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Page 1: O ESTADO LIBERAL: ENTRE O LIBERALISMO … · LIBERALISMO ECONÔMICO E A NECESSIDADE DE REGULAÇÃO JURÍDICA ... Se han ocupado de propagar la ideología del laissez faire y de los

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 8 | n. 15 | Jan./Jun. 2006. 1 7 91 7 91 7 91 7 91 7 9

O ESTADO LIBERAL: ENTRE OLIBERALISMO ECONÔMICO E A

NECESSIDADE DE REGULAÇÃO JURÍDICA

André Felipe Canuto Coelho*

Resumo: O estudo averigua como a ideologia do liberalismoeconômico modelou o Estado e como o direito foi apropriado poressa ideologia. Por fim, abordaremos uma realidade que hoje éconsiderada óbvia, mas que foi obscurecida no Estado liberal: a deque o mercado só existe em razão do Estado.

Palavras-chave: Estado – liberalismo - mercado

Resumé: On examine comment l’idéologie du liberalisme économique amodelé l’État et comment le droit a été approprié par cette idéologie.Enfin, on aborde une réalité considerée évidente aujourd’hui, obscurcie,néanmoins, pendant l’État liberal: celle de que le marché n’existe qu’enraison de l’État.

Mots-clé: État – libéralisme - marché

1 Considerações iniciais

Se han ocupado de propagar la ideología del laissez faire y de los efectosbeneficiosos de la libre actuación de las fuerzas del mercado; han hecho máspara desviar la atención de los verdaderos mecanismos de la economíacapitalista que para aclararlos.

Joan Robinson

Existe uma relação inevitável entre os modelos de Estado, suaforma de intervenção na ordem econômica e o pensamentoeconômico prevalecente. Partilhamos aqui do posicionamentode Heller quando observa que a economia não é o únicoelemento da real idade soc ia l que afe ta a es t ru tura e anormatização estatal, mas “em uma sociedade capitalista,certamente é decisiva, e sem o seu conhecimento não é possível

*O autor é economista, bacharel em Direito, mestre em Direito pela UFPE e doutorando em Ciência Política pela UFPE.Exerce atualmente o cargo de Auditor Fiscal da Receita Federal e é professor de Direito Administrativo e Econômico.

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levar a cabo uma frutífera investigação sobre o Estado.”1

No Estado liberal típico dos países capitalistas centrais o que seesperava, de acordo com a ideologia econômica preponderante, eraum Estado que devia ser mínimo, apenas intervindo na vida social eno mercado para assegurar as condições estritamente necessáriaspara que a sociedade e a economia atuassem por si sós; que erajustamente a ordem da autoregulação própria da lógica racionalista,e que coincidia com a lógica da autoregulação do mercado. Naprática, inobstante, o que se observou nesses mesmos países foi queo Estado liberal, através do direito, estimulou e criou mecanismospara o progresso da atividade econômica.2

Trataremos, por conseguinte, nesse estudo, da modelagem doEstado liberal consoante a ideologia do liberalismo econômico (II) erevelaremos como o direito, no campo teórico, foi apropriado poressa ideologia (III). Por fim, abordaremos uma realidade que hoje éconsiderada óbvia, mas que foi obscurecida no Estado liberal: a deque o mercado só existe em razão do Estado (IV).

2 O liberalismo econômico a moldar a estruturaestatal

Com o acentuado desenvolvimento comercial iniciado nos estertoresdo século XV, uma nova personagem começa a atrair e exigir cadavez mais atenção: o mercado. Este se configura como um sistema deconfronto e harmonização de interesses individuais baseados emregras próprias, impermeáveis à vontade do Estado. Nesse sentidopodemos dizer que do ponto de vista do liberalismo econômico, omercado é uma barreira ao Estado, uma zona livre de sua intervençãoe, assim, um critério visível da liberdade individual.3

Hobbes e sua filosofia individualista amoldam-se com perfeição ao

1 HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad. L. Tobio. México: Fundo de Cultura Econômica, 1998, p. 143. Entre nósW. P. A. SOUZA observa que não é possível estudar os problemas econômicos sem analisar a organização doEstado, nem a estrutura e o funcionamento dos órgãos deste, sem se debruçar sobre os problemas econômicos(FRANÇA, Rubens Limonge (coord.) Enciclopédia Saraiva de Direito. Saraiva: São Paulo, 1977-1982, v. 31, p. 250).2 Alberto VENÂNCIO FILHO mostra que o laissez-faire foi bastante atenuado tanto nas relações externas dospaíses, com a adoção do protecionismo, quanto nas relações internas por intermeio de políticas fiscais, sociais emonetárias (A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 6)3 Nesse sentido se poderá afirmar que é da atividade individual que decorrem as explicações para os fatos sociais.Estamos no domínio do individualismo epistemológico. A expressão é de KOLM, Serge Christophe. Le liberalismemoderne. Paris: PUF, 1984, p. 185.

