o gÊnero da luta pelo direito À casa e À cidade ... · o gÊnero da luta pelo direito À casa e...

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o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i Resumo: O presente trabalho sistematiza parte dos estudos e pesquisas junto às ocupações urbanas em Teresina. capital do Estado do Piauí. que revelaram a mulher como a força vital nas iniciativas e no desenvolvimento da luta por moradia, e por um endereço na cidade. A ousadia para enfrentar situações confl ituosas. o corpo e a coragem como escudo contra a ação repressiva. a decisão categórica de ocupar como sinal da recusa de condições indignas de sobrevivência. são fatos incontestes da presença decisiva da mulher. A ocupação. traz(ia) a possibilidade de conquista de autonomia e o rompimento com a situação de vulnerabilidade e inquietude tão próprias do nomadismo a que são submetidas fàmílias desprovidas de habitação e que não podem dispor da mercadoria casa. confom1e as leis do mercado imobiliário. Palavras-chave: Lutas urbanas: gênero: direito à moradia: ocupações urbanas. O Lugar da Mulher N(ess)a História A HistórÍa sempre consistiu em apanágio dos dominantes. conferindo uma invisibilidade às mulheres ou uma aparição subordinada e aprisionada por uma leitura androcêntrica do mundo. salvo raras exceções. Tal atirmação pode parecer "lugar comum" ou. para muitos, talvez soe como exagero face a tantas transformações nos costumes e nas relações sociais. que aparentam depor a 1 Professora de Serviço Social da UFPI. doutoranda de Ciências Sociais da PUOSP. Av.:ssn awsso. Araçaluha. \.3 11.3. p. 77· 97 . .IUI1. 2005 77

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Page 1: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

o GEcircNERO DA LUTA PELO DIREITO Agrave CASA E Agrave CIDADE

Alasilene Rocha VIANA i

Resumo O presente trabalho sistematiza parte dos estudos e pesquisas junto

agraves ocupaccedilotildees urbanas em Teresina capital do Estado do Piauiacute que revelaram a

mulher como a forccedila vital nas iniciativas e no desenvolvimento da luta por moradia

e por um endereccedilo na cidade A ousadia para enfrentar situaccedilotildees confl ituosas o

corpo e a coragem como escudo contra a accedilatildeo repressiva a decisatildeo categoacuterica

de ocupar como sinal da recusa de condiccedilotildees indignas de sobrevivecircncia satildeo

fatos incontestes da presenccedila decisiva da mulher A ocupaccedilatildeo traz(ia) a

possibilidade de conquista de autonomia e o rompimento com a situaccedilatildeo de

vulnerabilidade e inquietude tatildeo proacuteprias do nomadismo a que satildeo submetidas

fagravemiacutelias desprovidas de habitaccedilatildeo e que natildeo podem dispor da mercadoria casa

confom1e as leis do mercado imobiliaacuterio

Palavras-chave Lutas urbanas gecircnero direito agrave moradia ocupaccedilotildees urbanas

O Lugar da Mulher N(ess)a Histoacuteria

A HistoacuterIacutea sempre consistiu em apanaacutegio dos dominantes conferindo

uma invisibilidade agraves mulheres ou uma apariccedilatildeo subordinada e aprisionada por

uma leitura androcecircntrica do mundo salvo raras exceccedilotildees Tal atirmaccedilatildeo pode

parecer lugar comum ou para muitos talvez soe como exagero face a tantas

transformaccedilotildees nos costumes e nas relaccedilotildees sociais que aparentam depor a

1 Professora de Serviccedilo Social da UFPI doutoranda de Ciecircncias Sociais da PUOSP

Avssn awsso Araccedilaluha 3 113 p 77middot 97 IUI1 2005 77

tradiccedilatildeo o instituiacutedo e valores cristalizados seculannente notadamente no que

tange agraves questotildees de gecircnero

No entanto embora sejam visiacuteveis muitas conquistas sob a fortaleza

do patriarcado o poder ainda eacute como afirma Saftioti (l997)macho rico e

branco numa referecircncia agraves distintas formas de aparecer da desigualdade

manifesta na condiccedilatildeo de classe de gecircnero e etnia relacionadas ao(s) sistema(s)

de dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo capitalismo-patriarcado-racismo entendidos numa

unidade simbioacutetica tornados inseparaacuteveis ao longo do processo histoacuterico natildeo

consistindo portanto em trecircs diferentes ordenamentos das relaccedilotildees sociais

correndo paralelamente (SAFFIOTI 1997 p 61) ao contraacuterio esses trecircs

antagonismos diz a autora entrelaccedilam-se de modo a fonnar um noacute

Conveacutem relembrar recorrendo a outra importante contribuiccedilatildeo de

Saffioti ( 1992 p 184) que a condiccedilatildeo de suba Item idade feminina natildeo significa

contudo ausecircncia absoluta de poder Com efeito nos dois poacutelos da relaccedilatildeo

existe poder ainda que em doses tremendamente desiguais As alteraccedilotildees na

loacutegica e nas f()m1aS da dominaccedilatildeo ainda natildeo a derrotaram Portanto natildeo podemos

desconsiderar o imenso caminho a percorrer tampouco as distacircncias entre o

lugar dos homens e o lugar das mulheres numa sociedade ainda tatildeo marcada

por assimeacutetricas e desiguais relaccedilotildees sociais de gecircnero

Entretanto conveacutem anotar a atenccedilatildeo que vecircm merecendo inuacutemeros

estudos - notadamente na academia - que consideram esses avanccedilos da mulher

sobretudo no uacuteltimo lustro do seacuteculo passado como sinais evidentes do que

consideram um decliacutenio ou o fim da sociedade patriarcal wn exemplo eacute o trabalho

de Manuel CasteIls (1999) que revela a mulher como sujeito detivo de um

processo de emancipaccedilatildeo que visa o fim da tagravemiacutelia e da sociedade patriarcal

Certamente natildeo haacute duacutevidas quanto a ser a emancipaccedilatildeo feminina-shy

ainda inconclusa - uma das mais significativas modificaccedilotildees do seacuteculo XX

tampouco que essa transfonnaccedilatildeo seja resultado de um esforccedilo eminentemente

78 Avesso avesso Araccedilatuba v 3 113 P 77middot 97 JUll 2005

feminino Todavia ficam algumas ponderaccedilotildees esses reconheciacuteveis avanccedilos

tiveram forccedila suficiente para provocar decliacutenio ou mesmo para pocircr fim agrave

sociedade patriarcal De que ponto de observaccedilatildeo tagravelam os estudiosos que

nessa tese acreditam Natildeo seria de um ponto de vista espacialmente delimitado

social e etnicamente definido De que mulheres eles falam Seriam por acaso

das camponesas empobrecidas do Nordeste brasileiro Das muccedilulmanas Das

negras esquecidas do continente africano muitas ainda sujeitas a praticas como

a lapidaccedilatildeo Ou seriam das mulheres de pohres periferias urbanas de paiacuteses

como o Brasil

Assim emhora muitos estudos consistam de importantes

contribuiccedilotildees agrave retlex-agraveo sobre as novas foacutem1as de aparecer da questatildeo de gecircnero

natildeo podem obscurecer no entanto os traccedilos determinantes fundamentais do

sistema que ainda natildeo pereceu Embora nagraveo consistam de novos sujeitosjuacute

que lutas levadas a efeito por mulheres datam de tempos longiacutenquos as lutas

de caruacuteter eminentemente feministas das uacuteltimas deacutecadas tiveram como mil itantes

prioritariamente setores femininos intelectualizados e de estratos meacutedios natildeo

alcanccedilando de fomla massiva a grande maioria feminina sob ojugo dos padrotildees

dom inantes de gecircnero E ademais eacute importante ressaltar que a consciecircncia

feminista natildeo garante uma existecircncia isenta ou por fora da ideologia que daacute

sustentaccedilatildeo agraves fomlas de aparecer da dominaccedilatildeo de gecircnero ao contraacuterio coloca

seus sujeitos em constante vigiacutelia e luta

Tendo como suhstrato os marcos teoacutericos delineados pretendo

com as linhas a seguir tornar visiacutevel um pouco da histoacuteria dos sem (lfo de

