o gÊnero da luta pelo direito À casa e À cidade ... · o gÊnero da luta pelo direito À casa e...
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o GEcircNERO DA LUTA PELO DIREITO Agrave CASA E Agrave CIDADE
Alasilene Rocha VIANA i
Resumo O presente trabalho sistematiza parte dos estudos e pesquisas junto
agraves ocupaccedilotildees urbanas em Teresina capital do Estado do Piauiacute que revelaram a
mulher como a forccedila vital nas iniciativas e no desenvolvimento da luta por moradia
e por um endereccedilo na cidade A ousadia para enfrentar situaccedilotildees confl ituosas o
corpo e a coragem como escudo contra a accedilatildeo repressiva a decisatildeo categoacuterica
de ocupar como sinal da recusa de condiccedilotildees indignas de sobrevivecircncia satildeo
fatos incontestes da presenccedila decisiva da mulher A ocupaccedilatildeo traz(ia) a
possibilidade de conquista de autonomia e o rompimento com a situaccedilatildeo de
vulnerabilidade e inquietude tatildeo proacuteprias do nomadismo a que satildeo submetidas
fagravemiacutelias desprovidas de habitaccedilatildeo e que natildeo podem dispor da mercadoria casa
confom1e as leis do mercado imobiliaacuterio
Palavras-chave Lutas urbanas gecircnero direito agrave moradia ocupaccedilotildees urbanas
O Lugar da Mulher N(ess)a Histoacuteria
A HistoacuterIacutea sempre consistiu em apanaacutegio dos dominantes conferindo
uma invisibilidade agraves mulheres ou uma apariccedilatildeo subordinada e aprisionada por
uma leitura androcecircntrica do mundo salvo raras exceccedilotildees Tal atirmaccedilatildeo pode
parecer lugar comum ou para muitos talvez soe como exagero face a tantas
transformaccedilotildees nos costumes e nas relaccedilotildees sociais que aparentam depor a
1 Professora de Serviccedilo Social da UFPI doutoranda de Ciecircncias Sociais da PUOSP
Avssn awsso Araccedilaluha 3 113 p 77middot 97 IUI1 2005 77
tradiccedilatildeo o instituiacutedo e valores cristalizados seculannente notadamente no que
tange agraves questotildees de gecircnero
No entanto embora sejam visiacuteveis muitas conquistas sob a fortaleza
do patriarcado o poder ainda eacute como afirma Saftioti (l997)macho rico e
branco numa referecircncia agraves distintas formas de aparecer da desigualdade
manifesta na condiccedilatildeo de classe de gecircnero e etnia relacionadas ao(s) sistema(s)
de dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo capitalismo-patriarcado-racismo entendidos numa
unidade simbioacutetica tornados inseparaacuteveis ao longo do processo histoacuterico natildeo
consistindo portanto em trecircs diferentes ordenamentos das relaccedilotildees sociais
correndo paralelamente (SAFFIOTI 1997 p 61) ao contraacuterio esses trecircs
antagonismos diz a autora entrelaccedilam-se de modo a fonnar um noacute
Conveacutem relembrar recorrendo a outra importante contribuiccedilatildeo de
Saffioti ( 1992 p 184) que a condiccedilatildeo de suba Item idade feminina natildeo significa
contudo ausecircncia absoluta de poder Com efeito nos dois poacutelos da relaccedilatildeo
existe poder ainda que em doses tremendamente desiguais As alteraccedilotildees na
loacutegica e nas f()m1aS da dominaccedilatildeo ainda natildeo a derrotaram Portanto natildeo podemos
desconsiderar o imenso caminho a percorrer tampouco as distacircncias entre o
lugar dos homens e o lugar das mulheres numa sociedade ainda tatildeo marcada
por assimeacutetricas e desiguais relaccedilotildees sociais de gecircnero
Entretanto conveacutem anotar a atenccedilatildeo que vecircm merecendo inuacutemeros
estudos - notadamente na academia - que consideram esses avanccedilos da mulher
sobretudo no uacuteltimo lustro do seacuteculo passado como sinais evidentes do que
consideram um decliacutenio ou o fim da sociedade patriarcal wn exemplo eacute o trabalho
de Manuel CasteIls (1999) que revela a mulher como sujeito detivo de um
processo de emancipaccedilatildeo que visa o fim da tagravemiacutelia e da sociedade patriarcal
Certamente natildeo haacute duacutevidas quanto a ser a emancipaccedilatildeo feminina-shy
ainda inconclusa - uma das mais significativas modificaccedilotildees do seacuteculo XX
tampouco que essa transfonnaccedilatildeo seja resultado de um esforccedilo eminentemente
78 Avesso avesso Araccedilatuba v 3 113 P 77middot 97 JUll 2005
feminino Todavia ficam algumas ponderaccedilotildees esses reconheciacuteveis avanccedilos
tiveram forccedila suficiente para provocar decliacutenio ou mesmo para pocircr fim agrave
sociedade patriarcal De que ponto de observaccedilatildeo tagravelam os estudiosos que
nessa tese acreditam Natildeo seria de um ponto de vista espacialmente delimitado
social e etnicamente definido De que mulheres eles falam Seriam por acaso
das camponesas empobrecidas do Nordeste brasileiro Das muccedilulmanas Das
negras esquecidas do continente africano muitas ainda sujeitas a praticas como
a lapidaccedilatildeo Ou seriam das mulheres de pohres periferias urbanas de paiacuteses
como o Brasil
Assim emhora muitos estudos consistam de importantes
contribuiccedilotildees agrave retlex-agraveo sobre as novas foacutem1as de aparecer da questatildeo de gecircnero
natildeo podem obscurecer no entanto os traccedilos determinantes fundamentais do
sistema que ainda natildeo pereceu Embora nagraveo consistam de novos sujeitosjuacute
que lutas levadas a efeito por mulheres datam de tempos longiacutenquos as lutas
de caruacuteter eminentemente feministas das uacuteltimas deacutecadas tiveram como mil itantes
prioritariamente setores femininos intelectualizados e de estratos meacutedios natildeo
alcanccedilando de fomla massiva a grande maioria feminina sob ojugo dos padrotildees
dom inantes de gecircnero E ademais eacute importante ressaltar que a consciecircncia
feminista natildeo garante uma existecircncia isenta ou por fora da ideologia que daacute
sustentaccedilatildeo agraves fomlas de aparecer da dominaccedilatildeo de gecircnero ao contraacuterio coloca
seus sujeitos em constante vigiacutelia e luta
Tendo como suhstrato os marcos teoacutericos delineados pretendo
com as linhas a seguir tornar visiacutevel um pouco da histoacuteria dos sem (lfo de
Teresina capital do Estado do Piauiacute mas sob um olhar especiacute fico o de gecircnero
recusando-me a entender a inserccedilatildeo feminina nas ocupaccedilotildees como um simples
epi fenocircmeno Busco portanto como retere-se Matos (1996 p 135) restaurar
tramas de vidas encobertas procurarno fimdo da histoacuteria figuras ocultas recobrar
o pulsar do urbano recuperar sua ambiguumlidade e pluralidade de possiacuteveis
Alt~sso a CSStl Anwaluha 3 n l r 77 _ 97 JUI1 201l~ 79
vivecircncias e interpretaccedilotildees desfiar a teia de relaccedilotildees cotidianas e suas diferentes
dimensotildees de experiecircncia embora natildeo no sentido de apontar o excepcional
mas de descobrir o que ateacute entatildeo era inatingiacutevel por estar submerso
A pesquisa desenvolvida sobre as ocupaccedilotildees urbanas em Teresina
( 1985-1990) objetivou-se a reconstituiccedilatildeo do intenso processo de lutas por
moradia via ocupaccedilotildees de telTenos urbanos buscando identificar entre outros
aspectos como ocorreram as ocupaccedilotildees que interlocutores estabeleceram no
processo de lutas como tomaram visiacuteveis suas reivindicaccedilotildees como resistiram
agraves inyestidas repressivas como dialogavam e negociavam com o poder puacuteblico
e nesse particular como contribuiacuteram para a redeiacuteiniccedilatildeo das relaccedilotildees entre o
poder puacuteblico e as formas associativas do campo popular O periacuteodo analisado
eacute especialmente marcado pela accedilatildeo dos sem leIo na cidade que com suas lutas
tiacutel111aram-Se como combativos agentes produtores do espaccedilo urbano deixando
a marca da luta e da resistecircncia pela moradia como legado agraves iniciativas
posteriores bem como contribuiacuteram decisivamente para a construccedilatildeo de novas
tlm11(lS de gestatildeo puacuteblica no acircmbito local
Se de modo geral natildeo podemos desconsiderar o imenso caminho
a ser trilhado rumo a uma sociedade que suprima as desiguais relaccedilotildees -- que
produzem distintas formas de aparecer da dominaccedilatildeo - natildeo podemos
desconsiderar em particular as distacircncias entre homens e mulheres
proprietaacuterios( as) de homens e mulheres impossibil itados do acesso agrave mercadoria
casa pelas leis excludentes do mercado imobiliaacuterio ou na simplicidade da
palana os sem leIo - distantes dos benefkios do desenvolvimento embora
sejam construtores efetivos da histoacuteria de cada dia resistindo aos processos
segregatoacuterios modelando o espaccedilo urbano constituindo-se portanto como
eiacuteetivos produtores da cidade
Sabe-se que em sendo registrada sob a oacutetica dos dominantes a
Histoacuteria como consequumlecircncia dissimula oculta desconsidera banaliza ou dilui a
80 Acso an Araptuba 3 11 3 r 77middot lJ7 IUI1 2005
de suas paacuteginas mais contundentes Castells (1999 p 170) afinna que muitas
lutas urbanas antigas ou contemporacircneas foram na realidade movimentos
feministas envolvendo as necessidades e a administraccedilatildeo da vida diaacuteria E adiante
(CASTELLS 1999 p 223) ainda insiste
[ ] o progresso mais importante a partir dos anos 80 foi
o extraordinaacuterio aumento no nuacutemero de organizaccedilotildees de
base popular em sua grande maioria criadas e dirigidas
por mulheres nas aacutereas metropolitanas dos paiacuteses em
desenvolvimento Essas organizaccedilotildees foram estimuladas
por explosotildees demograacuteficas urbanas crises econoacutemicas
e pol iacuteticas de austeridade ocorridas simu Itaneamente que
deixaram as pessoas e particularmente as mulheres
frente a frente com o simples di lema entre lutar ollmorrer
A essa constataccedilatildeo CasteIls (1999 p 223) associa uma outra
reflexatildeo a de que esses esforccedilos coletivos das uacuteltimas deacutecadas natildeo resultaram
somente em organizaccedilotildees populares que causaram impacto nas poliacuteticas e
instituiccedilotildees mas tambeacutem no surgimento de uma nova identidade coletiva na
t()nna de mulheres capacitadas
Essas mulheres foram transgressoras posto que negaram suas
limitaccedilotildees ao acircmbito privado recusaram o apanaacutegio masculino no acesso ao
conhecimento e ao exerciacutecio do poder poliacutetico rejeitaram o confinamento
domeacutestico ou a mera condiccedilatildeo de coadjuvante das lutas Mulheres que t()ram agraves
ruas entre outras coisas reivindicar casa para morar e o direito de pertencimento
agrave cidade que cada vez mais consolidava-se como o lugar do futuro o locus da
modernidade face inclusive a um esvaziamento contiacutenuo do campo e de suas
possibi lidades de oferecer vida digna a seus habitantes
A participaccedilatildeo etetiva das mulheres nas luta urbanas natildeo eacute fenocircmeno
Atsso avesso Araccedilatuha 3 n r 77middot 97 Iun 2()O~ 81
recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)
analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo
XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres
estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo
motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o
patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos
choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham
o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam
como siacutembolos (PERROT p 199)
Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy
4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente
observou que
A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute
uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo
social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos
urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80
tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades
coletivas de segmentos das classes populares As
mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova
identidade coletiva partindo de suas bases territoriais
diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva
Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade
coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees
e expectativas do gecircnero feminino um conjunto
complexo de significados encontrados nos movimentos
urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo
expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos
e os homens assumem a lideranccedila
Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por
82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())
mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples
atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes
jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente
conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980
p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos
mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem
tambeacutem adotaacute-Ios
Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de
um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e
concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento
das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p
154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue
e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos
imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com
interesses mediatos seja deiinitivamente descartada
A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por
moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades
dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e
Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes
revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados
Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela
a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda
assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA
ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou
mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam
(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves
mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave
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sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de
higiene da escola
Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e
participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas
no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de
panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas
de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as
mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do
acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas
a deito pelo Estado
Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas
contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que
visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em
lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e
equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de
habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra
para plantar e para viver como nas lutas no meio rural
o Corpo e a Coragem como Escudo
Os motins por alimentos grande forma de motim popular
ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados
e animados por mulheres [ ] Nesses motins as
mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com
o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas
usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam
multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos
de mercado ou pedras com que enchem os aventais
84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005
caso extremo Normalmente natildeo destroem nem
saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando
roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o
pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra
os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam
o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT
1992 p194 nosso grifo)
De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar
terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos
institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora
regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se
ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com
inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes
imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as
mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico
materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta
As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros
documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos
como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes
contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em
especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se
descrentes e omissos
A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo
cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de
local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas
regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de
tagravevor na residecircncia de tagravemiliares
Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85
Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa
proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e
