o fantástico e a censura Érico verissimo

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Fantástico

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  • 187

    O fantstico e a censura: Incidente em

    Antares de Erico Verissimo

    Mrcia Ivana de Lima e Silva

    *

    RSUM: Ce travail analyse, dans le roman Incidente em Antares, de Erico

    Verissimo, la construction du fantastique comme une forme de critique sociale

    et politique. partir de lide de ralisme magique, de Irlemar Chiampi,

    nous suivons le processus de cration des lments du rcit qui marquent

    lmergence du fantastique, cest--dire, la description des personnages et des

    situations travers le travail du narrateur.

    MOTS-CLS: Incidente em Antares; Crtica Gentica; fantstico; crtica so-

    cial e poltica

    Dentre as modalidades do fantstico que j foi possvel detectar na lite-

    ratura universal, opto pela denominao realismo maravilhoso para pensar

    o romance Incidente em Antares, de Erico Verissimo, inserido na tendncia

    latino-americana, surgida na dcada de 60, de obras que apresentavam ele-

    mentos sobrenaturais como forma de denunciar os problemas sociais e

    polticos da poca.

    Partindo do trabalho de Irlemar Chiampi, que afirma que o maravi-

    lhoso o extraordinrio, o inslito, o que escapa ao curso ordinrio das

    coisas e do humano(CHIAMPI, 1980, p.48). Para ela, a formulao dos

    princpios que regem o funcionamento da narrativa realista maravilhosa

    ser considerada no conjunto das relaes lingsticas envolvidas no ato de

    codificao e leitura do signo narrativo (CHIAMPI, 1980, p.51), porque

    o realismo maravilhoso se qualifica pela relao entre o efeito de encanta-

    mento (o discurso) e o relato. (CHIAMPI, 1980, p.59). Nesse sentido, tor-

    nam-se importantes, alm da histria (as aes ou acontecimentos como

    Mrcia Ivana de Lima e Silva professora do Instituto de Letras da UFRGS.

  • 188

    processo), as descries (a notao de objetos e seres em sua simultaneida-

    de) (CHIAMPI, 1980, p.59).

    Na esteira de tais afirmaes, procuro mostrar que no romance Inci-

    dente em Antares o fantstico uma construo discursiva com o objetivo

    de crtica social e poltica, mas, ainda, como um dado a mais: o realismo

    maravilhoso utilizado para burlar a censura. Cabe ressaltar que Erico

    Verissimo, juntamente com seu amigo Jorge Amado, jamais se submeteu

    censura prvia, declarando que preferiria abandonar a literatura a subme-

    ter seus originais previamente apreciao, conforme entrevista revista

    VEJA, de 17de novembro de 71.

    No processo de tal construo, o romance est dividido em duas partes:

    Antares, em que a pardia se d no nvel do discurso, e O incidente, em

    que a pardia ocorre no nvel das aes.

    Antares: a construo pardica do discurso

    Para a composio da primeira parte de Incidente em Antares, Erico

    Verissimo valeu-se de uma estratgia j utilizada em outras narrativas

    suas: dar a algumas personagens o papel de narradores. Assim como ocorre

    em Msica ao longe, em O tempo e o vento e em O senhor embaixador, no

    texto de 1971, atravs do dirio de Martim Francisco Terra, chegam ao

    leitor uma srie de informaes importantes acerca de Antares e de seus

    habitantes, sempre sob o ponto de vista do professor, o que funciona como

    um complemento, e tambm como um contraponto, perspectiva do

    narrador principal. Este, por sua vez, uma criao de Verissimo com-

    pletamente nova, em relao as suas obras anteriores. O que denomino

    de narrador-historiador um elemento construdo e elaborado com a

    finalidade de, ao lado de outros componentes, reforar o tom pardico

    que percorre todo o romance.

    Erico Verissimo iniciou a escritura de Antares em 29 de junho de 1970,

    em McLean, Virginia, EUA, durante a visita parte americana da famlia,

    na casa de sua filha Clarissa. A preciso da data deve-se ao fato de Erico ter

    mantido um dirio bastante detalhado, em que anotou todos os procedi-

    mentos em relao ao romance que nascia.

    Em O tempo e o vento, a perspectiva histrica adotada pelo narrador

    sria, a ponto de a primeira parte da trilogia se aproximar de uma narra-

    tiva mtica de fundao do Rio Grande do Sul. A Histria tratada criti-

    camente, mas fora do plano do discurso; atravs dos episdios

    ficcionalizados, vividos pelas personagens, em confronto com a Histria

    oficial e seus vultos, considerados modelares, que se estabelece a crtica.

    LIMA E SILVA, Mrcia Ivana

  • 189

    Nas palavras de Joaqun Rodrguez Suro, na sua busca da realidade,

    Verssimo faz anlises histricas que lhe permitem encontrar a realidade

    essencial dentro do fluxo das aes humanas (SURO, 1985, p.246). A

    prova disso est em trs atitudes do narrador: 1) a constncia da 3

    a

    pes-

    soa gramatical, como a mostrar sua opo por um discurso cientfico, ou

    o mais prximo dele, a respeito das situaes; 2) o ponto de vista srio,

    apesar de crtico, quando faz a apresentao de qualquer fato histrico;

    3) a ausncia de comentrios e a escassez de adjetivos nas descries, li-

    gadas ao discurso cientfico.