Teresina capital do Estado do Piauiacute mas sob um olhar especiacute fico o de gecircnero

recusando-me a entender a inserccedilatildeo feminina nas ocupaccedilotildees como um simples

epi fenocircmeno Busco portanto como retere-se Matos (1996 p 135) restaurar

tramas de vidas encobertas procurarno fimdo da histoacuteria figuras ocultas recobrar

o pulsar do urbano recuperar sua ambiguumlidade e pluralidade de possiacuteveis

Alt~sso a CSStl Anwaluha 3 n l r 77 _ 97 JUI1 201l~ 79

vivecircncias e interpretaccedilotildees desfiar a teia de relaccedilotildees cotidianas e suas diferentes

dimensotildees de experiecircncia embora natildeo no sentido de apontar o excepcional

mas de descobrir o que ateacute entatildeo era inatingiacutevel por estar submerso

A pesquisa desenvolvida sobre as ocupaccedilotildees urbanas em Teresina

( 1985-1990) objetivou-se a reconstituiccedilatildeo do intenso processo de lutas por

moradia via ocupaccedilotildees de telTenos urbanos buscando identificar entre outros

aspectos como ocorreram as ocupaccedilotildees que interlocutores estabeleceram no

processo de lutas como tomaram visiacuteveis suas reivindicaccedilotildees como resistiram

agraves inyestidas repressivas como dialogavam e negociavam com o poder puacuteblico

e nesse particular como contribuiacuteram para a redeiacuteiniccedilatildeo das relaccedilotildees entre o

poder puacuteblico e as formas associativas do campo popular O periacuteodo analisado

eacute especialmente marcado pela accedilatildeo dos sem leIo na cidade que com suas lutas

tiacutel111aram-Se como combativos agentes produtores do espaccedilo urbano deixando

a marca da luta e da resistecircncia pela moradia como legado agraves iniciativas

posteriores bem como contribuiacuteram decisivamente para a construccedilatildeo de novas

tlm11(lS de gestatildeo puacuteblica no acircmbito local

Se de modo geral natildeo podemos desconsiderar o imenso caminho

a ser trilhado rumo a uma sociedade que suprima as desiguais relaccedilotildees -- que

produzem distintas formas de aparecer da dominaccedilatildeo - natildeo podemos

desconsiderar em particular as distacircncias entre homens e mulheres

proprietaacuterios( as) de homens e mulheres impossibil itados do acesso agrave mercadoria

casa pelas leis excludentes do mercado imobiliaacuterio ou na simplicidade da

palana os sem leIo - distantes dos benefkios do desenvolvimento embora

sejam construtores efetivos da histoacuteria de cada dia resistindo aos processos

segregatoacuterios modelando o espaccedilo urbano constituindo-se portanto como

eiacuteetivos produtores da cidade

Sabe-se que em sendo registrada sob a oacutetica dos dominantes a

Histoacuteria como consequumlecircncia dissimula oculta desconsidera banaliza ou dilui a

80 Acso an Araptuba 3 11 3 r 77middot lJ7 IUI1 2005

de suas paacuteginas mais contundentes Castells (1999 p 170) afinna que muitas

lutas urbanas antigas ou contemporacircneas foram na realidade movimentos

feministas envolvendo as necessidades e a administraccedilatildeo da vida diaacuteria E adiante

(CASTELLS 1999 p 223) ainda insiste

[ ] o progresso mais importante a partir dos anos 80 foi

o extraordinaacuterio aumento no nuacutemero de organizaccedilotildees de

base popular em sua grande maioria criadas e dirigidas

por mulheres nas aacutereas metropolitanas dos paiacuteses em

desenvolvimento Essas organizaccedilotildees foram estimuladas

por explosotildees demograacuteficas urbanas crises econoacutemicas

e pol iacuteticas de austeridade ocorridas simu Itaneamente que

deixaram as pessoas e particularmente as mulheres

frente a frente com o simples di lema entre lutar ollmorrer

A essa constataccedilatildeo CasteIls (1999 p 223) associa uma outra

reflexatildeo a de que esses esforccedilos coletivos das uacuteltimas deacutecadas natildeo resultaram

somente em organizaccedilotildees populares que causaram impacto nas poliacuteticas e

instituiccedilotildees mas tambeacutem no surgimento de uma nova identidade coletiva na

t()nna de mulheres capacitadas

Essas mulheres foram transgressoras posto que negaram suas

limitaccedilotildees ao acircmbito privado recusaram o apanaacutegio masculino no acesso ao

conhecimento e ao exerciacutecio do poder poliacutetico rejeitaram o confinamento

domeacutestico ou a mera condiccedilatildeo de coadjuvante das lutas Mulheres que t()ram agraves

ruas entre outras coisas reivindicar casa para morar e o direito de pertencimento

agrave cidade que cada vez mais consolidava-se como o lugar do futuro o locus da

modernidade face inclusive a um esvaziamento contiacutenuo do campo e de suas

possibi lidades de oferecer vida digna a seus habitantes

A participaccedilatildeo etetiva das mulheres nas luta urbanas natildeo eacute fenocircmeno

Atsso avesso Araccedilatuha 3 n r 77middot 97 Iun 2()O~ 81

recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)

analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo

XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres

estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo

motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o

patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos

choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham

o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam

como siacutembolos (PERROT p 199)

Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy

4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente

observou que

A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute

uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo

social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos

urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80

tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades

coletivas de segmentos das classes populares As

mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova

identidade coletiva partindo de suas bases territoriais

diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva

Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade

coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees

e expectativas do gecircnero feminino um conjunto

complexo de significados encontrados nos movimentos

urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo

expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos

e os homens assumem a lideranccedila

Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por

82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())

mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples

atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes

jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente

conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980

p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos

mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem

tambeacutem adotaacute-Ios

Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de

um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e

concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento

das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p

154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue

e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos

imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com

interesses mediatos seja deiinitivamente descartada

A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por

moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades

dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e

Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes

revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados

Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela

a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda

assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA

ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou

mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam

(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves

mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave

83

sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de

higiene da escola

Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e

participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas

no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de

panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas

de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as

mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do

acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas

a deito pelo Estado

Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas

contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que

visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em

lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e

equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de

habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra

para plantar e para viver como nas lutas no meio rural

o Corpo e a Coragem como Escudo

Os motins por alimentos grande forma de motim popular

ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados

e animados por mulheres [ ] Nesses motins as

mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com

o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas

usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam

multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos

de mercado ou pedras com que enchem os aventais

84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005

caso extremo Normalmente natildeo destroem nem

saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando

roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o

pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra

os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam

o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT

1992 p194 nosso grifo)

De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar

terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos

institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora

regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se

ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com

inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes

imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as

mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico

materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta

As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros

documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos

como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes

contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em

especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se

descrentes e omissos

A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo

cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de

local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas

regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de

tagravevor na residecircncia de tagravemiliares

Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85

Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa

proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e

o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da

vila e disse

vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha

soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como

eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente

fiquei muito machucada depois quando terminei de

limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido

nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy

naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num

depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu

mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver

a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos

os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e

eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora

e a gente se separou (nosso grifo)

Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi

marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a

populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida

na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a

seus novos habitantes

A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes

em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes

crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento

registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais

este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional

86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005

foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o

consequumlente esvaziamento do campo

A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de

moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees

anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo

com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os

proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas

Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e

podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos

I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito

Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode

ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico

O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade

puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e

consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas

relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando

das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar

a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero

mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees

mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem

com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado

As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo

Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em

sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud

PERROT 1992 p 173)

87

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

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v2

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OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 2: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

tradiccedilatildeo o instituiacutedo e valores cristalizados seculannente notadamente no que

tange agraves questotildees de gecircnero

No entanto embora sejam visiacuteveis muitas conquistas sob a fortaleza

do patriarcado o poder ainda eacute como afirma Saftioti (l997)macho rico e

branco numa referecircncia agraves distintas formas de aparecer da desigualdade

manifesta na condiccedilatildeo de classe de gecircnero e etnia relacionadas ao(s) sistema(s)

de dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo capitalismo-patriarcado-racismo entendidos numa

unidade simbioacutetica tornados inseparaacuteveis ao longo do processo histoacuterico natildeo

consistindo portanto em trecircs diferentes ordenamentos das relaccedilotildees sociais

correndo paralelamente (SAFFIOTI 1997 p 61) ao contraacuterio esses trecircs

antagonismos diz a autora entrelaccedilam-se de modo a fonnar um noacute

Conveacutem relembrar recorrendo a outra importante contribuiccedilatildeo de

Saffioti ( 1992 p 184) que a condiccedilatildeo de suba Item idade feminina natildeo significa

contudo ausecircncia absoluta de poder Com efeito nos dois poacutelos da relaccedilatildeo

existe poder ainda que em doses tremendamente desiguais As alteraccedilotildees na

loacutegica e nas f()m1aS da dominaccedilatildeo ainda natildeo a derrotaram Portanto natildeo podemos

desconsiderar o imenso caminho a percorrer tampouco as distacircncias entre o

lugar dos homens e o lugar das mulheres numa sociedade ainda tatildeo marcada

por assimeacutetricas e desiguais relaccedilotildees sociais de gecircnero

Entretanto conveacutem anotar a atenccedilatildeo que vecircm merecendo inuacutemeros

estudos - notadamente na academia - que consideram esses avanccedilos da mulher

sobretudo no uacuteltimo lustro do seacuteculo passado como sinais evidentes do que

consideram um decliacutenio ou o fim da sociedade patriarcal wn exemplo eacute o trabalho

de Manuel CasteIls (1999) que revela a mulher como sujeito detivo de um

processo de emancipaccedilatildeo que visa o fim da tagravemiacutelia e da sociedade patriarcal

Certamente natildeo haacute duacutevidas quanto a ser a emancipaccedilatildeo feminina-shy

ainda inconclusa - uma das mais significativas modificaccedilotildees do seacuteculo XX

tampouco que essa transfonnaccedilatildeo seja resultado de um esforccedilo eminentemente

78 Avesso avesso Araccedilatuba v 3 113 P 77middot 97 JUll 2005

feminino Todavia ficam algumas ponderaccedilotildees esses reconheciacuteveis avanccedilos

tiveram forccedila suficiente para provocar decliacutenio ou mesmo para pocircr fim agrave

sociedade patriarcal De que ponto de observaccedilatildeo tagravelam os estudiosos que

nessa tese acreditam Natildeo seria de um ponto de vista espacialmente delimitado

social e etnicamente definido De que mulheres eles falam Seriam por acaso

das camponesas empobrecidas do Nordeste brasileiro Das muccedilulmanas Das

negras esquecidas do continente africano muitas ainda sujeitas a praticas como

a lapidaccedilatildeo Ou seriam das mulheres de pohres periferias urbanas de paiacuteses

como o Brasil

Assim emhora muitos estudos consistam de importantes

contribuiccedilotildees agrave retlex-agraveo sobre as novas foacutem1as de aparecer da questatildeo de gecircnero

natildeo podem obscurecer no entanto os traccedilos determinantes fundamentais do

sistema que ainda natildeo pereceu Embora nagraveo consistam de novos sujeitosjuacute

que lutas levadas a efeito por mulheres datam de tempos longiacutenquos as lutas

de caruacuteter eminentemente feministas das uacuteltimas deacutecadas tiveram como mil itantes

prioritariamente setores femininos intelectualizados e de estratos meacutedios natildeo

alcanccedilando de fomla massiva a grande maioria feminina sob ojugo dos padrotildees

dom inantes de gecircnero E ademais eacute importante ressaltar que a consciecircncia

feminista natildeo garante uma existecircncia isenta ou por fora da ideologia que daacute

sustentaccedilatildeo agraves fomlas de aparecer da dominaccedilatildeo de gecircnero ao contraacuterio coloca

seus sujeitos em constante vigiacutelia e luta

Tendo como suhstrato os marcos teoacutericos delineados pretendo

com as linhas a seguir tornar visiacutevel um pouco da histoacuteria dos sem (lfo de

Teresina capital do Estado do Piauiacute mas sob um olhar especiacute fico o de gecircnero

recusando-me a entender a inserccedilatildeo feminina nas ocupaccedilotildees como um simples

epi fenocircmeno Busco portanto como retere-se Matos (1996 p 135) restaurar

tramas de vidas encobertas procurarno fimdo da histoacuteria figuras ocultas recobrar

o pulsar do urbano recuperar sua ambiguumlidade e pluralidade de possiacuteveis

Alt~sso a CSStl Anwaluha 3 n l r 77 _ 97 JUI1 201l~ 79

vivecircncias e interpretaccedilotildees desfiar a teia de relaccedilotildees cotidianas e suas diferentes

dimensotildees de experiecircncia embora natildeo no sentido de apontar o excepcional

mas de descobrir o que ateacute entatildeo era inatingiacutevel por estar submerso

A pesquisa desenvolvida sobre as ocupaccedilotildees urbanas em Teresina

( 1985-1990) objetivou-se a reconstituiccedilatildeo do intenso processo de lutas por

moradia via ocupaccedilotildees de telTenos urbanos buscando identificar entre outros

aspectos como ocorreram as ocupaccedilotildees que interlocutores estabeleceram no

processo de lutas como tomaram visiacuteveis suas reivindicaccedilotildees como resistiram

agraves inyestidas repressivas como dialogavam e negociavam com o poder puacuteblico

e nesse particular como contribuiacuteram para a redeiacuteiniccedilatildeo das relaccedilotildees entre o

poder puacuteblico e as formas associativas do campo popular O periacuteodo analisado

eacute especialmente marcado pela accedilatildeo dos sem leIo na cidade que com suas lutas

tiacutel111aram-Se como combativos agentes produtores do espaccedilo urbano deixando

a marca da luta e da resistecircncia pela moradia como legado agraves iniciativas

posteriores bem como contribuiacuteram decisivamente para a construccedilatildeo de novas

tlm11(lS de gestatildeo puacuteblica no acircmbito local

Se de modo geral natildeo podemos desconsiderar o imenso caminho

a ser trilhado rumo a uma sociedade que suprima as desiguais relaccedilotildees -- que

produzem distintas formas de aparecer da dominaccedilatildeo - natildeo podemos

desconsiderar em particular as distacircncias entre homens e mulheres

proprietaacuterios( as) de homens e mulheres impossibil itados do acesso agrave mercadoria

casa pelas leis excludentes do mercado imobiliaacuterio ou na simplicidade da

palana os sem leIo - distantes dos benefkios do desenvolvimento embora

sejam construtores efetivos da histoacuteria de cada dia resistindo aos processos

segregatoacuterios modelando o espaccedilo urbano constituindo-se portanto como

eiacuteetivos produtores da cidade

Sabe-se que em sendo registrada sob a oacutetica dos dominantes a

Histoacuteria como consequumlecircncia dissimula oculta desconsidera banaliza ou dilui a

