Easrius era mestre nessa etapa. Assim, ultrapassou mais uns trs.

    Agora vinha as argolas de fogo. Foram introduzidas nos jogos depois que as salamandras se

    insinuaram alm do rio Sanco.

    Quando Easrius as viu, uma mirade de lembranas tomou conta do seu ser.

    Ningum acreditava que as salamandras pudessem atravessar um grande rio. Mas elas o

    fizeram. Arrancaram enormes rvores do cho e as jogaram em grande quantidade no rio, at

    que entupissem a sua superfcie, criando uma espcie de plataforma. Depois jogaram entulhos

    em cima e passaram com os seus exrcitos. Ouvira dos lbios do prprio Grande Rei, numa

    grande audincia, que cada uma daquelas rvores mortas doeu fundo na sua alma. Mas a dor

    do rei no seria suficiente para deter as elementais do fogo. Atravs do Sanco, trezentos mil

    homens de fogo passaram, bem como dezenas de milhares de lees e pssaros de fogo, e

    tambm smios salamndricos, mirades de drages, cinco espcies diferentes, e outras

    estranhas criaturas e, claro, vinte e cinco mil salamandras.

    Tinha medo do fogo, mas passar por argolas era fcil para ele. Era s fechar os olhos

    no ltimo instante e estava tudo bem. E j estava em quarto. Agora vinham os alvos. Primeiro

    os fixos. claro que seria fcil acert-los, no fosse a velocidade. Agora era a etapa em que,

    quem fosse rpido, poderia ultrapassar os demais. Quanto menos rpido o drago voasse,

    maior a probabilidade de acertar, mas a poder-se-ia ser ultrapassado pelos outros.

    Easrius fez o que sabia: retardou um pouco a velocidade do drago de forma a

    poder ter a certeza de acertar. Mas a ele apareceu. Veio de trs com o seu velho drago.

    Aquele que carregava apenas uma fita. Uma fita roxa. Todo mundo sabia que era de sua finada

    amada. Ele, Imonarion, veio rpido como um raio. Disparou um sem nmero de flechas

    acertando todos os alvos, os fixos e os mveis, tomando a dianteira da competio. Easrios

    at ficou poucos instantes observando-o, movendo-se a frente lentamente. E no soube se

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    fora uma pea pregada pelos seus olhos, mas pareceu t-lo visto piscar para ele. Ento,

    desanimou um pouco. claro que Imonarion iria vencer novamente os jogos.

    #######

    Mas os jogos no tiveram fim. No segundo dia, bem na hora dos competidores seprepararem, uma comitiva da capital invadiu o parque. Uma centria de arqueiros alados da

    fora militar do leste. O centurio anunciou que o rei Athlon convocava todos os membros da

    reserva e os licenciados. Isso inclua praticamente todos os competidores.

    Bohnarius se adiantou e indagou:

    -Centurio, qual o motivo da convocao?

    -Os exrcitos salamndricos rumam para Kalina Lothar! foi a resposta dele.

    Toda a multido que o ouvia ficou em silncio. Todos sabiam o que aquilo significava.Bohnarius olhou para o filho mais velho, distncia. Este o pressentiu e retribuiu o olhar aflito.

    Mas aquele fitar mtuo durou pouco, pois Easrios tratou logo de rumar para a tenda onde

    estavam os seus pertences. O pai foi atrs. Entrou na tenda vociferando:

    -No vai, Easrius!

    -Como no? indagou o filho. Fui convocado!

    - loucura!

    -Pai!

    -Vou providenciar para ti uma dispensa. Direi que vais trabalhar comigo! H tuellais

    ajudando as salamandras e precisamos descobri-los.

    -Pai... Easrius nem sabia como dizer aquilo. No vo acreditar em ti...

    -No vai! Espera-me aqui! e saiu apressadamente.

    O filho pensou por alguns minutos. Mas decidiu ir. Mais tarde, quando o pai retornou

    tenda, no o encontrou mais.

    #######

    Dois dias mais tarde, o elfo notus que passou a mensagem ao tuellai foi preso.

    Bohnarius dirigiu-se sua cela e entrou para interrog-lo.

    -Muito bem, conta-me tudo! gritou o policial, tentando intimidar o prisioneiro.

    O elfo o olhou com rancor, resmungando baixinho:

    -Jamais sabers por estes lbios!

    -Se cooperares, sua pena ser abrandada Bohnarius tentou uma abordagem maisdiplomtica.

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    -No tens provas contra mim! desfiou o prisioneiro.

    -Bastar uma palavra minha para apodreceres pelo resto da vida nos calabouos de

    Al-Nazir!

    O elfo olhou para o cho, parecendo perturbado. Depois decidiu que no fariadiferena alguma contar ou no:

    -A nao lfica est condenada! No h o que fazer! gritou o prisioneiro, com uma

    voz rouca e sinistra. A cada dia que passa, o cristal verde perde poder. No h como deter as

    salamandras!

    -Ento decidiste te aliar a elas, no ?

    -No o que todos deveramos fazer? Elas nos prometeram a sobrevivncia!

    -Sobrevivncia? indagou espantado Bohnarius. Salamandras no tm escrpulos!No tm palavra. Foram criadas para matar e destruir. A vida perece por onde elas passam.

    Um milho de quilmetros quadrados de florestas j foram queimados por elas!

    -Quem se importa com a floresta, quando a nossa sobrevivncia que est em jogo?

    -Quem se importa com a floresta? protestou Bohnarius, indignado. A floresta a

    nossa sobrevivncia!

    -A natureza foi criada para nos servir. Devemos nos apropriar dela! As rvores esto

    a para que as usemos. No h nada de sagrado nelas! Se as salamandras querem queim-las,

    que seja!

    Bohnarius olhou atnito para aquele elfo. Tentou entender o seu pensamento, mas

    no conseguiu. No conseguiu adivinhar de onde vinham aquelas idias. Como poderia um elfo

    admitir a destruio de uma nica rvore?

    -No verdade que a natureza est a nosso servio. Se destruirmos a floresta,

    tambm seremos destrudos.

    -Bobagem! Os gnomos retiram ouro da terra e com isso obtm riqueza. Os homens

    cortam as rvores para alocar o gado, e com isso podem ter uma vida farta. Por que ns no

    podemos fazer o mesmo? Podemos extrair o que precisamos da natureza sem se importar com

    ela. Ela nossa escrava!

    -Tu s doente! exclamou vagarosamente o ailand, olhando fixamente para o seu

    interlocutor. Pensou que tais pensamentos somente poderiam ser resultado do

    enfraquecimento do cristal verde. Isso significava que, logo, mais elfos pensariam assim.

    Ento, seria o fim da civilizao e cultura que conhecia. A civilizao dos construtores de

    cidades entre as rvores. As cidades danantes como os conveses dos navios. Seria o fim de

    Athlanda.

    #######

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    Mas, em agosto daquele ano, um ai-juellai, ou arqueiro montador de drages, foi

    encontrado ferido nos arredores da cidade por um grupo de ailands, assistentes de

    Bohnarius, e foi levando at o palcio do rei de Ithra Maras. Bohnarius tambm foi chamado.

    Contudo, o rei tambm havia se deslocado em socorro a Kalina Lothar, ento, em seu

    lugar, fora nomeado regente o filho do rei, o prncipe Scilion, um jovem elfo notus recmpassado pela cerimnia do ingew, a qual representa a fixao do elfo na sua fase mais

    madura, ou entrada na fase adulta.

    Estavam naquele salo o prprio prncipe, Bohnarius, que tambm era o tio do

    primeiro, o ai-juellai e Patsinah, a feiticeira. O cho estava oscilando mais forte naquele dia, j

    que ventos furiosos vinham de noroeste. As luzes da manh penetravam suavemente pelos

    vitrais, tornando o recinto parecido com o interior de uma floresta entristecida. O ferido havia

    recebido os primeiros tratamentos mdicos, mas apresentava queimaduras srias e cortes

    profundos. Assim, veio trazido em uma espcie de maca.

    O prncipe Scilion andava de um lado para o outro, com as mos unidas s costas,

    impaciente, antes do sobrevivente ser trazido. Mas Bohnarius via o medo estampado na face

    do seu jovem sobrinho.

    Ao ser colocado diante do prncipe, o sobrevivente foi logo dizendo, falando como

    podia, com os olhos arregalados, parecendo ainda presenciar o terror:

    -Quando sa da capital, Kalina Lothar estava em chamas... Um fogo to imenso

    consumia nossas torres que, mesmo sendo o meio da noite, tudo parecia claro como o dia. Vi

    prdios antigos, to altos quanto as nuvens, em poucos minutos serem reduzidos a p... Ruam

    em grande estrondo e estalar, assim que se transformavam em cinzas... As foras

    salamndricas nos abateram sem piedade, mandando centenas de milhares de elfos para o

    inferno. Um rastro de fogo surgia por onde elas passavam... fazendo com que Athlanda

    queimasse em todas as direes... Sua narrativa era entremeada com sussurros, gritos e

    tremores. No estais sentindo o cheiro de queimado?