    Em Incidente em Antares, contudo, o tratamento da Histria no ocor-

    re dessa forma. Para comear, o narrador no se mantm na 3

    a

    pessoa gra-

    matical, alternando a narrao com a 1

    a

    pessoa do plural, o que lhe permite

    opinar sobre o que est contando e rechear as descries de adjetivos, op-

    tando por um ponto de vista irreverente para lidar com o material histri-

    co, como se percebe j no incio do romance:

    Afirmam os entendidos que os ossos fsseis recentemente encon-

    trados numa escavao feita em terras do municpio de Antares, na

    fronteira do Brasil com a Argentina, pertenciam a um gliptodonte,

    animal ante-diluviano, que, segundo as reconstituies grficas da

    Paleontologia, era uma espcie de tatu gigante dotado duma cara-

    paa inteiria e fixa, mais ou menos do tamanho dum Volkswagen,

    afora o formidvel rabo feio de tacape riado de espiges pon-

    tiagudos. Calcula-se que durante o Pleistoceno, isto , h cerca de

    um milho de anos, no s gliptodontes como tambm megatrios

    habitavam essa regio diabsica da Amrica do Sul, onde - s Deus

    sabe ao certo quando - veio a formar-se o rio hoje conhecido pelo

    nome de Uruguai. Ignora-se, todavia, em que poca da Era

    Cenozica surgiram naquela zona do Brasil meridional os primei-

    ros espcimes do Homo sapiens. (VERISSIMO, 1981, p.1)

    Atentemos para a descrio do animal, em que foi utilizada uma compa-

    rao nada cientfica, alm da expresso s deus sabe ao certo quando, a

    qual tambm distancia esse discurso inicial a respeito da cidade de uma

    perspectiva oficial, mostrando as intruses do narrador-historiador. Essas

    marcas do discurso nos autorizam a considerar que a atitude discursiva do

    narrador frente aos fatos histricos , no apenas irreverente, mas

    desmitificadora, oposta perspectiva sria daquele da trilogia. O narrador

    faz uso do discurso histrico, estabelecendo um dialogismo pardico com

    a tradio historiogrfica, no sentido de mostrar como o discurso oficial

    construdo, ou seja, como a histria oficial contada.

    A existncia desse narrador-historiador pode ser comprovada, ain-

    O fantstico e a censura: Incidente em Antares de Erico Verissimo

  • 190

    da, com dois outros fragmentos do texto. O primeiro um trecho desse

    mesmo captulo I, que assim se apresenta:

    O incidente que se vai narrar, e de que Antares foi teatro na sexta-

    feira 13 de dezembro do ano de 1963, tornou essa localidade conhe-

    cida e de certo modo famosa da noite para o dia - fama um tanto

    ambgua e efmera, verdade - no s no Estado do Rio Grande do

    Sul como tambm no resto do Brasil e mesmo atravs de todo o

    mundo civilizado. Entretanto, esse fato, ao que parece, no sensibili-

    zou at agora gegrafos e cartgrafos. (VERISSIMO, 1981, p.2)

    Nesse trecho, mais um exemplo da existncia do narrador-historiador

    o fato de ele, desde o incio da narrativa, j ter conhecimento de todos os

    acontecimentos futuros, marcadamente quando diz o incidente que se vai

    narrar. Assim como o historiador, o narrador de Incidente em Antares

    age como se tivesse testemunhado os fatos e, alm disso, tem acesso a

    toda a documentao, a todas as datas e dados, enfim toda a histria que

    vai narrar, bastando a ele selecionar as informaes pertinentes e

    apresent-las de acordo com sua viso de mundo, passvel de uma inter-

    pretao scio-ideolgica, como define Mikhail Bakhtin, exatamente

    porque o discurso, apesar de conter marcas individuais, est carregado

    de um contedo ideolgico, ligado ao status social e posio poltica do

    falante. No caso do narrador-historiador, ele parte desse mesmo procedi-

    mento, pois tambm dispe de todo o material sobre o assunto, mas ar-

    ranja seu discurso, de forma a salientar sua diferena em relao ao dis-

    curso do qual partiu. Em outras palavras, ele age como se estivesse se-

    guindo o discurso do outro, mas o subverte, apoderando-se de seus pr-

    prios procedimentos para mostrar como no est de acordo com eles.

    Essa posse se d de forma degradada e ambivalente, o que torna o discur-

    so do narrador-historiador pardico em relao ao discurso oficial,

    travestindo a seriedade desse enunciado atravs das observaes, objees,

    interrupes, e criando uma tenso entre a voz oficial e a no-oficial. O

    narrador-historiador o representante dessa voz no-oficial; ele fala em

    nome do ns que participa da Histria, mas no se identifica com ela. A

    atitude crtica na efabulao, mas neutra na fala, experimentada pelo

    narrador de O tempo e o vento, d lugar linguagem do riso, porque o

    riso supe que o medo foi dominado (BAKHTIN, 1987, p.78).

    Um segundo fragmento de Incidente em Antares que mostra o narrador-

    historiador em ao a nota do autor que abre o romance:

    Neste romance as personagens e localidades imaginrias aparecem

    disfaradas sob nomes fictcios, ao passo que as pessoas e os luga-

    LIMA E SILVA, Mrcia Ivana

  • 191

    res que na realidade existem ou existiram, so designados pelos

    seus nomes verdadeiros. (Nota do Autor) (VERISSIMO, 1981, p-

    gina inicial)

    Analisada cuidadosamente, a advertncia do autor se mostra redun-

    dante em relao s caractersticas prprias da narrativa realista de cu-

    nho histrico, que mescla componentes da Histria factual com os da

    criao ficcional. O leitor avisado, de sada, que ter pela frente essa

    mistura de elementos, obedecendo estrutura literria j reconhecida.

    No entanto, o que ocorre, na verdade, a decomposio de tais elemen-

    tos, porque os procedimentos do cnone historiogrfico so utilizados

    dentro do cnone literrio, isto , o discurso literrio se vale do discurso

    histrico, no sentido de parodi-lo.

    No exame dos esboos do romance, constatamos que, num primeiro

    impulso, Erico escreveu por motivos bvios, como a dialogar com aque-

    les que poderiam levantar qualquer dvida sobre o romance. A presena

    dessa expresso est intimamente ligada situao brasileira no momen-

    to em que o autor escrevia, isto , por motivos bvios dialoga diretamente

    com o mundo exterior narrativa, estabelecendo uma relao

    heteroglssica com as foras externas ao romance, quais sejam, a ditadu-

    ra militar e a censura por ela imposta. Ao eliminar a expresso, Erico

    opta por redimensionar seu discurso, conferindo nota um carter d-

    bio, retirando, assim, sua obviedade e burlando a censura, que leria a

    advertncia literalmente.