80 Acso an Araptuba 3 11 3 r 77middot lJ7 IUI1 2005

de suas paacuteginas mais contundentes Castells (1999 p 170) afinna que muitas

lutas urbanas antigas ou contemporacircneas foram na realidade movimentos

feministas envolvendo as necessidades e a administraccedilatildeo da vida diaacuteria E adiante

(CASTELLS 1999 p 223) ainda insiste

[ ] o progresso mais importante a partir dos anos 80 foi

o extraordinaacuterio aumento no nuacutemero de organizaccedilotildees de

base popular em sua grande maioria criadas e dirigidas

por mulheres nas aacutereas metropolitanas dos paiacuteses em

desenvolvimento Essas organizaccedilotildees foram estimuladas

por explosotildees demograacuteficas urbanas crises econoacutemicas

e pol iacuteticas de austeridade ocorridas simu Itaneamente que

deixaram as pessoas e particularmente as mulheres

frente a frente com o simples di lema entre lutar ollmorrer

A essa constataccedilatildeo CasteIls (1999 p 223) associa uma outra

reflexatildeo a de que esses esforccedilos coletivos das uacuteltimas deacutecadas natildeo resultaram

somente em organizaccedilotildees populares que causaram impacto nas poliacuteticas e

instituiccedilotildees mas tambeacutem no surgimento de uma nova identidade coletiva na

t()nna de mulheres capacitadas

Essas mulheres foram transgressoras posto que negaram suas

limitaccedilotildees ao acircmbito privado recusaram o apanaacutegio masculino no acesso ao

conhecimento e ao exerciacutecio do poder poliacutetico rejeitaram o confinamento

domeacutestico ou a mera condiccedilatildeo de coadjuvante das lutas Mulheres que t()ram agraves

ruas entre outras coisas reivindicar casa para morar e o direito de pertencimento

agrave cidade que cada vez mais consolidava-se como o lugar do futuro o locus da

modernidade face inclusive a um esvaziamento contiacutenuo do campo e de suas

possibi lidades de oferecer vida digna a seus habitantes

A participaccedilatildeo etetiva das mulheres nas luta urbanas natildeo eacute fenocircmeno

Atsso avesso Araccedilatuha 3 n r 77middot 97 Iun 2()O~ 81

recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)

analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo

XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres

estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo

motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o

patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos

choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham

o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam

como siacutembolos (PERROT p 199)

Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy

4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente

observou que

A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute

uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo

social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos

urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80

tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades

coletivas de segmentos das classes populares As

mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova

identidade coletiva partindo de suas bases territoriais

diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva

Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade

coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees

e expectativas do gecircnero feminino um conjunto

complexo de significados encontrados nos movimentos

urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo

expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos

e os homens assumem a lideranccedila

Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por

82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())

mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples

atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes

jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente

conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980

p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos

mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem

tambeacutem adotaacute-Ios

Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de

um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e

concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento

das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p

154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue

e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos

imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com

interesses mediatos seja deiinitivamente descartada

A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por

moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades

dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e

Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes

revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados

Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela

a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda

assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA

ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou

mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam

(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves

mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave

83

sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de

higiene da escola

Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e

participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas

no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de

panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas

de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as

mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do

acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas

a deito pelo Estado

Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas

contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que

visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em

lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e

equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de

habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra

para plantar e para viver como nas lutas no meio rural

o Corpo e a Coragem como Escudo

Os motins por alimentos grande forma de motim popular

ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados

e animados por mulheres [ ] Nesses motins as

mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com

o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas

usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam

multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos

de mercado ou pedras com que enchem os aventais

84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005

caso extremo Normalmente natildeo destroem nem

saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando

roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o

pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra

os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam

o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT

1992 p194 nosso grifo)

De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar

terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos

institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora

regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se

ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com

inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes

imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as

mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico

materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta

As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros

documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos

como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes

contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em

especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se

descrentes e omissos

A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo

cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de

local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas

regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de

tagravevor na residecircncia de tagravemiliares

Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85

Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa

proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e

o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da

vila e disse

vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha

soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como

eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente

fiquei muito machucada depois quando terminei de

limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido

nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy

naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num

depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu

mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver

a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos

os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e

eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora

e a gente se separou (nosso grifo)

Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi

marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a

populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida

na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a

seus novos habitantes

A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes

em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes

crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento

registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais

este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional

86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005

foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o

consequumlente esvaziamento do campo

A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de

moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees

anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo

com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os

proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas

Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e

podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos

I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito

Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode

ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico

O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade

puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e

consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas

relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando

das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar

a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero

mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees

mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem

com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado

As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo

Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em

sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud

PERROT 1992 p 173)

87

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

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Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 3: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

feminino Todavia ficam algumas ponderaccedilotildees esses reconheciacuteveis avanccedilos

tiveram forccedila suficiente para provocar decliacutenio ou mesmo para pocircr fim agrave

sociedade patriarcal De que ponto de observaccedilatildeo tagravelam os estudiosos que

nessa tese acreditam Natildeo seria de um ponto de vista espacialmente delimitado

social e etnicamente definido De que mulheres eles falam Seriam por acaso

das camponesas empobrecidas do Nordeste brasileiro Das muccedilulmanas Das

negras esquecidas do continente africano muitas ainda sujeitas a praticas como

a lapidaccedilatildeo Ou seriam das mulheres de pohres periferias urbanas de paiacuteses

como o Brasil

Assim emhora muitos estudos consistam de importantes

contribuiccedilotildees agrave retlex-agraveo sobre as novas foacutem1as de aparecer da questatildeo de gecircnero

natildeo podem obscurecer no entanto os traccedilos determinantes fundamentais do

sistema que ainda natildeo pereceu Embora nagraveo consistam de novos sujeitosjuacute

que lutas levadas a efeito por mulheres datam de tempos longiacutenquos as lutas

de caruacuteter eminentemente feministas das uacuteltimas deacutecadas tiveram como mil itantes

prioritariamente setores femininos intelectualizados e de estratos meacutedios natildeo

alcanccedilando de fomla massiva a grande maioria feminina sob ojugo dos padrotildees

dom inantes de gecircnero E ademais eacute importante ressaltar que a consciecircncia

feminista natildeo garante uma existecircncia isenta ou por fora da ideologia que daacute

sustentaccedilatildeo agraves fomlas de aparecer da dominaccedilatildeo de gecircnero ao contraacuterio coloca

seus sujeitos em constante vigiacutelia e luta

Tendo como suhstrato os marcos teoacutericos delineados pretendo

com as linhas a seguir tornar visiacutevel um pouco da histoacuteria dos sem (lfo de

Teresina capital do Estado do Piauiacute mas sob um olhar especiacute fico o de gecircnero

recusando-me a entender a inserccedilatildeo feminina nas ocupaccedilotildees como um simples

epi fenocircmeno Busco portanto como retere-se Matos (1996 p 135) restaurar

tramas de vidas encobertas procurarno fimdo da histoacuteria figuras ocultas recobrar

o pulsar do urbano recuperar sua ambiguumlidade e pluralidade de possiacuteveis

Alt~sso a CSStl Anwaluha 3 n l r 77 _ 97 JUI1 201l~ 79

vivecircncias e interpretaccedilotildees desfiar a teia de relaccedilotildees cotidianas e suas diferentes

dimensotildees de experiecircncia embora natildeo no sentido de apontar o excepcional

mas de descobrir o que ateacute entatildeo era inatingiacutevel por estar submerso