    Ningum ali sentia qualquer cheiro diferente, mas o sobrevivente no podia se

    libertar do odor dos corpos carbonizados.

    -E depois que tudo estava em runas... continuou o relato, - elas continuaram

    rumando para o sul, como se nada tivesse acontecido!

    -Para o sul? indagou o prncipe, espantado, como se no acreditasse no que tinha

    ouvido. No entendo... Por que poupariam Ew Dortas?

    Bohnarium pensou por alguns instantes, temendo pelo pior. Depois concluiu:

    -No tm interesse por Ew Dortas. Uma presa fcil para mais tarde. O que elas faro

    dividir a Floresta ao meio, rasgando-a de norte a sul.

    -Mas elas tero que atravessar o Mgion... objetou o prncipe. E isso ...

    impossvel!

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    -Atravessaram o Sanco, no foi? Atravessaro o Mgion tambm! sentenciou o

    ailand.

    -O que faremos, tio? indagou Scilion, quase desesperado.

    -Com a queda de Kalina Lothar... a nao lfica no tem mais esperana... admitiuBohnarius, falando absortamente. Depois se virou para o sobrevivente e indagou:

    -E o rei? Sobreviveu?

    -Que rei? indagou o ai-juellai, sem saber a que rei seu interlocutor se referia. O

    amado Irineus pereceu em batalha. Quanto a Athlon... da ltima vez que eu o vi, rumava para

    sudoeste...

    Ao ouvir que o pai havia perecido, o jovem prncipe se jogou no trono, chocado.

    Bohnarius pensou nas possibilidades que lhes restaram e somente via uma nica esperana:

    -Vamos abandonar Ithra Maras... disse.

    -Abandonar a cidade? indagou o prncipe, ainda mais assustado. Por que?

    -Temos que rumar para o oeste, Scilion. Cara elfo adulto, macho e fmea, cada idoso

    e cada criana. Nosso pas est condenado. Vamos para o oeste, para Karnevion. Creio que

    para l que Athlon vai. Deve estar levando o cristal. Todos os elfos devem se reunir l, para

    protegermos o que nos mais precioso!

    Scilion sabia que Bohnarius se referia s pedras fulfilliari, onde as almas dos elfos

    esto guardadas. Mas a idia, em si, era assustadora demais. Assim, no conseguiu decidir. Seuestmago revirou, ficando com um mpeto forte de vomitar. Comeou a suar frio. Depois,

    transformou-se num breas e comeou a rir e a chorar ao mesmo tempo. Segurava

    firmemente nas laterais do trono, para resistir ao mpeto de voar.

    Mas aquilo no era anormal para um elfo. Especialmente considerando o quo jovem

    era.

    -Usaremos os ventos... Zephyros nos ajudar... disse, gaguejando, com grande

    dificuldade o prncipe, suando. Mas Patsinah, que estivera calada at ento, rompeu o silncio:

    -Os ventos as vezes aplacam o fogo, mas tambm podem excit-lo.

    Bohnarius imaginou que ela tinha razo. Havia elfos ajudando as salamandras. O que

    ela saberia sobre os tuellais?

    Depois, ela fitou o vazio, parecendo entrar num transe, e continuou:

    -As lgrimas das montanhas secaro. At o cu parar de chorar, pois o fogo vir e a

    tudo consumir. A terra ficar nua, envergonhada. O solo estar coberto de cinzas e a vida

    nele cessar. O esplendor da civilizao lfica chegou ao fim!

    Bohnarius olhou desconfiado para ela. Concordava com o que ela dissera, mas no

    era necessrio ser vidente para concluir aquilo. Sempre achou que as Montanhas Chorosas

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    choravam por algo e que um dia, como todos os que choram, as lgrimas cessariam. Mas

    desconfiava das feiticeiras. As vezes tinha a impresso que eram charlats e que nada diziam

    de valor. Contudo, outras vezes observava-as fazer coisas inexplicveis, mas no sabia se de

    fato eram milagres ou fenmenos que ainda desconhecia.

    Entretanto estava preocupado em convencer o prncipe que, com a morte do pai,agora seria rei em evacuar a cidade. Mas o jovem olhou o tio perdido, parecendo no saber o

    que fazer e a gr-feiticeira tambm no parecia se objetar partida. Ento, naquele momento,

    Bohnarius sabia que a grande Ithra Maras seria uma cidade fantasma.

    #######

    Contudo, a evacuao de uma cidade daquele porte no era uma coisa trivial. Foi

    necessrio juntar mantimentos, confeccionar armas, construir carroas para os debilitados,

    recolher ou destruir informao que no poderiam cair nas mos das salamandras, soltar

    criminosos e prisioneiros, alm, claro, de convencer os reticentes. Assim, a partida somentefoi possvel em 17 de setembro, quando um contingente de cerca de duzentos e cinqenta mil

    elfos e cinqenta mil servos humanos, a maioria a p, deixou a cidade. Mesmo assim, cerca de

    trinta mil, um contingente pequeno sob o ponto de vista de Bohnarius, ficou para trs,

    observando, com coraes constrangidos, aqueles que partiam.

    Partiram por uma das inmeras estradas secretas que cruzavam a grande floresta de

    Athlanda. Quem no fosse elfo poderia julgar que aquilo no era estrada alguma. Era um

    caminho com muitas curvas e zigue-zagues, onde rvores mortas ou condenadas haviam sido

    retiradas, respeitando-se a vida na floresta, formando picadas onde pudessem passar as

    carroas especiais lficas. Tais carroas eram bastante estreitas e as rodas eram montadas emesteiras que podiam passar com relativa facilidade sobre tocos e vegetao rasteira. Alm do

    mais, essas estradas no podiam ser vistas do alto, pois eram ocultas pelas rvores mais altas.

    O jovem rei Scilion rumava a frente, montado num ornamentado cavalo branco, com

    vestes adornadas, abarrotadas de cristais coloridos. Mas, na primeira oportunidade, numa

    hora em que poucos olhavam diretamente para o prncipe, Bohnarius aproveitou a

    oportunidade e derrubou o sobrinho do cavalo. Ele se levantou rapidamente, como pde, e

    olhou espantado para o tio, que se apressou em rasgar-lhe as roupas.

    -Que isso, tio! Sou vosso rei! gritou ele, indignado.

    -Tolo! Sai j desse cavalo e trata de te vestires como todos os outros! respondeu o

    tio, em alto tom. Assim no sers um alvo fcil e ganhars o respeito dos demais! De que

    adiantaria para ns um rei morto?

    claro que o prncipe no se objetou s admoestaes do tio e logo Bohnarius

    mostrou quem mandava ali, pois organizou a caravana, estabelecendo batedores, nomeando

    mdicos e atribuindo a cada grupo tarefas especficas. Seu maior temor era o fato de

    praticamente no contarem com soldados, pois todos haviam se retirado em auxlio capital.

    Restou apenas a guarda real e os policiais da cidade, e estes j estavam antes sob o seu

    comando.

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    Na distribuio de armas, foi caminhando ao longo da coluna, indagando quais os

    jovens notus que h mais tempo haviam passado pelo ingew. Depois, aos breas, quais

    estavam mais prximos do ritual de passagem. E isso era o melhor que podia fazer a respeito

    da guarda da caravana. Quanto aos batedores, teve que recorrer aos jovens e indisciplinados

    breas. Formou grupos deles e os mandou para os quatro cantos. Mas, entre tais jovens

    estavam os seus prprios filhos. Estes, com a cara mais animada que um breas pode ter,

    pediram:

    -Podemos ajudar? e, como anjinhos, expuseram todos os dentes ao mundo.

    O primeiro impulso de Bohnarius foi um curto e grosso no, mas no poderia fazer

    diferena para com os seus filhos diante de toda aquela gente. No seria bom para a

    comunidade. Assim, deixou-os ir. Mas recomendou:

    -Jamais sai de perto um do outro! Entenderam?

    Ambos os anjinhos balanaram a cabea afirmativamente e se foram, felizes da vida,

    voando sobre o dossel.

    Assim, grupos de breas sobrevoavam os arredores o tempo todo e certamente

    avistariam a aproximao de qualquer drago. Alm disso, batedores notus acompanhavam a

    caravana sem tocarem o cho, percorrendo o caminho atravs do dossel, saltando de um

    galho a outro. Quanto aos pequeninos eureus, no havia o que fazer com eles. Silfos e fadas

    eram pequenos, rpidos e espertos demais para que qualquer ser salamndrico os pegasse. Os

    mais frgeis, na verdade, eram os zphyros, pois no voavam, eram frgeis e chores e

    tambm no podiam correr direito, pois as pernas eram curtas e nem mesmo conseguiam

    subir nas rvores. Os elfos em tal fase se pareciam mais com gnomos do que elfos

    propriamente ditos.

