o direito e a modernidade - mangabeira unger

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    oDireito e a Modernidade

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    Todos os teoristas sociais classicos adotaram 0 que pode-riamos chamar de ponto de vista da modernizacao. Afirmaramque a civilizacao em que viviam resultava de urn rompimentorevolucionario com as suas antecessoras, rompimento este res-ponsavel por algo genuinamente novo na hist6ria do mundo.A sociedade moderna podia ser analisada de maneiras radical-mente diferentes, mas a sua singularidade estava fora de dis-cussao. A esta ideia, ajuntava-se a crenca de que todos osaspectos da modernidade sao inseparavelmente interligados.Acreditava-se que a hierarquia social, a economia, a pollticae a cultura fossem partes de urn todo, embora poucos concor-dassem quanta a prioridade relativa dos elementos constituintesdesse todo e quanto a natureza exata da sua interdependencia,Talvez 0 ponto comum mais importante tenha sido a in-sistencia em ver na sociedade moderna uma forma de vidasocial a ser concebida como produto de determinada interacaoentre a imagem que essa sociedade fazia de si mesma e assuas formas externas de organizacao. as teoristas sociais naochegavam a aceitar a ideia da sociedade moderna como asso-ciacao de individuos independentes, senao iguais, cuja segu-ranca e liberdade eram garantidas por uma lei impessoal. Mas,na sua maioria, recusavam-se tambem aver essa ideologia dosgrupos dominantes como simples envoltorio capaz de ofuscar.mas nao de esclarecer, a natureza da modernidade. Discerniam

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    mina as perguntas que este capitulo procurara responder. Emque consistia realmente a dialetica da conviccao e da expe-riencia na primeira sociedade modema ou, como prefiro cha-ma-la, na sociedade liberal? Que relacao existe entre essa so-ciedade e a forma de vida social que a acompanha? Equal.a importancia das semelhancas e diferencas entre os principaistipos de sociedade industrial contemporanea?

    Estas questoes serao estudadas sob 0 angulo da sua im-portancia para a hist6ria juridica. As transformacoes do direitoproporcionam urn ponto de vista do qual se pode vislumbrartodo 0 panorama da modernidade. 0 tema e tao mais apro-priado quanta 0 ideal de Estado de direito teve lugar dedestaque nas mais influentes justificativas do Estado liberal.Para levar a cabo este programa, precisamos antes demais nada de uma estrutura dentro da qual se possam compa-rar as sociedades. Mediante esse esquema comparativo, pode-remos perquirir as origens e a natureza do modemo Estadoliberal e compreender 0 tipo de direito e de filosofia juridicaque Ihe era peculiar. Em seguida, poderemos investigar comoa transformacao da sociedade liberal se manifesta na evolucaoda .sua ordem normativa. Depois, passaremos it questao maisgeral da relacao entre os diferentes tipos de modernismo e osrespectivos tipos de legalidade. 0 que aprendermos quanto aodestino do Estado de direito pode permitir-nos definir algu-

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    2. A OOMPARA~AO ENTRE SOCIEDADES: UMA ESTRUTURAPRELIMINAR

    ElementosA fim de estabelecer uma linguagem rudimentar para acomparacao entre sociedades, indicarei as diferencas entre tres

    formas de vida social: tribal, liberal e aristocratica, Cada umadelas se distingue pelo modo de lidar com os tres problemasbasicos da associacao hurnana. Por enquanto, sera suficientetratar estes tipos de sociedade como categorias analfticas que,de certa forma, ajudam a esc1arecer as principais opcoes comas quais se defronta uma sociedade, mesmo que nao represen-tern detcrminada situacao historica. Finalmente, devemos deixarclaro que os conceitos de sociedade tribal, liberal e aristocra-tica sao propostos como parte de urn esquema comparativo,e nao como estagios de uma sequencia evolucionaria universal.

    Em todas as sociedades, com excecao das menores e maisisoladas, os individuos lidam uns com os outros em duas espe-cies de contexto diferentes. 0 primeiro e aquele no qual urnindividuo - 0 sujeito - encontra alguem que pode ser iden-tificado como membro de urn grupo ao qual ele pertence.A pessoa que 0 sujeito ve como co-participante de urn grupoexpressivo e 0 associado. A expressividade de urn grupo pode

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    relacoes SOCIalS sao ordenadas na pratica e as imagens que()S homens fazem de si mesmo e dos outros. Toda sociedadepossui grupos que podem ser encarados como tipicos, no sen-tide de exercerem influencia maior sobre a qualidade da vidacotidiana. Se, por exemplo, certo tipo de comunidade familiarvem a ser 0 grupo expressivo tipico de uma sociedade, eespecialmente importante determinar 0 principio de associacaoque controla a sua vida interna.Se fossemos capazes de responder as duas perguntas acimaem relacao a qualquer sociedade, ainda assim haveria umaterceira questao a esclarecer antes que pudessemos dizer quecompreendemos a essencia de sua organizacao e cultura. Esteterceiro aspecto e 0modo como as pessoas tendem a definira relacao entre 0 que experimentam e 0 que deveriam expe-rimentar, ou seja, entre a realidade e 0 ideal. Da mesma formacomo 0 segundo problema decorre do primeiro, a terceiraquestao e sugerida pela segunda.

    Quando distingui entre as variedades de direito, assinaleique, para compreender 0 aspecto especificamente social docomportamento humano, jamais podemos satisfazer-nos com adescricao e a explicacao de regularidades fatuais. 0 caniter deurn conjunto de relacoes sociais permanece equivoco ate queelucidemos as ideias ou sentimentos de obrigacao pelos quaisos homens regulam os seus acordos reciprocos e louvam-se oucondenam-se mutuamente. 0 estudo do vinculo social exige

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    Sociedade triba12Imagine-se uma sociedade na qual todos os individuospertencem a um mimero muito reduzido de grupos expressivos,embora cada um desses grupos absorva grande parte da vidados seus participantes. Neste caso, certas atividades que, numtipo di{erente de vida social, poderiam ser atribuidas a variesgrupos diferentes, concentram-se em urn pequeno mimero deentidades coletivas. Inicialmente, pode ocorrer que 0 tinicogrupo expressivo seja aquele no qual a participacao e deter-minada por laces reais ou hipoteticos de parentesco. Mas, emquase todas as sociedades, outros grupos expressivos, tais como

    entidades territoriais, adquirem tambem certa independenciaem relacao ao grupo familiar.Uma consequencia da exigilidade de grupos expressivose que a diferenca entre associados e estranhos pode adquiriruma agudeza que, de outra forma, seria impossivel, Quandocada individuo pertence a uma multiplicidade de grupos espe-cializados, tende a encontrar pessoas que sao seus associadosem determinado contexto mas estranhos em outro. Assim,as qualidades de familiaridade e de estranheza, atribuidas asmesmas pessoas, facilmente confundem-se e diluem-se na mentedo sujeito. Alem disto, quanta mais rigidamente definido foro ambito de cada um dos grupos expressivos que constituem asociedade, menos cada um deles sera capaz de absorver toda

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    oposto cujas relacoes sexuais com 0 sujeito incorrem na proi-bicao do incesto coincide parcialmente com 0 grupo de paren-terco definido para fins nao-sexuais. Por exemplo, a mae podepertencer a este ultimo grupo, mas nfio ao primeiro; em urncontexto, participa do grupo do filho, mas dele e exclufda emoutro contexto. Assim, a separacao entre grupos expressivosdecorre dos fatos mais elementares e universais com relacaoa familia.

    Passemos agora a segunda parte do meu esquema: a natu-reza da uniao entre associados nos grupos caracteristicos dasociedade, e 0 carater dos seus contatos com estranhos. 0 queimporta compreender e que, nas sociedades tribais, as relacoesentre associados e entre estes e estranhos sao regidas pornormas muito diferentes de conduta.

    Por sinal, a literatura da teoria social atribui grandeimportancia ao modo como as sociedades pre-modernas (ouseja, nao-liberais) distinguiam entre a troca de mercadoriasdentro de urn mesmo grupo e entre grupos diferentes. Assim,enquanto as transacoes entre associados talvez fossem sujeitasa certas normas aparentemente inalteraveis de reciprocidade,as relacoes economicas com estranhos podiam ser governadaspor uma nocao puramente predatoria, que permitia a cadauma das partes subtrair da outra 0 maximo possivel. A soli-dariedade comunitaria numa esfera da vida contrapoe-se, emoutra, uma guerra economica desenfreada.s Um exemplo deste

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    Para que 0 intuito do lucro nao destrua as bases institucionaisde uma sociedade de mercado, deve ser regido por limitacoesque proibam a captura violenta de mercadorias e que permitamo desenvolvimento de urn sistema de precos relativamenteimpessoal.A diierenca entre 0 modo como os associados se tratamuns aos outros e 0 modo como lidam com estranhos envolvedois tipos completamente diferentes de relacoes sociais. Osassociados nao veem os estranhos como pessoas com as quaistenham algo importante em comum. Em contraposicao, asmembros de um grupo acreditam-se ligados a um vinculo comu-nitario profunda e duradouro. Tipicamente, esse vinculo seampara, ao mesmo tempo, num fato natural e em crencas eideais comuns. 0 fato natural e a do nascimento em determi-nada familia, religiao au raca, au em determinado territorio,Mas esta circunstancia predeterminada e importante somentena medida em que contribui para certa experiencia mentalque e a propria essencia da comunidade tribal: 0 senso de terem comum com outros uma concepcao do mundo e da virtude,concepcao esta tao fortemente arraigada no grupo que dis-pensa qualquer tipo de enunciacao. A solidariedade cornuni-taria e exatamente a condicao da comunhiio moral extensiva,coerente, concreta e intensa que identificamos anteriormentecomo uma das bases do costume.Chegamos, assim, ao ponto em que podemos confrontar

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    Sociedade liberalTomemos agora uma sociedade situada no polo opostoit tribal, e chamemo-la de liberal." Nesta sociedade, cada indi-viduo pertence a urn grande mimero de grupos expressivos,

    mas cada urn desses grupos afeta somente uma pequena parte-da sua vida. Assim, a personalidade fragmenta-se num longorol de atividades especializadas diferentes ou mesmo confli-tantes. A outra face dessa especializacao e que a pessoa, comourn todo, passa a ser vista e tratada como urn conjunto abs-trato de aptidoes que jamais chegam a fundir-se num contextounico de vida grupal.