    O romance de 1971 uma pardia trilogia, porque uma pardia ao

    discurso oficial que, de certa forma, por ela conservado no plano da fala.

    Atravs do narrador-historiador, Verissimo alcana, ao mesmo tempo, a

    intratextualidade e a intertextualidade

    1

    , dialogando com sua prpria obra,

    em especial com a trilogia, e com os textos de Histria. Esse dilogo se d

    de forma inventiva, porque no reproduz o modelo, autenticando-o, mas o

    degrada, tornando-o risvel.

    Quando iniciou a escritura da primeira parte, Erico j pretendia cons-

    truir uma narrativa de gnero fantstico, pois estabelecera como seu ponto

    culminante a denncia dos mortos no coreto da praa, como se percebe no

    mapa por ele desenhado ou nos esboos das personagens. Sendo assim,

    sentia a necessidade de uma base de verdade para sustentar a histria que

    1

    A idia de intratextualidade ou autotextualidade foi desenvolvida por Grard Genette, na

    obra Palimpsestes; enquanto o termo intertextualidade foi definido por Julia Kristeva, na obra

    Introduo semanlise (cf.p.61-90), com base na teoria de Mikhail Bakhtin sobre o dialogismo.

    O fantstico e a censura: Incidente em Antares de Erico Verissimo

  • 192

    estava contando, alm de buscar uma forma de ajudar o leitor. Para isso,

    nada melhor do que o material histrico, que , ao mesmo tempo, compro-

    vado atravs de documentos, fatos e personalidades realmente existentes, e

    de conhecimento pblico, detalhe importante, j que o autor buscava a

    cumplicidade do leitor na identificao da situao social e poltica que

    denunciava. Flvio Loureiro Chaves corrobora nossa argumentao, quan-

    do afirma que no projeto de Erico Verissimo a documentao do passado

    e a indagao sobre as origens histricas do homem visto em sociedade so

    condies necessrias da verdade. Entenda-se: a verdade da fico, a

    verossimilhana de suas personagens imaginrias e a verdade do leitor pre-

    sente, que l o texto e o recebe como um referente da realidade vivida

    (CHAVES, 1988, p.37). Ou seja, o autor de Incidente em Antares l seu pr-

    prio texto, preocupado com a recepo e atento aos elementos compositivos,

    com os quais constri seu romance.

    O incidente: a construo pardica das aes

    Erico Verissimo comeou a escritura da segunda parte de Incidente em

    Antares ainda nos Estados Unidos, no dia 23 de outubro de 1970, como

    comprova seu dirio: Ensaiei princpio segunda parte Inc.

    2

    . Mesmo an-

    tes de comear a primeira parte, o autor j tinha idia do que seria desen-

    volvido em O incidente, como atestam o mapa e suas declaraes em

    entrevistas. Numa delas, ele historia a idia de aproveitar uma fotografia

    como tema de seu novo romance:

    Eu andava impressionado (e ainda ando) com a crescente dose de

    mentiras, fantasias e empulhaes de nossa vida cotidiana. Isso

    acontece nas relaes de pessoa para pessoa, nos anncios comer-

    ciais, no rdio, na televiso, nos jornais. Vivemos mentiras grandes

    e pequenas. Todos somos cmplices uns dos outros. [...] Um baile

    de mscaras, enfim! Claro, no h nenhuma novidade na idia, ao

    contrrio, isso j foi dito um bilho de vezes em prosa e verso. Mas

    eu tinha em mil novecentos e sessenta e nove esboado uma est-

    ria que se passava em Porto Alegre, e em que essa dana com ms-

    cara ia aparecer. O ttulo era A hora do stimo anjo, que uma frase

    do Apocalipse de So Joo. [...] Fiz o esquema com desenhos, bo-

    necos, cada um com seu drama... e com seus destinos cruzados.

    Estava bem adiantado no plano do livro quando vi um dia, numa

    2

    ALEV 04b0062-70: Agenda com notas manuscritas

    LIMA E SILVA, Mrcia Ivana

  • 193

    revista estrangeira, uma fotografia que me impressionou pelo que

    continha de simblico

    3

    Por mais estranho que parea, a idia me foi inspirada por uma

    foto que vi numa revista estrangeira: um cemitrio, tendo frente

    uns dez ou doze caixes enfileirados, por ocasio de uma greve de

    coveiros. Pensei assim: E se esses mortos resolvessem erguer-se e

    fazer greve contra os vivos?. Achei que era um bom ponto de par-

    tida para um conto ou uma novelinha. Brinquei com a idia por

    algumas horas, mas depois esqueci dela, dedicando-me inteiramente

    ao romance que ento escrevia, A hora do stimo anjo. Achei que a

    coisa toda da fotografia poderia acabar sendo apenas uma anedota

    macabra

    4

    Comecei a pensar no livro que podia sair desse macabro ponto de

    partida. A ao tinha de se passar numa cidade pequena do Rio

    Grande do Sul. Mas como? Os coveiros nesses lugares so uns po-

    bres diabos pouco numerosos e - que eu saiba - no so sindicali-

    zados. Se eles fizessem uma greve, no faltaria quem se prontificasse

    a sepultar os defuntos. Ah! - exclamou o ficcionista. - Tudo se ar-

    ranja. Ponha nessa cidade algumas indstrias, com vrias centenas

    de operrios, promova uma greve geral e faa que esses operrios

    interditem o cemitrio local. Presto! Ficou solucionado o impasse.