    Ento Bohnarius conseguiu definir precisamente o que era aquela caravana: Um

    bando de crianas, velhos e doentes escapando de um exrcito de centenas de milhares de

    seres de fogo.

    Mas o que o ailand mais temia era a chegada da noite. claro que na escurido, um

    homem de fogo inflamado era melhor visto, mas eles pouco poderiam fazer diante da

    aproximao de salamandras desinflamadas pois os elfos no so como os gnomos que

    enxergam bem no escuro, embora os elementais do ar pudessem ver coisas que outros seresno viam, como os rastros da urina dos animais.

    E foi ao cair de uma noite que aconteceu algo, depois de cerca de dez dias da partida.

    Estava Bohnarius e mais um jovem ailand notus percorrendo a estrada a uns trs

    quilmetros a frente da caravana, que j havia parado por aquele dia, quando, enquanto

    conversavam, um impulso de raiva tomou conta de sua alma. O jovem fazia comparaes

    entre os jovens que receberam treinamento militar em Ithra Maras com os de outras

    localidades. O comentrio dava margem para a interpretao de que o prprio filho de

    Bohnarius tinha formao inferior a ele mesmo. Ambos utilizavam armamento bsico de todosos que assumiram o papel de protetores da caravana: duas cimitarras cruzadas nas costas,

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    junto com uma aljava, e um arco atravessado no peito. Diante do comentrio, Bohnarius

    retirou uma das cimitarras das costas e ameaou o companheiro, gritando com uma voz

    colrica:

    -Retira o que disseste!

    O jovem olhou espantado para ele, mas logo pareceu encolerizar-se tambm. Retirou

    uma de suas prprias cimitarras e, colocando-a em riste, desafiou:

    -Pois no retiro!

    Bohnarius o conhecia desde que era um breas. Sempre foram grandes amigos.

    Ento, ele hesitou por alguns instantes, e percebeu o que estava acontecendo. A idia era

    desconcertante, especialmente por estarem ainda bem perto de casa.

    -Ldus... um drago sinistro!

    O rosto do jovem passou de uma expresso de dio para espanto, enquanto que o

    elfo mais velho continuou:

    -Ele induz pensamentos funestos em nossa mente!

    O jovem ficou pasmo e, agora, com um misto de rancor, espanto e medo, disse:

    -Eu sei...

    Ento, ambos se viraram segurando suas armas. Deram as costas um para o outro

    olhando o arredor, a espera do aparecimento do drago.

    -E sabias tambm que eles costumam atacar as suas vtimas noite, especialmente

    no cair dela, quando o nosso esprito est mais fraco?

    -Infelizmente! respondeu o jovem.

    Bohnarius estava com raiva do drago. Queria que ele atacasse logo. Mas, com muito

    esforo, conseguiu manter alguma clareza na mente e se lembrou que os drages sinistros so

    pacientes. Normalmente, lanam suas chamas apenas no momento final, quando tm a

    certeza da presa. Mas ele se lembrou tambm que se tratam de monstros silenciosos e que,

    apesar do grande tamanho, podem deslizar silenciosamente entre as rvores, sem fazerbarulho, como gatos. Lembrou-se tambm que so negros e dificilmente podem ser avistados

    a noite.

    -Procura os olhos! So amarelos e brilhantes como o fogo! explicou o ailand.

    Como comprimiram as costas um contra o outro, Bohanarius pde sentir que o

    jovem tremia. Mas lembrou-se tambm que o drago jamais atacaria enquanto eles

    estivessem assim. Embora suas faces fossem medonhas, os drages sinistros no tm couraa

    protetora. Aguardaria pacientemente eles se cansarem antes de atacar. Havia a noite inteira

    pela frente. Espremendo a ltima gota de racionalidade da sua mente, Bohnarius percebeu

    que teriam que atra-lo. E s havia uma maneira de fazer aquilo: excit-lo.

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    Ento, ele se afastou do jovem, se virou e, num movimento rpido, golpeou seu

    ajudante com a cimitarra, ferindo-lhe o rosto, de onde brotou sangue verde.

    -Crpula! gritou Bohnarius.

    O jovem, influenciado pelo campo do drago, rapidamente se enfureceu e atacou seusuperior. Este, j prevenido, com um movimento certeiro, arrancou-lhe a arma das mos,

    dizendo vorazmente:

    -Corre, se queres salvar tua vida!

    Ento, agora completamente submetido influncia sinistra, o medo tomou conta do

    rapaz. Assim, ele saiu correndo e Bohnarius foi em seu encalo, gritando improprios, para que

    ele corresse cada vez mais.

    Ambos penetraram numa regio mais densa da floresta. O ailand deixou que o

    jovem tomasse certa vantagem. Sabia que ele corria para a boca do drago, pois sabia que, aessa altura, ele estava completamente submetido ao campo de influncia da criatura. Ento,

    Bohnarius, aos poucos, foi tomando um caminho paralelo. Se tivesse sorte, isso poderia

    enganar o drago salamndrico.

    Apavorado, o jovem correu sem poder prestar muita ateno nos arredores,

    contando com um pouco de luz que a lua projetava atravs do dossel. Foi quando ele

    apareceu.

    Sem produzir qualquer rudo, surgiu de repente frente do rapaz, abrindo suas

    enormes mandbulas cheias de dentes, prestes a cuspir fogo. Mas, quanto estava em vias deliquidar a sua vtima, num salto de mais de quatro metros, Bohnarius surgiu com a sua

    cimitarra em punho... e cortou o pescoo do drago.

    A cabea rolou aos ps do rapaz que, a essa altura, j havia se transformado num

    zphyros.

    #######

    E nada mais ocorreu de extraordinrio nas prximas semanas. Assim, em primeiro de

    novembro finalmente chegaram s imediaes do Monte Lumerae, prximo ao cruzamento

    dos grandes rios. Em torno do Monte, havia vrias aldeias. Eram comunidades isoladas e comcostumes diferentes. L, elfos, gnomos e humanos conviviam em igualdade, de forma

    diferente de todas as cidades e vilas lficas, onde os humanos eram meros servos.

    A comunidade recebeu a caravana com desconfiana, mas tambm com pesar. A

    maioria dos elfos de Ithra Maras era relativamente rica. Desta forma, compraram muitos

    mantimentos nessas vilas.

    Mas, no mesmo dia que chegaram, constataram que no poderiam avanar mais.

    Alguns elfos do local levaram Bohnarius at o lado oeste do Monte, no incio da manh, beira

    do precipcio que limita o Rio Sanco e, de l, puderam avistar, estendendo-se at a vista nomais alcanar, do lado sul do Rio Megion um imenso campo com labaredas. Do espesso dossel

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    verde que l havia, nada mais restara, exceto a fumaa que ainda se elevava, carvo e fuligem.

    Podia-se ver que o campo estava apinhado de homens de fogo, divises militares marchavam

    de um lado para o outro e uma cidade estava sendo construda prxima do centro do campo

    de viso.

    claro que o corao do ailand se apertou no peito, pois no h nada mais dolorosopara um elfo do que a extino de uma floresta, uma rvore tombada ou a perda dos filhos.

    Por onde a vista percorresse, no se podia ver uma nica rvore de p, afinal, o fogo era

    inimigo da madeira e do vento. E a corrente de ar que vinha do noroeste trazia um cheiro que

    somente os elfos podiam sentir: um cheiro de morte.

    Bohnarius pensou no filho mais velho e orou a todos os ventos para que ele estivesse

    bem.

    Drages rubros sobrevoavam o local. De vez em quando mergulhavam e agarravam

    algum animal de grande porte torrado pelas chamas. A eles se juntaram gigantescos abutresdo norte, atrados por carcaas em putrefao.

    Aquilo tudo soou a Bohnarius como um canto triste e fnebre, um coro contnuo e

    lamentoso, o lamento de Athlanda.

    #######

    Mas o lamento deu ensejo raiva. Quando voltou aldeia em que estavam, j vinha

    batendo os ps contra o solo. A primeira coisa que fez foi ter com os filhos. Praticamente

    ordenou que eles o seguissem. Ento, penetraram fundo na floresta. Ithrannah e Iblus quase

    no podiam acompanh-lo. Assim, desistiram de ir andando e passaram a voar entre asrvores. De repente, Bohnarius parou e se virou, fazendo com que as crianas breas quase se

    chocassem contra ele.