    Este tipo de agremiacao enfraquece mas nao elimina adiferenca entre estranhos e associados que existe na sociedadetribal. A medida que aumentam de mimero, os gruposexpressivos tornam-se cada vez mais entremisturados. Conse-qiientemente, individuos que sao associados para certos finstornam-se estranhos para outros com maior freqtiencia, e cadavez menos podem definir-se a si proprios e aos seus compa-nheiros mediante referencia a experiencias comuns em deter-minado grupo. Ao mesmo tempo, it medida que os indi-viduos interagem mais freqiientemente em contextos impessoais,tais como mercados e burocracias, a propria posicao de es-tranho perde grande parte do exotismo, da hostilidade e domedo que evoca na sociedade tribal. Gracas a estas tendencies

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    soalidade da esfera publica e 0 carater comunitario da esferaprivada estao sempre mudando de posicao. Por um lado, Ma busca de coleguismo no local de trabalho e a tendencia,dentro e fora da lei estatal, de aplicar normas de boa-fe ehonestidade aos negocios, em beneticio das necessidades co-merciais. Por outro lado, as relacoes familiares cedem lugara exploracao de vantagens de poder dentro da familia, sob 0pretexto do respeito a integridade do grupo familiar. Na socie-dade liberal, a lei da solidariedade comunitaria e repetidamenteaplicada a vida publica em nome da lei da selva, e a lei daselva e impost a a vida privada em nome da lei da solidariedadecomunitaria,

    Qual exatamente e a natureza do vinculo social que reiegaa posicoes subaltern as tanto a comunhao intragrupal como ahostilidade entre os grupos? Darei a esse elo intermediario 0nome de associacao de interesses. A premissa basica da asso-ciacao de interesses e que os homens obedecem a normas relati-vamente estaveis de interacao por acreditarem que isto lhesseja mutuamente vantajoso, e nao por participarem da mesmanocao de verdade e virtude. Em outras palavras, 0 sujeitoaceita e obedece a urn arcabouco estruturado de relacoes reci-procas com os outros como meio de atingir os seus propriosfins. Tal sistema nao pode funcionar por si mesmo; 0 que 0mantem em movimento? Uma das respostas tradicionais e quea conduta violadora das regras de tal forma punida mediante

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    eulo entre a harmonia social e a harmonia politica podia serrestabelecido a urn nivel superior de consciencia e refinarnen-to. Mas 0que refreia as paix6es quando a comunhao moralde que depende a sociedade tribal entra em colapso? A estapergunta, varias respostas, nenhuma delas inteiramente satisfa-toria, foram oferecidas na teoria e na pratica das sociedadesliberais.Em primeiro lugar, assinala-se que a adesao a valores co-muns sobrevive na sociedade liberal sob novos disfarces. Cer-tos grupos como a familia podem continuar a movimentar-sena direcao da solidariedade comunitaria, e ate mesmo a socie-dade como urn todo pode mover-se sobre 0 terreno comum,embora mutavel, delimitado pelo seu passado coletivo. Coutu-do, nao deixa de ser verdade que, quanto mais as paix6es in-dependem da cultura comum, mais urgente se torna a neces-sidade de encontrar-se uma base alternativa para que a ordempossa reinar entre e dentro dos homens.

    A observacao de Proust de que "a nossa personalidadesocial e criada pelos pensamentos alheios" sugere 0 principalmecanismo para a garantia da estabilidade social e psicologicasob 0 liberalismo. Cada individuo ocupa determinado lugarnos varies grupos especializados aos quais pertence. As fun-coes que exerce e 0modo como as exerce determinam 0 con-teiido dos seus desejos, bern como os meios ao seu dispor parasatistaze-los. Estabelecendo 0 modo como os outros 0 veem,

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    pressoes do bem, do bela ou do sagrado desmorona. Deixade existir uma tradicao viva e totalmente abrangente que possaser vista como imbuida do ideal. Pelo contrario, a experien-cia mais comum da vida e a da diversidade dos conceitos devirtude, beleza e santidade, e a principal perplexidade do pen-samento social e que a ordem possa prevalecer a despeito detamanha divergencia,Na sociedade tribal, a razao e a percepcao de um idealaltamente concreto implicito na realidade. Este tipo de razaonao distingue entre 0 que e e 0 que deveria ser, ou entre ateoria e a pratica, Mas na sociedade liberal uma nocao dife-rente da relacao entre 0 ideal e a realidade e, portanto, danatureza de cada um deles acarreta uma mudanca no concei-to de razao. Esta deve agora ser dividida em diferentes facul-dades: a escolha de meios para a realizacao dos interesses doindividuo e a percepcao ou a expressao de ideais abstratos; aprimeira dedica-se aquilo que e , a segunda volta-se para 0 quedeveria ser; uma e instrumental, a outra e contemplativa. En-tre ambas, ha ainda uma terceira faculdade cuja relacao comas duas permanece obscura e ambigua: 0 conhecimento teori-co que, embora se interesse pelo mundo real, e procuradocomo urn fim em si mesmo, e nao como subordinado ao in-teresse.

    Sociedade aristocratica

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    hip6tese for verdadeira, a reconstituicao da categoria de socie-dade aristocratica e indispensavel a qualquer estorco de che-garmos a uma teoria social geral e de compreendermos, como seu auxilio, 0 mundo social moderno e as suas vicissitudes.A sociedade liberal tende na direcao do universalismo; asua inclinacao e no sentido de reunir as pessoas sob a regrada igualdade formal. A sociedade tribal e particularista; a su-bordinacao do individuo ao grupo e a rigidez das diterencasgrupais excluem 0 reconhecimento de uma humanidade comumque abranja nativos e estrangeiros. Pode-se compreender me-lhor a sociedade aristocratica como uma combinacao peculiarde universalismo e particularismo. Dessa combinacao decor-rem as suas fraquezas e virtudes.A forma mais comum assumida pela sintese e secular.Cada individuo pertence a um grupo especifico - a sua cama-da social - que the confere grande mimero de direitos e obri-gacoes e, de modo geral, determina a maneira como ele ve asociedade, a natureza e a si mesmo. Essas camadas, nitida-mente separadas umas das outras e decisivas para a determi-nacao da qualidade da vida individual, constituem 0 elementoparticularista da sociedade aristocratica.Os grupos sociais expressivos nao tern a mesma posicaode relativa equivalencia que tendem a ter na sociedade tribal.Sao degraus de uma (mica escada hierarquica continua, e naoassociados ou antagonist as em pe de igualdade. Precisamente

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    Nas sociedades feudais europeias enos Standestaaten, amistura de particularismo e universalismo assumiu uma formaainda mais dramatica em decorrencia das crencas teologicasdominantes. A sociedade tribal identifica 0 sagrado consigomesma - com os ajustes, objetos ou forcas que ela ve comopeculiares a sua propria experiencia, Para ela, e mais facilabandonar a nocao da imanencia divina na realidade do quedeixar de ver-se a si propria como 0 palco preferido de Deuspara a Sua obra. A historia do judafsmo e urn exemplo tipi-co. Em contraposicao, 0 universalismo religioso nas socieda-des liberais e 0 reverso do universalismo social. Os homenspassam a conceber Deus como urn ser universal, sem quais-quer compromissos especiais em relacao a determinado povo,e desenvolvem uma nocao relativista do valor das crencas re-ligiosas de diferentes paises e epocas. Ambas estas caracteris-ticas vieram a tona no deismo racionalista do Iluminismo eu-ropeu.o cristianismo, que tanto impregnou a vida e 0 pensa-mento europeus antes do Iluminismo, ocupou uma posicao in-termediaria entre os extremos do universalismo e do parti-cularismo religiosos. Embora reconhecendo em principio airmandade universal do homem, enfatizava a separacao do mun-do cristae em relacao ao mundo pagao que 0 rodeava, ou aosinfieis que viviam em terras cristas, Assim, era possivel crerque todos os homens eram chamados a participar da mesma