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modo de vida dos capitalistas produtores que começavam a entrar noramo do comércio: os interesses pessoais e egoístas seriam os motivosbásicos, senão os únicos, que levariam os homens a agir.4 Cada um serelacionaria com o seu próximo tendo em vista algum interesse e nãopor conta de uma integração social com base em normas e valores.5

Trata-se de um tipo específico de individualismo possessivo, segundoo qual o homem seria um ser independente, que agiria de acordo como seu próprio interesse e nada deveria à sociedade.6

Weber vem ressaltar que com o estabelecimento do protestantismoem muitos países europeus, a sua ética permitiu que os homens selançassem, sem culpa, nesse desejo desenfreado pelo material, comose o impulso para a aquisição fosse uma representação do própriodesejo de Deus refletido nos homens.7

A grande repercussão da famosa Fábula das AbelhasFábula das AbelhasFábula das AbelhasFábula das AbelhasFábula das Abelhas deMandeville, editada no início do século XVIII, é bastante indicativaao propor uma verdadeira reviravolta nos valores: o vício privado,ou seja, o egoísmo e ganância, seriam as molas propulsoras para oprogresso da humanidade, ao impulsionar a busca desenfreada pelomaterial. Eram justamente essa combinação de esforços mesquinhose individualistas que garantiriam a harmonia na sociedade.8

Defende-se, a partir de então, a teoria segundo a qual a economiaestá sujeita a leis naturais que a levam fatalmente a uma situação deequilíbrio entre os integrantes do mercado, com frutos positivos paratoda a sociedade, que será rica se os seus integrantes o forem. Aeconomia começa a se separar progressivamente não somente dapolítica como também da moralidade: ela impõe uma moralidadeprópria, segundo a qual a atividade econômica seria naturalmenteorientada para o bem, de modo que não poderia ser julgada segundocritérios morais vigentes em uma sociedade.9

4 HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, passim.5 DUMONT, Louis. O individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Trad. A. Cabral. Rio deJaneiro: Rocco, 2000, p. 99.6 MACPHERSON, Crawford Brough. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1979.7 Se Deus vos aponta um meio pelo qual legalmente obtiverdes mais do que por outro (sem perigo para a vossaalma ou para a de outro), e se o recusardes e escolherdes um dos fins de vossa vocação, e recusareis a ser o servode Deus, aceitando suas dádivas e usando-as para Ele, quando ele assim o quis. Deveis trabalhar para serdes ricospara Deus e, evidentemente, não para a carne ou para o pecado. Aqui cita Max WEBER parte do sermão do pastorlusitano Richard Baxter em Works of puritan divines. Dublin: Stretch, 2001, p. 27.8 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. São Paulo: Paulinas, 1999, v. 11, pp. 799-804.9 DUMONT, Louis. Op. cit., p. 95.

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Adam Smith foi decisivo na consolidação de um pensamentosegundo o qual a busca pelo auto-interesse egoísta conduziriainevitavelmente ao progresso social. Sua mão invisível, que atuariaharmonizando os interesses sociais, apesar de não passar de umacrença, passou a ser aceita como verdade absoluta, constituindo-sea base do liberalismo econômico. Ora, dado que os interessesprivados levavam ao interesse coletivo, não havia porque não segarantir aos agentes econômicos a maior liberdade possível:

Portanto, sem qualquer intervenção da lei, os interesses privados e as paixões doshomens levam-nos, naturalmente, a dividirem e a distribuírem o capital dequalquer sociedade entre os diferentes empregos com ele realizados, tanto quantopossível, na proporção mais vantajosa para o interesse de toda a sociedade. Asvárias regulamentações do sistema mercantil vêm, necessariamente, perturbaresta distribuição natural e muito vantajosa do capital.10