    -Ambos tendes mais que cinqenta anos, no mesmo? disse ele, parecendo

    furioso. As crianas ficaram imaginando o que haviam feito e tiveram quase a certeza de que

    vinha castigo por a. Ento est na hora de saberdes algumas coisas! O que vedes vossa

    volta?

    Os gmeos se entreolharam, desconfiados, sem saber onde o pai queria chegar. Mas

    ele, sem pacincia suficiente para esperar pela percepo dos filhos, acabou dizendo:

    -rvores! o que tendes. rvores! E sabeis o que isso significa?

    Os filhos continuavam no entendendo nada. Mas Bohnarius no estava com

    pacincia para aguardar pela perspiccia de seus rebentos:

    -Vida! o que tendes! Vida!

    As crianas se mantinham espantadas. Iblus passou at a desconfiar da sanidade do

    pai. Mas este tinha l as suas razes, pois baixou a voz e passou a olhar para o nada, ao mesmo

    tempo assustado, irado e triste:

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    -As rvores... elas so tudo, entendeis? Elas controlam tudo, elas... ento se virou,

    olhou os filhos nos olhos e assim prosseguiu: - ...as nuvens que esto no cu, as chuvas, a

    temperatura, nossa comida... nossas almas... As rvores so tudo o que temos alm de ns

    mesmos, entendeis?

    Elas ficaram alguns segundos caladas, mas, como houvesse ali uma tenso poralguma resposta, Ithrannah acabou se pronunciando:

    - claro, pai. As rvores nos do abrigo e nos ocultam das salamandras.

    -No, Ithrannah, muito mais que isso! exclamou o pai, se afastando um pouco dos

    filhos. Depois, ele pensou um pouco, imaginando como iria explicar, mas, como era prtico, o

    fez utilizando o menor nmero possvel de palavras.

    -Ora, sabeis que as rvores so vivas, no sabeis?

    -Sim, pai responderam em unssono.

    -Pois bem, ento elas tm que se alimentar como ns, no ?

    As crianas balanaram afirmativamente as cabeas.

    -E de onde vem o alimento das rvores?

    Quase imediatamente, Iblus arriscou um palpite:

    -Da terra! Ele sobe pelas razes!

    Bohnarius quase sorriu diante da resposta do filho. Depois, prosseguiu reassumindo

    uma postura sria:

    -No, Iblus. Ns somos os elementais do ar e nossa ligao forte com as rvores um

    indcio de que o alimento das rvores provm do ar. A madeira, meus filhos, vem do ar!

    Os filhos se espantaram com a afirmao. Iblus coou a cabea e Ithrannah franziu o

    cenho. Bem, as primeiras dcadas de educao na escola, segundo os costumes lficos,

    estavam baseadas na tica, nas lnguas e na histria. Eles apenas seriam iniciados na cincia e

    na matemtica anos mais tarde, da no terem aprendido ainda esse ensinamento.

    -Olhai continuou o pai, pegando uma folha de uma das rvores, sem arranc-la

    debaixo das folhas existem pequenos orifcios, os estmatos, que no podem ser vistos de to

    minsculos. H um grande nmero deles cobrindo a superfcie inferior da folha. So as bocas

    das rvores. Por aqui, a substncia gasosa que formar a madeira entra. E por esses orifcios as

    rvores podem se comunicar com o ar.

    -Comunicar? indagou Ithrannah. Como assim?

    -Por esses orifcios respondeu o pai a rvores no somente absorvem coisas do ar

    como tambm emitem. Algumas das minsculas coisinhas invisveis que a rvores expelem

    para o ar faz com que as nuvens se formem e, com isso, traz a chuva!

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    Iblus j estava com a boca aberta e Ithrannah, curiosssima.

    -Quer dizer que as rvores controlam a chuva? indagou ela.

    -Exatamente, Ithrannah, as rvores controlam a chuva. Sem elas, as nuvens no se

    formam. Sem as rvores, nada de chuva!

    Os jovens elfos se entreolharam um tanto surpresos e um tanto desconfiados. Ser

    que o pai estaria brincando? No, no parecia.

    -As rvores fazem com que chova quando est muito seco e retardam a chuva

    quando a terra est encharcada. Sem as rvores poderamos ter chuvas torrenciais tambm.

    Depois o pai ficou uns instantes em silncio, e, ento, olhando para o nada concluiu: - Mas

    temo que, sem as rvores no mais chover aqui. Ento, os rios se transformaro em riachos e

    os riachos desaparecero...

    Os filhos ficaram tambm entristecidos, pois sentiram o lamento do pai. Estaria issoacontecendo?

    -As razes de todas essas rvores disse ainda o pai olhando ao redor em conjunto

    criam embaixo da terra uma espcie de esponja que retm gua. Ento, a gua segue atravs

    das razes, tronco e caules e expelida pelos estmatos. Assim, as rvores mantm o ar mido

    e fresco e menos sujeito a variaes de temperatura. Sem as rvores, a terra secar e no se

    poder plantar mais nada. O ar tambm estar seco. Os dias sero trridos e as noites

    terrivelmente frias, como acontece no deserto.

    -No vai acontecer isso, no , pai? indagou o menino.

    Bohnarius queria dizer-lhe que no. Queria peg-lo no colo, sorrir, e dizer claro

    que no!. Mas no podia fazer isso. Ento, calou-se.

    #######

    Diante da impossibilidade do avano, mais tarde houve uma grande reunio, numa

    ampla tenda que fora armada para abrigar o prncipe e o governo provisrio de Ithra Maras.

    Alguns vileiros que foram convidados reunio defendiam que o povo do leste deveria

    construir uma grande cidade nos arredores do Monte, pois diziam que era sagrado e emitia

    uma proteo mgica sobre aqueles que viviam no seu entorno. J outros se recusavamterminantemente a aceitar a presena de estrangeiros, pois temiam que eles atrassem as

    salamandras. Houve uma discusso entre os dois grupos que quase levou a uma briga, mas

    Bohnarius pensou numa coisa diferente. Ele se levantou, ergueu ambos os braos para chamar

    a ateno, e discursou:

    -H um outro caminho. No vamos construir aqui uma cidade. Precisamos chegar a

    Karnevion e concentrar l todas as nossas foras. a nica maneira de deter as salamandras.

    Vamos passar pelo inimigo sem mesmo ele perceber!

    Houve silncio geral, pois ningum imaginava como fazer aquilo. O silncio somentefoi quebrado com o pronunciamento do prncipe:

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    -E como vamos fazer isso, tio!

    -O subsolo do sudeste de Lumerae repleto de passagens. Vamos por l!

    Murmrios tomaram conta do recinto. Uns acharam uma grande idia, outros

    levantaram obstculos.

    -Mas as passagens so controladas pelos gnomos! declarou um elfo ithrano idoso.

    -Vamos falar com eles explicou Bohnarius.

    -Dadaai jamais nos permitir passar em seu reino! declarou um jovem elfo notus.

    -Falaremos com ele insistiu o ailand.

    Houve outro silncio. A maioria duvidava que os gnomos deixariam um contingente

    de elfos to grande passar pelo meio dos seus domnios. Mas havia uma gnoma no recinto, e

    ela disse:

    -Conheo ele. Vale a pena tentar!

    E assim o fizeram. Mas, antes de falar com o rei dos gnomos, Bohnarius esperou que

    surgisse um dia em que o cu estivesse nublado e selecionou dois elfos notus que sabiam

    montar em drages. Ento, despachou-os pelo cu. Sua misso era investigar os limites da

    ocupao salamndrica e verificar se havia algum local para que a caravana emergisse do

    subsolo. Ento, um pequeno grupo entre eles, Bohnarius e o prncipe partiu para a entrada

    dos subterrneos, que ficava a sudoeste do cruzamento dos rios. Aps caminharem cerca de

    trezentos metros naquela passagem j foram cercados por um bando de gnomos armados comestilingues. Bohnarius sabia que aquelas no eram armas de brinquedo, pois as pedras por elas

    lanadas podiam ferir mortalmente. Mas ele sabia falar suficientemente bem o miraris, a

    linguagem geral dos gnomos. Ento, explicou a situao de seu povo, apresentou o prncipe

    Scilion e solicitou uma entrevista com Dadaai.

    Assim, foram conduzidos, escoltados por vinte soldados gnmicos. Andaram por

    cerca de trs quilmetros, percorrendo um labirinto indecifrvel para quem no conhecesse

    muito bem aquelas passagens. Durante todo o percurso, Bohnarius sentiu que estavam

    descendo. Conforme se aproximavam da cidade subterrnea, os elfos se surpreenderam com a

    crescente atividade: uma grande quantidade de gnomos cavava a procura de minerais eabrindo novas passagens, que eram escoradas por paredes de pedras. O ailand perdeu a

    conta de quantos corredores forrados com blocos de pedra passaram. Aquelas, claramente,

    eram passagens artificiais, cavadas na terra e na rocha. Mas o mais impressionante, para

    Bohnarius, foi observar um crescente nmero de gnomos transportando alimentos, em sacolas

    de couro, para a cidade, vindos no se sabe de onde. Beterrabas, cenouras, batatas e um sem

    nmero de tubrculos. Impressionante tambm foram os imensos bolses de cultivo de fungos

    nas profundezas daquele lugar iluminado apenas por tochas e pedrasfuellai, que emitem uma

    luz azulada.