A pesquisa desenvolvida sobre as ocupaccedilotildees urbanas em Teresina

( 1985-1990) objetivou-se a reconstituiccedilatildeo do intenso processo de lutas por

moradia via ocupaccedilotildees de telTenos urbanos buscando identificar entre outros

aspectos como ocorreram as ocupaccedilotildees que interlocutores estabeleceram no

processo de lutas como tomaram visiacuteveis suas reivindicaccedilotildees como resistiram

agraves inyestidas repressivas como dialogavam e negociavam com o poder puacuteblico

e nesse particular como contribuiacuteram para a redeiacuteiniccedilatildeo das relaccedilotildees entre o

poder puacuteblico e as formas associativas do campo popular O periacuteodo analisado

eacute especialmente marcado pela accedilatildeo dos sem leIo na cidade que com suas lutas

tiacutel111aram-Se como combativos agentes produtores do espaccedilo urbano deixando

a marca da luta e da resistecircncia pela moradia como legado agraves iniciativas

posteriores bem como contribuiacuteram decisivamente para a construccedilatildeo de novas

tlm11(lS de gestatildeo puacuteblica no acircmbito local

Se de modo geral natildeo podemos desconsiderar o imenso caminho

a ser trilhado rumo a uma sociedade que suprima as desiguais relaccedilotildees -- que

produzem distintas formas de aparecer da dominaccedilatildeo - natildeo podemos

desconsiderar em particular as distacircncias entre homens e mulheres

proprietaacuterios( as) de homens e mulheres impossibil itados do acesso agrave mercadoria

casa pelas leis excludentes do mercado imobiliaacuterio ou na simplicidade da

palana os sem leIo - distantes dos benefkios do desenvolvimento embora

sejam construtores efetivos da histoacuteria de cada dia resistindo aos processos

segregatoacuterios modelando o espaccedilo urbano constituindo-se portanto como

eiacuteetivos produtores da cidade

Sabe-se que em sendo registrada sob a oacutetica dos dominantes a

Histoacuteria como consequumlecircncia dissimula oculta desconsidera banaliza ou dilui a

80 Acso an Araptuba 3 11 3 r 77middot lJ7 IUI1 2005

de suas paacuteginas mais contundentes Castells (1999 p 170) afinna que muitas

lutas urbanas antigas ou contemporacircneas foram na realidade movimentos

feministas envolvendo as necessidades e a administraccedilatildeo da vida diaacuteria E adiante

(CASTELLS 1999 p 223) ainda insiste

[ ] o progresso mais importante a partir dos anos 80 foi

o extraordinaacuterio aumento no nuacutemero de organizaccedilotildees de

base popular em sua grande maioria criadas e dirigidas

por mulheres nas aacutereas metropolitanas dos paiacuteses em

desenvolvimento Essas organizaccedilotildees foram estimuladas

por explosotildees demograacuteficas urbanas crises econoacutemicas

e pol iacuteticas de austeridade ocorridas simu Itaneamente que

deixaram as pessoas e particularmente as mulheres

frente a frente com o simples di lema entre lutar ollmorrer

A essa constataccedilatildeo CasteIls (1999 p 223) associa uma outra

reflexatildeo a de que esses esforccedilos coletivos das uacuteltimas deacutecadas natildeo resultaram

somente em organizaccedilotildees populares que causaram impacto nas poliacuteticas e

instituiccedilotildees mas tambeacutem no surgimento de uma nova identidade coletiva na

t()nna de mulheres capacitadas

Essas mulheres foram transgressoras posto que negaram suas

limitaccedilotildees ao acircmbito privado recusaram o apanaacutegio masculino no acesso ao

conhecimento e ao exerciacutecio do poder poliacutetico rejeitaram o confinamento

domeacutestico ou a mera condiccedilatildeo de coadjuvante das lutas Mulheres que t()ram agraves

ruas entre outras coisas reivindicar casa para morar e o direito de pertencimento

agrave cidade que cada vez mais consolidava-se como o lugar do futuro o locus da

modernidade face inclusive a um esvaziamento contiacutenuo do campo e de suas

possibi lidades de oferecer vida digna a seus habitantes

A participaccedilatildeo etetiva das mulheres nas luta urbanas natildeo eacute fenocircmeno

Atsso avesso Araccedilatuha 3 n r 77middot 97 Iun 2()O~ 81

recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)

analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo

XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres

estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo

motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o

patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos

choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham

o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam

como siacutembolos (PERROT p 199)

Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy

4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente

observou que

A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute

uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo

social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos

urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80

tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades

coletivas de segmentos das classes populares As

mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova

identidade coletiva partindo de suas bases territoriais

diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva

Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade

coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees

e expectativas do gecircnero feminino um conjunto

complexo de significados encontrados nos movimentos

urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo

expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos

e os homens assumem a lideranccedila

Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por

82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())

mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples

atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes

jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente

conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980

p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos

mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem

tambeacutem adotaacute-Ios

Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de

um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e

concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento

das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p

154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue

e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos

imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com

interesses mediatos seja deiinitivamente descartada

A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por

moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades

dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e

Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes

revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados

Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela

a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda

assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA

ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou

mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam

(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves

mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave

83

sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de

higiene da escola

Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e

participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas

no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de

panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas

de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as

mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do

acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas

a deito pelo Estado

Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas

contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que

visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em

lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e

equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de

habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra

para plantar e para viver como nas lutas no meio rural

o Corpo e a Coragem como Escudo

Os motins por alimentos grande forma de motim popular

ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados

e animados por mulheres [ ] Nesses motins as

mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com

o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas

usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam

multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos

de mercado ou pedras com que enchem os aventais

84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005

caso extremo Normalmente natildeo destroem nem

saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando

roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o

pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra

os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam

o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT

1992 p194 nosso grifo)

De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar

terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos

institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora

regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se

ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com

inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes

imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as

mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico

materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta

As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros

documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos

como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes

contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em

especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se

descrentes e omissos

A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo

cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de

local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas

regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de

tagravevor na residecircncia de tagravemiliares

Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85

Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa

proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e

o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da

vila e disse

vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha

soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como

eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente

fiquei muito machucada depois quando terminei de

limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido

nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy

naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num

depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu

mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver

a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos

os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e

eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora

e a gente se separou (nosso grifo)

Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi

marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a

populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida

na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a

seus novos habitantes

A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes

em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes

crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento

registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais

este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional

86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005

foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o

consequumlente esvaziamento do campo

A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de

moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees

anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo

com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os

proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas

Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e

podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos

I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito

Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode

ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico

O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade

puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e

consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas

relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando

das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar

a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero

mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees

mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem

com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado

As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo

Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em

sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud

PERROT 1992 p 173)

87

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

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v2

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coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

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~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 4: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

vivecircncias e interpretaccedilotildees desfiar a teia de relaccedilotildees cotidianas e suas diferentes

dimensotildees de experiecircncia embora natildeo no sentido de apontar o excepcional

mas de descobrir o que ateacute entatildeo era inatingiacutevel por estar submerso