A teoria econômica do Estado liberal se completa com o utilitarismode Bentham:11 o objetivo principal de uma sociedade seria amaximização da felicidade individual, dos apetites de cada um,colocando assim os direitos naturais num segundo plano. A própriamoralidade e a ética se tornaram um cálculo de felicidades.12 Outilitarismo propõe um modelo de racionalidade que posteriormentefica conhecido como homo oeconomicus: um homem que é ummaximizador racional e egoísta de prazer, capaz de determinar suasações de forma estratégica e por meio de cálculos racionais deutilidade, pouco importando suas emoções, seus hábitos, sua culturae suas contingências. Outros postulados se afirmaram a partir do homooeconomicus, cuja influência persiste até os dias atuais: (i) a idéia deque o mercado tende sempre ao equilíbrio, numa confirmação damão invisível de Smith e (ii) o entendimento de que a economia seriauma ciência decorrente da observação, cujas leis seriam naturais.Nesse sentido, o mercado se torna uma força incontrolável a quetodos devem submissão.13

Haveria uma perfeita harmonia no sistema capitalista já que todos

10 SMITH, Adam. A Riqueza das nações. Trad. A. S. Lima. São Paulo: Martins Fontes, 2003, v. 2, p. 443.11 VILLEY, Michel. Leçons d’histoire de la philosophie du droit. Paris: Dalloz, 2002, p. 73.12 DUMONT, Louis. Homo aequalis. Trad. José Leonardo Nascimento. BAURU: EDUSC, 2000, p. 115.13 Segundo LOPES, Ana Frazão de Azevedo. O abuso do poder econômico no Estado Democrático de Direito.Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Direito e Estado pela Faculdadede Direito da UNB. Brasília, 2003, p. 51.

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os detentores dos meios de produção – o capitalista, o trabalhador e oproprietário de terras – teriam seus insumos, capital, terra e força detrabalho, remunerados de acordo com sua utilidade para a produção.Ademais, como a avaliação dessas utilidades seriam subjetivas, nãopoderia haver discussão ética alguma acerca das mesmas.

Já no último quartel do século XIX, alguns dos postulados da teoriaeconômica tiveram que ser revistos uma vez que o sistema começavaa apresentar distorções. A grande prosperidade econômica daInglaterra durante os vinte anos anteriores (1850-1870) gerando umaexpressiva acumulação de capital e um conflito social entre patrões eempregados destacou o problema da má alocação de recursos14 . Oque a teoria econômica tinha a dizer? A resposta veio ainda na décadade 1870 na roupagem da teoria neoclássica.

A teoria neoclássica apenas se distinguia de sua antecessora pela ênfaseno conceito de utilidade marginal15 e na idéia de consumidor emsubstituição ao capitalista individual, persistindo no utilitarismo e na crençano equilíbrio do mercado, no laissez-faire, na racionalidade absoluta dohomem e na suposta neutralidade valorativa da ciência econômica.

Como a teoria neoclássica tinha como objetivo buscar a melhoreficiência alocativa dos recursos econômicos escassos, sua grandequestão era encontrar o ponto ótimo de equilíbrio, em que consumidorese produtores maximizam respectivamente a satisfação e o lucro.16

O modelo de equilíbrio neoclássico apresenta, inobstante, umagrande deficiência: ele é estático, toma a situação dos consumidorese da empresa como dados não questionados, não fazendo qualquerreflexão sobre os mesmos. Estão, assim, abstraídas da análise questõescruciais como as diferenças e as classes sociais17 , as relações de podere as desigualdades de riqueza. A proposta neoclássica é a demaximizar riquezas a partir de uma visão completamente abstratados agentes econômicos envolvidos.

Não é por acaso que a análise econômica neoclássica estruturou-se

14 Ibid., p. 54.15 A utilidade marginal depende não apenas da quantidade do bem, como também da intensidade do efeitoproduzido sobre o consumidor: o grau de utilidade varia com a quantidade de um bem mas fatalmente diminui namedida em que a quantidade aumenta. (JEVONS, William Stanley. A teoria da economia política. Trad. C. L. Morais.São Paulo: Abril Cultural, 1983, pp. 53-54).16 FEIJÓ, Ricardo. História do pensamento econômico. São Paulo: Atlas, 2001, p. 273.17 A questão das classes sociais estava muito presente na economia clássica, tanto que esta era conhecida comoEconomia Política. De forma contrária, a nova Economia marginalista abstrai as classes sociais e, com elas, as relaçõessociais, estando voltada, estando voltada para a relação psicológica entre indivíduos e bens de consumo. (Ibid., p. 270).