    Ento chegaram ao grande porto de ferro que guardava a entrada de Eramus Nor.Bohnarius se deteve por alguns instantes, para admirar o porto. Era constitudo por duas

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    folhas, sendo que apenas uma delas estava aberta. Tinha pelo menos doze metros de altura e

    uma espessura de um metro. Era feito de ferro fundido. Na sua superfcie estavam gravadas

    em alto relevo figuras da histria gnmica e dizeres em miraris. Bohnarius ficou se

    perguntado como os gnomos faziam para mover aquele porto, pois devia ter um peso

    incomensurvel. Mas, quando passaram por ele, a viso de uma dzia de trolls verdes

    acorrentados e em hibernao redimiu as suas dvidas.

    Mas, ao passar pelo porto, uma estranha sensao no corao era inevitvel diante

    da viso da segunda capital gnmica, pois um imenso bolso se apresentou, revelando um

    ambiente vigoroso, constitudo por milhares de gnomos se dirigindo apressadamente, ou nem

    tanto, de um lado para o outro. E Bohnarius sabia onde estava. Estava num lugar famoso, mas

    que no imaginava que seria to vigoroso assim: o mercado de carnes de Eramus Nor.

    Milhares de vendedores passavam pelo porto trazendo antas, capivaras, tatus,

    coelhos, pacas e at aves para serem vendidos no mercado. Os gnomos eram grandes

    apreciadores de carnes, a despeito disso enojar a maioria dos elfos. Milhares de gnomos egnomas tambm vinham ali para comprar as carnes e, como eles mantinham uma ferrenha

    tradio de barganhar, isso fazia com que aquele lugar fosse um dos mais barulhentos que

    Bohnarius havia estado na vida.

    Eramus Nor era uma cidade vigorosa. Tratava-se da capital de um dos trs reinos

    gnmicos da Era dos Elfos. A segunda em ordem de importncia. A terceira era Olmea Cratus,

    ao sul de Surkarnevion e nos limites do reino dos gigantes e a primeira era a opulenta Minas

    Gnssia, ao sul, na foz dos rios Fulcro e Voliatis.

    Aps o mercado, passaram pelo segundo porto, que deu lugar aos bairrosresidenciais da periferia. A maioria das casas era feita de pedras. Outras no passavam de

    cavernas escavadas nas pareces das passagens ou at mesmo no cho. Mas penetraram no

    centro da cidade apenas aps passar pelo terceiro porto, por trs do qual estava a parte mais

    rica da cidade: um opulento conjunto de bolses forrados com pedras, onde os gnomos

    construram suntuosos palcios.

    Mas Bohnarius no se impressionou com os palcios. Pensou nos portes e, a

    princpio, imaginou que Dadaai era esperto, pois as salamandras jamais conseguiriam

    derret-los, uma vez que necessitariam de energia demais para aquilo. Nem o mais vigoroso

    drago poderia dar conta de passar por aquelas massas de ferro. Mas, quando ele entrou nopalcio do rei, quando ele se postou diante de Dadaai no salo principal, outra impresso

    tomou conta do seu ser. O elfo no era supersticioso, mas o seu refinado olfato de elfo lhe

    trouxe uma sensao desconcertante: um cheiro de morte.

    Ele tentou afugentar pensamentos funestos de sua mente, convencendo-se de que

    era apenas uma impresso falsa, gerado por aquele ambiente pouco iluminado. Mas o que

    Bohnarius no podia saber, nem adivinhar, que as salamandras, na verdade, entrariam na

    cidade, ento o cheiro que sentia era um prenncio da derrocada daquela sociedade. Mas isso

    somente aconteceria no ano de 581 da Era das Salamandras, durante a Guerra dos Trapos,

    quando tanto Eramus Nor quanto Olmea Cratus cairiam, restando apenas Minas Gnssia comoo ltimo baluarte gnmico, a qual resistiria at a Era dos Grandes Reis e Rainhas, protegida

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    pelas guas que a contornavam. Mas, o cheiro que Bohnarius sentia era um cheiro indelvel

    vindo de seis sculos no futuro, quando duzendos mil elfos pereceriam em auxlio aos gnomos,

    muitos deles nesse mesmo salo.

    To pouco ele poderia adivinhar que a tragdia que se abateria sobre os gnomos no

    futuro adviria de suas prprias aes, uma vez que somente uma criatura na face daMicropella poderia derreter aqueles portes: o grande drago rubro Pharmagon, que agora

    estava adormecido, hibernando no interior de um bloco de gelo, que fora transportado por

    gnomos, h quase dois mil e quinhentos anos atrs, a partir das eternas terras geladas do sul,

    at o Templo de Malar, em Machu, onde agora repousava silenciosamente, sob a guarda dos

    arquimagos da Ordem de Escorpio. Mas essa uma outra histria.

    Pouco depois de chegarem ao salo, Dadaai apareceu com uma pequena comitiva.

    Veio acompanhado pela esposa e um gnomo idoso, com longas barbas brancas. O rei sentou-

    se no trono, que era feito de ouro, e adornado com grandes pedras preciosas, e parecia grande

    demais para um gnomo, de forma que ele ficava balanando os ps. A esposa se postou ao seulado, mas no muito perto, e ficou observando os estranhos. J o velho, sentou-se numa

    confortvel poltrona prxima. O rei veio segurando uma tigela e, pelo barulho, mastigava

    alguma coisa crocante.

    -Quereis? foi a primeira coisa que disse, revelando uma boca suja por um molho

    estranho, aproximando a tigela dos elfos. Minhocas fritas, uma delcia!

    Bohnarius tentou disfarar a sensao de nojo e respondeu polidamente.

    -Muito obrigado, majestade, mas j comemos...

    O rei sorriu, coando a enorme barriga, que aparecia por debaixo do casaco semi-

    aberto. Depois finalmente perguntou:

    -E o que trazeis vs aqui?

    Bohnarius procurou explicar-lhe com o maior nmero de detalhes possvel a situao

    de seu povo e suas necessidades, sem, contudo, fazer um relato muito enfadonho. Dadaai

    ouviu tudo atentamente, com a boca ligeiramente aberta e um ouvido mais prximo do elfo

    pois, parecia, era surdo do outro.

    Aps o relato do elfo, fez-se silncio no recinto. Bohnarius se sentiu observado por

    muitos olhos. Ento, reparou que um grande nmero de crianas gnomas o observava,

    escondidas por trs de colunas e mveis. Ento, teve uma sensao ao mesmo tempo de

    desconforto, por estar sob a mira de tantos, e ao mesmo tempo confortado por serem

    crianas.

    Mas foi o velho quem primeiro falou, para o espanto dos elfos:

    -Ora! Vamos fazer churrasquinho deles!

    Bohnarius notou que o prncipe tremera sob aquelas palavras, mas depois lembrou-se que aquele deveria ser o sogro de Dadaai, um gnomo que era reconhecidamente tant.

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    O rei, em si, coou o gordo queixo imberbe, dizendo:

    -Hum... hum...

    E depois de algum tempo, para manter um clima de mistrio, finalmente

    desembuchou, mantendo apenas um olho aberto:

    -Ora! E o que eu vou lucrar com isso?

    claro que Bohnarius j esperava por aquilo, pois os gnomos so conhecidos por sua

    apreciao por riquezas materiais.

    -Temos ouro respondeu o ailand.

    -Temos muito ouro! foi a resposta de Dadaai.

    Mas Bohnarius tambm j esperava por essa resposta. Vira muitas esttuas e objetos

    ordinrios folheados a ouro pelo caminho. Ento ofereceu algo menos intil:

    -Podemos conseguir-vos pedras nefrat e fuellai para o vosso uso por dcadas!

    O rei ento apanhou um punhado de minhocas e as enfiou na boca, mastigando

    barulhentamente e pensando:

    -Hum... hum...

    -J disse que podemos cozinh-los e fazer um guisado de elfos! ralhou o velho.

    -Hum... para deixar tanto elfo passar pelos nossos domnios... finalmente disse orei, coando o queixo. No sei no!

    Ento, algo inesperado aconteceu. A gnoma, que se colocara a distncia, indagou ao

    elfo:

    -H crianas convosco, no h?

    Bohnarius estranhou aquela manifestao, mas no demorou muito para entender a

    situao.