o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da
vila e disse
vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha
soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como
eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente
fiquei muito machucada depois quando terminei de
limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido
nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy
naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num
depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu
mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver
a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos
os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e
eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora
e a gente se separou (nosso grifo)
Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi
marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a
populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida
na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a
seus novos habitantes
A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes
em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes
crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento
registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais
este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional
86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005
foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o
consequumlente esvaziamento do campo
A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de
moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees
anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo
com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os
proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas
Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e
podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos
I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito
Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode
ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico
O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade
puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e
consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas
relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando
das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar
a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero
mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees
mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem
com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado
As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda
As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo
Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em
sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud
PERROT 1992 p 173)
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Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
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presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
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v2
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215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
tradiccedilatildeo o instituiacutedo e valores cristalizados seculannente notadamente no que
tange agraves questotildees de gecircnero
No entanto embora sejam visiacuteveis muitas conquistas sob a fortaleza
do patriarcado o poder ainda eacute como afirma Saftioti (l997)macho rico e
branco numa referecircncia agraves distintas formas de aparecer da desigualdade
manifesta na condiccedilatildeo de classe de gecircnero e etnia relacionadas ao(s) sistema(s)
de dominaccedilatildeoexploraccedilatildeo capitalismo-patriarcado-racismo entendidos numa
unidade simbioacutetica tornados inseparaacuteveis ao longo do processo histoacuterico natildeo
consistindo portanto em trecircs diferentes ordenamentos das relaccedilotildees sociais
correndo paralelamente (SAFFIOTI 1997 p 61) ao contraacuterio esses trecircs
antagonismos diz a autora entrelaccedilam-se de modo a fonnar um noacute
Conveacutem relembrar recorrendo a outra importante contribuiccedilatildeo de
Saffioti ( 1992 p 184) que a condiccedilatildeo de suba Item idade feminina natildeo significa
contudo ausecircncia absoluta de poder Com efeito nos dois poacutelos da relaccedilatildeo
existe poder ainda que em doses tremendamente desiguais As alteraccedilotildees na
loacutegica e nas f()m1aS da dominaccedilatildeo ainda natildeo a derrotaram Portanto natildeo podemos
desconsiderar o imenso caminho a percorrer tampouco as distacircncias entre o
lugar dos homens e o lugar das mulheres numa sociedade ainda tatildeo marcada
por assimeacutetricas e desiguais relaccedilotildees sociais de gecircnero
Entretanto conveacutem anotar a atenccedilatildeo que vecircm merecendo inuacutemeros
estudos - notadamente na academia - que consideram esses avanccedilos da mulher
sobretudo no uacuteltimo lustro do seacuteculo passado como sinais evidentes do que
consideram um decliacutenio ou o fim da sociedade patriarcal wn exemplo eacute o trabalho
de Manuel CasteIls (1999) que revela a mulher como sujeito detivo de um
processo de emancipaccedilatildeo que visa o fim da tagravemiacutelia e da sociedade patriarcal
Certamente natildeo haacute duacutevidas quanto a ser a emancipaccedilatildeo feminina-shy
ainda inconclusa - uma das mais significativas modificaccedilotildees do seacuteculo XX
tampouco que essa transfonnaccedilatildeo seja resultado de um esforccedilo eminentemente
78 Avesso avesso Araccedilatuba v 3 113 P 77middot 97 JUll 2005
feminino Todavia ficam algumas ponderaccedilotildees esses reconheciacuteveis avanccedilos
tiveram forccedila suficiente para provocar decliacutenio ou mesmo para pocircr fim agrave
sociedade patriarcal De que ponto de observaccedilatildeo tagravelam os estudiosos que
nessa tese acreditam Natildeo seria de um ponto de vista espacialmente delimitado
social e etnicamente definido De que mulheres eles falam Seriam por acaso
das camponesas empobrecidas do Nordeste brasileiro Das muccedilulmanas Das
negras esquecidas do continente africano muitas ainda sujeitas a praticas como
a lapidaccedilatildeo Ou seriam das mulheres de pohres periferias urbanas de paiacuteses
como o Brasil
Assim emhora muitos estudos consistam de importantes
contribuiccedilotildees agrave retlex-agraveo sobre as novas foacutem1as de aparecer da questatildeo de gecircnero
natildeo podem obscurecer no entanto os traccedilos determinantes fundamentais do
sistema que ainda natildeo pereceu Embora nagraveo consistam de novos sujeitosjuacute
que lutas levadas a efeito por mulheres datam de tempos longiacutenquos as lutas
de caruacuteter eminentemente feministas das uacuteltimas deacutecadas tiveram como mil itantes
prioritariamente setores femininos intelectualizados e de estratos meacutedios natildeo
alcanccedilando de fomla massiva a grande maioria feminina sob ojugo dos padrotildees
dom inantes de gecircnero E ademais eacute importante ressaltar que a consciecircncia
feminista natildeo garante uma existecircncia isenta ou por fora da ideologia que daacute
sustentaccedilatildeo agraves fomlas de aparecer da dominaccedilatildeo de gecircnero ao contraacuterio coloca
seus sujeitos em constante vigiacutelia e luta
Tendo como suhstrato os marcos teoacutericos delineados pretendo
com as linhas a seguir tornar visiacutevel um pouco da histoacuteria dos sem (lfo de
Teresina capital do Estado do Piauiacute mas sob um olhar especiacute fico o de gecircnero
recusando-me a entender a inserccedilatildeo feminina nas ocupaccedilotildees como um simples
epi fenocircmeno Busco portanto como retere-se Matos (1996 p 135) restaurar
tramas de vidas encobertas procurarno fimdo da histoacuteria figuras ocultas recobrar
o pulsar do urbano recuperar sua ambiguumlidade e pluralidade de possiacuteveis
Alt~sso a CSStl Anwaluha 3 n l r 77 _ 97 JUI1 201l~ 79
vivecircncias e interpretaccedilotildees desfiar a teia de relaccedilotildees cotidianas e suas diferentes
dimensotildees de experiecircncia embora natildeo no sentido de apontar o excepcional
mas de descobrir o que ateacute entatildeo era inatingiacutevel por estar submerso
A pesquisa desenvolvida sobre as ocupaccedilotildees urbanas em Teresina
( 1985-1990) objetivou-se a reconstituiccedilatildeo do intenso processo de lutas por
moradia via ocupaccedilotildees de telTenos urbanos buscando identificar entre outros
aspectos como ocorreram as ocupaccedilotildees que interlocutores estabeleceram no
processo de lutas como tomaram visiacuteveis suas reivindicaccedilotildees como resistiram
agraves inyestidas repressivas como dialogavam e negociavam com o poder puacuteblico
e nesse particular como contribuiacuteram para a redeiacuteiniccedilatildeo das relaccedilotildees entre o
poder puacuteblico e as formas associativas do campo popular O periacuteodo analisado
eacute especialmente marcado pela accedilatildeo dos sem leIo na cidade que com suas lutas
tiacutel111aram-Se como combativos agentes produtores do espaccedilo urbano deixando
a marca da luta e da resistecircncia pela moradia como legado agraves iniciativas
posteriores bem como contribuiacuteram decisivamente para a construccedilatildeo de novas
tlm11(lS de gestatildeo puacuteblica no acircmbito local
Se de modo geral natildeo podemos desconsiderar o imenso caminho
a ser trilhado rumo a uma sociedade que suprima as desiguais relaccedilotildees -- que
produzem distintas formas de aparecer da dominaccedilatildeo - natildeo podemos
desconsiderar em particular as distacircncias entre homens e mulheres
proprietaacuterios( as) de homens e mulheres impossibil itados do acesso agrave mercadoria
casa pelas leis excludentes do mercado imobiliaacuterio ou na simplicidade da
palana os sem leIo - distantes dos benefkios do desenvolvimento embora
sejam construtores efetivos da histoacuteria de cada dia resistindo aos processos
segregatoacuterios modelando o espaccedilo urbano constituindo-se portanto como
eiacuteetivos produtores da cidade
Sabe-se que em sendo registrada sob a oacutetica dos dominantes a
Histoacuteria como consequumlecircncia dissimula oculta desconsidera banaliza ou dilui a
80 Acso an Araptuba 3 11 3 r 77middot lJ7 IUI1 2005
de suas paacuteginas mais contundentes Castells (1999 p 170) afinna que muitas
lutas urbanas antigas ou contemporacircneas foram na realidade movimentos
feministas envolvendo as necessidades e a administraccedilatildeo da vida diaacuteria E adiante
(CASTELLS 1999 p 223) ainda insiste
[ ] o progresso mais importante a partir dos anos 80 foi
o extraordinaacuterio aumento no nuacutemero de organizaccedilotildees de
base popular em sua grande maioria criadas e dirigidas
por mulheres nas aacutereas metropolitanas dos paiacuteses em
desenvolvimento Essas organizaccedilotildees foram estimuladas
por explosotildees demograacuteficas urbanas crises econoacutemicas
e pol iacuteticas de austeridade ocorridas simu Itaneamente que
deixaram as pessoas e particularmente as mulheres
frente a frente com o simples di lema entre lutar ollmorrer
A essa constataccedilatildeo CasteIls (1999 p 223) associa uma outra
reflexatildeo a de que esses esforccedilos coletivos das uacuteltimas deacutecadas natildeo resultaram
somente em organizaccedilotildees populares que causaram impacto nas poliacuteticas e
instituiccedilotildees mas tambeacutem no surgimento de uma nova identidade coletiva na
t()nna de mulheres capacitadas
Essas mulheres foram transgressoras posto que negaram suas
limitaccedilotildees ao acircmbito privado recusaram o apanaacutegio masculino no acesso ao
conhecimento e ao exerciacutecio do poder poliacutetico rejeitaram o confinamento
domeacutestico ou a mera condiccedilatildeo de coadjuvante das lutas Mulheres que t()ram agraves
ruas entre outras coisas reivindicar casa para morar e o direito de pertencimento
agrave cidade que cada vez mais consolidava-se como o lugar do futuro o locus da
modernidade face inclusive a um esvaziamento contiacutenuo do campo e de suas
possibi lidades de oferecer vida digna a seus habitantes
A participaccedilatildeo etetiva das mulheres nas luta urbanas natildeo eacute fenocircmeno
Atsso avesso Araccedilatuha 3 n r 77middot 97 Iun 2()O~ 81
recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)
analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo
XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres
estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo
motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o
patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos
choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham
o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam
como siacutembolos (PERROT p 199)
Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy
4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente
observou que
A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute
uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo
social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos
urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80
tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades
coletivas de segmentos das classes populares As
mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova
identidade coletiva partindo de suas bases territoriais
diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva
Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade
coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees
e expectativas do gecircnero feminino um conjunto
complexo de significados encontrados nos movimentos
urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo
expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos
e os homens assumem a lideranccedila
Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por
82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())
mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples
atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes
jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente
conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980
p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos
mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem
tambeacutem adotaacute-Ios
Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de
um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e
concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento
das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p
154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue
e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos
imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com
interesses mediatos seja deiinitivamente descartada
A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por
moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades
dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e
Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes
revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados
Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela
a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda
assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA
ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou
mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam
(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves
mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave
83
sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de
higiene da escola
Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e
participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas
no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de
panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas
de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as
mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do
acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas
a deito pelo Estado
Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas
contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que
visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em
lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e
equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de
habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra
para plantar e para viver como nas lutas no meio rural
o Corpo e a Coragem como Escudo
Os motins por alimentos grande forma de motim popular
ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados
e animados por mulheres [ ] Nesses motins as
mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com
o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas
usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam
multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos
de mercado ou pedras com que enchem os aventais
84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005
caso extremo Normalmente natildeo destroem nem
saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando
roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o
pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra
os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam
o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT
1992 p194 nosso grifo)
De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar
terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos
institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora
regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se
ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com
inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes
imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as
mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico
materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta
As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros
documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos
como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes
contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em
especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se
descrentes e omissos
A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo
cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de
local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas
regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de
tagravevor na residecircncia de tagravemiliares
Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85
Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa
proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e
o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da
vila e disse
vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha
soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como
eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente
fiquei muito machucada depois quando terminei de
limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido
nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy
naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num
depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu
mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver
a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos
os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e
eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora
e a gente se separou (nosso grifo)
Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi
marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a
populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida
na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a
seus novos habitantes
A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes
em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes
crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento
registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais
este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional
86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005
foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o
consequumlente esvaziamento do campo
A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de
moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees
anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo
com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os
proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas
Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e
podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos
I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito
Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode
ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico
O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade
puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e
consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas
relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando
das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar
a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero
mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees
mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem
com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado
As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda
As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo
Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em
sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud
PERROT 1992 p 173)
87
Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
88
presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
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v2
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215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
feminino Todavia ficam algumas ponderaccedilotildees esses reconheciacuteveis avanccedilos
tiveram forccedila suficiente para provocar decliacutenio ou mesmo para pocircr fim agrave
sociedade patriarcal De que ponto de observaccedilatildeo tagravelam os estudiosos que
nessa tese acreditam Natildeo seria de um ponto de vista espacialmente delimitado
social e etnicamente definido De que mulheres eles falam Seriam por acaso
das camponesas empobrecidas do Nordeste brasileiro Das muccedilulmanas Das
negras esquecidas do continente africano muitas ainda sujeitas a praticas como
a lapidaccedilatildeo Ou seriam das mulheres de pohres periferias urbanas de paiacuteses
como o Brasil
Assim emhora muitos estudos consistam de importantes
contribuiccedilotildees agrave retlex-agraveo sobre as novas foacutem1as de aparecer da questatildeo de gecircnero
natildeo podem obscurecer no entanto os traccedilos determinantes fundamentais do
sistema que ainda natildeo pereceu Embora nagraveo consistam de novos sujeitosjuacute
que lutas levadas a efeito por mulheres datam de tempos longiacutenquos as lutas
de caruacuteter eminentemente feministas das uacuteltimas deacutecadas tiveram como mil itantes
prioritariamente setores femininos intelectualizados e de estratos meacutedios natildeo
alcanccedilando de fomla massiva a grande maioria feminina sob ojugo dos padrotildees
dom inantes de gecircnero E ademais eacute importante ressaltar que a consciecircncia
feminista natildeo garante uma existecircncia isenta ou por fora da ideologia que daacute
sustentaccedilatildeo agraves fomlas de aparecer da dominaccedilatildeo de gecircnero ao contraacuterio coloca
seus sujeitos em constante vigiacutelia e luta
Tendo como suhstrato os marcos teoacutericos delineados pretendo
com as linhas a seguir tornar visiacutevel um pouco da histoacuteria dos sem (lfo de
Teresina capital do Estado do Piauiacute mas sob um olhar especiacute fico o de gecircnero
recusando-me a entender a inserccedilatildeo feminina nas ocupaccedilotildees como um simples
epi fenocircmeno Busco portanto como retere-se Matos (1996 p 135) restaurar
tramas de vidas encobertas procurarno fimdo da histoacuteria figuras ocultas recobrar
o pulsar do urbano recuperar sua ambiguumlidade e pluralidade de possiacuteveis
Alt~sso a CSStl Anwaluha 3 n l r 77 _ 97 JUI1 201l~ 79
vivecircncias e interpretaccedilotildees desfiar a teia de relaccedilotildees cotidianas e suas diferentes
dimensotildees de experiecircncia embora natildeo no sentido de apontar o excepcional
mas de descobrir o que ateacute entatildeo era inatingiacutevel por estar submerso
A pesquisa desenvolvida sobre as ocupaccedilotildees urbanas em Teresina
( 1985-1990) objetivou-se a reconstituiccedilatildeo do intenso processo de lutas por
moradia via ocupaccedilotildees de telTenos urbanos buscando identificar entre outros
aspectos como ocorreram as ocupaccedilotildees que interlocutores estabeleceram no
processo de lutas como tomaram visiacuteveis suas reivindicaccedilotildees como resistiram
agraves inyestidas repressivas como dialogavam e negociavam com o poder puacuteblico
e nesse particular como contribuiacuteram para a redeiacuteiniccedilatildeo das relaccedilotildees entre o
poder puacuteblico e as formas associativas do campo popular O periacuteodo analisado
eacute especialmente marcado pela accedilatildeo dos sem leIo na cidade que com suas lutas
tiacutel111aram-Se como combativos agentes produtores do espaccedilo urbano deixando
a marca da luta e da resistecircncia pela moradia como legado agraves iniciativas
posteriores bem como contribuiacuteram decisivamente para a construccedilatildeo de novas
tlm11(lS de gestatildeo puacuteblica no acircmbito local
Se de modo geral natildeo podemos desconsiderar o imenso caminho
a ser trilhado rumo a uma sociedade que suprima as desiguais relaccedilotildees -- que
produzem distintas formas de aparecer da dominaccedilatildeo - natildeo podemos
desconsiderar em particular as distacircncias entre homens e mulheres
proprietaacuterios( as) de homens e mulheres impossibil itados do acesso agrave mercadoria
casa pelas leis excludentes do mercado imobiliaacuterio ou na simplicidade da
palana os sem leIo - distantes dos benefkios do desenvolvimento embora
sejam construtores efetivos da histoacuteria de cada dia resistindo aos processos
segregatoacuterios modelando o espaccedilo urbano constituindo-se portanto como
eiacuteetivos produtores da cidade
Sabe-se que em sendo registrada sob a oacutetica dos dominantes a
Histoacuteria como consequumlecircncia dissimula oculta desconsidera banaliza ou dilui a
80 Acso an Araptuba 3 11 3 r 77middot lJ7 IUI1 2005
de suas paacuteginas mais contundentes Castells (1999 p 170) afinna que muitas
lutas urbanas antigas ou contemporacircneas foram na realidade movimentos
feministas envolvendo as necessidades e a administraccedilatildeo da vida diaacuteria E adiante
(CASTELLS 1999 p 223) ainda insiste
[ ] o progresso mais importante a partir dos anos 80 foi
o extraordinaacuterio aumento no nuacutemero de organizaccedilotildees de
base popular em sua grande maioria criadas e dirigidas
por mulheres nas aacutereas metropolitanas dos paiacuteses em
desenvolvimento Essas organizaccedilotildees foram estimuladas
por explosotildees demograacuteficas urbanas crises econoacutemicas
e pol iacuteticas de austeridade ocorridas simu Itaneamente que
deixaram as pessoas e particularmente as mulheres
frente a frente com o simples di lema entre lutar ollmorrer
A essa constataccedilatildeo CasteIls (1999 p 223) associa uma outra
reflexatildeo a de que esses esforccedilos coletivos das uacuteltimas deacutecadas natildeo resultaram
somente em organizaccedilotildees populares que causaram impacto nas poliacuteticas e
instituiccedilotildees mas tambeacutem no surgimento de uma nova identidade coletiva na
t()nna de mulheres capacitadas
Essas mulheres foram transgressoras posto que negaram suas
limitaccedilotildees ao acircmbito privado recusaram o apanaacutegio masculino no acesso ao
conhecimento e ao exerciacutecio do poder poliacutetico rejeitaram o confinamento
domeacutestico ou a mera condiccedilatildeo de coadjuvante das lutas Mulheres que t()ram agraves
ruas entre outras coisas reivindicar casa para morar e o direito de pertencimento
agrave cidade que cada vez mais consolidava-se como o lugar do futuro o locus da
modernidade face inclusive a um esvaziamento contiacutenuo do campo e de suas
possibi lidades de oferecer vida digna a seus habitantes
A participaccedilatildeo etetiva das mulheres nas luta urbanas natildeo eacute fenocircmeno
Atsso avesso Araccedilatuha 3 n r 77middot 97 Iun 2()O~ 81
recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)
analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo
XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres
estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo
motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o
patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos
choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham
o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam
como siacutembolos (PERROT p 199)
Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy
4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente
observou que
A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute
uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo
social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos
urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80
tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades
coletivas de segmentos das classes populares As
mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova
identidade coletiva partindo de suas bases territoriais
diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva
Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade
coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees
e expectativas do gecircnero feminino um conjunto
complexo de significados encontrados nos movimentos
urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo
expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos
e os homens assumem a lideranccedila
Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por
82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())
mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples
atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes
jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente
conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980
p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos
mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem
tambeacutem adotaacute-Ios
Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de
um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e
concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento
das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p
154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue
e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos
imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com
interesses mediatos seja deiinitivamente descartada
A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por
moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades
dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e
Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes
revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados
Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela
a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda
assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA
ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou
mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam
(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves
mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave
83
sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de
higiene da escola
Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e
participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas
no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de
panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas
de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as
mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do
acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas
a deito pelo Estado
Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas
contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que
visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em
lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e
equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de
habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra
para plantar e para viver como nas lutas no meio rural
o Corpo e a Coragem como Escudo
Os motins por alimentos grande forma de motim popular
ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados
e animados por mulheres [ ] Nesses motins as
mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com
o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas
usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam
multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos
de mercado ou pedras com que enchem os aventais
84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005
caso extremo Normalmente natildeo destroem nem
saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando
roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o
pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra
os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam
o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT
1992 p194 nosso grifo)
De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar
terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos
institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora
regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se
ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com
inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes
imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as
mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico
materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta
As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros
documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos
como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes
contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em
especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se
descrentes e omissos
A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo
cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de
local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas
regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de
tagravevor na residecircncia de tagravemiliares
Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85
Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa
proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e