A pesquisa desenvolvida sobre as ocupaccedilotildees urbanas em Teresina

( 1985-1990) objetivou-se a reconstituiccedilatildeo do intenso processo de lutas por

moradia via ocupaccedilotildees de telTenos urbanos buscando identificar entre outros

aspectos como ocorreram as ocupaccedilotildees que interlocutores estabeleceram no

processo de lutas como tomaram visiacuteveis suas reivindicaccedilotildees como resistiram

agraves inyestidas repressivas como dialogavam e negociavam com o poder puacuteblico

e nesse particular como contribuiacuteram para a redeiacuteiniccedilatildeo das relaccedilotildees entre o

poder puacuteblico e as formas associativas do campo popular O periacuteodo analisado

eacute especialmente marcado pela accedilatildeo dos sem leIo na cidade que com suas lutas

tiacutel111aram-Se como combativos agentes produtores do espaccedilo urbano deixando

a marca da luta e da resistecircncia pela moradia como legado agraves iniciativas

posteriores bem como contribuiacuteram decisivamente para a construccedilatildeo de novas

tlm11(lS de gestatildeo puacuteblica no acircmbito local

Se de modo geral natildeo podemos desconsiderar o imenso caminho

a ser trilhado rumo a uma sociedade que suprima as desiguais relaccedilotildees -- que

produzem distintas formas de aparecer da dominaccedilatildeo - natildeo podemos

desconsiderar em particular as distacircncias entre homens e mulheres

proprietaacuterios( as) de homens e mulheres impossibil itados do acesso agrave mercadoria

casa pelas leis excludentes do mercado imobiliaacuterio ou na simplicidade da

palana os sem leIo - distantes dos benefkios do desenvolvimento embora

sejam construtores efetivos da histoacuteria de cada dia resistindo aos processos

segregatoacuterios modelando o espaccedilo urbano constituindo-se portanto como

eiacuteetivos produtores da cidade

Sabe-se que em sendo registrada sob a oacutetica dos dominantes a

Histoacuteria como consequumlecircncia dissimula oculta desconsidera banaliza ou dilui a

80 Acso an Araptuba 3 11 3 r 77middot lJ7 IUI1 2005

de suas paacuteginas mais contundentes Castells (1999 p 170) afinna que muitas

lutas urbanas antigas ou contemporacircneas foram na realidade movimentos

feministas envolvendo as necessidades e a administraccedilatildeo da vida diaacuteria E adiante

(CASTELLS 1999 p 223) ainda insiste

[ ] o progresso mais importante a partir dos anos 80 foi

o extraordinaacuterio aumento no nuacutemero de organizaccedilotildees de

base popular em sua grande maioria criadas e dirigidas

por mulheres nas aacutereas metropolitanas dos paiacuteses em

desenvolvimento Essas organizaccedilotildees foram estimuladas

por explosotildees demograacuteficas urbanas crises econoacutemicas

e pol iacuteticas de austeridade ocorridas simu Itaneamente que

deixaram as pessoas e particularmente as mulheres

frente a frente com o simples di lema entre lutar ollmorrer

A essa constataccedilatildeo CasteIls (1999 p 223) associa uma outra

reflexatildeo a de que esses esforccedilos coletivos das uacuteltimas deacutecadas natildeo resultaram

somente em organizaccedilotildees populares que causaram impacto nas poliacuteticas e

instituiccedilotildees mas tambeacutem no surgimento de uma nova identidade coletiva na

t()nna de mulheres capacitadas

Essas mulheres foram transgressoras posto que negaram suas

limitaccedilotildees ao acircmbito privado recusaram o apanaacutegio masculino no acesso ao

conhecimento e ao exerciacutecio do poder poliacutetico rejeitaram o confinamento

domeacutestico ou a mera condiccedilatildeo de coadjuvante das lutas Mulheres que t()ram agraves

ruas entre outras coisas reivindicar casa para morar e o direito de pertencimento

agrave cidade que cada vez mais consolidava-se como o lugar do futuro o locus da

modernidade face inclusive a um esvaziamento contiacutenuo do campo e de suas

possibi lidades de oferecer vida digna a seus habitantes

A participaccedilatildeo etetiva das mulheres nas luta urbanas natildeo eacute fenocircmeno

Atsso avesso Araccedilatuha 3 n r 77middot 97 Iun 2()O~ 81

recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)

analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo

XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres

estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo

motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o

patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos

choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham

o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam

como siacutembolos (PERROT p 199)

Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy

4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente

observou que

A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute

uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo

social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos

urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80

tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades

coletivas de segmentos das classes populares As

mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova

identidade coletiva partindo de suas bases territoriais

diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva

Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade

coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees

e expectativas do gecircnero feminino um conjunto

complexo de significados encontrados nos movimentos

urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo

expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos

e os homens assumem a lideranccedila

Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por

82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())

mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples

atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes

jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente

conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980

p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos

mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem

tambeacutem adotaacute-Ios

Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de

um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e

concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento

das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p

154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue

e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos

imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com

interesses mediatos seja deiinitivamente descartada

A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por

moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades

dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e

Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes

revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados

Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela

a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda

assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA

ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou

mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam

(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves

mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave

83

sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de

higiene da escola

Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e

participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas

no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de

panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas

de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as

mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do

acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas

a deito pelo Estado

Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas

contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que

visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em

lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e

equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de

habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra

para plantar e para viver como nas lutas no meio rural

o Corpo e a Coragem como Escudo

Os motins por alimentos grande forma de motim popular

ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados

e animados por mulheres [ ] Nesses motins as

mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com

o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas

usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam

multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos

de mercado ou pedras com que enchem os aventais

84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005

caso extremo Normalmente natildeo destroem nem

saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando

roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o

pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra

os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam

o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT

1992 p194 nosso grifo)

De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar

terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos

institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora

regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se

ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com

inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes

imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as

mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico

materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta

As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros

documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos

como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes

contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em

especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se

descrentes e omissos

A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo

cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de

local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas

regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de

tagravevor na residecircncia de tagravemiliares

Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85

Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa

proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e

o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da

vila e disse

vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha

soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como

eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente

fiquei muito machucada depois quando terminei de

limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido

nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy

naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num

depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu

mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver

a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos

os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e

eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora

e a gente se separou (nosso grifo)

Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi

marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a

populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida

na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a

seus novos habitantes

A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes

em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes

crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento

registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais

este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional

86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005

foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o

consequumlente esvaziamento do campo

A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de

moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees

anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo

com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os

proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas

Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e

podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos

I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito

Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode

ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico

O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade

puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e

consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas

relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando

das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar

a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero

mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees

mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem

com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado

As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo

Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em

sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud

PERROT 1992 p 173)

87

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

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v2

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OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 5: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

de suas paacuteginas mais contundentes Castells (1999 p 170) afinna que muitas

lutas urbanas antigas ou contemporacircneas foram na realidade movimentos

feministas envolvendo as necessidades e a administraccedilatildeo da vida diaacuteria E adiante

(CASTELLS 1999 p 223) ainda insiste

[ ] o progresso mais importante a partir dos anos 80 foi

o extraordinaacuterio aumento no nuacutemero de organizaccedilotildees de

base popular em sua grande maioria criadas e dirigidas

por mulheres nas aacutereas metropolitanas dos paiacuteses em

desenvolvimento Essas organizaccedilotildees foram estimuladas

por explosotildees demograacuteficas urbanas crises econoacutemicas

e pol iacuteticas de austeridade ocorridas simu Itaneamente que

deixaram as pessoas e particularmente as mulheres

frente a frente com o simples di lema entre lutar ollmorrer

A essa constataccedilatildeo CasteIls (1999 p 223) associa uma outra

reflexatildeo a de que esses esforccedilos coletivos das uacuteltimas deacutecadas natildeo resultaram

somente em organizaccedilotildees populares que causaram impacto nas poliacuteticas e

instituiccedilotildees mas tambeacutem no surgimento de uma nova identidade coletiva na

t()nna de mulheres capacitadas

Essas mulheres foram transgressoras posto que negaram suas

limitaccedilotildees ao acircmbito privado recusaram o apanaacutegio masculino no acesso ao

conhecimento e ao exerciacutecio do poder poliacutetico rejeitaram o confinamento

domeacutestico ou a mera condiccedilatildeo de coadjuvante das lutas Mulheres que t()ram agraves

ruas entre outras coisas reivindicar casa para morar e o direito de pertencimento

agrave cidade que cada vez mais consolidava-se como o lugar do futuro o locus da

modernidade face inclusive a um esvaziamento contiacutenuo do campo e de suas

possibi lidades de oferecer vida digna a seus habitantes

A participaccedilatildeo etetiva das mulheres nas luta urbanas natildeo eacute fenocircmeno