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    vir a encarar-se como pessoas que transcendem os grupos aosquais pertencem e que a despeito das suas diferencas de clas-se, se enfrentam em relativa igualdade de merito, expressa pelasua igualdade formal de direitos politicos. Nenhum destes pres-supostos e verdadeiro na sociedade aristocratica, Grande parteda vida do individuo transcorre dentro dos limites de um s6grupo, que e a sua camada social. Alem do mais, em virtudeda sua posicao, ele tem privilegios e deveres que estabelecema sua inalteravel relacao hierarquica com pessoas de posicaodiferente.o principio fundamental que mantem coesa a ordem aris-tocratica e a honra, e nao a solidariedade comunitaria ou aassociacao de interesses.? A honra e 0 reconhecimento alheiode que 0 individuo se distingue pelas virtudes especialmenteadequadas a sua posicao em decorrencia dos direitos e obri-gacoes que a acompanham. Todo individuo permanece fixadopara sempre dentro do mesmo circulo social que limita 0 queele pode fazer, saber e sentir. Assim, por exemplo, ele nao euma pessoa com os deveres de um nobre: e um nobre. Parasi mesmo e para os outros, a sua posicao social the consometoda a humanidade e e inseparavel dela. Pode-se ser um bomservo ou um bom sacerdote, mas nao se pode ser apenas umbom homem. Consequentemente, 0 esforco no sentido da auto-expressao e da aprovacao dos outros assume necessariamentena sociedade aristocratica a forma de um desejo de realizar,

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    proeminencia da aristocracia em relacao a todas as outras ca-madas sociais da-lhe a independencia necessaria para cultivara relacao entre 0 individuo e 0 grupo que 0 principio da hon-ra sugere: a afirmacao do espirito coletivo da classe atravesdas realizacoes dos seus membros. Essa mesma independen-cia explica a peculiar elevacao das ambicoes e a confiante se-renidade que caracterizam 0 ethos aristocratico e que sao,muitas vezes, identificadas com a propria ideia de honra. Ascamadas nao-aristocraticas, porem, permanecem todas mais onmenos sob 0 controle politico e a tutela cultural da aristocra-cia. Uma vez que servem e emulam a nobreza, jamais conse-guem desenvolver formas de consciencia e de existencia queexprimam 0 seu proprio carater coletivo.Reside at a profunda contradicao da sua circunstancia. Natentativa de afirmar as proprias formas de organizacao comu-nitaria, sao constantemente frustradas pelos interesses de poderda aristocracia. No entanto, a sua propria identidade comoclasses e inseparavel de uma ordem hierarquica na qual a no-breza ocupa a posicao dominante. Esta e precisamente a con-tradicao que prevalecia nas relacoes entre camponeses e mer-cadores, de um lado, e a nobreza, de outro, por ocasiao dosurgimento do Estado nacional europeu e durante a sua tran-sicao do tipo de vida aristocratico para 0 liberal. Os campo-neses rebelaram-se e os mercadores conspiraram para conquis-tar maiores privilegios dentro da sociedade aristocratica. Nao

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    grupos tern, de fato, maior poder que outros, mas nenhum gru-po se sente com 0 direito de dominar os outros. Conse-qiientemente, ha uma luta continua entre 0 anseio de igual-dade e a necessidade de autoridade. Na sociedade aristocra-tica, 0 conflito correspondente e aquele entre 0 poder daaristocracia e 0 empenho das outras camadas sociais em afir-mar a sua identidade autonoma e desenvolver a sua propriacornunhao interna. A historia nos mostra as conseqiiencias dadesintegracao das sociedades tribais e aristocraticas. Mas nadirecao de que outra forma de vida social leva 0 declinio doliberalismo? A resposta a esta pergunta so parcialmente e co-nhecida, e sera 0 tema das ultimas secoes deste capitulo.

    A etapa final da minha analise da sociedade aristocraticasera sugerir 0 seu modo tipico de tratar a relacao entre 0 ideale a realidade. Neste, como em todos os outros aspectos, ire-mos provavelmente encontrar uma posicao intermediaria, urnponto a meio caminho entre a identificacao tribal do que deveser e do que e e a implacavel distincao que 0 liberalismo fazentre ambos. Mais uma vez, sera uti! abordar a questao doponto de vista da reconciliacao entre 0 universalismo e 0 par-ticularismo na vida grupal.o elemento particularista na sociedade aristocratica incen-tiva cada camada social a equacionar 0 born, 0 bela e 0 sa-grado com a sua propria honra, ou seja, com os esforcos evirtudes que a distinguem das outras classes. Ao mesmo tem-

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    de ascensao e queda teve como resultados 0 cavaleiro cristaee 0 seu c6digo de cavalaria." Nao obstante, um aspecto davida social, nao menos proeminente, apontava na direcaooposta. Esse aspecto contrario era a radical disjuncao entre abrutalidade da existencia do dia-a-dia e a serena pureza cristarevelada pelas comunidades monasticas como modo de vida ena liturgia crista como episodic da existencia de todos os ho-mens. Havia, assim, uma constante alternacao entre a praticade um desprendimento extraterreno e a procura de conforto,poder e gloria mundanos.A despeito de toda a sua aparencia de hierarquia orga-nizada, a sociedade aristocratica constitui 0 estagio de umaguerra, travada dentro do espirito dos individuos, entre dife-rentes visoes de virtude, beleza e santidade. n at que residemo pathos peculiar dessa sociedade e a principal inspiracao dassuas mais altas realizacoes.

    Transjormaciio socialEmbora a tipologia que apresentamos acima nao pretenda

    ser um esquema de evolucao universal, tern certas implicacoespara a compreensao da transformacao social. 0 grau e a na-tureza de transformacao significativa, lange de serem identicosem todas as sociedades, variam segundo cada forma de vidasocial. A causa mais profunda de toda mudanca hist6rica e 0

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    da sociedade liberal e rapida e penetrante, em comparacao coma de outros tipos de vida social.Na sociedade aristocratica, ha a sensacao de que a aspi-racao e a experiencia convivem mais a vontade uma com aoutra. 0 abismo persiste sob formas semi-encobertas: as am-bicoes das camadas nao-aristocraticas nao se podem harmoni-zar com a ordem social, e a visao moral ou religiosa da socie-dace parece ao mesmo tempo legitimar e condenar as hierar-quias estabelecidas. Em tal sociedade, a mudanca pode sermais lenta e menos aparente do que sob 0 liberalismo.Finalmente, na sociedade tribal, existe somente a possibi-lidade, raramente concretizada, de que 0 consenso comunitariose desintegre, permitindo 0 surgimento de conviccoes que de-safiam as praticas familiares. Mas, de modo geral, as mudan-cas que porventura venham a ocorrer tendem a ser nao-acumu-lativas e inconscientes. A transformacao radical e uma anoma-lia, e nao urn destino normal.A nocao de transformacao social que acabo de esbocarpropoe, mas nao responde, duas perguntas - dois profundosmisterios a margem da teoria social. Em primeiro lugar, comopode chegar a transformar-se a sociedade tribal, que e semdiivida 0 tipo mais adequado as formas mais primitivas deassociacao humana? Em segundo lugar, existirao motivos ge-rais pelos quais uma forma de sociedade se transforma emcutra?

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    uma possivel resposta e, assim, indicar novamente como osproblemas da teoria social podem levar-nos de volta a umaperplexidade mais basica acerca da natureza humana e da suarelacao com a hist6ria.

    3. 0 DlRElTO E A SOCIEDADEARISroCRATICA EUROPEIA

    Entre [eudalismo e liberalismoA estrutura esbocada na secao anterior fornece-nos os

    rudimentos de uma linguagem atraves da qual podemos com-parar as sociedades. Mais especificamente, coloca-nos em po-sicao de abordar, para os fins que temos em vista, um temaque adquiriu grande importancia e assumiu muitas formas di-ferentes na teoria social classica: 0 modo pelo qual a modernasociedade liberal emergiu da sociedade aristocratica na hist6-ria europeia, Algumas vezes, a pesquisa ampliava 0 seu am-bito evolucionario para incluir uma teoria da transicao dasordens tribais para as aristocraticas, Quase sempre, concen-trou-se na maneira pela qual a relacao entre consciencia e exis-tencia era reformulada pela nova sociedade, e 0 que esta prog-nosticava para 0 futuro da humanidade.

    Se pretendemos progredir alem do ponto a que nos trou-

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    mais ampla da ordem aristocratica e lembrar algumas caracte-rfsticas conhecidas que salientam a forma de organizacao dopoder.Em primeiro lugar, a sociedade estamental era marcadapor duas cis6es basicas. Uma era a separacao entre a massado povo, constituido em sua maioria pelo campesinato, e aelite. A outra cisao era entre 0 poder real e as diferentes ca-tegorias sociais ou estamentos que constituiam a elite,v Ambasas dicotomias - massa e elite, estamentos e soberano - eramindispensaveis ao Stiindestaat, embora nao the fossem peculia-res. As distincoes dentro da elite eram determinadas principal-mente por vinculos hierarquicos mas reciprocos de obrigacaomilitar e politica, A coexistencia da elite e do povo, emboracoonestada por esses fatores, podia ser melhor definida comodominacao economica.Em segundo lugar, os estamentos que constituiam a eliteeram coletivamente organizados em assembleias, como os etatsfranceses, os Stiinde austriacos e alemaes, os parlamenti italia-nos e as cortes espanholas.t" Dentro dessas assembleias, cadaestamento falava em seu proprio nome, e nao em nome dealgum suposto interesse geral; cada urn defendia os seus pro-prios privilegios contra as pretensoes dos outros estamentos.Na ciosa defesa de privilegios coletivos, identificados com 0direito imutavel (ius), residia, como diriam Montesquieu eTocqueville, a especie de liberdade tipica dessa sociedade aris-

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    -do governo e recorria ao terceiro estado para formar uma mi-nuciosa equipe administrativa, as assembleias estamentais de-caiam para a posicao de insignificantes subaltern as de urnEstado absolutista. As repetidas tentativas do comercio e daburocracia de dominar urn ao outro e 0 implacavel ataque deambos contra a tradicional hierarquia de classes constituiamurn terceiro aspecto do Stiindestaat.Destas tres caracteristicas, a primeira vincula a sociedadeestamental ao feudalismo e, a terceira, ao liberalismo, enquantoa segunda denota 0 seu peculiar carater institucional e defineo seu lugar especial no genero das ordens aristocraticas. Hintze-demonstrou como 0 aspecto caracteristico do Stiindestaat - aorganizacao corporativa estamental - assumiu duas formasprincipais.P Vale a pena determo-nos nas diterencas entre-elas, pois serao uteis a explicacao do duplo caminho que levoudo Stiindestaat a sociedade liberal.o tipo mais antigo, que menos sofreu a influencia do sis-tema feudal e mais se aproximou das origens tribais, foi 0sistema bicameral que surgiu na Inglaterra, na Escandinaviaem grande parte da Europa Oriental. A nobreza mais rica epoderosa ocupava a camara superior; os outros grupos da elite,como a pequena nobreza e as cidades livres, eram representa-dos por uma camara inferior. A camara alta quase semprecomecava como urn grande conselho real, enquanto a camarabaixa tinha 0 carater de convocacao geral dos elementos pri-

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    vez mais treinados no direito romano, que tinham a sua pro-pria identidade coletiva e ocupavam, juntamente com os gruposmercantis, uma posicao importante no terceiro estado.