o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da
vila e disse
vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha
soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como
eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente
fiquei muito machucada depois quando terminei de
limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido
nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy
naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num
depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu
mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver
a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos
os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e
eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora
e a gente se separou (nosso grifo)
Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi
marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a
populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida
na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a
seus novos habitantes
A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes
em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes
crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento
registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais
este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional
86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005
foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o
consequumlente esvaziamento do campo
A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de
moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees
anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo
com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os
proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas
Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e
podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos
I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito
Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode
ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico
O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade
puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e
consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas
relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando
das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar
a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero
mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees
mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem
com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado
As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda
As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo
Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em
sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud
PERROT 1992 p 173)
87
Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
88
presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
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v2
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215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
vivecircncias e interpretaccedilotildees desfiar a teia de relaccedilotildees cotidianas e suas diferentes
dimensotildees de experiecircncia embora natildeo no sentido de apontar o excepcional
mas de descobrir o que ateacute entatildeo era inatingiacutevel por estar submerso
A pesquisa desenvolvida sobre as ocupaccedilotildees urbanas em Teresina
( 1985-1990) objetivou-se a reconstituiccedilatildeo do intenso processo de lutas por
moradia via ocupaccedilotildees de telTenos urbanos buscando identificar entre outros
aspectos como ocorreram as ocupaccedilotildees que interlocutores estabeleceram no
processo de lutas como tomaram visiacuteveis suas reivindicaccedilotildees como resistiram
agraves inyestidas repressivas como dialogavam e negociavam com o poder puacuteblico
e nesse particular como contribuiacuteram para a redeiacuteiniccedilatildeo das relaccedilotildees entre o
poder puacuteblico e as formas associativas do campo popular O periacuteodo analisado
eacute especialmente marcado pela accedilatildeo dos sem leIo na cidade que com suas lutas
tiacutel111aram-Se como combativos agentes produtores do espaccedilo urbano deixando
a marca da luta e da resistecircncia pela moradia como legado agraves iniciativas
posteriores bem como contribuiacuteram decisivamente para a construccedilatildeo de novas
tlm11(lS de gestatildeo puacuteblica no acircmbito local
Se de modo geral natildeo podemos desconsiderar o imenso caminho
a ser trilhado rumo a uma sociedade que suprima as desiguais relaccedilotildees -- que
produzem distintas formas de aparecer da dominaccedilatildeo - natildeo podemos
desconsiderar em particular as distacircncias entre homens e mulheres
proprietaacuterios( as) de homens e mulheres impossibil itados do acesso agrave mercadoria
casa pelas leis excludentes do mercado imobiliaacuterio ou na simplicidade da
palana os sem leIo - distantes dos benefkios do desenvolvimento embora
sejam construtores efetivos da histoacuteria de cada dia resistindo aos processos
segregatoacuterios modelando o espaccedilo urbano constituindo-se portanto como
eiacuteetivos produtores da cidade
Sabe-se que em sendo registrada sob a oacutetica dos dominantes a
Histoacuteria como consequumlecircncia dissimula oculta desconsidera banaliza ou dilui a
80 Acso an Araptuba 3 11 3 r 77middot lJ7 IUI1 2005
de suas paacuteginas mais contundentes Castells (1999 p 170) afinna que muitas
lutas urbanas antigas ou contemporacircneas foram na realidade movimentos
feministas envolvendo as necessidades e a administraccedilatildeo da vida diaacuteria E adiante
(CASTELLS 1999 p 223) ainda insiste
[ ] o progresso mais importante a partir dos anos 80 foi
o extraordinaacuterio aumento no nuacutemero de organizaccedilotildees de
base popular em sua grande maioria criadas e dirigidas
por mulheres nas aacutereas metropolitanas dos paiacuteses em
desenvolvimento Essas organizaccedilotildees foram estimuladas
por explosotildees demograacuteficas urbanas crises econoacutemicas
e pol iacuteticas de austeridade ocorridas simu Itaneamente que
deixaram as pessoas e particularmente as mulheres
frente a frente com o simples di lema entre lutar ollmorrer
A essa constataccedilatildeo CasteIls (1999 p 223) associa uma outra
reflexatildeo a de que esses esforccedilos coletivos das uacuteltimas deacutecadas natildeo resultaram
somente em organizaccedilotildees populares que causaram impacto nas poliacuteticas e
instituiccedilotildees mas tambeacutem no surgimento de uma nova identidade coletiva na
t()nna de mulheres capacitadas
Essas mulheres foram transgressoras posto que negaram suas
limitaccedilotildees ao acircmbito privado recusaram o apanaacutegio masculino no acesso ao
conhecimento e ao exerciacutecio do poder poliacutetico rejeitaram o confinamento
domeacutestico ou a mera condiccedilatildeo de coadjuvante das lutas Mulheres que t()ram agraves
ruas entre outras coisas reivindicar casa para morar e o direito de pertencimento
agrave cidade que cada vez mais consolidava-se como o lugar do futuro o locus da
modernidade face inclusive a um esvaziamento contiacutenuo do campo e de suas
possibi lidades de oferecer vida digna a seus habitantes
A participaccedilatildeo etetiva das mulheres nas luta urbanas natildeo eacute fenocircmeno
Atsso avesso Araccedilatuha 3 n r 77middot 97 Iun 2()O~ 81
recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)
analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo
XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres
estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo
motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o
patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos
choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham
o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam
como siacutembolos (PERROT p 199)
Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy
4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente
observou que
A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute
uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo
social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos
urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80
tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades
coletivas de segmentos das classes populares As
mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova
identidade coletiva partindo de suas bases territoriais
diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva
Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade
coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees
e expectativas do gecircnero feminino um conjunto
complexo de significados encontrados nos movimentos
urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo
expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos
e os homens assumem a lideranccedila
Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por
82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())
mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples
atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes
jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente
conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980
p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos
mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem
tambeacutem adotaacute-Ios
Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de
um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e
concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento
das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p
154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue
e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos
imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com
interesses mediatos seja deiinitivamente descartada
A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por
moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades
dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e
Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes
revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados
Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela
a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda
assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA
ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou
mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam
(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves
mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave
83
sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de
higiene da escola
Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e
participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas
no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de
panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas
de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as
mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do
acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas
a deito pelo Estado
Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas
contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que
visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em
lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e
equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de
habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra
para plantar e para viver como nas lutas no meio rural
o Corpo e a Coragem como Escudo
Os motins por alimentos grande forma de motim popular
ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados
e animados por mulheres [ ] Nesses motins as
mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com
o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas
usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam
multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos
de mercado ou pedras com que enchem os aventais
84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005
caso extremo Normalmente natildeo destroem nem
saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando
roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o
pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra
os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam
o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT
1992 p194 nosso grifo)
De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar
terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos
institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora
regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se
ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com
inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes
imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as
mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico
materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta
As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros
documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos
como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes
contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em
especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se
descrentes e omissos
A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo
cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de
local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas
regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de
tagravevor na residecircncia de tagravemiliares
Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85
Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa
proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e
o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da
vila e disse
vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha
soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como
eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente
fiquei muito machucada depois quando terminei de
limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido
nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy
naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num
depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu
mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver
a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos
os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e
eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora
e a gente se separou (nosso grifo)
Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi
marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a
populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida
na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a
seus novos habitantes
A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes
em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes
crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento
registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais
este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional
86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005
foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o
consequumlente esvaziamento do campo
A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de
moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees
anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo
com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os
proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas
Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e
podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos
I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito
Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode
ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico
O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade
puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e
consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas
relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando
das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar
a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero
mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees
mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem
com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado
As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda
As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo
Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em
sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud
PERROT 1992 p 173)
87
Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
88
presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
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v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
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OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
de suas paacuteginas mais contundentes Castells (1999 p 170) afinna que muitas
lutas urbanas antigas ou contemporacircneas foram na realidade movimentos
feministas envolvendo as necessidades e a administraccedilatildeo da vida diaacuteria E adiante
(CASTELLS 1999 p 223) ainda insiste
[ ] o progresso mais importante a partir dos anos 80 foi
o extraordinaacuterio aumento no nuacutemero de organizaccedilotildees de