    5

    exatamente dessa forma que comea a segunda parte: com o anncio

    da greve geral, que pararia Antares, para desespero de seus governantes e

    dos donos dos estabelecimentos comerciais e fbricas. No verso do mapa

    de Antares, aparece a primeira cronologia pensada por Erico para a organi-

    zao dos fatos. Nela, as personagens Pulquria, Tristo e Angelito morrem

    na sexta-feira, dia 14, e tm seu cortejo fnebre no sbado, dia 15; Erotildes

    e Bomio morrem dia 15 e chegam ao cemitrio dia 16; enquanto

    Demstenes e Anarco morrem dia 16 e chegam no mesmo dia ao cemit-

    rio. O ladro agiria dia 16, na madrugada de domingo; dia 17 haveria a

    marcha dos mortos sobre Antares, os quais retornariam ao cemitrio na

    tardinha da segunda-feira, dia 18.

    No possvel precisar em que momento Erico altera essa cronologia,

    mas o fato que, nos esboos, j aparecem as datas que permanecero at o

    livro publicado, a saber, 11, 12, 13 e 14 de dezembro. Tal alterao tem uma

    relao direta com a realidade brasileira, pois no dia 13 de dezembro, de

    3

    GASTAL, Ney e PRZYBYLSKI, Susana. Erico Verissimo, o Homem de Antares. Correio do

    Povo. Porto Alegre, 24.out.1971, p.21.

    4

    Um pas em julgamento. Veja. So Paulo, 17.nov.71, p.90-2. Literatura.

    5

    FERNANDES, Carlos M. Verissimo: evite o espelho mgico. O Estado de So Paulo. So Pau-

    lo, 12.mar.1972, Capa. Suplemento Literrio.

    O fantstico e a censura: Incidente em Antares de Erico Verissimo

  • 194

    1968, foi assinado o Ato Institucional n.5, cujo texto, em muitos pontos,

    reiterava disposies dos dois primeiros atos institucionais, mas havia uma

    diferena importante: no se estipula prazo para sua vigncia. Seriam per-

    manentes os controles e a suspenso das garantias constitucionais (ALVES,

    1985, p.131). Com a escolha da nova data exatamente para o dia 13 de

    dezembro, sendo ainda uma sexta-feira, Verissimo refora a ligao de In-

    cidente em Antares com o momento poltico brasileiro. Isto , a marcha dos

    mortos sobre Antares e as denncias no coreto da praa acontecem nesse

    dia, para marcar o pice da arbitrariedade da ditadura militar, estabelecen-

    do, pois, uma relao heteroglssica entre o romance e o mundo que o

    cercava.

    A data no , contudo, o nico elemento que o autor modifica. O elen-

    co de personagens, pensado inicialmente, inclua um menino, Angelito, que

    foi descartado ainda nos Estados Unidos, por sugesto da esposa: Mafalda

    says she doesnt like the idea of having Angelito in the cast. I agree. Replace

    him for the new character. The pianist who failed and wants to come back

    famous. Appassionata

    6

    . A esse respeito, Erico diz, numa entrevista, que,

    segundo o primeiro projeto, havia tambm entre os sete mortos uma cri-

    ana. Minha mulher me chamou a ateno para a inutilidade e os perigos

    dessa personagem. Achei que ela tinha razo. Foi nessa hora que bateu a

    minha porta um homem alto, magro de teste (sic) olmpica e olhar desvai-

    rado. Disse que se chamava Menandro Olinda, era pianista e comeou a

    me contar o seu drama. Est bem - disse-lhe eu - Voc entra no romance

    no lugar do menino

    7

    . Substituindo a criana pelo pianista, Verissimo acres-

    centa a Incidente em Antares o elemento artstico, sempre representado em

    seus textos. Desde Fantoches, sua obra est recheada de personagens que se

    dedicam s artes, como escritores, pintores, msicos, enfim, uma ampla

    galeria de artistas.

    Para a escritura da segunda parte, o autor abandona o narrador-histo-

    riador, passando a relatar os fatos a partir da perspectiva de um narrador

    onisciente em 3.pessoa. Isso vale dizer que a pardia desloca-se do nvel do

    discurso para o nvel das aes e que no encontramos mais a marca de

    primeira pessoa no narrador-organizador. No entanto, algumas persona-

    gens assumem, por vezes, a tarefa narrativa, como o padre Pedro Paulo ou

    o jornalista Lucas Faia.

    Erico Verissimo teve dificuldades em acompanhar a descida dos sete

    6

    ALEV 04b0062-70: Agenda com notas manuscritas. Data: 05.jul.70

    7

    FERNANDES, Carlos M. Verissimo: evite o espelho mgico. O Estado de So Paulo. So Pau-

    lo, 12.mar.1972, Capa. Suplemento Literrio.

    LIMA E SILVA, Mrcia Ivana

  • 195

    mortos para o centro da cidade de Antares, revelando numa entrevista que

    na hora em que os defuntos se levantaram faltou-me a coragem de segui-

    los rua abaixo, at ao coreto da praa. Usei duma artimanha: descrevi a

    dramtica descida atravs da prosa barroca do jornalista Lucas Faia

    8

    :

    Essa marcha dos mortos rumo do centro de Antares seria descrita

    mais tarde em prosa barroca por Lucas Faia:

    Foi na ltima sexta-feira 13 deste clido e, j agora, trgico dezem-

    bro. O dia amanheceu luminoso, de cu limpo e translcido, e a nossa

    cidade, o rio e as campinas em derredor semelhavam o interior duma

    imensa catedral plateresca, toda laminada pelo ouro dum sol que mais

    parecia um ostensrio suspenso no altar do firmamento. As cigarras

    cantavam nas rvores e as formigas trabalhavam na terra, bem como

    na fbula do grande La Fontaine. Tudo parecia em paz no mundo.

    Era mais um dia na vida de Antares - pensavam decerto os que des-

    pertavam para a faina cotidiana. Mas ai! Mal sabiam eles do lgido

    horror que os esperava!

    Segundo o testemunho dos grevistas que guardavam a boca das ruas

    que, por assim dizer, desguam como rios de pedra no esturio da

    esplanada do campo-santo local, seriam cerca de sete horas da ma-

    nh quando, ao se aproximarem do cemitrio, eles viram, estupefatos

    uns, incrdulos outros, erguerem-se de seus fretros os sete mortos que

    estavam insepultos por culpa desses mesmos grevistas. Tomados de

    pnico os operrios romperam em fuga desabalada. Um deles tom-

    bou vtima de um colapso cardaco, felizmente no fatal.