Atsso avesso Araccedilatuha 3 n r 77middot 97 Iun 2()O~ 81

recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)

analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo

XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres

estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo

motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o

patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos

choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham

o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam

como siacutembolos (PERROT p 199)

Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy

4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente

observou que

A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute

uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo

social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos

urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80

tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades

coletivas de segmentos das classes populares As

mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova

identidade coletiva partindo de suas bases territoriais

diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva

Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade

coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees

e expectativas do gecircnero feminino um conjunto

complexo de significados encontrados nos movimentos

urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo

expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos

e os homens assumem a lideranccedila

Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por

82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())

mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples

atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes

jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente

conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980

p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos

mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem

tambeacutem adotaacute-Ios

Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de

um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e

concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento

das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p

154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue

e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos

imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com

interesses mediatos seja deiinitivamente descartada

A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por

moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades

dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e

Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes

revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados

Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela

a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda

assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA

ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou

mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam

(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves

mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave

83

sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de

higiene da escola

Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e

participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas

no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de

panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas

de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as

mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do

acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas

a deito pelo Estado

Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas

contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que

visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em

lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e

equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de

habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra

para plantar e para viver como nas lutas no meio rural

o Corpo e a Coragem como Escudo

Os motins por alimentos grande forma de motim popular

ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados

e animados por mulheres [ ] Nesses motins as

mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com

o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas

usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam

multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos

de mercado ou pedras com que enchem os aventais

84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005

caso extremo Normalmente natildeo destroem nem

saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando

roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o

pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra

os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam

o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT

1992 p194 nosso grifo)

De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar

terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos

institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora

regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se

ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com

inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes

imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as

mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico

materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta

As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros

documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos

como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes

contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em

especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se

descrentes e omissos

A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo

cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de

local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas

regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de

tagravevor na residecircncia de tagravemiliares

Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85

Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa

proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e

o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da

vila e disse

vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha

soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como

eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente

fiquei muito machucada depois quando terminei de

limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido

nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy

naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num

depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu

mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver

a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos

os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e

eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora

e a gente se separou (nosso grifo)

Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi

marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a

populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida

na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a

seus novos habitantes

A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes

em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes

crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento

registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais

este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional

86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005

foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o

consequumlente esvaziamento do campo

A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de

moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees

anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo

com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os

proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas

Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e

podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos

I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito

Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode

ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico

O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade

puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e

consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas

relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando

das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar

a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero

mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees

mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem

com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado

As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo

Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em

sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud

PERROT 1992 p 173)

87

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

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v2

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Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 6: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)

analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo

XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres

estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo

motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o

patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos

choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham

o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam

como siacutembolos (PERROT p 199)

Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy

4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente

observou que

A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute

uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo

social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos

urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80

tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades

coletivas de segmentos das classes populares As

mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova

identidade coletiva partindo de suas bases territoriais

diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva

Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade

coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees

e expectativas do gecircnero feminino um conjunto

complexo de significados encontrados nos movimentos

urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo

expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos

e os homens assumem a lideranccedila

Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por

82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())

mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples

atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes

jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente

conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980

p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos

mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem

tambeacutem adotaacute-Ios

Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de

um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e

concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento

das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p

154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue

e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos

imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com

interesses mediatos seja deiinitivamente descartada

A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por

moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades

dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e

Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes

revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados

Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela

a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda

assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA

ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou

mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam

(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves

mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave

83

sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de

higiene da escola

Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e

participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas

no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de

panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas

de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as

mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do

acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas

a deito pelo Estado

Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas

contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que

visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em

lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e

equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de

habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra

para plantar e para viver como nas lutas no meio rural

o Corpo e a Coragem como Escudo

Os motins por alimentos grande forma de motim popular

ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados

e animados por mulheres [ ] Nesses motins as

mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com

o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas

usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam

multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos

de mercado ou pedras com que enchem os aventais

84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005

caso extremo Normalmente natildeo destroem nem

saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando

roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o

pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra

os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam

o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT

1992 p194 nosso grifo)

De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar

terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos

institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora

regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se

ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com

inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes

imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as

mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico

materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta

As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros

documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos

como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes

contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em

especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se

descrentes e omissos

A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo

cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de

local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas

regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de

tagravevor na residecircncia de tagravemiliares

Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85

Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa

proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e

o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da

vila e disse

vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha

soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como

eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente

fiquei muito machucada depois quando terminei de

limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido

nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy

naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num

depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu

mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver

a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos

os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e

eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora

e a gente se separou (nosso grifo)

Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi

marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a

populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida

na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a

seus novos habitantes

A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes

em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes

crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento

registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais

este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional

86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005

foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o

consequumlente esvaziamento do campo

A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de

moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees

anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo

com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os

proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas

Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e

podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos

I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito

Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode

ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico

O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade

puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e

consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas

relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando

das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar

a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero

mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees

mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem

com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado

As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo

Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em

sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud

PERROT 1992 p 173)

87

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

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VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 7: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples

atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes

jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente

conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980

p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos

mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem

tambeacutem adotaacute-Ios

Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de

um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e

concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento

das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p

154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue

e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos

imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com

interesses mediatos seja deiinitivamente descartada

A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por

moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades

dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e

Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes

revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados

Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela

a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda

assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA

ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou

mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam

(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves

mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave

83

sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de

higiene da escola

Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e

participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas

no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de

panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas

de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as

mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do

acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas

a deito pelo Estado

Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas

contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que

visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em

lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e

equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de

habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra

para plantar e para viver como nas lutas no meio rural

o Corpo e a Coragem como Escudo

Os motins por alimentos grande forma de motim popular

ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados

e animados por mulheres [ ] Nesses motins as

mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com

o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas

usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam

multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos

de mercado ou pedras com que enchem os aventais

84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005

caso extremo Normalmente natildeo destroem nem

saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando

roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o

pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra

os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam

o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT

1992 p194 nosso grifo)

De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar

terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos

institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora

regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se

ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com

inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes

imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as

mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico

materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta

As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros

documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos

como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes

contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em

especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se

descrentes e omissos

A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo

cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de

local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas

regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de

tagravevor na residecircncia de tagravemiliares

Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85

Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa

proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e

o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da

vila e disse

vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha

soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como

eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente

fiquei muito machucada depois quando terminei de

limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido

nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy

naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num

depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu

mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver

a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos

os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e

eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora

e a gente se separou (nosso grifo)

Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi

marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a

populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida

na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a

seus novos habitantes

A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes

em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes

crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento

registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais

este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional

86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005

foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o

consequumlente esvaziamento do campo

A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de

moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees

anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo

com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os

proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas

Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e

podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos

I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito

Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode

ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico

O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade

puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e

consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas

relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando

das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar

a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero

mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees

mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem

com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado

As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo

Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em

sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud

PERROT 1992 p 173)