    Eram estes os aspectos institucionais especificos do Stiin-destaat. Se combinarmos agora estes aspectos com os atributosde consciencia e de existencia que imputei as ordens aristocra-ticas em geral, teremos uma base para compreender a naturezado direito nesta sociedade pre-liberal.

    o direito no StiindestaatLembremos que 0 direito administrative possui geralmente

    dois componentes em nitida oposicao urn ao outro. 0 primeiroe urn setor profano de ordenacoes discricionarias, area na qualo soberano e mais ou menos livre para agir segundo as suasnocoes de conveniencia real ou de bem-estar social. 0 segun-do e uma esfera da vida social imune ao soberano e sujeitaunicamente a certa ordem sagrada e suprapositiva. Este direi-to, supostamente superior a politica, nao deve ser confundidocom 0 costume tacite; geralmente, assume a forma de precei-tos divinos cuja exegese e confiada a urn corpo de eruditos oude sacerdotes esclarecidos.J a vimos diversos exemplos de civilizacoes nas quais essaordem normativa se sobrepoe ao costume. Algumas vezes, comoem certas epocas da India e do Isla antigos, 0 elemento sagra-

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    tempo, 0 arbitrio real e a lei superior complementaram-semutuamente. 0 seu proprio equilfbrio criou uma situacao emque desapareceu a barreira entre os dois. Mas, ao inves de urnIado triunfar sobre 0 outro, ambos transformaram-se num tipode direito inteiramente novo, e houve uma revisao das premis-sas de consciencia e de existencia nas quais se baseara ante-riormente a ordem normativa. Compreender este processoaparentemente paradoxal de equilfbrio e transformacao deveser a principal tarefa de qualquer estudo do direito pes-feudaldo Ocidente.A diferenca entre as duas faces do direito pre-liberal erealcada pela tradicional distincao entre Polizeisache e Iustlz-sache. A primeira constituia as questoes da competencia dosoberano na manutencao da ordem publica, na supervisao dosseus subordinados e na concentracao dos recursos necessariesit perpetuacao do seu poder. Essa atividade, na qual se con-fundiam as modern as categorias de legislacao, administracao ejurisdicao, assumia a forma de editos, ordonnances ou Lan-desordnungen. A lei real era a parte discricionaria da ordemnormativa.A ela opunha-se a Iustizsache, ou seja, as questoes rete-rentes aos privilegios e obrigacoes dos estamentos do reino.Partes desta lei organica podiam vir a ser escritas sob variasformas diferentes: como cartas regias que reconheciam direi-tos que lhes eram supostamente preexistentes, como compila-

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    Os elementos que constituem uma ordem juridica - osatributos de positividade, publicidade, generalidade e autonomia- eram, portanto, distribuidos de tal forma que nenhum sis-tema legal verdadeiro podia existir ou mesmo ser concebido.o direito das ordenacoes reais nao era nem geral nem auto-noma no sentido moderno, e 0 direito dos privilegios estamen-tais nao era nem publico nem positivo. Examinemos agoramais de perto cada uma destas afirmacoes e estabelecamos asua relacao com as minhas observacoes anteriores quanta a na-tureza das sociedades em geral e dos Stiindestaaten em par-ticular.A ausencia de urn compromisso com 0ideal de generali-dade na lei real manifestava-se na sua liberdade em relacaoa distincao que modernamente se faz entre legislacao e admi-nistracao, As ordenacoes do soberano, dentro dos limites doseu poder administrativo, nao se destinavam a promulgar ouexecutar regras gerais aplicaveis a categorias abstratas de pes-soas e atos. 0 mesmo tipo de ordenacao, com 0 mesmo tipode justificativa, podia aplicar-se a urn unico individuo ou a todoo reino, sem qualquer solucao de continuidade entre adiretiva individualizada e 0 preceito universal, a nao ser 0 res-peito ao direito estamental. No inicio, nao existiam ainda con-dicoes que tornassem a generalidade urn requisito indispensa-'Vel, e nao uma caracteristica acidental da lei e, assim, sepa-

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    nistracao e a lei temperada pela prudencia na sua aplicacao,No perfodo em questao, porem, 0 arbftrio do soberano esta-va a salvo de compromissos com regras gerais, e podia por-tanto dispensar uma tecnica para a sua aplicacao uniforme.Alem do mais, 0 poder administrativo do rei ja era limitadopelos privilegios estamentais. Procurar-se-ia outra limitacaosomente depois que esta comecasse a ruir.Durante toda a hist6ria dos Stiindestaaten, os soberanosprocuraram expandir 0 seu poder em areas da vida social queantes eram 0 dominio de prerrogativas estamentais suprapoli-ticas. 0 significado revolucionario deste esforco e demonstra-do pelo fato de que resultou no desenvolvimento de uma leipublica e positiva numa epoca em que essa lei era consideradaainda como instrumento especial ou ate mesmo extraordinario.Na medida em que era positiva, a regulacao real afirmava 0principio de que ambitos cada vez maiores da experiencia so-cial podiam ser manipulados por atos da vontade politica. Euma vez que era publica, como lei que somente 0 governocentral podia estabelecer, pressupunha e incentivava a separa-c;ao entre 0Estado e a sociedade e entre 0 direito politico e.0status social.o direito que governava as prerrogativas estamentais erao inverso daquele das ordenacoes do soberano. Este direitofundamental e constitucional, que era urn sistema de ius e naode lex, ja possuia os rudimentos de urn compromisso de gene-

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    central, uma vez que precedia 0 surgimento do governo e limi-tava 0 seu poder. E embora pudesse, vez por outra, ser arti-culada e escrita, era vista como uma ordem cuja existencia evalidade antecediam a deliberacao humana.

    A clara divisao entre lei real e lei organica desapareceu;mas as forcas sociais que existiam por tras dos dois tipos delei eram tao equilibradas que a distincao ruiu em ambas asdirecoes - e este fato e da maior importancia para a com-preensao da historia subseqiiente do direito ocidental.

    Por urn lado, 0 soberano era cada vez mais obrigado aobservar normas de generalidade e de autonomia legal. Umaarea crescente do seu poder administrativo estava sujeita a exi-gencia de regular os interesses individuais unicamente pelaautoridade e dentro dos limites de leis preexistentes, destinadasa categorias amplamente definidas de pessoas e atos. Assim,fortalecia-se a distincao entre administracao e legislacao. Aseparacao entre os poderes administrativo e legislativo tornouimportante estabelecer urn judiciario independente, com pes-soal e metodos proprios, a fim de fiscalizar 0 emprego admi-nistrativo da legislacao, 0 que podia ser feito mediante umaditerenciacao de tarefas dentro da equipe do soberano ou atra-yes da avocacao de responsabilidades judiciais mais especiali-zadas pelas assembleias corporativas.

    Alguns aspectos desta evolucao parecem ter sido, em gran-

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    ram, nao obstante, 0 acordo social que definiu a estrutura eos limites do govemo nacional.o direito das prerrogativas estamentais comecou, assim, aadquirir carater publico e positivo, sem chegar a perder intei-ramente a sua identidade, pois continuou a ser visto como or-dem superior ao proprio govemo, ordem esta que devia ficara salvo de interferencias indevidas. Desta forma, 0 direito dosprivilegios tomou-se 0 ceme do modemo direito constitucionaleuropeu, e permaneceu como tal pelo menos ate que a afirma-~ao da soberania popular onipotente, pelos revolucionariosfranceses, introduzisse uma tradicao rival de constitucionalis-mo.15

    A evolucao a que me referi nao ocorreu em toda partecom a mesma rapidez ou com a mesma enfase. Em certospafses, 0 impeto centralizador do monarca prevaleceu sobre aautonomia dos estamentos e sobre a defesa do direito destesultimos. A ideia de direito fundamental foi quase inteiramentedestruida, apesar de rebelioes e resistencia ocasionais dos es-tamentos. 0 soberano submeteu a seu service largos segmentosda aristocracia e do terceiro estado, e arregimentou dentre elesurn vasto corpo de servidores civis. Nesses paises, 0 Stiindestaatfoi seguido do absolutismo administrativo.