    A brnzea voz do sino da nossa Matriz chamava os fiis para a missa

    das sete quando os sete mortos, em sinistra formatura, desceram so-

    bre a cidade, ao longo da popular Rua Voluntrios da Ptria, seme-

    ando o susto, o pavor e o pnico. Pareciam - segundo o depoimento de

    vrias pessoas idneas ouvidas pelo nosso reprter - figuras egressas

    dum grotesco museu de cera.

    Testemunhas visuais (e olfativas!) do fato so unnimes em afirmar

    que os defuntos se moviam de maneira rgida, como bonecos de mola

    a que algum - Deus ou o diabo? - tivesse dado corda. E seus olhos,

    fitos num ponto indefinvel do horizonte, estavam cobertos duma es-

    pcie de pelcula que para uns parecia viscosa e brilhante e para ou-

    tros fosca. Causou estranheza o fato de seus corpos no produzirem

    nenhuma sombra. No foram poucos os cidados antarenses que re-

    cusaram dar crdito ao que viam, julgando-se vtimas de uma aluci-

    nao. Mortos ressurrectos? Fantasmas? Era incrvel! Pavoroso! Algo

    de indito no s nos anais desta comuna como tambm nos da Hu-

    8

    FERNANDES, Carlos M. Verissimo: evite o espelho mgico. O Estado de So Paulo. So Pau-

    lo, 12.mar.1972, Capa. Suplemento Literrio.

    O fantstico e a censura: Incidente em Antares de Erico Verissimo

  • 196

    manidade! E aquilo acontecia na nossa querida e pacata Antares!

    ramos, entretanto, obrigados a dar crdito a pelo menos trs de nos-

    sos sentidos - o da viso, o da audio e o do olfato - j que nada

    podamos dizer dos dois restantes, pois ningum havia tocado os cor-

    pos daqueles mortos ambulantes e muito menos - perdoe-se-me a bru-

    tal aluso - provado de suas carnes putrefatas. E mesmo agora, passa-

    da a crise, ao escrever as presentes linhas, este jornalista ainda se per-

    gunta se tudo no foi apenas um sonho mau sofrido por toda uma

    populao, ou, antes, um pesadelo que oprimiu nossa cidade como

    uma nuvem de escuro chumbo (VERISSIMO, 1981, p.258-9).

    Partindo das anotaes gerais sobre a chegada dos mortos cidade,

    Erico cria a imagem que pretendia: ao mesmo tempo, macabra e grotesca.

    Uma boa descrio do grupo nos dada atravs no apenas de seu aspec-

    to fsico, mas tambm da impresso que eles causam nos passantes. Assim,

    a cor da pele est implcita no fato de os mortos parecerem ter sado de um

    museu de cera, o que lhes d a aparncia de vivos, mas a imobilidade, prin-

    cipalmente a dos olhos, lhes restitui sua imagem prpria, a de mortos. O

    acrscimo do adjetivo grotesco em relao ao museu marca de forma cla-

    ra a imagem que Erico buscava, ajudada pela idia de haver algum a dar

    corda nos bonecos de mola, conferindo ao quadro uma aparncia bizarra

    de alucinao, exatamente como o povo e, principalmente, as autoridades

    gostariam que fosse. O clima de pesadelo j era uma expectativa do autor,

    percebida na anotao Is this 2nd. part a wild nightmare, escrita em seu

    caderno de notas em 22 de novembro

    9

    . Ao acrescentar a incerteza do

    narrador quanto ao fato de ser Deus ou o diabo a manejar os bonecos, o

    autor est novamente dando um carter ambivalente aos mortos, prepa-

    rando-nos para os acontecimentos posteriores ao incidente, alm de con-

    cretizar a perspectiva macabra. Os defuntos so abominveis aos

    antarenses, porque seus corpos apresentam as falhas que so normalmente

    escondidas na nossa vida cotidiana, em especial com relao ao mau cheiro

    crescente que deles exala.

    O efeito conseguido atravs do exagero no emprego de adjetivos e de

    imagens deslocadas, caracterizando a prosa barroca do jornalista. A ma-

    tria jornalstica comea com uma descrio do dia, atravs de imagens

    deslocadas e exageradas, comparando o sol a um ostensrio e o cu a um

    altar, valendo-se Erico da profuso, do hiperbolismo, de acordo com

    Bakhtin, como os sinais caractersticos mais marcantes do estilo grotesco

    (BAKHTIN, 1987, p.265). A introduo barroca contrasta com a descri-

    9

    ALEV 04b0062-70: Agenda com notas manuscritas.

    LIMA E SILVA, Mrcia Ivana

  • 197

    o objetiva dos mortos, dizendo que estavam em sinistra formatura e

    que se moviam de maneira rgida, como bonecos de mola, cujos olhos

    estavam cobertos de uma espcie de pelcula viscosa e brilhante ou fosca,

    objetividade essa muito mais caracterstica do estilo jornalstico. Vale acres-

    centar que os dois adjetivos, brilhante e fosca, utilizados para a caracte-

    rizao da pelcula dos olhos so paradoxais, mostrando que o jornalista se

    valeu tambm da viso dos outros para construir seu artigo.

    A prosa do jornalista barroca, no sentido do exagero no uso de

    adjetivaes, interjeies e interrogaes, de incio comentado pelo

    narrador-organizador. Em seu discurso, as marcas ideolgicas ficam apa-

    rentes, com a conservao de determinados termos, prprios do pensa-

    mento do jornalista. Interessado em manter suas boas relaes com os

    mandantes da cidade e com os anunciantes do jornal, ele absorve, em seu

    artigo, a fala deles como se fosse sua. Ao usar por culpa, quando se refere

    aos grevistas, Lucas Faia est, na verdade, reproduzindo o discurso do pre-

    feito, do coronel Tibrio e, em especial, dos donos das indstrias, particu-

    larmente atingidos pela greve; ele est vivificando o confronto de interes-

    ses sociais e deixando transparecer a heteroglossia que rege seu discurso.