    -Sim, muitas! respondeu ele.

    -H... amor - disse Dadaai, virando-se para a sua esposa, um tanto desajeitado, -

    estou tentando fazer um negcio aqui...

    Ao ouvir isso, a gnoma, com cara de poucos amigos, apanhou uma pedra enorme do

    cho, com uma mo s, e ameaou o marido:

    -Pois trata logo de largar mo dessa histria de negcio e deixa eles passarem!

    E, como a gnoma ameaou a jogar a pedra na cabea do rei, este a enfiou o mximo

    que pde entre os ombros, dizendo:

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    -Sim, amorzinho!

    -E v se manda uns meninos os acompanharem! completou ela.

    -Sim, amorzinho! Sim, amorzinho! respondeu o rei.

    E assim terminou aquela entrevista.

    Dias mais tarde, a caravana de Ithra Maras atravessou Eramus Nor, seguindo um

    caminho subterrneo para oeste, escoltada por uma centria de gnomos. Segundo tais

    gnomos, o mais prximo de Karnevion que poderiam sair da terra seria a Garganta de Erh, que

    mais tarde seria soterrada pelas salamandras, a trezentos quilmetros a oeste. Contudo,

    estariam apenas a meio caminho de seu destino. Assim, o grande desafio seria atravessar esse

    segundo segmento, sem a proteo das profundezas da terra. Mas a maior preocupao de

    Bohnarius era o tempo que levariam para chegar at Erh, pois, poucos quilmetros aps acidade gnmica, o caminho no se revelou fcil. Tanto que levaram quase trs meses para

    percorrer a distncia que os separavam de Erh. Para isso, tiveram que atravessar abismos,

    construir pontes, cavar tneis onde a terra havia deslizado, transpor rios subterrneos, alm

    de enfrentar trolls e proteger as crianas dos luvarti.

    E, mais ou menos ao mesmo tempo em que iam de Eramus Nor a Erh, mais ao sul, o

    anjo Belial acolhia em sua cidade de pedras os foragidos de Sursardaw, sendo cercado por

    dois exrcitos salamndricos. Ento, o anjo se utilizaria de inventos mecnicos e prticas de

    ilusionismo para enganar as elementais do fogo, at que os elfos pudessem sair em segurana.

    Mas essa tambm outra histria.

    #######

    Bohnarius foi o primeiro a sair a cu aberto, em Erh. Subiu pela encosta da garganta,

    abarrotada de pedras. Mas, quando chegou superfcie, o que viu foi o horror. Por onde quer

    que olhasse, havia vazio e desolao. At aonde a vista alcanasse, no viu uma nica rvore

    em p. Tudo a sua volta se resumia a cinzas. O cho ainda estava quente e plumas de fumaa

    ainda voavam aqui e ali, fantasmagoricamente.

    Quando ficou em p, aps um lento esforo, tremeu. Sentiu-se nu e solitrio.

    Desprotegido. Estariam todos desprotegidos ali. Mas o que mais o angustiava que havia uma

    dor nesse lugar, como se as almas das rvores ainda permanecessem na regio, desorientadas,

    libertas pelo fogo que a tudo havia consumido.

    Nunca vira tamanha desolao na vida. At o vento parecia ter-se ido. Estava

    estarrecido e amedrontado diante do silncio e do vazio. Tudo o que restara da outrora

    exuberncia da grande floresta, eram apenas cinzentas migalhas, inertes no cho, abraando

    os seus ps como a implorar. Tudo o que restara era a terra seca, o vazio e um lamento que

    parecia se espalhar preguiosamente pelo ar: o lamento de Athlanda.

    Sua boca tremeu e os seus olhos arderam. Os lares dos elfos haviam-se ido.

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    Logo outros estavam ao seu lado. Os demais do destacamento avanado. Nenhum

    dos notus que ali se postaram disse uma nica palavra. E ficariam assim, ali, pelo resto da vida,

    contemplando aquela trgica viso, vazios de alma, se no fosse a sua mera obrigao de

    sobrevivncia.

    Aps alguns minutos assim, Bohnarius pareceu se recuperar do transe e ordenou queos drages fossem trazidos. Trouxeram trs deles, para fazer o reconhecimento. Tiveram que

    pux-los com cordas para fora, pois no queriam sair. Estavam tristes e amuados tambm,

    como se tivessem um mau pressentimento. Dois deles estavam machucados, pois se debatiam

    dentro dos tneis, impacientes pela luz do Sol.

    Bohnarius iria despachar trs dracocavaleiros para o reconhecimento da regio.

    Ento, lhes disse:

    -Lembrai-vos: no estamos com pressa, portanto no vos arriscai. Ficai sempre

    protegidos pelas nuvens!

    Os trs jovens notus se entreolharam, um pouco espantados com as palavras do

    lder. At que um deles disse:

    -No h nuvens no cu, senhor...

    Foi ento que, espantadssimo, o ailand lembrou-se que no havia notado o cu.

    Assim, olhou para cima e a luz cegante do Sol revelou-lhe um imenso azul sem uma nica

    nuvem sequer, como um deserto de um incomensurvel plido azul.

    -Mas vamos assim mesmo, senhor... disse outro dracocavaleiro.

    Bohnarius no pode fazer nada alm que expressar um sutil aceno afirmativo com a

    cabea. Ento, os jovens se foram.

    Quando voltaram, estavam desolados. O relatrio de um deles foi mais ou menos

    assim:

    -Voamos num raio de cem quilmetros e, onde quer que fssemos, por onde quer

    que dirigimos nossas vistas, nada enxergamos alm de destruio e fumaa. No h mais uma

    nica rvore em p. No h mais uma nica mancha verde nesse solo cinzento!

    Foi ento que Bohnarius se deu conta de que suas chances eram mnimas. Estariam a

    cu aberto, desprotegidos do ataque direto dos exrcitos salamndricos. Chegou a pensar em

    retornar, mas a sua nica esperana ainda era Karnevion.

    Como o lder parecia mergulhado em profundos pensamentos, um dos batedores

    sugeriu:

    -Senhor, creio que nossa nica chance nos abrigarmos entre as colinas. O relevo a

    nica proteo possvel!

    Bohnarius concordou com aquilo. Era a nica coisa que poderiam fazer. Assim, apsuma semana, conseguiram reunir toda a caravana ainda nos subterrneos e, durante dois dias

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    caminhando sem parar, varando a noite, chegaram at o vale onde poderiam descansar pela

    primeira vez. E assim prosseguiram a sua jornada, algumas noites dormindo, outras no.

    Durante mais uma semana, prosseguiram sem ser vistos, mas, depois disso, algo

    aconteceu.

    Num dia, ao crepsculo, dois dracocavaleiros notus pousaram no acampamento

    ithrano: no mais nem menos que Easrius e Imonarion. Imediatamente, o primeiro procurou

    pelos familiares, encontrando primeiramente os irmos. As crianas o abraaram, felizes da

    vida e nem notaram o seu estado lastimvel. Mas, em questo de minutos, Bohnarius foi

    avisado e avistou o filho, ainda abraado aos irmos. Quando Easrius avistou o pai e se ps

    em p, Bohnarius imediatamente reparou no estado do filho: o lado esquerdo do seu rosto,

    bem como o brao do mesmo lado, estavam medonhamente queimados. No era uma

    queimadura recente, estava praticamente cicatrizada, mas tornara sua pele algo difcil para aviso de um pai.

    -Filho... balbuciou o experiente ailand.

    Easrius aproximou-se do pai e o abraou:

    -No foi nada, pai, no foi nada... sussurrou o jovem notus.

    Ento o pai o afastou, segurando-o pelos ombros com ambas as mos, olhando-o nos

    olhos:

    -Como isso aconteceu, filho?

    -Andei esbarrando com uns drages por a... respondeu o filho, tentando sorrir.

    Mas Easrius lembrava-se muito bem como ganhara aquelas cicatrizes e melhor

    ainda a dor que passou nos dias subseqentes. Ele estava patrulhando os ares do norte,

    sobrevoando o Mgion, com Imonarion, aquele que fora designado para ser seu companheiro.

    Em princpio ele detestara a nomeao, pois o outro jovem era mais hbil que ele mesmo e

    no era nada modesto, gabando-se desavergonhadamente dos seus feitos. Mas a guerra

    pareceu t-lo tornado mais humilde e, assim, com o tempo, eles se tornaram amigos.

    Mas, naquele dia, quando tomaram a direo oeste e iniciavam o retorno, um

    homem de fogo montado num drago vermelho surgiu no se sabe de onde. Instintivamente,

    eles se separaram, como mandam os manuais militares de vo. Assim, sabiam que o inimigo

    perseguiria um deles, enquanto o outro teria alguma vantagem. Pois o inimigo escolheu

    perseguir Imonarion.