87

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

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satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

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v2

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~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 8: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de

higiene da escola

Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e

participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas

no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de

panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas

de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as

mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do

acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas

a deito pelo Estado

Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas

contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que

visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em

lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e

equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de

habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra

para plantar e para viver como nas lutas no meio rural

o Corpo e a Coragem como Escudo

Os motins por alimentos grande forma de motim popular

ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados

e animados por mulheres [ ] Nesses motins as

mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com

o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas

usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam

multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos

de mercado ou pedras com que enchem os aventais

84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005

caso extremo Normalmente natildeo destroem nem

saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando

roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o

pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra

os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam

o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT

1992 p194 nosso grifo)

De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar

terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos

institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora

regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se

ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com

inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes

imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as

mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico

materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta

As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros

documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos

como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes

contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em

especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se

descrentes e omissos

A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo

cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de

local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas

regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de

tagravevor na residecircncia de tagravemiliares

Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85

Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa

proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e

o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da

vila e disse

vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha

soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como

eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente

fiquei muito machucada depois quando terminei de

limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido

nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy

naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num

depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu

mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver

a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos

os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e

eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora

e a gente se separou (nosso grifo)

Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi

marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a

populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida

na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a

seus novos habitantes

A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes

em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes

crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento

registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais

este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional

86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005

foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o

consequumlente esvaziamento do campo

A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de

moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees

anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo

com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os

proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas

Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e

podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos

I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito

Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode

ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico

O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade

puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e

consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas

relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando

das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar

a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero

mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees

mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem

com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado

As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo

Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em

sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud

PERROT 1992 p 173)

87

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

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MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

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Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 9: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

caso extremo Normalmente natildeo destroem nem

saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando

roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o

pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra

os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam

o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT

1992 p194 nosso grifo)

De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar

terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos

institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora

regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se

ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com

inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes

imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as

mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico

materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta

As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros

documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos

como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes

contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em

especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se

descrentes e omissos

A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo

cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de

local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas

regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de

tagravevor na residecircncia de tagravemiliares

Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85

Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa

proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e

o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da

vila e disse

vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha

soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como

eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente

fiquei muito machucada depois quando terminei de

limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido

nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy

naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num

depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu

mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver

a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos

os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e

eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora

e a gente se separou (nosso grifo)

Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi

marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a

populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida

na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a

seus novos habitantes

A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes

em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes

crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento

registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais

este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional

86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005

foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o

consequumlente esvaziamento do campo

A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de

moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees

anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo

com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os

proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas

Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e

podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos

I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito

Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode

ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico

O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade

puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e

consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas

relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando

das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar

a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero

mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees

mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem

com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado

As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo

Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em

sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud

PERROT 1992 p 173)

87

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 10: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa

proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e

o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da

vila e disse

vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha

soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como

eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente

fiquei muito machucada depois quando terminei de

limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido

nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy

naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num

depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu

mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver

a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos

os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e

eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora

e a gente se separou (nosso grifo)

Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi

marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a

populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida

na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a

seus novos habitantes

A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes

em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes

crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento

registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais

este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional

86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005

foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o

consequumlente esvaziamento do campo

A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de

moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees

anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo

com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os

proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas

Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e

podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos

I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito

Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode

ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico

O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade

puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e

consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas

relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando

das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar

a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero

mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees

mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem

com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado

As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo

Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em

sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud

PERROT 1992 p 173)

87

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 11: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o

consequumlente esvaziamento do campo

A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de

moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees

anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo

com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os

proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas

Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e

podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos

I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito

Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode

ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico

O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade

puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e

consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas

relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando

das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar

a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero

mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees

mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem

com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado

As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda

As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo

Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em

sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud

PERROT 1992 p 173)

87

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 12: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem

duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial

quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos

dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar

essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas

que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra

a accedilatildeo repressiva

Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e

extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam

redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos

ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go

na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo

os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando

alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces

no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano

ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina

A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos

desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata

lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida

l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado

pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo

e aacutegua

Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy

assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras

mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos

com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito

trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e

atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da

88

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 13: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

presenccedila da mulher

Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra

forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um

aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que

enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa

articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que

conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro

e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades

Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute

a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute

muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda

para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas

a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos

envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo

Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo

e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as

mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos

e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na

frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)

O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees

de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves

modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do

poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia

simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de

gecircnero

o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade

das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade

e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as

A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 14: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente

construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos

da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia

no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados

nesse tipo particular de luta

Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais

conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a

coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo

paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu

tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva

da prole entre outras elaboraccedilotildees

A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino

Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte

dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade

harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas

taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes

Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho

uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave

mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)

Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera

puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque

mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute

ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de

cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade

das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do

domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que

90

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 15: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de

secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua

natureza bio-psiacuteguica

Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado

de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees

atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em

funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e

energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que

ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da

desigualdade de gecircnero

Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem

de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher

ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de

trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia

honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material

O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam

assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais

cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles

satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de

esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido

de uma ocupante nosso grito)

O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas

mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira

tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o

tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas

acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio

lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo

Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo

Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 16: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado

Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia

puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados

tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa

dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel

nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e

majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto

em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero

e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho

Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p

144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem

ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de

reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam

a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica

Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor

para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da

reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a

seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a

sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais

para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva

cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da

reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo

da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como

isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero

Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada

em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo

entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural

tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas

i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 17: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy

se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado

como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza

ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous

da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas

o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade

As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o

desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A

casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o

fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a

tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de

enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que

fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a

car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um

indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial

que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo

particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento

ahaixo eacute ilustrativo

No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no

meu terre7o aiacute eu disse

Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que

cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar

dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio

vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as

mulheres sentem mais necessidade de morar eu

93

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 18: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido

natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee

dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)

A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e

mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica

da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia

dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto

que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia

Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da

casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a

partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de

concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no

nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do

entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de

suas hahitaccedilotilde(s

Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia

- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como

torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees

dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e

inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de

contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser

desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e

com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas

em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com

o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p

174) quando atimla

94

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 19: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as

mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos

escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a

dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute

apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado

do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande

resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser

problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x

trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x

homem ativo (nosso gri t())

Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula

f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres

escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar

lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por

postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas

da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que

comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de

revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e

sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros

As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e

reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do

que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas

nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo

bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo

diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos

produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva

produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo

tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao

csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 20: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

domiciacutelio

Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas

f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode

encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p

J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo

de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres

de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute

coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo

e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde

VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing

and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3

n3 p 77 - 97 jun 2005

Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the

urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd

omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for

lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations

the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy

cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are

incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl

brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy

ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived

fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real

state market

Key words urban batttes gender right to housing urban occupations

96

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97

Page 21: o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE ... · o GÊNERO DA LUTA PELO DIREITO À CASA E À CIDADE Alasilene Rocha VIANA i . Resumo: O presente trabalho sistematiza parte

Referecircncias Bibliograacuteficas

CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999

v2

DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro

Achiameacute 1980

MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e

do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)

PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres

prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992

PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados

da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira

BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa

dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150

POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2

RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou

coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais

Brasiacutelia Unesco WOO 348 p

SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()

Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista

dos Trihunais 1988 p 143-178

O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997

~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de

OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de

Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~

215

VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as

ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999

1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97