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muitas vezes em equações matemáticas nas quais os agentes sãoanaliticamente igualados. Era uma tentativa de aplicar à teoriaeconômica a igualdade formal que caracteriza o paradigma do Estadoliberal, abordada sob uma perspectiva cada vez mais próxima daengenharia e cada vez menos sujeita à decisão.18 Só que a utilizaçãoda linguagem matemática nos assuntos humanos gera um perigosoimpasse, pois “tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentamsó tem sentido na medida em que pode ser discutido.”19

3 O direito frente à teoria econômica

Em cada momento histórico, direito e economia se relacionaram deforma peculiar, como resultado do fenômeno cultural de que sãoexpressão. A relação direito-economia foi expressa, ao longo dos tempos,através de uma linguagem própria, formando um discurso propiciadorda imposição de princípios designados a reger a interação humana.20

O século XIX foi um período de crise para o direito ao ter suaeficácia e normatividade contestadas por diferentes formas depositivismo, dentre as quais o positivismo econômico, que pretendiase impor ao direito a partir da premissa de que as leis econômicasderivavam de fatos objetivos e observáveis.21 Na verdade, a teoriaeconômica, pretensamente justificada a partir de leis naturais foiimpondo os seus postulados sobre o direito e toda a sociedade,especialmente no que se refere ao utilitarismo e à idéia de que asleis do mercado seriam naturais e incontroláveis.

Nessa senda, o utilitarismo simplesmente impôs a regra do útilao direito, à justiça, às liberdades individuais e mesmo ao contratosocial22 . A maximização de utilidade apresentou-se como o objetivoprimordial da atividade econômica e mesmo dos demais âmbitosda vida civil. A questão do cumprimento ou não dos direitos e doatendimento ou não à justiça acabou tornando-se acessória.

18 SEN também destaca que especialmente a obra de Walras foi a grande responsável por uma abordagem engenheirada economia. (SEM, Amartya. Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 20-21).19 ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. R. Raposo. Lisboa: Relógio d’Água, 2001, pp. 14-15.20 Uma interessante análise da relação o mercado da sociedade econômica burguesa e seu direito é feito por REICH,Norbert. Mercado y derecho. Trad. A. Font. Barcelona: Ariel, 1985.21 VILLEY destaca que o direito foi assolado também pelo positivismo histórico e pelo positivismo sociológico deComte. (VILLEY, Michel. Op. cit., pp. 69-84).22 Ibid., p. 73.

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O direito tornou-se um fenômeno de menor importância, nasuposição de que seriam as relações econômicas, submetidas a leisnaturais e imutáveis, que estruturariam e integrariam a sociedade23 .Consolidou-se uma forte crença de que não havia espaço para umaordem jurídica da economia, até porque toda intervenção estatal nomercado seria inócua ou mesmo nociva. O melhor a ser feito seriaaceitar as leis de mercado, até porque as mesmas naturalmentelevariam ao equilíbrio e à harmonia social.24

4 A necessidade do direito e a intervenção estatal

A teoria econômica que se tornou o paradigma do Estado liberalacreditava que as leis do mercado bastariam para propiciar o plenodesenvolvimento da atividade econômica. As ações individuaislevariam a um auto-equilíbrio sustentável: a atuação do Estado naEconomia seria ou desnecessária ou indiferente. O título de livro deHumboldt parece resumir a modelo ideal de Estado para a época:“Idéias para um ensaio para determinar os limites da atividade doEstado”25 , limites que não eram pertinentes apenas à liberdade morale política dos indivíduos, mas principalmente no âmbito econômico.

A sociedade e o Estado eram apresentados como universosseparados, já que essa era a forma necessária para evitar aintervenção de um poder negativo na esfera dos indivíduos. Tratava-se de um Estado supostamente mínimo, com funções e podereslimitados, até porque o Estado era justificado como o resultado deum acordo entre indivíduos livres que estabelecem um acordo apenaspara garantir uma convivência duradoura e pacífica.26

Todavia, uma investigação mais aprofundada do assunto denotaque a intervenção estatal na economia foi maior do que normalmentese supõe, de forma que a atividade econômica não teria comoprosperar se não fosse o arcabouço jurídico que foi propiciado peloEstado. A idéia de uma economia que se desenvolveu e progrediusem qualquer participação do Estado é uma fantasia. A concepção

23 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. M. J. Redondo. Madrid: Editorial Trota S/A, 2001, pp. 108-110.24 LOPES, Ana Frazão de Azevedo. Op. cit., p. 60.25 HUMBOLDT, Wilhem von. Ideen zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen.Breslau: E. Trewendt, 1851.26 Nesse sentido ver a obra de BONETTO, Maria Susana; PIÑERO, Maria Teresa. Las transformaciones del Estado.De la modernidad a la globalización. 2. ed. Córdoba: Advocatus, 2003.