    Imediatamente, Easrius partiu atrs do homem de fogo, o mais rpido que pde.

    Viu que Imonarion danava na sua frente, zigue-zaguando para l e para c, para no ser

    atingido pelas chamas do drago que, de vez em quando, se pronunciavam, mais como testes

    do que ataques propriamente ditos. Contudo, embora os drages verdes lficos sejam maisgeis, os rubros so maiores e mais rpidos. Assim, Easrius sabia que era questo de alguns

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    segundos at que as chamas inimigas atingissem o companheiro. Ento, tirou o arco do tronco

    e passou a arremessar flechas.

    A carcaa de um drago rubro espessa e no se podia perfur-la com flechas, mas

    Easrius procurou atingir os lugares mais vulnerveis possveis: partes das asas, das coxas e da

    barriga. A maioria das flechas era desviada sem penetrar, mas algumas ficaram. O drago,contudo, pareceu nem sentir. Mas era tudo o que o jovem notus podia fazer, pois no poderia

    atingir o homem de fogo, no com aquela couraa mineral que revestia o seu corpo. Afinal,

    todo elfo sabia que os nicos lugares vulnerveis de um homem de fogo, quando se trata de

    flechas, so os olhos.

    Desta forma, o que acabou acontecendo foi que, quando o inimigo se aproximou

    mais de Imonarion, o drago cuspiu um jato to espesso que praticamente desintegrou

    metade da montaria do seu companheiro. Ele, claro, se projetou numa queda vertiginosa,

    sem que Easrius pudesse fazer qualquer coisa, pois estava demasiadamente longe.

    A nica coisa que pde fazer foi mudar a trajetria o mais rpido que pde, pois o

    inimigo agora viria atrs dele, e torcer para que o companheiro conseguisse mudar de fase:

    -Vamos, cara, tu consegues! torceu Easrius, apertando fortemente o punho

    fechado.

    Em queda livre, de fato Imonarius conseguiu mudar de fase. Contudo, no se

    transformou num breas, pelo seu esforo mental, mas num eureus, um silfo, por puro medo.

    Ento, voou at o alto de uma colina, onde se transformou novamente num notus assustado e

    ofegante.

    Easrius, por sua vez, imaginou que teria apenas uma chance. Ento, parou o seu

    drago no ar e se virou. Observou o inimigo se aproximar rapidamente e ficou em p sobre

    Idomeus. Colocou duas flechas no arco e mirou. Esperou at o ltimo segundo e, ao mesmo

    tempo em que disparou as flechas, o enorme drago lanou sua labareda.

    As flechas atravessaram as chamas.

    E se fincaram nos olhos do homem de fogo, derrubando-o do drago.

    Mas as chamas atingiram Easrius e ele caiu de sua montaria.

    Contudo, no se precipitou no ar vazio, pois, lutando contra a dor, conseguiu agarrar

    as protuberncias dorsais do seu drago, com a mo direita, sentindo o rosto e o brao

    esquerdo em frangalhos.

    Mas Idomeus se ajeitou sob ele e Easrius conseguiu montar novamente, a essa

    altura feliz, porque o drago rubro, liberto de seu condutor, no retornou.

    Mais tarde, deitado numa tenda mdica, Imonarion veio ter com ele, brincando,

    dizendo que ele era mole por estar deitado devido a uma queimadurazinha de nada. Mas, no

    meio da brincadeira, ficou srio, e pediu para Easrius no contar para ningum que ele haviase transformado num silfo. Isso seria muito vergonhoso.

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    Easrius, no entanto, nem tinha visto o que tinha acontecido com o companheiro,

    mas, mesmo assim, prometeu:

    -Ser um segredo de ns dois!

    Durante o resto do dia, o pai desfrutou da presena do filho, mas, noite, aps as

    crianas terem dormido, como sempre, eles no deixaram de discutir. O dilogo tenso se

    iniciou com uma pergunta mais sria:

    -E Athlon, onde est?

    -Acampado a uns duzentos quilmetros daqui, prximo ao pntano, resistindo como

    pode...

    -E o cristal? indagou o pai, preocupado.

    -Est com ele.

    -As salamandras no penetraro no pntano.

    -No, pai? objetou o filho. Elas atravessaram os grandes rios!

    -Precisa avis-los sobre ns, Easrius.

    -Athlon j sabe. Por isso viemos.

    -E quando ele mandar um destacamento para nos escoltar?

    Diante da pergunta do ailand, o filho ficou em silncio durante algum tempo.

    Depois, balanou a cabea e finalmente respondeu:

    -No vir destacamento algum, pai...

    -Como no? No podemos atravessar duzentos quilmetros de terra nua! No

    chegaremos l, Easrius!

    -Athlon no tem como nos ajudar, pai. Ele mal se sustenta na sua posio!

    Indignado, o pai se levantou e passou a andar de um lado para o outro:

    -Isso no pode ser! Falarei com o prncipe e...

    -Pai! interrompeu Easrius. Podes falar com quem quiseres. No vai mudar as

    coisas!

    -Easrius, vai at o grande rei e lhe implore! H muitas crianas conosco e...

    -No vai adiantar, pai! Sei disso! Se assim o fizer, apenas me perders, pois no

    poderei voltar. Vou ficar aqui, eu e Imonarion, ao seu lado. Vamos chegar a Athlon!

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    Mas o pai olhava o vazio, sombrio, em pensamentos funestos. E, assim, deixou

    algumas palavras murmuradas lhe escapar por entre os lbios:

    -Vamos morrer todos...

    #######

    E, de fato, nos dois dias que se seguiram, avanaram no caminho sem encontrarem

    nenhum ser salamndrico. Tudo o que viram foi cinzas, fuligem, carvo vegetal e

    absolutamente nenhuma rvore em p. Mas, no terceiro dia, Bohnarius viu algo

    extraordinrio.

    Estava sozinho, sobre um cavalo, explorando o terreno. Ele havia designado alguns

    cavaleiros e dracocavaleiros para a explorao do caminho. Estes ltimos procuravam por

    caminhos livres de exrcitos de fogo e os primeiros exploravam as rotas alternativas apontadas

    pelos primeiros mais detalhadamente. Bohnarius seguia por uma dessas rotas, com trs

    quilmetros de vantagem em relao caravana, quando pressentiu algo se movendo fora de

    seu campo de viso. Quando se virou, constatou que algo se aproximava rpido, algo envolto

    em fogo. Em princpio, Bohnarius julgou ser um homem de fogo ou mesmo uma salamandra,

    ento levou a mo direita ao cabo de uma das cimitarras atravessadas nas suas costas, mas

    logo constatou ser outra coisa.

    Quando a criatura se aproximou mais, pde ver exatamente o que era: era uma

    corsa. Uma corsa jovem e rpida, mas que tinha o dorso tomado pelas chamas. Ela corria em

    desespero, procurando fazer com que o fogo desmontasse do seu dorso, se precipitando para

    o nada e escoiceando ao mesmo tempo, e o elfo, privilegiado por sua viso acurada, pde

    tambm ver claramente a morte estampada nos seus olhos.

    Ela desapareceu por trs de uma colina e o ailand sabia com certeza que ela no iria

    longe.

    Mas, ento, fez-se silncio. Um silncio profundo, absoluto. Bohnarius apurou o

    ouvido e nada mais ouviu que o vazio incomensurvel. Seus parcos pelos se eriaram. Havia

    uma sensao estranha ali. Um silncio sombrio.

    Contudo, alguns segundos depois, realmente ouviu algo. Um tilintar de pedras, vindo

    de trs de outra colina, mais ou menos da direo em que a corsa viera. Estava desconfiadomas, mesmo assim, bateu com os calcanhares contra a barriga do cavalo. Este passou a andar,

    mas parecia hesitante.

    Aos poucos, a colina rotacionou diante dos seus olhos. Mas tudo o que via era

    sempre a mesma paisagem inspita e sem vida. Logo, sentiu que o cavalo empacara e, por

    mais que o cutucasse na barriga, no queria seguir em frente. A essa altura, Bohnarius j sabia

    que havia algo ali, algo verdadeiramente perigoso. Mas tambm sabia que no era um exrcito

    salamndrico, e nem mesmo um pequeno destacamento, pois, nesse caso, ouviria alguma

    coisa. Ento, desceu do cavalo e caminhou adiante cuidadosamente.

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    Ento, a criatura entrou no seu campo de viso. Em princpio no a enxergou, pois

    pouco se distinguia das pedras, observando-a daquele ngulo, mas, logo, o barulho de

    pequenas pedras a rolar a denunciaram.

    Estava sobre uma pequena colina, agachada. Quando Bohnarius percebeu o que era,

    seu corao disparou. Ento ela o encarou com aqueles olhos vermelhos. O elfo parou e ficouesttico, completamente imvel.