base popular em sua grande maioria criadas e dirigidas
por mulheres nas aacutereas metropolitanas dos paiacuteses em
desenvolvimento Essas organizaccedilotildees foram estimuladas
por explosotildees demograacuteficas urbanas crises econoacutemicas
e pol iacuteticas de austeridade ocorridas simu Itaneamente que
deixaram as pessoas e particularmente as mulheres
frente a frente com o simples di lema entre lutar ollmorrer
A essa constataccedilatildeo CasteIls (1999 p 223) associa uma outra
reflexatildeo a de que esses esforccedilos coletivos das uacuteltimas deacutecadas natildeo resultaram
somente em organizaccedilotildees populares que causaram impacto nas poliacuteticas e
instituiccedilotildees mas tambeacutem no surgimento de uma nova identidade coletiva na
t()nna de mulheres capacitadas
Essas mulheres foram transgressoras posto que negaram suas
limitaccedilotildees ao acircmbito privado recusaram o apanaacutegio masculino no acesso ao
conhecimento e ao exerciacutecio do poder poliacutetico rejeitaram o confinamento
domeacutestico ou a mera condiccedilatildeo de coadjuvante das lutas Mulheres que t()ram agraves
ruas entre outras coisas reivindicar casa para morar e o direito de pertencimento
agrave cidade que cada vez mais consolidava-se como o lugar do futuro o locus da
modernidade face inclusive a um esvaziamento contiacutenuo do campo e de suas
possibi lidades de oferecer vida digna a seus habitantes
A participaccedilatildeo etetiva das mulheres nas luta urbanas natildeo eacute fenocircmeno
Atsso avesso Araccedilatuha 3 n r 77middot 97 Iun 2()O~ 81
recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)
analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo
XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres
estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo
motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o
patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos
choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham
o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam
como siacutembolos (PERROT p 199)
Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy
4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente
observou que
A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute
uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo
social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos
urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80
tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades
coletivas de segmentos das classes populares As
mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova
identidade coletiva partindo de suas bases territoriais
diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva
Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade
coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees
e expectativas do gecircnero feminino um conjunto
complexo de significados encontrados nos movimentos
urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo
expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos
e os homens assumem a lideranccedila
Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por
82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())
mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples
atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes
jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente
conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980
p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos
mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem
tambeacutem adotaacute-Ios
Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de
um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e
concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento
das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p
154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue
e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos
imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com
interesses mediatos seja deiinitivamente descartada
A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por
moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades
dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e
Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes
revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados
Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela
a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda
assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA
ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou
mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam
(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves
mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave
83
sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de
higiene da escola
Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e
participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas
no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de
panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas
de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as
mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do
acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas
a deito pelo Estado
Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas
contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que
visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em
lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e
equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de
habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra
para plantar e para viver como nas lutas no meio rural
o Corpo e a Coragem como Escudo
Os motins por alimentos grande forma de motim popular
ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados
e animados por mulheres [ ] Nesses motins as
mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com
o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas
usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam
multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos
de mercado ou pedras com que enchem os aventais
84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005
caso extremo Normalmente natildeo destroem nem
saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando
roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o
pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra
os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam
o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT
1992 p194 nosso grifo)
De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar
terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos
institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora
regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se
ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com
inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes
imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as
mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico
materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta
As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros
documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos
como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes
contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em
especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se
descrentes e omissos
A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo
cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de
local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas
regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de
tagravevor na residecircncia de tagravemiliares
Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85
Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa
proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e
o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da
vila e disse
vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha
soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como
eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente
fiquei muito machucada depois quando terminei de
limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido
nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy
naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num
depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu
mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver
a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos
os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e
eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora
e a gente se separou (nosso grifo)
Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi
marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a
populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida
na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a
seus novos habitantes
A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes
em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes
crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento
registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais
este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional
86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005
foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o
consequumlente esvaziamento do campo
A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de
moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees
anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo
com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os
proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas
Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e
podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos
I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito
Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode
ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico
O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade
puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e
consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas
relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando
das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar
a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero
mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees
mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem
com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado
As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda
As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo
Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em
sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud
PERROT 1992 p 173)
87
Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
88
presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
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v2
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215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
recente tampouco somente observado no Brasil Michele Perrot (1992 p 195)
analisando as lutas empreendidas por mulheres populares da Franccedila do seacuteculo
XIX toma-as como guardiatildes do teta Como iniciadoras de motins as mulheres
estatildeo presentes na maioria dos distuacuterbios populares na primeira metade do seacuteculo
motins florestais onde defendem o direito agrave madeira tatildeo importante quanto o
patildeo para os pobres motins fiscais distuacuterbios urbanos de todos os tipos pequenos
choques com a guarda montada ou a poliacutecia nas grandes revoltas que pontilham
o seacuteculo E ainda atirma agrave frente das manifestaccedilotildees ou desfiles elas se congelam
como siacutembolos (PERROT p 199)
Alejandra Massolo (1992 p 338 apud C ASTELLS 1999 p 223shy
4) ao analisar movimentos sociais femininos urbanos em periacuteodo mais recente
observou que
A subjetividade feminina quanto a experiecircncias de luta eacute
uma dimensatildeo reveladora do processo de construccedilatildeo
social de novas identidades coletivas atraveacutes de contl itos
urbanos Os movimentos sociais das deacutecadas de 70 e 80
tornaram visiacuteveis e perceptiacuteveis as diferentes identidades
coletivas de segmentos das classes populares As
mulheres faziam parte da produccedilatildeo social dessa nova
identidade coletiva partindo de suas bases territoriais
diaacuterias transformadas em bases para a accedilatildeo coletiva
Elas conferiram ao processo de construccedilatildeo da identidade
coletiva a marca dos muacuteltiplos significados motivaccedilotildees
e expectativas do gecircnero feminino um conjunto
complexo de significados encontrados nos movimentos
urbanos mesmo quando as questotildees de gecircnero natildeo satildeo
expliacutecitas e quando seus quadros constitutivos satildeo mistos
e os homens assumem a lideranccedila
Embora parte significativa das accedilotildees coletivas levadas a efeito por
82 Acsso Iess Araccedilaluha ) l ) P 77 - 97 jUI1 2n())
mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples
atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes
jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente
conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980
p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos
mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem
tambeacutem adotaacute-Ios
Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de
um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e
concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento
das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p
154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue
e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos
imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com
interesses mediatos seja deiinitivamente descartada
A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por
moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades
dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e
Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes
revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados
Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela
a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda
assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA
ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou
mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam
(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves
mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave
83
sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de
higiene da escola
Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e
participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas
no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de
panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas
de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as
mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do
acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas
a deito pelo Estado
Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas
contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que
visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em
lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e
equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de
habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra
para plantar e para viver como nas lutas no meio rural
o Corpo e a Coragem como Escudo
Os motins por alimentos grande forma de motim popular
ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados
e animados por mulheres [ ] Nesses motins as
mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com
o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas
usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam
multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos
de mercado ou pedras com que enchem os aventais
84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005
caso extremo Normalmente natildeo destroem nem
saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando
roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o
pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra
os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam
o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT
1992 p194 nosso grifo)
De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar
terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos
institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora
regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se
ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com
inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes
imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as
mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico
materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta
As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros
documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos
como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes
contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em
especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se
descrentes e omissos
A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo
cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de
local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas
regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de
tagravevor na residecircncia de tagravemiliares
Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85
Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa
proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e
o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da
vila e disse
vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha
soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como
eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente
fiquei muito machucada depois quando terminei de
limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido
nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy
naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num
depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu
mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver
a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos
os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e
eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora
e a gente se separou (nosso grifo)
Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi
marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a
populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida
na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a
seus novos habitantes
A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes
em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes
crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento
registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais
este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional
86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005
foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o
consequumlente esvaziamento do campo
A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de
moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees
anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo
com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os
proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas
Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e
podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos
I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito
Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode
ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico
O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade
puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e
consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas
relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando
das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar
a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero
mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees
mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem
com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado
As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda
As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo
Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em
sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud
PERROT 1992 p 173)
87
Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
88
presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
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Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
mulheres natildeo tenham emergido de fato de uma consciecircncia feminista a simples
atitude de revelar-se sujeito que manifesta-se posiciona-se e disputa poderes
jaacute as coloca na arena poliacutetica e potildee em questatildeo os papeacuteis a elas tradicionalmente
conteridos Conveacutem relembrar conforme jaacute o enunciara D Aacutevila Neto (1980
p 25) que os modelos podem ser - e realmente satildeo - patriarcais e falocecircntricos
mas nagraveo haacute contradiccedilagraveo teoacuterica ou empiacuterica em assinalar que as mulheres podem
tambeacutem adotaacute-Ios
Assim se lutas levadas a efeito por mulheres podem carecer de
um suhstrato ferninista tamheacutem podem despertar novos desejos projetas e
concepccedilotildees de vida abrindo caminho para a emancipaccedilagraveo e o fortalecimento
das mulheres como sujeito ativo e desejante Como nos revela Saftioti (1988 p
154) a vivecircncia de uma situaccedilatildeo de carecircncias pode gerar uma identidade tecircnue
e provisoacuteria que se esgota no proacuteprio movimento alcanccedilando ohjetivos
imediatistas No entanto isso nagraveo significa que a perspectiva de conexatildeo com
interesses mediatos seja deiinitivamente descartada
A identilicaccedilatildeo da forccedila feminina como fundamental na luta por
moradia no espaccedilo urhano em Teresina nos leva a ret1ctir sohre as singularidades
dessa inserccedilatildeo tamheacutem no campo Preocupadas com essa questatildeo Rua e
Ahramovay (2000) - estudando as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
no Brasi 1- afinHam que as nlulheres sohressaem-se como tiguras proeminentes
revelando-se ativas comhatentes nas mobilizaccedilotildees e em confrontos amlados
Entretanto embora guerreiras do campo o estudo tamheacutem revela
a forccedila do modelo usual de dominaccedilatildeo posto que sua participaccedilatildeo eacute ainda
assimilada como suhsidiaacutelia agrave do homem ou como revelam alguns relatos (RUA
ABRAMOVAY p 260) o papel teminino eacute estar ao lado do companheiro ou
mesmo pedir a Deus para dar forccedila Nesse sentido as autoras ainda destacam
(RUA ABRAMOVAY p 257) que na dinacircmica dos acampamentos cahe agraves
mulheres aleacutem do trabalho reprodutivo as taretagraves mais femininas ligadas agrave
83
sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de
higiene da escola
Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e
participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas
no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de
panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas
de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as
mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do
acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas
a deito pelo Estado
Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas
contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que
visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em
lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e
equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de
habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra
para plantar e para viver como nas lutas no meio rural
o Corpo e a Coragem como Escudo
Os motins por alimentos grande forma de motim popular
ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados
e animados por mulheres [ ] Nesses motins as
mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com
o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas
usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam
multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos
de mercado ou pedras com que enchem os aventais
84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005
caso extremo Normalmente natildeo destroem nem
saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando
roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o
pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra
os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam
o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT
1992 p194 nosso grifo)
De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar
terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos
institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora
regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se
ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com
inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes
imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as
mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico
materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta
As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros
documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos
como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes
contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em
especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se
descrentes e omissos
A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo
cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de
local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas
regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de
tagravevor na residecircncia de tagravemiliares
Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85
Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa
proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e
o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da
vila e disse
vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha
soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como
eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente
fiquei muito machucada depois quando terminei de
limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido
nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy
naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num
depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu
mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver
a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos
os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e
eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora
e a gente se separou (nosso grifo)
Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi
marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a
populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida
na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a
seus novos habitantes
A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes
em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes
crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento
registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais
este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional
86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005
foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o
consequumlente esvaziamento do campo
A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de
moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees
anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo
com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os
proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas
Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e
podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos
I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito
Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode
ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico
O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade
puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e
consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas
relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando
das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar
a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero
mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees
mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem
com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado
As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda
As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo
Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em
sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud
PERROT 1992 p 173)
87
Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
88
presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
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v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
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MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
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PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
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Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
sauacutede educaccedilatildeo e infra-estrutura coordenadoras de merendas da pastoral de
higiene da escola
Assim embora existam mulheres em cargos de direccedilatildeo e
participando etetivamente da construccedilatildeo de novas relaccedilotildees sociais e econocircmicas
no campo uma forte marca da inserccedilatildeo feminina ainda eacutea de coordenadora de
panelas o que natildeo pode obscurecer os inuacutemeros esforccedilos e as distintas tonnas
de resistecircncia dessas mulheres - notadamente nos uacuteltimos anos - tomando-as
mais visiacuteveis na correlaccedilatildeo de torccedilas poliacuteticas desde o ambiente estrito do
acampamentoassentamento ateacute o plano mais geral das poliacuteticas puacuteblicas levadas
a deito pelo Estado
Indiscutivelmente a mulher tem uma inserccedilatildeo particular nas lutas
contemporacircneas seja empunhando bandeiras eminentemente feministas que
visam a destruiccedilatildeo das bases da sociedade patriarcal e falocecircntrica seja em
lutas de cariz popular como as que envolvem a conquista de moradia e
equipamentos urbanos que possam proporcionar-lhes condiccedilotildees dignas de
habitahilidade um lugar um endereccedilo digno ou mesmo um pedaccedilo de terra
para plantar e para viver como nas lutas no meio rural
o Corpo e a Coragem como Escudo
Os motins por alimentos grande forma de motim popular
ainda no seacuteculo XIX sagraveo quase sempre desencadeados
e animados por mulheres [ ] Nesses motins as
mulheres intervecircm coletivamente Nunca armadas eacute com
o corpo que elas lutam rosto descoberto [ ] Muitas
usam principalmente a voz suas vociferaccedilotildees levantam
multidotildees famintas Quando lanccedilam projeacuteteis sagraveo artigos
de mercado ou pedras com que enchem os aventais
84 Acgtl ltns( Araccedilatuha 3 n 3 r 77middot 97 jUI1 2005
caso extremo Normalmente natildeo destroem nem
saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando
roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o
pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra
os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam
o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT
1992 p194 nosso grifo)
De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar
terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos
institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora
regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se
ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com
inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes
imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as
mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico
materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta
As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros
documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos
como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes
contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em
especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se
descrentes e omissos
A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo
cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de
local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas
regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de
tagravevor na residecircncia de tagravemiliares
Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85
Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa
proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e
o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da
vila e disse
vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha
soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como
eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente
fiquei muito machucada depois quando terminei de
limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido
nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy
naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num
depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu
mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver
a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos
os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e
eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora
e a gente se separou (nosso grifo)
Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi
marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a
populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida
na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a
seus novos habitantes
A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes
em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes
crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento
registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais
este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional
86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005
foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o
consequumlente esvaziamento do campo
A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de
moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees
anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo
com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os
proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas
Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e
podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos
I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito
Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode
ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico
O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade
puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e
consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas
relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando
das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar
a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero
mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees
mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem
com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado
As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda
As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo
Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em
sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud
PERROT 1992 p 173)
87
Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
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presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
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PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
caso extremo Normalmente natildeo destroem nem
saqueiam preferindo a venda a preccedilo taxado Evitando
roubar reclamam apenas o preccedilo justo impondo~o
pessoalmente diante da omissatildeo das autoridades Contra
os accedilambarcadores e os poderes inertes elas encarnam
o direito do povo ao patildeo de cada dia (PERROT
1992 p194 nosso grifo)
De que mulher fagravelamos Que motivaccedilotildees levam mulheres a ocupar
terrenos urbanos ociosos desafiando o poder da propriedade e dos mecanismos
institucionais do Estado de fonl1a tatildeo detern1inada Um Estado que embora
regulado por leis que garantem a funccedilatildeo social da propriedade urbana cala-se
ou ateacute mesmo promove a segregaccedilatildeo soacutecio-espacial e a desigualdade com
inuacutemeras pol iacuteticas sustentatoacuterIacuteas dos interesses de proprietaacuterios dos agentes
imobiliaacuterios e de tantos outros sujeitos de direito consolidados Adversaacuterios as
mulheres os tecircm muitos alguns ateacute mesmo dentro do proacuteprio espaccedilo domeacutestico
materializados na pessoa do marido ou do pai descrente na luta
As imagens reconstruiacutedas a partir da memoacuteria e dos registros
documentais revelam a decisatildeo e a accedilagraveo categoacuterica de ocupar terrenos ociosos
como sinal da recusa das condiccedilotildees indignas dc sobrevivecircncia muitas vezes
contraacuteria agrave postura do marido Corroboram dessa avaliaccedilatildeo vaacuterias pessoas em
especial alguns maridos que no momento inicial de ocupaccedilotildees revelaram-se
descrentes e omissos
A determinaccedilatildeo de ocupar de muitas mulheres era motivada pelo
cansaccedilo proveniente de inuacutemeros transtornos tagravece agraves mudanccedilas repentinas de
local de moradia agraves vezes por conta de despejos de casas de aluguel natildeo pagas
regulannente ou mesmo dado ao desagrado pela convivecircncia na condiccedilatildeo de
tagravevor na residecircncia de tagravemiliares
Avessn lt1 sso Araccedilaluha 3 n3 p 77 97 JUIl 2005 85
Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa
proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e
o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da
vila e disse
vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha
soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como
eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente
fiquei muito machucada depois quando terminei de
limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido
nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy
naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num
depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu
mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver
a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos
os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e
eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora
e a gente se separou (nosso grifo)
Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi
marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a
populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida
na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a
seus novos habitantes
A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes
em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes
crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento
registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais
este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional
86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005
foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o
consequumlente esvaziamento do campo
A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de
moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees
anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo
com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os
proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas
Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e
podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos
I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito
Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode
ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico
O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade
puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e
consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas
relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando
das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar
a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero
mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees
mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem
com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado
As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda
As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo
Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em
sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud
PERROT 1992 p 173)
87
Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
88
presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
Quando chegamos ~m Teresina fomos morar de aluguel numa casa
proacutexima aqui da vila aiacute atrasamos o aluguel por trecircs meses eu desempregada e
o dono da casa mandando a gente sair todo dia Aiacute eu vi essa ocupaccedilatildeo aqui da
vila e disse
vou tambeacutem para laacute quem sabe esta natildeo eacute a minha
soluccedilatildeo Sozinha roccedilei um lote de terreno inclusive como
eUl1atildeo tinha praacutetica de roccedilar passei uma semana doente
fiquei muito machucada depois quando terminei de
limpar a aacuterea sem condiccedilotildees de tagravezer a casa o marido
nem se preocupava com isso peguei uma radiola shy
naquele tempo a gente chamava de radiola - fui num
depoacutesito laacute na Piccedilarra e troquei por madeira e palha e eu
mesma com as minhas proacuteprias matildeos comecei a nver
a minha casa eu e meu irmatildeo cavamos buraco enfiamos
os paus e fomos montando a casa subimos cobrimos e
eu vim morar nesse quartinho daiacute meu marido foi embora
e a gente se separou (nosso grifo)
Essa conjuntura soacutecio-econocircmica de vitalidade das ocupaccedilotildees foi
marcada por torte migraccedilatildeo campo-cidade fino que elevou substancialmente a
populaccedilatildeo de Teresina e pelo consequumlente agravamento das condiccedilotildees de vida
na cidade na medida em que esta natildeo conseguia oferecer condiccedilotildees dignas a
seus novos habitantes
A populaccedilatildeo de Teresina que em 1960 era de 1448 m i I habitantes
em 1970 passa para 2205 mil e em 1980 alcanccedila 3778 mil habitantes
crescendo portanto no periacuteodo 7080 na ordem de 71 J - o maior crescimento
registrado em todos os periacuteodos - No plano mais geral das questotildees nacionais
este periacuteodo coincide com a tagravese desenvolvimentista em que a poliacutetica nacional
86 Acssn anSSliacute Araccedilatuha 3 11 3 r 77 - 97 lun 2005
foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o
consequumlente esvaziamento do campo
A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de
moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees
anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo
com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os
proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas
Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e
podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos
I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito
Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode
ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico
O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade
puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e
consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas
relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando
das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar
a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero
mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees
mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem
com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado
As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda
As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo
Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em
sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud
PERROT 1992 p 173)
87
Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
88
presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
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PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
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da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
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dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
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coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
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dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
foi orientada para o incremento industrial e para a expansatildeo urbana com o
consequumlente esvaziamento do campo
A determinaccedilatildeo feminina de obter a dignidade na condiccedilatildeo de
moradia no depoimento acima - similar a tantos outros - desafia limitaccedilotildees
anaacutetomo-tisioloacutegicas soacutecio-econocircmicas e amarras conjugais quando a relaccedilatildeo
com o companheiro fica impossibilitada face agrave rebeldia feminina em escolher os
proacuteprios caminhos passando por cima das reticecircncias e idiossincrasias maltculinas
Satildeo mulheres que desbravam capinam constroem negociam planejam e
podem ateacute mesmo romper os laccedilos de conjugalidade por descohrirem-nos
I imitantes de suas possihi lidades como sujeitos de direito
Segundo Pinto ( 1992 p 131) a adesatildeo a movimentos sociais pode
ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo puacutehlico
O rito envolve no caso uma rede de rupturas e a constituiccedilatildeo de uma identidade
puacuteblica A adesatildeo coloca o sujeito tiente a novas relaccedilotildees de poder e
consequumlentemente de tensatildeo no interior da famiacutelia do local de trahalho nas
relaccedilotildees de afeto e vizinhanccedila Essa reflexatildeo cahe perfeitamente em se tratando
das lutas levadas a efeito por mulheres Essas tensotildees podem at0 natildeo carregar
a radicalidade necessuacuteria para a ruptura com os padrotildees dominantes de gecircnero
mas de saiacutedajuacute o arranham guardando potencialidades quanto a modificaccedilotildees
mais amplas nas relaccedilotildees e praacuteticas sociais em geraL na medida em que rompem
com o circuito aprisionador da mulher aos estreitos limites do privado
As Mulheres na Frente e os Homens na Retaguarda
As mulheres estiveram na vanguarda de nossa revoluccedilatildeo
Natildeo eacute de admirar elas sofriam mais (MICHELET em
sua Hisloire de la ReacuteOlution jionccedilaise p 254 apud
PERROT 1992 p 173)
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Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
88
presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
Desafios haviam muitos e de muacuteltiplas fomlas Um deles foacutei sem
duacutevida a resistecircncia nos momentos de acirrados connitos COI11 o aparato policial
quando por forccedila de liminares de reintegraccedilagraveo de posse ocorriam despejos
dramaacuteticos Muitos sagraveo os relatos que apontam a coragem feminina para enfrentar
essas situaccedilotildees contlituosas Assim mulhens ocupantes revelavam-se ativistas
que nagraveo temiam expor o proacuteprio corpo com dettmlinaccedilatildeo como escudo contra
a accedilatildeo repressiva
Os despejos ocorriam geralmente em clima de muita tensatildeo e
extremado conflito A cena de policiais cortando as cordas que sustentavam
redes de crianccedilas derramando comida das panelas retirando os moacuteveis ruacutesticos
ou improvisados derruhando fraacutegeis paredes de harro ou papelatildeo pondo I()go
na palha conliscando os utensiacutelios usados nas construccedilotildees recolhendo agrave prisagraveo
os considerados insufladores ou as lideranccedilas ou at0 mesmo espancando
alguns sagraveo uma constante nos depoimentos de quem viiacuteu e realizou ocupaccedilocirces
no periacuteodo apreciado emhora ateacute hoje cenas simi lares thccedilam pane do cotidiano
ue pessoas que participam de ocupaccedilotildees em Teresina
A violecircncia policial na defesa da propriedade em muitos casos
desconhecia inclusin diterenciaccedilotildees geracionais ou bioloacutegicas como nos relata
lima lideranccedila ao afirmar [ Jeles estavam espancando ateacute uma mulher gnhida
l l e ela perdeu () hebecirc na ocupaccedilatildeo O marido dela lstaYiacutel sendo accediloitado
pela poliacutecia tambeacutem Foi uma taca Mas noacutes resistimos ainda uma semana a pagraveo
e aacutegua
Atos puacutehlicos concentraccedilotildees hmTicadas acampamentos ahaixoshy
assinados audiecircncias missas ou celebraccedilotildees ecumecircnicas assemhleacuteias palestras
mutirotildees para construccedilagraveo de casas visita agrave imprensa para denuacutencias contlitos
com policiais suacuteplicas choros reivindicaccedilotildees oraccedilotildees cantos reuniotildees e muito
trahalho com vistas a consolidar a aacuterea ocupada sagraveo algumas situaccedilotildees e
atividades tiacutepicas em aacutereas de ocupaccedilatildeo todas tendo uma forte marca da
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presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
presenccedila da mulher
Presenccedila e determ inaccedilatildeo de uma mulher que decide viver de outra
forma que natildeo suporta mais as dificuldades para honrar o pagamento de um
aluguel quando tagravelta agrave sua fagravemiacutelia o alimento de cada dia de uma mulher que
enfrenta o desacircnimo do homem que teme a repressatildeo que constroacutei sua casa
articula apoios que chora protesta reclama e negocia Entim da mulher que
conquista ousa um futuro diferente para os tilhos para si para seu companheiro
e de resto para seus iguais resistindo bravamente agraves adversidades
Nos momentos de contlitos mais acirrados de despejos a mulher eacute
a matildee que ostenta o filho ou a barriga de gestante desafiando a repressatildeo eacute
muitas vezes a cristatilde que empunha a te e suplica a Deus e aos homens uma saiacuteda
para o impasse eacute a protagonista fundamental dos cordotildees humanos com vistas
a impedir o acesso da forccedila policial como nos confirmam muitos sujeitos
envolvidos com os processos de ocupaccedilatildeo
Quando tivemos a certeza mesmo do despejo fizemos uma reuniatildeo
e tomamos a seguinte decisatildeo os homens vatildeo ticar em casa com as crianccedilas e as
mulheres vatildeo para a frente da luta Por quecirc Porque os homens satildeo mais vio lentos
e as mulheres tecircm mais capacidade de influir positivamente [ 1as mulheres na
frente e os homens na retaguarda (depoimento de um homem nosso grito)
O que dizer de atitudes como a descrita acima Seriam mani tcstaccedilotildees
de uma inversatildeo (ou suhversatildeo) dos papeacuteis Uma nova divisatildeo de tardagraves
modificadora do lugar tradicionalmente conferido agrave mulher na divisatildeo sexual do
poder A rua a luta fora de casa - emhora em defesa desta - poderia
simholizar ou significar algum tipo de modificaccedilatildeo suhstantiva nas relaccedilotildees de
gecircnero
o que aparentemente consiste no reconhecimento da capacidade
das mulheres e uma suposta inversatildeo dos papeacuteis esconde flagrante ambiguumlidade
e reafimlaccedilatildeo dos tais papeacuteis posto que os homens satildeo mais violentos e as
A ~~J 1 tSSCO lraccedilatuha 3 11 J r 77 iacuteJ7 Jun 2005 89
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