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do Estado do liberalismo como um Estado mínimo não pressupunha,muito pelo contrário, um Estado débil já que se constata ao longo doséculo XIX todo um aparelhamento e reorganização da estruturaestatal. A simples instituição do modelo do mercado já exigiria umaestrutura legal coercitiva mínima, a fim de assegurar a propriedade,a vida e o cumprimento dos contratos27 .

As reformas internas realizadas pelos países capitalistas centrais,no marco das mudanças da técnica e do ambiente de transformaçãodo século XIX, introduziram novas instituições úteis para o aumentode seu poder: a polícia, a administração central, o serviço militarobrigatório, os transportes, as comunicações. Quando tudo isso seassociou com o crescimento econômico advindo da industrialização,surgiram Estados poderosos, centralizadores.

No rastro do pensamento sociológico que acentuava o carátersocial e histórico das instituições, surge Weber alertando que “o Estadocapitalista depende completamente da organização burocrática paraa continuação da sua existência.”28 Ademais, procurou o autorcomprovar que, tanto maior a expansão do mercado, mais amplo eeficiente precisava ser o crescimento da burocracia estatal, a fim deassegurar uma distribuição regular e coordenada de bens e deserviços, conferir previsibilidade às relações econômicas e protegero cumprimento dos contratos, dentre outras funções.29

Ao adentrar nas razões que levaram ao surgimento da RevoluçãoFrancesa de 1789, o sociólogo alemão chama atenção para o fatoda burguesia estar à procura de uma segurança e de uma

27 MACPHERSON, Crawford Brough. Op. cit., p. 59.28 WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. R. Barbosa e K. E. Barbosa. Brasília: Universidade de Brasília, 2000, p. 221.29WEBER precisa ser destacado nesse aspecto: Do ponto de vista puramente conceitual, portanto, o Estado não énecessário para a economia. Mas, sem dúvida, o funcionamento de uma ordem econômica do tipo moderno não épossível sem uma ordem jurídica de caráter muito especial, a qual, na prática, só pode ser uma ordem estatal. Aeconomia moderna baseia-se em oportunidades adquiridas por contratos. Por mais longe que vá o interesse próprio nalegalidade contratual, bem como também os interesses comuns dos proprietários na proteção mútua de sua propriedade,e por mais que a convenção e o costume determinem, ainda hoje, no mesmo sentido, as ações dos indivíduos, ainfluência desses poderes perdeu muito de sua importância em conseqüência do abalo da tradição – tanto das relaçõesreguladas pela tradição quanto da crença na santidade destas. Por outro lado, os interesses das classes encontram-se,mais do que nunca, separados entre si; a velocidade das transações modernas exige um direito que funcione de maneirarápida e segura – isto é, que seja garantido por um poder coativo o mais forte possível – e, sobretudo, a economiamoderna destruiu, em virtude de seu caráter peculiar, as outras associações que eram portadoras do direito e, portanto,da garantia do mesmo. Esta é a obra do desenvolvimento do mercado. O domínio universal da relação associativa demercado exige, por um lado, um funcionamento do direito calculável segundo regras racionais. Por outro lado, aexpansão do mercado, que ainda conheceremos como tendência característica dessa relação favorece, em virtude desuas conseqüências imanentes, a monopolização e a regulamentação de todo poder coativo legítimo por uma instituiçãocoativa universal, mediante a destruição de todas as estruturas coativas particulares, as estamentais ou outras, baseadas,na maioria dos casos, em monopólios econômicos. (Ibid., pp. 226-227).