    Em outras sociedades, porem, uma aristocracia renovada,aliada eertas vezes a grupos de profissionais e de comercian-tes enriquecidos, assenhoreou-se de grande parte da maquina

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    te.16 0 absolutismo administrativo floresceu principalmente nosterrit6rios caracterizados por urn Stiindestaat tripartido, ondeeram mais fortes os vestigios da organizacao feudal como ten-tativa prematura de criar urn sistema estatal centralizado. 0constitucionalismo parlamentar surgiu na area do Stiindestaatdo tipo bicameral, nos quais os estamentos haviam sempreconservado maior independencia. 0 caso da Russia e total-mente diferente: trata-se de uma sociedade na qual a autori-dade imperial foi, desde 0 inicio, tao absoluta e pessoal quenao se pode dizer que tenha jamais existido urn verdadeirosistema estamental. 17o absolutismo administrativo proporcionou 0 contextopara 0 tipo nao-democratico de liberalismo, que oferecia aclasse media protecao contra a "arbitrariedade" governamen-tal mas, geralmente, negava-lhe participacao direta nos assun-tos do governo. 0 constitucionalismo parlamentar levou a de-mocracia liberal. A transicao do absolutismo administrativopara 0 Estado liberal democratico podia ocorrer, como ocorreuna Franca, atraves da revolucao,o contraste entre 0 absolutismo administrativo e 0 cons-titucionalismo parlamentar nao deve, porem, obscurecer osaspectos que, em comparacao com outras civilizacoes, ambostinham em comum. Em nenhum Stiindestaat 0 principe tinhapoder suficiente para impor as suas ordenacoes as atividadesbasicas da vida social sem satisfazer, ate certo ponto, as exi-

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    Sem diivida, e dificil conceber os motivos que levaram aesta surpreendente evolucao, mas 0 argumento do capitulo 2sugeriu alguns dos fatores que podem ter estado em jogo. En-tre estes, dois mereceram especial atencao: 0 conjunto de cir-cunstancias que permitiam a urn grande mimero de gruposmanter ou afirmar a sua identidade face a centralizacao esta-tal, e a aceitacao de ideias e instituicoes religiosas que invo-cavam uma ordem moral a qual ate mesmo a lei estatal deviasubmeter-se. A minha discussao anterior dessas circunstanciaspode agora ser oferecida como explicacao conjetural da evo-luc;iio que acabo de descrever.o pluralismo de grupos e a nocao de sociedade que 0acornpanha impossibilitavam a livre afirmacao do direito admi-nistrativo. Poi esse pluralismo que contribuiu, em primeirolugar, para a persistente, embora quase sempre mal sucedida,defesa das prerrogativas estamentais e, em seguida, para 0 mo-demo clamor de igualdade formal e de justica imparcial sob alei. A crenca numa ordem natural estabelecida por Deus, as-sociada ou nao a urn clero independente, forneceu a base cos-mica para a Iimitacao do poder estatal pelo direito fundamen-tal do Stdndestaat ou pelo constitucionalismo liberal. 0 mo-demo Estado de direito emergiu do processo ambivalente me-diante 0 qual 0 direito dos editos adquiriu os atributos de ge-neralidade e autonomia, e 0 direito dos privilegios estamentaisse tornou publico e positivo.

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    reinterpretar 0 lugar do direito na sociedade liberal. Por suavez, esta reinterpretacao aumentara a nossa compreensao damodernidade. Finalmente, alguns destes temas serao ilustradospor exemplos extraidos da historia legal alema. Por enquanto,usarei como sinonimos os conceitos de liberalismo e moderni-dade, embora, como veremos adiante, 0 primeiro seja apenasurn caso especial do segundo.

    ConsensoA comparacao que fizemos entre diferentes formas de

    vida social sugeriu que 0 tema central de consciencia e exis-tencia na sociedade liberal e urn conjunto peculiar de interde-pendencias entre tres fatores. 0 primeiro elemento e a multi-plicacao de grupos expressivos, juntamente com a diminuicaoda area de vida individual que cada urn desses grupos abrange.As funcoes tornam-se especializadas, mas cada pessoa exerceuma variedade de funcoes. 0 segundo aspecto basico da socie-dade liberal e 0 desaparecimento da nitida distincao entre as-sociados e estranhos. A ordem social torna-se uma associacaode interesses it base da necessidade que os homens tern de obte-rem aprovacao mutua. Em terceiro lugar, os ideais opoem-seit realidade.

    Vistos em conjunto, estes aspectos da sociedade modernatornam ainda mais premente a questao de como pessoas com

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    o universalismo, a associacao de interesses e a separacaoentre 0 ideal e a realidade tern dois efeitos principais sobre 0consenso. Ameacam a possibilidade de urn acordo extensivo,coerente, concreto e intenso acerca da correcao ou virtude dosarranjos sociais. E, 0 que e mais importante, desencoraja 0individuo a aceitar a existencia do acordo como sinal de quese descobriu 0 que e born ou 0 que e certo.o universalismo da sociedade liberal reside precisamentena sua tendencia de multiplicar 0 mimero e diminuir a im-portancia individual dos contextos grupais em que os homensvivem. Exemplo tradicional disto e a distribuicao de tarefasque antes se concentravam na familia. Os individuos expoemapenas uma pequena porcao da sua humanidade aos seus se-melhantes em cada uma das estreitas faixas de vida nas quaisse defrontam. As associacoes a que pertencem nao possuema amplitude de experiencias similares que permite construiruma visao moral comum. Assim, as pessoas podem compar-tilhar de certos fins ou interesses, mas nao podem transformarem comunidade 0 grupo a que pertencem. Pois a primeiracondicao basica da comunidade e a capacidade de perceber elidar com os outros como pessoas totais, e nao como merosocupantes de cargos; e a segunda e a co-participacao num uni-verso comum de raciocinio acerca do homem e da sua vir-tude.l"

    A substituicao da solidariedade tribal e da honra aristo-

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    a sua propria honra: 0 seu codigo de conduta e a sua imagemparticular do homem. Especialmente entre a nobreza, 0 cultodaquelas virtudes que distinguem 0 individuo dos demais podeser exatarnente 0 meio de exprimir a honra da sua posicao,o liberalismo pode solapar as bases da comunidade; mas,demolindo as barreiras entre grupos expressivos, cria tambemas condicoes para uma uniformidade geral de desejos e pre-conceitos. Termina aqui, porem, a analogia entre a sociedadetribal e a liberal. Enquanto na primeira 0 costume pode servisto como sagrado, na ultima e submetido a um ataquecontinuo.Assim, 0 fato de que 0 alcance do acordo diminui naoe, por si so, decisivo quanta as ideias normativas na sociedadeliberal. A despeito da destruicao de tipos mais antigos desolidariedade, a estrutura basica de poder e conviccoes podepermanecer surpreendentemente estavel. Mas, mesmo quandoa sociedade liberal nao acentua a real diversidade de posicoese crencas individuais, mina 0 poder de persuasao do consensoque produz. Os homens podem deixar, cad a vez mais, de veresse consenso como fonte segura de criterios para justificacaoe critica dos acordos sociais.Podemos perceber por que isto e possivel se lembrarmoso ultimo atributo que define a sociedade liberal - a tenden-cia de destruir os fundamentos da ideia de que aquilo quedeve ser j a esta, de certa forma, contido naquilo que e . 0

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    formas, cada uma das quais com as suas causas e as seusefeitos peculiares, faz com que as homens se lancem it catade principios superiores e abrangentes de justificativa e cri-tica. Mas, por uma ironia que ensombrece grande parte dacultura moderna, as mesmas condicoes que torn am essa pro-cura necessaria fazem-na tambem imitil.Na medida em que os ideais morais, esteticos ou religio-sos perdem 0 esteio da autoridade comunitaria, e mister rede-fini-Ios como interesses ou preferencias particulares, para aopcao entre os quais nao existem criterios piiblicos. A con-

    sequencia desta particularizacao dos ideais e que qualquerconsenso que porventura subsista na sociedade liberal parecedestituido de fundamento. Desmascaradas como frutos das cir-cunstancias e da tradicao, a moralidade e a preferencia con-vencionais perdem a aparente inevitabilidade; doravante,devem ser medidas segundo algum padrao independente. Masja nao existem padroes para a avaliacao das convencoes acei-tas; ate mesmo a revelacao religiosa passa a ser encarada comoexperiencia da consciencia individual, com a qual 0 governonada tern aver e da qual nada pode inferir. FinaImente, verno desespero da importancia das tarefas cotidianas, desesperoeste que talvez seja experiment ado inicialmente pela elite in-telectuaI, mas que aos poucos se alastra por todos os setoresda populacao.Como, entao, pode existir consenso sem autoridade, esta-

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    posicao que cada urn dos seus membros ocupa .. A inclusivi-dade exprime a importancia que tern na determinacao da posi-

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    Mas e tambem suficiente aberta e parcial para ser vista comoalgo contingente e ate mesmo arbitrario, fundamentalmentedestituido de qualquer base na natureza das coisas.

    Ha uma estrutura preponderante e bastante estavel de de-pendencia e domfnio na sociedade liberal. Nao obstante, 0individuo pode ser suficientemente capaz de mudar de posicaonessa estrutura, e suficientemente consciente de discrepanciase conflitos entre os diferentes criterios que estabelecem a suaposicao dentro dela, para nao aceitar como certo ou naturalo tipo de classificacao estabelecido.