    Ele percebeu o que ela fazia no topo daquela colina: botava ovos.

    Mas parecia j ter acabado pois, num movimento brusco, se levantou. E fez o que o

    elfo temia: lentamente, passou a descer a colina, em sua direo.

    Ele jamais imaginou que se sentiria assim, na primeira vez que estivesse frente a

    frente diante de uma salamandra. O que sentia era medo. E ela parecia saber disso. Mas,

    olhando-a descer da colina, uma mirade de outras sensaes tomou conta do seu ser.

    Embora dissessem que, se voc tocasse numa salamandra, a sentiria como uma

    pedra, que o seu corpo no era animal, mas mineral, a aparncia do seu corpo era igual ao de

    uma mulher sensual: tinha ancas e coxas largas e cintura fina. Ao andar, rebolava de um lado

    para o outro. Ento, entre o medo desesperador, Bohnarius tambm sentiu-se excitado.

    Contudo, no tinha seios, pois as salamandras so ovparas, e o rosto era um perfeito

    meio termo entre o rosto de uma linda drade e um lagarto. No tinha orelhas e o nariz mal

    passava de dois orifcios sobre a boca sensual. Boca esta que escondia duas presas de

    serpente.

    Os olhos eram longitudinais como os dos gatos durante o dia e as mos e ps, garras.

    Quando estava a mais ou menos vinte metros dele, emitiu um silvo ameaador.

    Ento, Bohnarius compreendeu que, alm de medo e excitao, tambm sentia dio pela

    criatura. Assim, sacou as duas cimitarras, com ambas as mos, e tentou alert-la, adivinhando

    que o seu estado tambm no devia ser muito bom, pois ainda no havia se incendiado:

    -Ests com fome, no ests? No podes te inflamar, no mesmo? Alerto-te que sei

    como dar cabo de uma salamandra!

    Mas a ameaa no teve efeito e Bohnarius no sabia se ela havia entendido a sualngua. Ela continuou a avanar, agora mais rpido. Ele, ento, se preparou para o encontro.

    Segurou firme suas lminas e sabia que teria uma breve chance, pois a nica maneira de matar

    uma salamandra usando espadas era enfi-las no seu nico ponto vulnervel: a juno do

    pescoo com a cabea.

    Todavia, ela foi rpida demais. Quando estava a um passo do elfo, este moveu as

    cimitarras o mais precisamente que pde, mas suas lminas se quebraram, uma contra o

    pescoo e outra contra o peito da criatura. Assim, ela o abraou. Um abrao de morte, pois

    ainda tinha algum combustvel interno. A temperatura do seu corpo estava em centenas de

    graus, o suficiente para oferecer ao habilidoso ailand uma morte rpida.

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    O corpo caiu chamuscado no cho, exalando fumaa. Ento, a salamandra o mirou

    bem, balanando a cabea de um lado para o outro. Depois se agachou e se preparou para

    devorar o corpo do elfo, abrindo a boca incomensuravelmente e expondo os dentes pontudos

    como o de um sauro.

    Mas, antes que pudesse abocanhar uma nica parte do elfo, Imonarius apareceucorrendo pelo campo vazio, com duas cimitarras na mo. Antes que a salamandra pudesse

    fazer qualquer coisa, ele, num salto, se posicionou a sua frente e, colocando as lminas na

    forma de uma tesoura, num movimento preciso, decepou-lhe a cabea.

    Um sangue de cor vermelho vivo brotou do pescoo, acompanhado de uma espcie

    de leo negro, parecido com petrleo. Depois, o corpo da elemental de fogo tombou para o

    lado, encontrando as cinzas finas que forravam o cho.

    #######

    claro que a morte de Bohnarius provocou uma forte comoo nos filhos. Mas tal

    sentimento foi amenizado, em parte, pela unio entre os trs irmos. Easrius disse que ele

    cuidaria dos pequenos agora, mas Ithrannah e Iblus eram bravos.

    Como no podiam contar com torres fnebres, improvisaram uma paliada do alto

    da colina mais alta das redondezas, depositando o corpo sobre a plataforma que construram

    contando com pedaos de madeira que sobraram da devastao, rogando aos ventos que o

    corpo pudesse se decompor em paz.

    Aps as justas homenagens, a caravana prosseguiu para oeste. Caminharam muitos

    dias e, ao contrrio do que esperavam, no encontraram foras inimigas. Easrius, ento,adivinhou que os exrcitos salamndricos deveriam estar concentrados num cerco a Athlon.

    Assim, na terceira semana aps a morte de Bohnarius, Easrius, no cu, do alto de

    seu drago verde, pde avistar, ao longe, um destacamento. Algo mais que duzentos

    cavaleiros. Ao se aproximar um pouco mais, pde divisar os estandartes exibindo uma figura

    esverdeada parecida com uma coroa, sobre um fundo branco: era o smbolo de Lothar Prima,

    o smbolo do Rei Athlon.

    O capito do regimento disse que eles foram destacados para encontrar os

    refugiados de Ithra Maras e que Athon estava a menos que cinqenta quilmetros dedistncia, mas que estava cercado. Assim, teriam que abrir caminho numa das linhas

    salamndrias. Ento, felizes por estarem j perto do rei, mas temerosos pelo enfrentamento

    do inimigo, prosseguiram.

    Aps mais duas semanas de jornada, finalmente atingiram o extremo de um plat,

    alm do qual se situava o vale que abrigava o leito do Mgion, e, do alto do plat, puderam

    avistar tanto o acampamento do rei, quanto as chamas das foras salamndricas, que

    formavam uma espcie de semicrculo em torno, com uns cinco quilmetros de raio. Estas

    foras de fato poderiam esmagar Athlon, mas alguma coisa as mantinha a distncia.

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    Ao longo dos prximos dias, Ithrannah, ainda banhada em lgrimas pela morte do

    pai, pde assistir, do alto daquele planalto, diversas batalhas enquanto o rei dos elfos se

    preparava para romper o cerco, permitindo assim a passagem dos refugiados. Ela viu como os

    grandes drages rubros salamndricos sobrevoavam o acampamento lfico, tentando despejar

    as suas chamas sobre os mesmos, mas algo parecia desviar as chamas que, quase

    invariavelmente, fazia com que as labaredas se voltassem contra si mesmos. Viu tambm o

    movimento dos homens de fogo, particularmente noite, como pontos luminosos que se

    deslocavam tais quais rios de lava, deslizando sobre o cho e entoando mantras assustadores,

    como se fossem sussurros que se podia ouvir a quilmetros de distncia.

    E assim, alguns dias depois, veio a noticia que teriam que correr. O alerta foi dado

    bem no meio de uma noite. Ento, todos foram acordados e pegaram o que puderam,

    passando a se deslocar o mais rpido que podiam, na extensa descida que os separavam do

    rei. claro que estavam correndo diretamente para as bocas vidas das salamandras, mas, a

    poucos quilmetros dessas, sentiram uma glida rajada de vento vindo do oeste. Todos ento

    sorriram e pensaram ou disseram:

    -O Zphiros vem nos acolher!

    Ao encontro deles soprava um vento cada vez mais intenso. Tal vento rompera o

    cerco das salamandras, de dentro para fora, bem no trajeto dos refugiados.

    As crianas foram colocadas entre os primeiros da caravana, assim, Ithrannah teve

    uma viso privilegiada do que ia a frente. Desta forma, ela viu uma grande massa espessa de

    fuligem e fumaa que se elevara bem a sua frente, escondendo o que havia muito alm de sua

    vista. Viu, nas laterais do canal constitudo por um rio de ar em movimento, formado pelovento, pontos luminosos que se aproximaram e que adivinhou serem homens de fogo,

    soldados salamndricos, autoinflamados. E, acima de tudo, viu, surgindo qual um ser

    mitolgico de dentro da cortina de fumaa e cinzas, aquele senhor fornido como uma rocha,

    com um olhar destemido e ao mesmo tempo suave. Montava um cavalo branco, brandindo

    uma pesada espada reluzente, com uma singela coroa na cabea. Vestia-se de branco, embora

    as tnicas lhe estivessem sujas, e sob a sua espessa barba branca, vociferava com uma voz ao

    mesmo tempo suave e ao mesmo tempo tal qual um trovo:

    -Segui contra o vento e estareis a salvos!

    Foi tudo muito rpido, mas, anos mais tarde, quando Ithrannah se lembraria do fato,

    o veria aparecendo e se aproximando em cmera lenta, como um baluarte de esperana a

    todos os que levam a dor no corao.

    Mas lembrar-se-ia tambm que ele passara por ela como um relmpago, uma luz

    incandescente a pulsar num mero momento, iluminando de esperana o mundo, sendo

    seguido por uma fila indiana de cavaleiros lf