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confiabilidade que só a ordem jurídica poderia oferecer: não haviarazão, então, para acreditar que não existiria uma ordem jurídica daeconomia no Estado liberal. Esse Estado necessitou criar as instituiçõese a infra-estrutura sem as quais a tão valorizada liberdade econômicae a autonomia da vontade não teriam como ser operacionalizadas:“à estruturação econômica liberal era essencial a consagração egarantia de determinados institutos jurídicos.”30

Analisando a evolução das instituições jurídicas na França, Ripert31 nosmostra que o direito teve uma participação essencial no desenvolvimentoda forma de produção capitalista naquele país: disciplinamento dassociedades comercias através de um Código Comercial; criação de umainfra-estrutura creditícia e financeira; estabelecimento dos tribunais decomércio; leis sobre a navegação marítima, a propriedade industrial epatentes de invenção; fornecimento de uma infra-estrutura através deserviços públicos de ferrovias, energia elétrica e fornecimento de água.

Cumpre, então, concluir, diante do exposto, com o seguinte trechomemorável de Ripert:32

[...] não se deve imaginar que o capitalismo moderno nasceu todo armado nodia em que o legislador [...] deu aos homens a liberdade de praticar o comércioou a indústria. Nesse dia já seria ele possível, mas não foi o de sua criação. Aliberdade tudo permitia, mas nada dava.O que falta ao capitalismo é um conjunto de instituições e regras que permitamreunir e utilizar os capitais, que assegurem ao detentor de capitais a preponderânciana vida econômica e mesmo na vida política, que dêem à produção e à repartiçãodas riquezas o primeiro lugar no espírito dos homens.[...]O capitalismo jacta-se de dizer que nada pede, que simplesmente lhe basta aliberdade, apraz-se em repetir: deixai fazer; nada poderia fazer se o legisladornão lhe tivesse dado ou permitido lançar mão dos meios próprios à concentraçãoe à exploração de capitais.

5 Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. R. Raposo. Lisboa:Relógio d’Água Editores, 2001.

30 VAZ, Manuel Afonso. Direito Econômico. A ordem econômica portuguesa. Coimbra: Coimbra, 1998, p. 46.31 RIPERT, Georges. Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. Trad. G. G. Azevedo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1947, passim.32 Ibid., pp. 31-32.

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BONETTO, Maria Susana; PIÑERO, Maria Teresa. Las transformacionesdel Estado. De la modernidad a la globalización. 2. ed. Córdoba:Advocatus, 2003.DUMONT, Louis. Homo aequalis. Trad. J. L. Nascimento. BAURU:EDUSC, 2000._____. O individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologiamoderna. Trad. A. Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.FEIJÓ, Ricardo. História do pensamento econômico. São Paulo: Atlas, 2001.HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. M. J. Redondo. Madrid:Editorial Trota, 2001.HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad. L. Tobio. México: Fundo deCultura Econômica, 1998.HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. A. Marins. São Paulo: Martin Claret,2002.HUMBOLDT, Wilhelm von. Ideen zu einem Versuch, die Gränzen derWirksamkeit des Staats zu bestimmen. Breslau: E. Trewendt, 1851JEVONS, William Stanley. A teoria da economia política. Trad. C. L.Morais. São Paulo: Abril Cultural, 1983.KOLM, Serge Christophe. Le liberalisme moderne. Paris: PUF, 1984.LOPES, Ana Frazão de Azevedo. O abuso do poder econômico no EstadoDemocrático de Direito. Dissertação apresentada como requisitoparcial à obtenção do grau de Mestre em Direito e Estado pelaFaculdade de Direito da UNB. Brasília, 2003.MACPHERSON, Crawford Brough. Teoria política do individualismopossessivo de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. São Paulo:Paulinas, 1999, v. 11.REICH, Norbert. Mercado y derecho. Trad. A. Font. Barcelona: Ariel, 1985.RIPERT, Georges. Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. Trad. G.G. Azevedo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1947.SEN, Amartya. Sobre ética e economia. Trad. L. T. Motta. São Paulo:Companhia das Letras, 2002.SMITH, Adam. A Riqueza das nações. Trad. A. S. Lima. São Paulo:Martins Fontes, 2003, v. 2.SOUZA, Washington Peluso Albino de. In: FRANÇA, Limonge Rubens(coord.) Enciclopédia Saraiva de Direito. Saraiva: São Paulo, 1977-1982, v. 31, p. 250.VAZ, Manuel Afonso. Direito Econômico. A ordem econômica

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portuguesa. Coimbra: Coimbra, 1998.VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínioeconômico. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.VILLEY, Michel. Leçons d’histoire de la philosophie du droit. Paris: Dalloz,2002.WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. R. Barbosa e K. E. Barbosa.Brasília: Universidade de Brasília, 2000._____. Works of puritan divines. Dublin: Stretch, 2001.

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