    Este conceito da questao da hierarquia na sociedade libe-ral atribui grande importancia aos lacos entre as relacoes obje-tivas de dependencia e a consciencia que as pessoas tern dessasrelacoes, De fato, insiste em que as primeiras sao inseparaveisda segunda - 0 que nao significa que sejam as mesmas. Naverdade, e somente a diminuicao da relativa estanquidade ouinclusividade do sistema de classes que permite que os homenspercebam melhor a natureza dos esquemas hierarquicos emque estao envolvidos. Perceber requer certo distanciamento -a capacidade de imaginarmo-nos fora de determinada situacaoe indagarmo-nos como devemos resolve-lao Assim, 0 fato deque a consciencia da hierarquia deve ser associada ao enfra-quecimento do sistema de classes e paradoxal somente na su-perffcie.

    Esta hip6tese quanta a hierarquia na sociedade liberal

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    Assim, quanta mais divers as e moderadas se torn am asdistincoes de classe, menos toleraveis parecem as diferencasque restam. Por urn paradoxo que Tocqueville foi 0 primeiroa mencionar, e cuja origem podemos agora perceber na pro-pria estrutura da sociedade moderna, 0 anseio de igualdadeaumenta a cada passo que se da no rumo da igualizacao dascircunstancias.w Contudo, precisamente nestas condicoes deconfusao moral e de dissolucao de hierarquia que parece maisurgente a necessidade de encontrar-se uma base para 0 exer-cicio do poder e de distinguir os seus usos legitimos dos ilegi-timos. 0 progresso na direcao da igualdade destroi 0 poder aomesmo tempo em que anseia por conserva-lo.

    o que 6 menos percebido, embora seja igualmente irn-portante, 6 que todo consenso ou tradicao passa a parecer cor-rupto aos olhos dos seus aderentes em decorrencia dos defei-tos da condicao social hierarquica que 0 originou. Durante atransicao de classificacoes mais fechadas e inclusivas para sis-temas mais abertos e parciais, as pessoas tornam-se cada vezmais sensiveis a influencia que as distribuicoes de poder, pas-sadas ou presentes, exercem sobre as ideias aceitas de boaconduta. Aquilo que, a primeira vista, parece ser 0 produtode longa tradicao de acordos, nao pass a, a uma analise maiscuidadosa, de conviccoes e interesses dos grupos dominantesque criaram a tradicao ..Talvez 0 aspecto mais visivel deste fenomeno seja a ten-

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    tern inicio urn circulo VICIOSO (ou liberador) de desmoraliza-ciio dos acordos sociais existentes. Cada enfraquecimento dalegitimidade da ordem de classes abala a confianca nas prati-cas convencionais, e cada afastamento sucessivo da crenca nacorrecao da tradicao abala ainda mais a suposta legitimidadedas hierarquias estabelecidas.

    A minha tese da hierarquia e do consenso na sociedadeliberal pode ser ampliada por urn comentario acerca das teo-rias da ordem social. Os economistas politicos acreditavamque os homens podiam ser unidos por interesses divergentes ecomplementares; esta seria a grande missao civilizadora domercado. Os crfticos conservadores e romanticos do liberalis-mo argumentavam que so se poderiam restaurar relacoes esta-veis entre os homens se estes vivessem em ambientes que es-timulassem a confianca em valores comuns. Em certo sentido,ambas as doutrinas constituiam solucoes imaginosas para urnproblema mitico. Ambas tomavam a serio a nocao que Hobbesfazia da sociedade como urn conjunto de individuos dotadosde forca relativamente igual e com objetivos conflitantes, detal forma que nenhum deles era suficientemente mais forteque os seus semelhantes para lhes impor a vontade. Conse-qtientemente, 0 problema da ordem passava a ser urn misterio.

    Mas, logo que concebemos a sociedade, como Marx insis-tiu que devemos conceber, mais como uma associacao de gru-pos do que de individuos, 0 misterio desfaz-se, Pois e claro

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    que, pelo fato de rejeitarem a legitimidade do sistema hierar-quico, os homens sejam capazes de derruba-lo ou ate mesmode encontrar algo que 0 substitua.Podemos agora compreender a misteriosa coexistencia de

    resignacao e descrenca, de desigualdade de poder e de con-viccoes igualitarias que caracteriza a consciencia na sociedadeliberal. Existe apenas uma estrutura de domfnio; mas essa es-trutura tern urn efeito ambiguo sobre a forma como as pessoasveem a sociedade e a si mesmas. Mina 0 seu proprio terrenoquando derruba a f6 na naturalidade da hierarquia estabele-cida; mas, da mesma forma como destroi as proprias bases,vicia tambem todas as outras crencas morais e politicas. Oshomens perdem a confianca em seus proprios julgamentos,como perdem a esperanca de descobrir criterios para julgamen-tos comuns. Todas as suas ideias comecam a parecer merospreconceitos de uma epoca, de uma sociedade ou de urn modis-mo - extravagancias produzidas por ajustes sociais para osquais nao existe justificativa independente. 0 resultante ceti-cismo moral leva a aceitacao desesperancada da ordem exis-tente ou a urn errar a esmo de uma forma de desigualdadepara outra.

    E possivel, assim, explicar uma experiencia basica e co-mum na sociedade moderna que, de outro modo, seria incom-preensivel: a sensacao de estar-se rodeado de injustica, ao mes-mo tempo em que nao se sabe onde a justica reside. Esta

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    o direito e 0 estadoA discussao anterior da sociedade liberal fornece-nos os

    elementos para ampliarmos a cornpreensao dos rumos tornadospelo moderno pensamento juridico e politico. A presente re-consideracao da base social da teoria levar-nos-a ao estudo daverdadeira posicao da ordem jurfdica na sociedade liberal.As quest6es basicas da especulacao no campo da juris-prudencia e da politica resultam da dupla experiencia da in-justificabilidade da ordem de classes existente e da corrupcaodos acordos ou tradicoes morais pela injustica da sua origem.Na medida em que as pessoas passam por essa experiencia,esforcam-se por evitar ou minorar a escravidao mutua da or-dem de classes e estabelecer 0 poder mais forte - 0 governo- sobre uma base que elimine a arbitrariedade das habituaishierarquias sociais.

    Uma forma importante deste esforco e a luta na direcaodo Estado de direito. Ao iniciar 0 meu argumento, caracteri-zei 0 Estado de direito pelo seu compromisso com a generali-dade e a autonomia. Para os fins a que agora me proponho,convem distinguir entre um conceito mais amplo e outro maisrestrito de Estado de direito. 0 primeiro e sempre caracteristicoda principal reacao a situacao existente na sociedade liberal,enquanto 0 segundo surge somente em circunstancias especiais.

    No sentido mais amplo, 0 Estado de direito e definido pe-

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    as leis significam, e para faze-In em conformidade com urnmetodo diferente daquele do administrador. Esta autoridade eo juiz.Se 0 administrador fosse tambem juiz, ser-lhe-ia possiveldistorcer 0 significado das regras que se compromete a exe-cutar de forma a acomodar os seus proprios objetivos. Alemdisto, poderia terminar por confundir os metodos administrati-vo e judiciario, cada urn com uma entase diferente e ambosindispensaveis a boa administracao do Estado.o administrador concentra-se nos meios mais eficazes derealizar certos objetivos politicos dentro dos Iimites da lei.Para ele, as regras legais sao uma estrutura dentro da qual asdecisoes sao tomadas. Para 0 juiz, ao contrario, as leis passamcia periferia para 0 centro de interesse: sao 0 conteiido funda-mental da sua atividade. A jurisdicao exige dais tipos especiaisde argumento, e a sua integridade 'requer instituicoes e pessoalespecializados,Portanto, ate mesmo a nocao mais estreita de Estado Cledireito inclui uma diterenciacao entre os procedimentos de le-gislacao, administracao e jurisdicao. Veremos adiante comoe par que se tornam menos sustentaveis, primeiro, a distincaoentre 0 metodo administrativo e 0 judicial e, depois, a dife-renca entre ambos e 0 metodo legislativo.Se a aplicacao uniforme de leis gerais por administradorese juizes separados e suficiente para caracterizar 0 ideal de

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    governo central, como na Inglaterra, ou suficientemente influ-ente para limitar a vontade do soberano pela lei geral, comona Alemanha. A discussao do caso alemao que faremos adian-te aperfeicoara esta hip6tese e indicara outros fatores perti-nentes.Em uma ou outra de suas duas principais variantes, 0 Es-tado de direito tenta resolver 0 dilema da sociedade liberalassegurando a impessoalidade do poder. Mas a sua capacidadede atingir este objetivo depende de duas premissas cruciais.A primeira e que os tipos mais importantes de poder pos-sam ser concentrados no governo. Quando as hierarquias declasse ou de funcao na sociedade nao afetam as liberdadesbasicas do individuo e nao tiranizam os aspectos mais centraisda existencia, 0 problema de um sistema de classes injustifica-do pode ser reduzido a proporcoes controlaveis. 0 governodeve manter-se acima ou fora do sistema de categorias sociais.Esta independencia do Estado em relacao as hierarquias sociaispode ser obtida atraves da selecao democratica e do controledas autoridades piiblicas, ou pode basear-se no conceito deum monarca ou de um sistema burocratico cuja posicao supos-tamente 0 proteja da influencia de interesses partidarios.