    Dos sete mortos insepultos que vo para o coreto da praa de Antares

    julgar os vivos, darei uma especial ateno personagem Joo Paz, porque

    sua presena entre os mortos marca a denncia mais contundente da situ-

    ao arbitrria pela qual passava o Brasil no incio da dcada de 70.

    Joo Paz uma das poucas personagens, que aparece somente na se-

    gunda parte. Ele no fazia parte do elenco, quando Erico pensou nos de-

    funtos pela primeira vez, no verso do mapa de Antares, ou, ao menos, no

    tinha esse nome. Provavelmente Joo Paz era Tristo, que morria na sexta-

    feira, dia 14, e ia para o cemitrio no sbado, dia 15. Nossa desconfiana

    recai sobre essa personagem, porque ela a nica que, no mapa, est relaci-

    onada a uma mulher, Isolina,

    10

    assim como Joo Paz o nico dos mortos

    que procura sua esposa, porque tem uma relao de amor com o mundo

    dos vivos. Rita e Joo Paz parecem ter sido pensados por Erico sempre como

    um par, pois, em seu dirio, mantido nos Estados Unidos, os dois esto

    sempre juntos nas anotaes.

    O depoimento de Joo Paz o mais importante nessa espcie de tribu-

    nal que se instaura em Antares. Ccero Branco, que funciona como um

    10

    Nesse primeiro projeto, h uma clara aluso ao mito de Tristo e Isolda, com a transforma-

    o do nome da personagem feminina para Isolina. No sabemos o que Erico planejava para

    essas duas figuras, mas podemos perceber uma relao com o mito, pelo desencontro amoro-

    so em conseqncia da morte.

    O fantstico e a censura: Incidente em Antares de Erico Verissimo

  • 198

    advogado (perpetuando na morte sua condio em vida), assim chama a

    personagem a depor:

    Ccero, com ambas as mos segurando a grade da balaustrada do

    coreto, dirige-se ao povo:

    - Senhores, um momento! A testemunha mais importante ainda

    no deps. - Volta-se para trs e diz: - Cidado Joo Paz, chegou a

    sua vez!

    Inocncio Pigaro estremece e olha automaticamente para o filho.

    Desta vez os olhares de ambos se encontram. Inocncio o primei-

    ro a desviar o seu.

    Arrastando uma perna, Joozinho aproxima-se do advogado. O sol

    bate-lhe em plena cara. Exclamaes de horror, de repugnncia e -

    mais raras - de piedade partem da multido.

    - Os prceres e o povo de Antares - diz Ccero Branco - podem ver

    agora em plena luz meridiana a operao plstica que o delegado

    Inocncio Pigaro e seus carrascos fizeram na cara e no corpo des-

    te moo.

    Inocncio d trs passos frente e grita: Mentira!. Uma assuada

    tremenda, porm, sacode as rvores: Ban-di-do! Ban-di-do! Ban-

    di-do!. O delegado estaca, olha em torno, atarantado, faz uma vol-

    ta completa ao redor de si mesmo e finalmente fica parado, mas

    num equilbrio instvel, olhando na direo do coreto. O advoga-

    do dos mortos continua:

    - Me digam se algum reconhece nesta face quase reduzida a um

    mingau de carne batida a fisionomia do nosso Joozinho Paz!

    Dr.Falkenburg! Dr.Lzaro! Mdicos de Antares! Ser assim que fi-

    cam sempre os que morrem de embolia pulmonar?

    Um pesado silncio segue-se a estas palavras.

    - Num certo dia deste mesmo dezembro Joo Paz foi preso sob a

    falsa acusao de estar treinando secretamente na nossa cidade um

    bando de dez guerrilheiros esquerdistas do qual ele era suposta-

    mente o chefe. Sua priso foi efetuada da maneira mais irregular.

    Joo Paz foi levado para o famoso poro da nossa delegacia onde

    se processam os interrogatrios mais brutais. Inocncio Pigaro

    fez perguntas ao prisioneiro, ordenou-lhe que dissesse o nome dos

    outros dez membros do grupo. Joozinho negou-se a isso porque

    nada sabia, pois tal grupo no existe em Antares! Inocncio Pigaro

    entregou o subversivo aos cuidados de seu especialista em in-

    terrogatrios, o famigerado Boquinha de Ouro... que deve estar

    em algum lugar desta praa e que espero esteja me ouvindo.

    - Tudo isso verdade? - pergunta Tibrio Vacariano, olhando duro

    para o prefeito.

    - Eu no sei de nada... de nada... - balbucia Vivaldino.

    Barcelona ergue-se, sbito, e grita:

    LIMA E SILVA, Mrcia Ivana

  • 199

    - Mentira! Todo mundo sabe que voc sempre deu carta branca ao

    seu delegado, que por sua vez dava carta branca ao seu carrasco...

    - Que por sua vez - termina Ccero - dava carta branca aos seus

    instintos sdicos. Acho que todos podero ver estas manchas arre-

    dondadas na cara e nas mos de Joo Paz... Pois foram produzidas

    por pontas de cigarros acesos, na primeira fase do interrogatrio...

    coisa leve, digamos... uma espcie de bate-bola inicial...

    (...)

    - Joozinho agentou tudo firme - torna a falar o advogado - e no

    pronunciou um nome sequer. O Boquinha de Ouro perguntava:

    Quem so os outros dez? Vamos!. E o prisioneiro respondia: No

    sei. Os carrascos passaram ento segunda fase do interrogatrio.

    Dois brutamontes puseram-se a bater em Joozinho, aplicando-

    lhe socos e pontaps no rosto, na boca do estmago e nos testcu-

    los... Peo perdo, senhoras e senhores puritanos, por ter usado a

    palavra testculo, mas posso assegurar-vos que os socos e pontaps

    doeram mais nessa parte da anatomia de Joo Paz do que a palavra

    testculo pode doer nos delicados ouvidos da vossa moral verbal.