mulheres satildeo mais jeitosas Eacute tendo como substrato a velha e persistente
construccedilatildeo social do feminino associada agrave passividade agrave toleracircncia aos atributos
da matildee e na crenccedila nas possibilidades desses estereoacutetipos produzirem eficaacutecia
no conflito -jaacute que podem influir positivamente - que acabam sendo usados
nesse tipo particular de luta
Se notoacuteria eacute a capacidade da mulher no enfrentamento de tais
conflitos notoacuteria tambeacutem tem sido a elaboraccedilatildeo discursiva que transmuta a
coragem a capacidade e a detem1Iacutenaccedilatildeo feminina em uma forma de contestaccedilatildeo
paciacutefica habilidosa e que natildeo exclui inclusive a possibilidade de utilizar em seu
tagravevor as concepccedilotildees de gecircnero associadas agrave tragi lidade agrave defesa a1etiva e efetiva
da prole entre outras elaboraccedilotildees
A Velha e Persistente Construccedilatildeo Social do Feminino
Michelle PeITot (1992 p 178) ao tratar das mulheres como parte
dos excluiacutedos da Histoacuteria afirma que o seacuteculo XIX acentual ou] a racionalidade
harmoniosa da divisatildeo sexual Cada sexo tem a sua funccedilatildeo seus papeacuteis suas
taretagraves seus espaccedilos seu lugar quase predestinado ateacute cm seus detalhes
Paralelamente existe um discurso dos ofiacutecios que tagravez a linguagem do trabalho
uma das mais sexuadas possiacuteveis Ao homem a madeira e os metais Agrave
mulher a famiacutelia e os tecidos[ ) (nosso grito)
Porque o mando o exerciacutecio da autoridade e do poder na esfera
puacuteblica tecircm historicamente se constituiacutedo em apanaacutegio do homem Porque
mesmo em tempos de decliacutenio da ideacuteia do homem como absoluto provedor eacute
ainda tatildeo forte a associaccedilatildeo do feminino agrave fragilidade ao eterno papel de
cuidadora de protetoralimitando a mulher agrave estera da reproduccedilatildeo da intimidade
das necessidades reduzindo-a aos parcos limites da esfera do privado do
domeacutestico Certamente ainda eacute muito forte a naturalizaccedilatildeo de processos que
90
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
satildeo soacutecio-culturais ou seja ainda se justiticam condutas segregatoacuterias de
secundarizaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo da mulher a partir de uma explicaccedilatildeo de sua
natureza bio-psiacuteguica
Mesmo com os inuacutemeros avanccedilos no acesso feminino ao mercado
de trabalho satildeo ainda recorrentes salaacuterios diferentes para as mesmas funccedilotildees
atitudes discriminatoacuterias e questionadoras da competecircncia de mulheres em
funccedilotildees tidas como masculinas o desprezo para com dispecircndio de forccedila e
energia no trabalho domeacutestico considerado ainda como tarefa feminina que
ao homem quando muito cabe ajudar e tantas outras formas de aparecer da
desigualdade de gecircnero
Nas ocupaccedilotildees essas atitudes reveladoras da dominaccedilatildeo aparecem
de muacuteltiplas formas inclusive travesti das de valorizaccedilatildeo da coragem da mulher
ou dito de outra 10rma garantir as condiccedilotildees para a reproduccedilatildeo da torccedila de
trabalho eacute entendida como tarefa coisa de mulher jaacute que ao homem caberia
honrar as funccedilotildees relativas agrave produccedilatildeo da vida material
O que observo eacute que nesse tipo de luta as mulheres acabam
assumindo um papel de conduccedilatildeo elas sempre ticam agrave frente A mulher eacute mais
cor~josa Com o homem a poliacutecia vai logo embrulhando com a mulher eles
satildeo mais jeitosos e elas tecircm mais coragem mesmo Havia aquela poliacutetica de
esse tipo de coisa eacute coisa de mulher reuniatildeo eacute coisa de mulher(marido
de uma ocupante nosso grito)
O que eacute desconsiderado no entanto eacute o Uuml1to de que a muitas dessas
mulheres cabiam tambeacutem funccedilotildees de provedora material seja como lavadeira
tagravexineira funcionaacuteria puacuteblica babaacute ou outras profissotildees Assim se desenha o
tempo das mulheres Aleacutem das atribuiccedilotildees como trabalhadora muitas delas
acwnulavam tambeacutem os tradicionais papeacuteis de matildeeesposadomeacutestica do proacuteprio
lar e as taretagraves tiacutepicas de uma luta poliacutetica que lhe demandavam muito tempo
Assim a mulher acabava por acumular funccedilotildees em vaacuterios domiacutenios na produccedilatildeo
Atssn a ~ss raltItuha 113 p 77 _ 97 jun 2005 91
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
da vida material e na reproduccedilatildeo no acircmbito puacuteblico e no privado
Com esta observaccedilatildeo natildeo desejo no entanto recriar a dicotomia
puacuteblico-privado na medida em que os entendo como estreitamente imbricados
tampouco uma contraposiccedilatildeo ou dualidade de produccedilatildeo-reproduccedilatildeo Essa
dissociaccedilatildeo entre espaccedilo da produccedilatildeo e da reproduccedilatildeo tatildeo claramente visiacutevel
nas praacuteticas sociais e que subordina esta agrave aquela acaba por alocar prioritaacuteria e
majoritariamente a mulher na esfera da reproduccedilatildeo constituindo-se portanto
em uma das formas mais contundentes do aparecer da desigualdade de gecircnero
e sob a qual se sustenta a supremacia masculina na divisatildeo sexual do trabalho
Para efeito dessa reflexatildeo conveacutem dar voz a Saftioti (1988 p
144) quando ela afirma que as relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo natildeo se restringem
ao domiacutenio puacuteblico invadindo a aacuterea privada das relaccedilotildees sociais de
reproduccedilatildeo da mesma forma como as relaccedilotildees sociais de reproduccedilatildeo extrapolam
a esfera privada penetrando vigorosamente no acircmbito da produccedilatildeo puacuteblica
Ademais a terra a casa e as benfeitorias se prestam ao seu possuidor
para uma utilizaccedilatildeo uso para habitar uso ligado diretamente aos interesses da
reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho na medida em que o conforto a proteccedilatildeo e a
seguranccedila que a moradia pode proporcionar eacute componente fundamental para a
sustentaccedilatildeo do modelo econoacutemico porque fornece algumas condiccedilotildees essenciais
para que o(a) trabalhador(a) possa diariamente retomar a sua atividade produtiva
cotidiana Assim o que aparece como reivindicaccedilatildeo restrita agrave estera da
reproduccedilatildeo guarda estreita articulaccedilatildeo com as condiccedilotildees mais gerais de produccedilatildeo
da existecircncia sendo na verdade domiacutenios inseparaacuteveis embora apareccedilam como
isolados e afeitos a distintos modos de representar o gecircnero
Uma outra feliz contribuiccedilatildeo a essa discussatildeo pode ser encontrada
em Matos (1996 p 13 I ) quando a autora relembra que a moderna separaccedilatildeo
entre puacuteblico e privado eacute algo histoacuterico e portanto natildeo inevitaacutevel ou natural
tendo brotado de uma forma de organizaccedilatildeo social que passou por contiacutenuas
i~S less iraamba middot3 n 3 r 77middot97 jun 2005
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
mudanccedilas ao longo de sua trajetoacuteria Esse dualismo puacuteblicoprivado constituiushy
se segundo Matos no contexto de uma heranccedila vitoriana reafitmando o privado
como espaccedilo da mulher e a representando como viacutetima de sua proacutepria natureza
ao destacar a maternidade como necessidade e o espaccedilo privado como ous
da realizaccedilatildeo das potencialidades temininas
o Desejo da Casa Proacutepria e de Pertencimento agrave Cidade
As lutas por moradia e por equipamentos urbanos explicitam o
desejo de pet1encimcnto ii cidade de quem nesta quer um endereccedilo fixo A
casa simbolizao aconchego a tranquumlilidade o abrigo contra as intempeacuteries o
fim da inseguranccedila do nomadismo o espaccedilo onde se pode compartilhar com a
tagravemiacutelia a experiecircncia da vida em comum A casa proacutepria foacuternece a sensaccedilatildeo de
enraizamento de empoderamento e ateacute mesmo de ascensatildeo social posto que
fornece a possihilidade de reconhecimento por algo que natildeo seja somente a
car0ncia como dantes quando o ocupante era socialmente sem leIo um
indiIacuteduo identificado pelo que natildeo possui um destituiacutedo do bem essencial
que lhe confere um lugar na cidade para (con)viver Mas haveria uma l11otinlccedilatildeo
particular na mohilizaccedilatildeo das mulheres para a conquista da casa O depoimento
ahaixo eacute ilustrativo
No dia em que eu vim armar a mil1ho cusujuacute tinha uma pessoa no
meu terre7o aiacute eu disse
Olha [u natildeo vou perder natildeo Peguci um facatildeo - que
cra a arma do momento - e disse para a pessoa se retirar
dali [ ] Os homens pareciam ter medo ou receio
vergonha de vir e as mulheres vinham ateacute por que as
mulheres sentem mais necessidade de morar eu
93
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
avalio assim No meu caso por exemplo o meu marido
natildeo estava nem aiacute por que ele ia para casa da matildee
dele ia passear ia para qualquer lugar e eu eacute que tinha que ficar em casa com os filhos entatildeo eu tinha que lutar pela minha casa (nosso grifo)
A construccedilatildeo social do gecircnero feminino e sua alocaccedilatildeo prioritaacuteria e
mqioritaacuteria relacionada ao espaccedilo privado da casa e do homem agrave esfera puacutehlica
da middotmiddotrua mohiliza a mulher como a principal defensora do direito a moradia
dignajaacute que ela tem que ficar em casa com os tilhos sendo elas portanto
que de t()nna mais contundente experienciam as carecircncias de cada dia
Essa assimilaccedilatildeo da impol1acircncia da conquista e manutenccedilatildeo da
casa pela mulher foi ohservada pelo poder puacutehlico municipal de Teresina a
partir de meados da deacutecada de 80 quando passou-se a emitir os tiacutetulos de
concessatildeo de direito real de uso (reconhecimento da posse) prioritariamente no
nome das mulheres - em detrimento dos maridoscompanheiros a partir do
entendimento de que mulheres sagraveo mais afeitas ii permanecircncia e a protcccedilatildeo de
suas hahitaccedilotilde(s
Essa marcante presenccedila feminina nos processos de luta por moradia
- via ocupaccedilocirces de terrenos urhanos - em Teresina tinham portanto como
torte motivaccedilatildeo o~ietios soacutecio-econoacutemicos de melhoria ou garantia de condiccedilotildees
dignas de habitabilidade que as distanciava da situaccedilatildeo de vulnerahilidade e
inquietude de antes natildeo emergindo ti priori como lutas feministas ou de
contestaccedilatildeo da dom inaccedilagraveo masculina Entretanto natildeo podem ser
desconsideradas as inuacutemeras atitudes de inconfomlismo com a suhaltemidade e
com a vida I imitante tampouco as atitudes de resistecircncia aos modelos expressas
em situaccedilotildees de luta pela autonomia fagravece ao marido e ateacute mesmo de ruptura com
o contrato de conjugalidade Partilho portanto da reflexagraveo de SatTioti (1988 p
174) quando atimla
94
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
Atuando em movimentos sociais mistos femininos e feministas as
mulheres tecircm contribuiacutedo enormemente para a coletivizaccedilatildeo dos espaccedilos
escondidos Nesse processo potildeem a nu a onipresenccedila do poliacutetico abalando a
dicotomia privado versus puacuteblico na medida em que nela o privado eacute
apresentado como a ausecircncia do poliacutetico e o puacuteblico como locus privilegiado
do poliacutetico A descoberta da onipresenccedila do poliacutetico talvez seja o grande
resultado contemporacircneo das lutas femininas pois a partir dela podem ser
problematizadas outras d icotomias emoccedilatildeo x razatildeo trabalho remunerado x
trabalho gratuito mulher reprodutora x homem produtor mulher passiva x
homem ativo (nosso gri t())
Entende-se que a luta pela destruiccedilatildeo das forccedilas patriarcais acumula
f()rccedilas com a luta diaacuteria pela sobrevivecircncia que tornam visiacuteveis mulheres
escondidas pela escravidatildeo domeacutestica das distintas f(ml1aS de dominaccedilatildeo Ousar
lutar por teto por alimento por escola arruamento iluminaccedilatildeo por aacutegua e por
postos de sauacutede pode natildeo subvel1er a ordem mas pode tomar visiacuteveis facetas
da desigualdade contribuindo para a formaccedilatildeo de consciecircncias criacuteticas e que
comprometam mais e mais pessoas - mulheres e homens na grande tarda de
revolucionar natildeo soacute as condiccedilotildees de produccedilatildeo material da vida mas e
sobretudo as relaccedilotildees sociais de gecircneros
As falas de mulheres sobre suas lutas satildeo prenhe de subversagraveo e
reveladoras de deternlinaccedilatildeo coragem e ousadia o que me leva a parti Ihar do
que diz Penot (1992 p 212) quando afirnla que as mulheres natildeo sagraveo passivas
nem subm issas A miseacuteria a opressatildeo a dom inaccedilatildeo por reais que sejam natildeo
bastam para contar a sua histoacuteria Elas estatildeo presentes aqui e aleacutem Elas satildeo
diterentes Fias se afim1am por outras palavras outros gestos Palavras e gestos
produtores de uma espacialidade urbana distinta que seia antes de tudo inclusiva
produtores de um discurso insurgente na defesa da moradia que ao mesmo
tempo pode aparecer tambeacutem como recusa ao continamento tCminino ao
csn acss() Araatuha 3 11 3 P 77 _ 97 11111 2005 95
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
brought the autonomyconquering possibilit) and the rupture Vith the vulnerabilshy
ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
state market
Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
domiciacutelio
Entretanto a luta contra a desigualdade nas suas mais diversas
f0n11as eacute tarefa inconc lusa A consciecircncia do caminho percorrido jamais pode
encobrir o horizonte a ser desbravado E como nos afirma CasteI1s (1999 p
J 71) a despeito dos esforccedilos feministas essa natildeo eacute nem seraacute uma revoluccedilatildeo
de veludo A paisagem humana da liberaccedilatildeo feminina estaacute coalhada de cadaacuteveres
de vidas partidas como acontece em todas as verdadeiras revoluccedilotildees Estaacute
coalhada tambeacutem de experiecircncias inusitadas de resistecircncia a servir de exemplo
e de esperanccedila agraves geraccedilotildees de hoje e de amanhatilde
VIANA Masilene Rocha The gender ofthe battle to the right to the housing
and the city Avesso do Avesso Revista Educaccedilatildeo e Cultura Araccedilatuba v3
n3 p 77 - 97 jun 2005
Abstract This ork systematizes part ofthe studies and researches as to the
urhan occupations in Terezina capital ofthe state ofPiauiacute which have reveakd
omell as a vital t()rce in the initiatives and in the development orthe hattle for
lhe housing anel an address in the city The audacity to tagravece contlicting situations
the boely aml courage as a shield against repressive actions the categorical deshy
cision ofoccupation as a sign ofrefusa to non-honorable survival conditions are
incontestable tagravects ofthe decisive presence ofwomen The occupation bringsl
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ity and unsti II situation so proper ofnomadism to vhat the housing deprived
fagravemilies are undertaken and that cannot have lhe product housing under lhe real
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Key words urban batttes gender right to housing urban occupations
96
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97
Referecircncias Bibliograacuteficas
CASTELLS Manuel O poderda identidade Satildeo Paulo Paz e Terra 1999
v2
DAacuteVILA NETO Maria Inaacutecia O autoritarismo e a mulher Rio de Janeiro
Achiameacute 1980
MATOS Maria Izilda Santos de Na trama urbana do puacutehlico do privado e
do iacutentimo Satildeo Paulo PUe 1996 p 129-149 (Projeto Histoacuteria 13)
PERROT Michelle Os excluiacutedos da Histoacuteria operaacuterios mulheres
prisioneiros 2 ed Rio de Janeiro Paz e Tena 1992
PINTO Ceacuteli Regina Jardim Pinto MOimentos sociais espaccedilos privilegiados
da mulher enquanto sujeito poliacutetico ln COSTA Alhertina de 01iCira
BRt fSCllINl Cristina (Org) lma questatildeo de gecircnero Rio de Janeiro Rosa
dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 1992 p 127-150
POSSEIROS invadem lotes na zona leste O Dia Teresina 26iul 1987 p 2
RUA Maria das Graccedila ABRAMOVAY Miriam Companheiras de luta ou
coordenadoras de panelas as relaccedilotildees de gecircnero nos assentamentos rurais
Brasiacutelia Unesco WOO 348 p
SAFFIOTI Heleieth B ttovimentos Sociais uumllce feminina ln CARVI H()
Janci Valadares de (Org) A condiccedilatildeo feminina Satildeo Paulo Veacutertice Revista
dos Trihunais 1988 p 143-178
O poder do macho 9 cd Satildeo Paulo Moderna 1997
~~~_ Rearticulando gecircnero e classe social ln COSTA Alhertina de
OliCira BRUSCHINI Cristina (Org) Uma questatildeo de gecircnero Rio de
Janeiro Rosa dos Tempos Satildeo Paulo Fundaccedilatildeo Carlos Chagas 199~ p183~
215
VIANA Masilcnc Rocha E os sem teto tambeacutem tecem a cidade as
ocupaccedilotildees urhanas em Teresina (1985~ 1990) 1999 Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1999
1 raccedilaluha ~ 11 J p 77 [17 I111l ~()()5 97