    A segunda premissa crucial do ideal de Estado de direi-to e a possibilidade de moderar-se 0 poder de maneira eficazmediante 0 usc de regras, quer estas atuem como limitesadministrativos ou como elementos de opcao na jurisdicao. A

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    posicoes corresponde a tradicional divisao entre direito publi-co e direito privado.Ambas as premissas basicas do Estado de direito demons-

    tram-se, em grande parte, ficticias. Em primeiro lugar, nuncafoi verdadeiro na sociedade liberal que todo poder significati-vo seja reservado ao govemo. Na verdade, as hierarquias quemais direta e profundamente afetam a situacao de urn indivi-duo sao as da Iamflia, do local de trabalho e do mercado. 0compromisso com a igualdade formal perante a lei nao desfaznem realmente corrige estas desigualdades; tampouco elas saosubvertidas, pelo menos a curto prazo, pelos mecanismos dademocracia politica.

    A outra premissa critica do Estado de direito - que asregras possam tomar impessoal e imparcial 0 poder - e igual-mente duvidosa. Veja-se a questao da legislacao, Nenhummetoda concebivel de legislacao na sociedade liberal poderiaser aceito como realmente neutro, e isto por dois motivos. Emprimeiro lugar, nao se pode separar 0 processo do resultado:todo metoda toma certas opcoes mais provaveis que outras,embora muitas vezes seja diffcil dizer onde reside 0 seu pre-conceito em determinado assunto. Em segundo lugar, todo sis-tema de legislacao representa, por si mesmo, determinadosvalores: incorpora certa ideia de como 0 poder deve ser dis-tribufdo na sociedade e de como resolver os conflitos. Nao sepode, sem ser redundante, utiliza-lo para justificar 0 conceito

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    encontrar urn conjunto valido e estavel de acordos e valorescomuns que the sirva de base as interpretacoes da lei. Conse-qtientemente, cada caso forca-o a decidir, pelo menos impli-citamente, qual prioridade atribuir a cada urn dos conjuntosopostos de conviccoes de determinada sociedade. E requer queele se baseie numa moralidade aceita que, mesmo que possaser identificada, demonstra cad a vez mais decorrer de umasituacao social destitufda de santidade. Neste sentido, a juris-di~ao agrava, ao inves de resolver, 0 problema da injustifica-bilidade do poder.Assim, as pr6prias premiss as do ideal de Estado de direi-to parecem falsificadas pela realidade da vida na sociedadeliberal. Mas, curiosamente, os motivos do fracasso dessa ten-tativa de garantir a impessoalidade do poder sao os mesmosque originariamente inspiraram tal esforco: a existencia deuma ordem de classes relativamente aberta e parcial, e a con-comitante desintegracao de um consenso que pretende justifi-car-se a si mesmo. Os fatores que tornam a busca necessariaimpedem tambem 0 seu sucesso. 0 Estado, fiscal supostamenteneutro do conflito social, e sempre envolvido no antagonismodos interesses privados e transformado em instrumento de umaou de outra faccao, Assim, procurando disciplinar e justificaro exercicio do poder, os homens estao condenados a perseguirurn objetivo que estao proibidos de alcancar. E esta continuafrustracao aprofunda ainda mais 0 abismo entre a visao do

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    perspectiva historica, antes de passarmos as tendencias especi-ficamente alemas.Em nenhuma outra parte, 0 Stiindestaat foi urn Ienomenotao duradouro e arraigado como na Europa Central. Ali, comoem outras regioes europeias, 0 sistema corporativo dos Estadossociais resuItou, de muitas maneiras, da reacao da aristocraciafeudal contra as primeiras tendencias centralizadoras dosseculos XII e XIII, da mesma forma como 0 feudalismo haviasido 0 recuo de urn esforco prematuro de centralizacao em lar-ga escala territorial.

    Tres caracteristicas deste Stiindestaat sao especialmenterelevantes para 0 presente estudo. Em primeiro lugar, as fun-coes judiciais e administrativas eram inseparaveis; ambas eramexercidas em conjunto pelo principe e pelos estamentos comoparte da sua responsabilidade comum de administrar a justicae manter 0 direito fundamental do reino. Em segundo lugar,nao havia ainda distincao entre direito publico e direito pri-vado, 0 que equivale a dizer que 0 direito politico e 0 statussocial constituiam ainda urn todo indivisivel. Em terceirolugar, nao existia urn corpo de burocratas encarregado deuma funcao publica que pudesse ser claramente dissociadade privilegios particulares. Esta ultima questao requer uma ami-lise mais cuidadosa.Desde inicios do seculo XII, a Europa havia assistido aproliteracao da adrninistracao profissional em numerosos con-

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    treinamento especial e possuir consideravel poder pr6prio, maspermaneciam como membros da casa real e como instrumentosda politica do rei. Nao faziam qualquer distincao entre osinteresses patrimoniais e os objetivos politicos do soberano.As cidades livres do fim da Idade Media proporcionaramatmosfera algo diferente para a ascensao dos administradores.As burocracias citadinas talvez tivessem urn senso mais clarodo exercicio de cargos piiblicos do que os servidores do rei,mas a sua lealdade a uma cIientela privada, e 0 fato de serremunerada por esta ultima, eram vistos como aspectos nor-mais da sua posicao.Nas monarquias formadoras de Estados dos seculos xv,XVI e XVII, a separacao entre 0 service particular do sobe-rano e a funcao publica tornou-se gradualmente mais clara.Nao obstante, a tendencia era ainda tratar a fun~ao adminis-trativa como urn bern particular a ser explorado e ate mesmovendido em beneficio do seu proprietario.s" A este respeito,ocorrem-nos os oiiiciers do reinado frances, que foi talvez 0exemplo mais completo de absolutismo administrativo naEuropa antes da ascensao da Pnissia.wA partir de meados do seculo XVII, estas caracteristicasdo Stdndestaat comecaram a desaparecer na Prussia. Embora aagente imediata de tal mudanca tenha sido a dinastia dosHohenzollern, as suas maiores beneficiarias foram a propriaburocracia e as classes de onde provinha e com as quais se

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    ponsabilidades e rituais judiciais que, no passado, haviam limi-tado a autoridade do rei. E privou os estamentos da essenciado seu poder politico, ao mesmo tempo em que lhes permitiaconservar certas prerrogativas juridicas tradicionais.

    A nova dicotomia contribuiu tambem para uma sutil masimportante mudanca na nocao de direito. A lei organica doStiindestaat tinha ao mesmo tempo conotacoes territoriais epessoais: era a lei da Land, urn lugar onde diferentes gruposviviam em conjunto, cada urn dos quais segundo a sua pro-pria lei. Uma vez centralizadas as tarefas legislativa e admi-nistrativa, tomou-se possivel fazer e conceber a lei comoordem universal aplicavel a todos os habitantes de uma regiao,A ordem juridica passou a ser associada it ideia de soberaniado Estado, e nesta ideia a enfase era territorial.w

    Os mesmos fatores que permitiram a concentracao dopoder administrativo e legislativo num govemo central deramtambem origem it modema distincao entre direito publico edireito privado. A importancia desta divisao foi separar niti-damente a area de vida social sobre a qual 0 govemo tinhamais ou menos liberdade de acao daquela que ele cedera itsociedade civil. De inicio, 0 direito privado nao passava deuma extensao da lei organica do Stdndestaat. Assim, as pri-meiras codificacoes, como 0 Preussische Allgemeine Landrechtde 1794, estavam ainda impregnadas do espirito dos privile-

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    privados.f" Este fato culminou na aceitacao de uma ideologiaque definia a finalidade publica it qual a burocracia devia ser-vir como urn interesse universal - 0 bem-estar do Estadocomo urn todo organico, e nao uma vantagem faccionaria. 0apogeu da nocao da c1asse administrativa como poder neutroocorreu no periodo das reformas Stein-Hardenburg, depois daexpulsao de Napoleao.Esta ideia de devocao a urn interesse universal tinha umapitada de verdade e urn quilo de mistificacao, Marca uma epo-ca em que a burocracia se havia tornado, juntamente coma aristocracia latifundiaria e 0 monarca, uma socia ,do poder.No seu primeiro Impeto de liberalismo, a burocracia pedeminar a estrutura da sociedade corporativa, libertando os ser-vos e, assim, preparando 0 caminho, muitas vezes inadverti-damente, para urn vasto capitalismo agricola e industrial. Con-tudo, aliou a essas aparentes investidas contra a aristocraciacertas concess6es aos interesses aristocraticos e vigorosas ten-tativas de emular-Ihe 0 ethos e ingressar em suas fileiras. Aomesmo tempo, serviu de flagelo it ambicao dinastica, goIpean-do os inimigos estrangeiros e domesticos dos Hohenzollerncom urn aparato estataI de eficiencia nunca vista. Nao obstan-te, esta enorme maquina burocratica passou a estabelecer assuas proprias metas e, finalmente, a impa-las ao prfncipe paracujo service havia sido criada. Assim, a ideologia do univer-salismo burocratico foi a principal doutrina de urn Estado no

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    particular do prfncipe; urn periodo em que concebeu a suafuncao como publica, distinta da casa real, mas durante 0qual, nao obstante, continuou a manipular abertamente 0 car-go como patrimonio privado; urna epoca em que 0 funciona-rio publico repudiou qualquer uso direto do poder govema-mental para a promocao de fins pessoais; e, finalmente, umaera em que a burocracia surgiu como guardia de urn interesseuniversal.