    (...)

    - Esto vendo esse olho quase fora da rbita? - pergunta Ccero

    Branco. - Parece um ovo de codorna... sim, e esse sangue coagula-

    do que tem por cima lembra catchupe seco... Se me perdoam pelo

    mau gosto da metfora, as plpebras e a pele ao redor dos olhos de

    Joozinho lembram uma folha de repolho roxo. Guardem essa

    imagem para se lembrarem dela sempre hora das refeies. Um

    ovo de codorna em cima duma folha de repolho roxo. um excelente

    processo mnemnico e plstico (sinistra natureza morta) para no

    esquecer as crueldades de nossa polcia.

    LVIII

    Tibrio Vacariano ergue a mo:

    - Basta de infmias!

    Os arborcolas, que escutam o advogado em silncio, de repente

    pem-se a gritar: Velho podre! Velho caduco! Bandido!.

    - No terminei ainda - exclama o Dr.Ccero. - Esse olho foi quase

    arrancado por um golpe de soqueira... de quem, Joozinho?

    - Do prprio Boquinha de Ouro.

    - Agora, senhoras e senhores - continua o advogado - usem a ima-

    ginao. O prisioneiro depois de toda essa violncia recusa ainda

    falar. J desmaiou de dor duas vezes e foi revivido com gua gelada.

    Na fase seguinte aplicam-lhe pauladas no corpo todo e o resultado

    um brao quebrado em trs lugares. Vejam...

    Ccero Branco agarra o pulso do rapaz e num repelo faz que ele

    gire num movimento completo de hlice.

    (...)

    Os urubus agora voam ainda mais baixo, em crculo, sobre o core-

    O fantstico e a censura: Incidente em Antares de Erico Verissimo

  • 200

    to, como se quisessem tambm escutar a narrativa do advogado

    dos defuntos. (VERISSIMO, 1981, p.366-9).

    A revelao mais importante ocupou a maior parte da sesso do tribu-

    nal, at porque a que apresenta as provas mais visveis, ou seja, o prprio

    Joo Paz e as marcas em seu corpo. Ccero faz uma descrio grotesca da

    aparncia do torturado, utilizando metforas com alimentos, como se qui-

    sesse complementar um daqueles dois sentidos, o do paladar, a que Lucas

    Faia se referiu em seu artigo jornalstico. A esse respeito, Bakhtin afirma

    que o comer e o beber so uma das manifestaes mais importantes da

    vida e do corpo grotesco. As caractersticas especiais desse corpo so que

    ele aberto, inacabado, em interao com o mundo (BAKHTIN, 1987,

    p.245), do que se depreende a necessidade de relacionar o aspecto do tortu-

    rado comida, como forma de fazer o pblico interagir com os mortos. O

    uso da metfora um ovo de codorna sobre uma folha de repolho roxo

    atinge especialmente a classe social alta, pois essa comida especfica dos

    ricos, o que faz com que eles nunca mais pensem nela como um simples

    alimento, ao menos at que todos esqueam os acontecimentos daquela

    sexta-feira, 13 de dezembro. A reao da audincia permanece dando o

    clima de julgamento, e os urubus aproximam-se mais do coreto, aumen-

    tando, assim, a sensao de carne putrefata e de mau cheiro.

    A denncia da tortura sofrida por Joo Paz o ponto culminante das

    acusaes dos mortos, funcionando como seu coroamento. Essa perso-

    nagem permanece sendo a nica que possua em vida uma relao fami-

    liar saudvel e afetiva, o que a faz manter um elo com o mundo dos vivos.

    No caso de Paz, sua morte garantir a sobrevivncia de sua mulher e o

    nascimento de seu filho. Por isso, necessrio que ela fuja, para que a

    esperana no morra. A esse respeito, Flvio Loureiro Chaves alerta que,

    dentre os mortos, apenas um est ainda preso vida: Joo Paz, assassi-

    nado na cmara de torturas, volta com a obsesso de rever a mulher Rita.

    [...] As poucas horas que lhe restam em Antares consome-as cuidando da

    fuga dos dois, que, finalmente, cruzam o rio rumo ao desconhecido

    (CHAVES, 1972, p.85).

    Alm da nota de esperana que o drama de Rita e Joo Paz encerra, a

    figura do torturado est em estreita relao com a realidade que cerca o

    momento de escritura do romance. Segundo Maria Helena Moreira Alves,

    no perodo de 1969 a 1974, organizaes internacionais religiosas e de

    direitos humanos obtiveram provas da existncia no Brasil de centros se-

    cretos de tortura, onde muitas vezes desapareciam os presos (ALVES, 1985,

    p.166). De uma certa forma, houve a institucionalizao desse tipo de in-

    terrogatrio de prisioneiros, principalmente polticos, porque, alm de ser

    LIMA E SILVA, Mrcia Ivana

  • 201

    uma maneira eficiente de conseguir informaes, a tortura

    institucionalizada ainda mais importante como mtodo de controle po-

    ltico da populao em geral, prossegue a autora (ALVES, 1985, p.168).

    Nesse sentido, a situao de Joo Paz funciona como uma crtica prtica

    da tortura, reproduzindo heteroglossicamente o que se sabia de forma ve-

    lada, mostrado no romance de maneira explcita.

    11

    Os seis outros mortos, alm de Joo Paz, denunciam: Ccero Branco, as

    falcatruas polticas; Quitria Campolargo, os artifcios da classe dominan-

    te para se manter no poder; Barcelona e Erotildes, a hipocrisia dessa mes-

    ma classe em relao moral e os bons costumes; Pudim de Cachaa, bem

    como a prostituta tambm, denunciam o descaso dos governantes no que

    diz respeito classe baixa; e, finalmente, Menandro Olinda, a arte, sempre

    representada na obra de Verissimo.