    Agora que tracamos 0 esboco da transicao do Stiindestaatpara 0 absolutismo administrativo na Alemanha, podemoscompreender como essa ordem administrativa chegou a serredefinida como Estado liberal e 0 que esta redefinicao impli-cou para a teoria e os usos do direito. 0 conceito central aquie 0 do Rechtsstaat, a versao alema do ideal de Estado de di-reito,

    A doutrina do Rechtsstaat desenvolveu-se primeiro no su-doeste alemao, e nao na Prussia. Data da vit6ria sobre Na-poleao, A sua essencia politica era a nocao de urn compro-misso entre 0 principe, os Stiinde e a burocracia. Estecompromisso era expresso sob a forma de urn dualismo poli-tico: 0 poder seria compartilhado, por urn lado, pelo rei epela burocracia e, por outro, pelos Estados corporativos, atra-ves das suas dietas. Tanto conservadores como liberais temiama ausencia de coacoes legais sobre 0 exercicio do poder legis-lativo e administrativo. Os conservadores temiam essa ausen-

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    sem qualquer participacao significativa. 0 Estado de direitoera definido como 0 imperio de uma ordem juridica adminis-trada por uma burocracia judiciaria independente, que obriga-va 0 governo a agir segundo regras gerais, e que conferia di-reitos e obrigacoes fixos aos individuos. Dentro da esfera devida privada protegida pelo sistema legal, 0 comerciante podianegociar em paz e 0 erudito podia expor as suas opinioes commaior ou menor liberdade.s? Assim, a ordem administrativaimpessoal foi aceita por grupos politicamente conscientes, masimpotentes, como modo de satisfazer 0 seu anseio de liberta-rem-se de relacoes de dependencia pessoal.Este empenho em relacao a um modesto ideal de genera-lidade e autonomia legal era ao mesmo tempo a expressao ex-terna de um compromisso entre os grupos poderosos e umaconcessao as classes medias. Deixavam livres a aristocracialatifundiaria, 0 nivel superior da burocracia e 0 monarca paraexercerem 0 seu condominia sobre 0 Estado. Os mecanismospelos quais os liberais haviam almejado adquirir certa medidade participacao no governo - 0 controle do orcamento peloReichstag e 0 direito de impedir ministros por infidelidade naexecucao das leis - logo demonstraram-se ineficazes.s-As tendencies sociais e politicas que esbocei em linhasgerais sugerem 0 motivo pelo qual as modalidades dominan-tes de raciocinio administrativo e judicial evoluiram do modocomo 0 fizeram na Alemanha. De inicio, havia pouca dife-

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    protegia a burocracia nascente contra 0 rei e contra a aristo-cracia, de vez que permitia aos burocratas justificar as suasdecisoes como aplicacoes impessoais das regras.

    Numa segunda fase de desenvolvimento, a burocraciaconquistou grande dose de poder independente. Com a insti-tucionalizacao do Rechtsstaat, os burocratas judiciais e admi-nistrativos passaram a executar funcoes mais claramente diver-sificadas. Esta diferenciacao funcional foi reforcada por umacisao social: os juizes provinham principalmente da burgue-sia, enquanto que os principais administradores cada vez maisse mesclavam com a aristocracia, como foi 0 caso dos indus-triais parvenus bem sucedidos. Durante este periodo, 0 estor-;0 de impor severos limites ao criterio judicial serviu duplafinalidade. Em certo sentido, satisfez 0 desejo de certeza e,portanto, de seguranca, da classe media na aplicacao da lei.Em outro sentido, assegurou a elite administrativa que os jui-zes observariam estritamente leis e decretos cuja elaboracaoera freqiientemente controlada por burocratas do escalao su-perior.

    No esforco de relegar 0 judiciario a posicao subaltema, 0pessoal administrativo lancou mao tambem de outras armas.Uma destas foi transformar 0 Ministerio da Justica em cortede apelacao. Outra foi remover completamente certas questoesdo ambito judiciario, sujeitando-as a processos administrati-vos especiais. Outra ainda retirava das cortes 0 direito de

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    ridica e, em escala menor, dos proprios metodos de argumentojudicial. Sob 0 impacto de intensa concentracao economica,a burguesia gradualmente dividiu-se em dois grupos com inte-resses diferentes: a classe media assalariada, essencialmentedestituida de poderes, e os grandes capitalistas, intimamentealiados aos lideres militares e burocraticos.PEste ultimo grupo, que constituia uma elite administrativa,ja nao dependia do judiciario para qualquer assunto importan-teo Podia atingir as suas metas atraves da influencia queexercia sobre 0 govemo, fosse diretamente ou atraves de car-teis que criavam urn vasto corpo de lei nao-estatal, quase in-teiramente fora do alcance do judiciario. A seguranca e a pre-visibilidade desejadas por essa elite foram adquiridas atravesda sua posicao na estrutura do poder.A burguesia assalariada - as classes medias trabalhado-ras - estaria, a qualquer momento, interessada em interpre-tacoes judiciais mais amplas de leis sobre cuja elaboracao naopodia ter muito controle. Uma vez que os proprios juizes pro-vinham, em sua maioria, dessa camada social e compartilha-

    yam de seu ponto de vista e interesses, era de se esperar queincIinassem 0 exercicio do seu arbitrio em prol dos interessesda cIasse media. Foi 0 que fizeram da maneira mais audacio-sa durante a Republica de Weimar, quando utilizaram a clau-sula de boa-fe no Codigo Civil para "reavaliar" dividas cujoverdadeiro valor havia sido praticamente anulado pela hiper-

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    que a lei aplicada seja sensivel as praticas mercantis e cons-tantemente adaptada as necessidades do comercio, 0 primeirodesejo geralmente opoe-se a urn maior arbitrio judicial, en-quanto que 0 ultimo 0 favorece. Mas, na Alemanha de finsdo seculo XIX, este conflito era resolvido porque os juizes,oriundos de grupos mercantis ou simpaticos a eles, freqiiente-mente exerciarn 0 seu arbitrio de urn modo que era ao mesrnotempo consideravelmente previsivel e sensivel as necessidadesda classe rnercantil.Foi no contexto da situacao causada pela cisao da bur-guesia em dois grupos - urn indiferente ao judiciario e 0outro ansioso por sua intervencao a base da eqiiidade - quedesapareceu 0 fundamento social para uma jurisprudencia deaplicacao mecanica das regras. A guinada na direcao de esti-los prudenciais de raciocinio judicial foi acelerada por movi-mentos intelectuais que comecavam a solapar toda a nocao deconhecimento e de linguagem sobre a qual repousavam os con-ceitos anteriores de decisao judicial.o declinio do formalismo das regras na aplicacao da lei,declinio este que assemelhou raciocinio dos juizes, em estiloe metodo, ao racionalismo instrumental da burocracia admi-nistrativa, deixou sem alternativas os defensores e porta-vozesdas classes trabalhadoras. Se atacassem formalismo das re-gras, abririam caminho as aventuras de urn judiciario indife-rente aos seus interesses. Se, ao contrario, se opusessem a

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    ordem liberal que tende na direcao do absolutismo monarqui-co e administrativo pode mais facilmente perpetuar muitas dascaracteristicas da sociedade aristocratica que urn Estado libe-ral que optou pelas formas de constitucionalismo parlamentar.o Estado de direito na Inglaterra foi ao mesmo tempo causae efeito da participacao direta das classes medias no governo.o equivalente legal da variante nao-democratica do liberalis-mo na Alemanha foi a interpretacao estreita da generalidadee da autonomia da lei como garantias de seguranca para po-derosos e fracos.o caso alemao sugere que a burocracia, como "classeuniversal", provavelmente desempenha papel crucial na cria-~ao do liberalismo nao-democratico, Atualmente, a burocra-cia sobrevive aos seus aliados aristocraticos e monarquicos, eadquiriu grande influencia em todas as sociedades industriais.A motivacao basica do alto escalao burocrata permanece sem-pre a mesma em toda parte: assegurar a maior liberdade deacao possivel ao seu proprio racionalismo instrumental e limi-tar 0 arbitrio dos outros grupos, seja restringindo-os ao for-malismo das regras, seja reduzindo 0 mimero de meios a dis-posicao destes ultimos para fins preestabelecidos.Urn segundo conjunto de conclusoes que se pode aduzirdo exemplo alemao tem a ver com a relacao entre a ordemjuridica e 0 autoritarismo. 0 mero compromisso com a gene-ralidade e a autonomia da lei e com a distincao entre legis-

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    me abismo que separa as diferentes esferas de vida social podetornar mais aceitavel a coexistencia da lei e do terror.Finalmente, a hist6ria alema exemplifica c1aramente0 di-

    lema a que 0 ideal da legalidade expoe 0 proletariado numEstado em que as classes trabalhadoras nao dispoem de con-trole eficaz. 0 proletariado depende de uma burocracia cen-tralizada que sirva de contrapeso as oligarquias locais e aosgrupos nacionais de interesse. Necessita tambem de urn siste-ma legal universalista que restrinja 0 dominio arbitrario dossuperiores sociais dentro e fora do ambiente de trabalho. Masa burocracia centralizada reduz a participacao democratica. Eo tratamento igual de situacoes desiguais pelo judiciario sim-plesmente confirma, se nao agrava, a sua desigualdade.

    Poderia parecer que a tinica solucao para este dilema fos-se a tomada do poder. Mas,. como demonstra a experienciade muitas sociedades socialistas, a tomada do poder, por simesma, jamais pode resolver 0 problema; pois, enquanto hou-ver urn compromisso com a organizacao burocratica, a ques-tao permanecera. Veremos mais tarde que as mesmas ten-dencias ideo16gicase sociais que poderiam contribuir para des-mantelar a burocracia tambem solapam a ordem juridica e~finalmente, poem em risco a propria nocao de direito publicoe positivo.