    12

    Os crimes polticos e de peculato no

    so os nicos a serem denunciados, pois Verissimo faz questo, desde o

    primeiro rascunho, de revelar a hipocrisia da classe dominante. Assim, a

    infidelidade conjugal e o homossexualismo velado so trazidos ao conhe-

    cimento do povo, no sentido de desmascarar os falsos defensores da moral

    e dos bons costumes. Para isso, o autor coloca em cena a prostituta Erotildes,

    deflorada por um digno cidado da cidade, merecedor de uma esttua, e

    sempre sustentada por homens casados, como o coronel Tibrio Vacariano.

    Alm dela, o sapateiro Barcelona cumpre o papel de tirar a mscara da-

    queles antarenses cujo discurso no condiz com as atitudes.

    Para que tudo volte ao normal na cidade, implantada a Operao

    Borracha, sugerida pelo professor Libindo Olivares, que a expe numa reu-

    nio dos pr-homens de Antares:

    - Eis o que proponho - respondeu o amigo de Plato, Scrates e

    outros filsofos da antigidade. - Organizar uma campanha muito

    hbil, sutilssima, no sentido de apagar esse fato no s dos anais de

    Antares como tambm da memria de seus habitantes. Sugiro (aqui

    entre ns) um nome para esse movimento: Operao Borracha.

    (VERISSIMO, 1981, p.461)

    Erico Verissimo declarou numa entrevista que segundo o plano inici-

    al, quando o pessoal de jornal, rdio e televiso de Porto Alegre chegava a

    11

    Nesse caso, a vida imitou a arte: o jornalista Wladmir Herzog foi morto, em 1974, durante

    uma sesso de tortura, tendo sido simulado seu suicdio, como forma de encobrir a verdade

    (cf. Zero Hora. Porto Alegre: 29.out.1995).

    12

    Um estudo minucioso do papel social de cada um dos mortos encontramos na obra de

    Joaqun Suro.

    O fantstico e a censura: Incidente em Antares de Erico Verissimo

  • 202

    Antares, os mortos estariam ainda no coreto. Tive de mudar isso para tor-

    nar possvel um novo rumo que s me ocorreu no fim do romance: a Ope-

    rao Borracha, tendente a apagar a histria dos mortos no coreto e as suas

    acusaes sociedade antarense

    13

    . A Operao Borracha requer habili-

    dade e sutileza dos executores, qualidades que expressam muito melhor o

    carter da campanha, ou seja, atravs da constante negao, apagar os ves-

    tgios do ocorrido, na sexta-feira 13, da histria da cidade, contando com a

    ajuda do tempo e do bom senso das pessoas. Novamente Antares o

    microcosmo que repete o macrocosmo, pois possvel estabelecer um pa-

    ralelo entre a Operao Borracha de Antares e a Operao Limpeza,

    empreendida no Brasil aps a assinatura do Ato Institucional n.1, em abril

    de 1964.

    A Operao Limpeza caracterizava-se como sendo os esforos desti-

    nados a ativar as foras repressivas e dar ao Estado controle sobre reas

    polticas, militares e psicossociais (ALVES, 1985, p.56). Previa um conjun-

    to de medidas que visavam a restabelecer a segurana nacional, atravs da

    identificao e eliminao do inimigo interno. Guardadas as devidas pro-

    pores e diferenas, as duas operaes apresentam os mesmos meios, isto

    , pressionar a opinio pblica a fim de limpar a sociedade, a operao

    verdadeira, e a memria dos fatos, a ficcional. Assim, a Operao Borra-

    cha de Antares estabelece mais uma relao heteroglssica entre o roman-

    ce e o mundo que o cerca.

    Todos essas informaes da segunda parte de Incidente em Antares nos

    chegam atravs do narrador-organizador que ordena o universo ficcional,

    distribuindo as tarefas e as falas das personagens. Diferentemente do que

    ocorre na primeira parte do romance, o narrador de O incidente adota a

    terceira pessoa gramatical, abandonando a primeira, utilizada em Antares.

    Enquanto na parte inicial do texto nos deparamos com o narrador-histori-

    ador, entidade que parodia a maneira do contador dos relatos histricos,

    na parte final estamos diante de um narrador onisciente, que desloca a

    pardia para dentro da narrao, para a ao mesma.

    Se, na primeira parte, Verissimo parodia, no nvel do discurso, O tempo

    e o vento, atravs do narrador-historiador que faz uso do ns, na segunda

    parte, o autor retoma a tcnica do contraponto, atravs do narrador-

    organizador em 3

    a

    pessoa, abandonando a perspectiva histrica, preocupa-

    da com a sucesso cronolgica, para deter-se na apresentao do cotidiano

    das diversas personagens, no mais numa distncia de sculos, anos ou

    13

    FERNANDES, Carlos M. Verissimo: evite o espelho mgico. O Estado de So Paulo. So

    Paulo, 12.mar.1972, Capa. Suplemento Literrio.

    LIMA E SILVA, Mrcia Ivana

  • 203

    meses, mas na marcao da concomitncia temporal em relao s horas

    do dia ou dos dias que se sucedem. Adotando essa tcnica, o autor estrutu-

    ra a segunda parte de Incidente em Antares dentro da simultaneidade nar-

    rativa que entrecruza vrias histrias, ao contrrio de seu procedimento na

    primeira parte, que obedece a linearidade.

    O fantstico, aqui o realismo maravilhoso, utilizado no romance

    como forma de burlar a censura que proibia a veiculao de obras, cujo

    tema fosse a situao social e poltica do Pas. A denncia de tal situao

    era feita, quando feita, de forma sutil, transformando-se, assim, o fants-

    tico em meio para alcanar esse intento, j que ele precisa ser interpreta-

    do para ser compreendido como denunciatrio. Publicado em 1971, no

    auge da Ditadura Militar no Brasil, o romance Incidente em Antares no

    foi proibido e foi largamente lido, exatamente porque alcanou seu

    objetivo: denunciar, atravs de recursos fantsticos planejados e

    construdos, a podrido daquele sistema que estava morto, podre e fe-

    dendo, mas insistia em permanecer de p.

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    LIMA E SILVA, Mrcia Ivana