o custo das não decisões na imprensa local e regional ......limite, contagia e distorce o chamado...

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O custo das não decisões na imprensa local e regional portuguesa 1 Paulo Ferreira Introdução Quando, em 1995, Jacques Chirac esco- lheu a imprensa regional para publicar uma carta onde apresentava as razões da sua candidatura à liderança do Estado francês, não o fez por mera simpatia para com estes órgãos de comunicação social. Fê-lo porque sabia que a imprensa regional francesa tem 20 milhões de leitores, o dobro dos que preferem a imprensa nacional. Nunca em Portugal se assistiu a um facto semelhante. O anúncio de candidaturas a cargos relevantes é invariavelmente forjado na imprensa nacional. O que faz sentido, na medida em que, ao contrário do que acontece em França e em muitos outros países euro- peus, a imprensa local e regional portuguesa vive genericamente mergulhada numa pro- funda letargia. Os dados que se conhecem sobre a realidade do sector parecem atestá-lo à saciedade, como adiante se verá. Mas se dúvidas sobrassem sobre esta abulia que, no limite, contagia e distorce o chamado espaço público (um espaço democrático de expres- são da cidadania, de interacção e de inter- comunicação social, seguindo aqui o sentido em que Habermas o concebia), bastaria olhar para a apresentação cronológica dos factos mais relevantes ocorridos no campo da comunicação e dos media portugueses no período que vai de 1995 a 1999. Nesse “contributo para a memória e leitura da segunda metade dos anos 90, no que aos media e à comunicação diz respeito” (Pinto et al, 2000:11), são elencadas 1325 referên- cias a notícias sobre este campo vindas a lume nos principais órgãos da imprensa nacional. Quantas falam sobre a realidade dos media regionais? Sessenta e seis (66). Contas fei- tas, menos de 5 por cento do total 2 . A percentagem espanta? Sim e não. Espanta, se tivermos em consideração que existem em Portugal, só no que diz respeito à imprensa escrita local e regional, cerca de 900 títulos devidamente registados no Ins- tituto de Comunicação Social. Com tanto jornal, os acontecimentos dignos de nota foram tão exíguos? As decisões tomadas pelos proprietários dos títulos e pelo Estado rela- tivamente à marcha do sector foram assim tão escassas? Não espanta se, como faremos adiante, olharmos para as principais características da imprensa local e regional e para o conteúdo das decisões que sobre ela foram tomadas desde 1975. E volta a espantar se analisarmos o que dizem dois estudos de opinião sobre a imprensa local e regional portuguesa. O primeiro, realizado em 2000 pelo Instituto de Pesquisa e Opinião de Mercado (IPOM) 3 , mostra que 1.600 dos 2.859 entrevistados liam, na altura do trabalho, mais jornais regionais que nacionais. Isto é: cerca de 56 por cento da amostra então escolhida optava por ler notícias de âmbito regional em detrimento das de âmbito nacional, o que evidencia bem uma das principais característi- cas deste tipo de imprensa: “a estreita so- lidariedade com a estrutura social local” (Alves, 1990: 242). Em Outubro de 2003 ficaram a conhecer- se as conclusões de um outro estudo sobre a imprensa regional, este da Marktest 4 . Mais de metade (50,9 por cento) dos inquiridos referiu ler ou folhear jornais regionais. Ainda assim, o número de pessoas que têm algum tipo de contacto com os jornais nacionais ditos de informação geral (64,7 por cento) é superior aos leitores que contactam com a imprensa regional (50,9 por cento). Alguma coisa parece não bater certo. Se os estudos científicos mostram de forma evidente a importância da imprensa local e regional, por que razão não tem ela visibi- lidade na leitura cronológica a que aludimos? A resposta talvez esteja no facto de os estudos apenas mostrarem as potencialidades da

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145ECONOMIA E POLÍTICAS DA COMUNICAÇÃO

O custo das não decisões na imprensa local e regional portuguesa1

Paulo Ferreira

Introdução

Quando, em 1995, Jacques Chirac esco-lheu a imprensa regional para publicar umacarta onde apresentava as razões da suacandidatura à liderança do Estado francês,não o fez por mera simpatia para com estesórgãos de comunicação social. Fê-lo porquesabia que a imprensa regional francesa tem20 milhões de leitores, o dobro dos quepreferem a imprensa nacional.

Nunca em Portugal se assistiu a um factosemelhante. O anúncio de candidaturas acargos relevantes é invariavelmente forjadona imprensa nacional. O que faz sentido, namedida em que, ao contrário do que aconteceem França e em muitos outros países euro-peus, a imprensa local e regional portuguesavive genericamente mergulhada numa pro-funda letargia.

Os dados que se conhecem sobre arealidade do sector parecem atestá-lo àsaciedade, como adiante se verá. Mas sedúvidas sobrassem sobre esta abulia que, nolimite, contagia e distorce o chamado espaçopúblico (um espaço democrático de expres-são da cidadania, de interacção e de inter-comunicação social, seguindo aqui o sentidoem que Habermas o concebia), bastaria olharpara a apresentação cronológica dos factosmais relevantes ocorridos no campo dacomunicação e dos media portugueses noperíodo que vai de 1995 a 1999. Nesse“contributo para a memória e leitura dasegunda metade dos anos 90, no que aosmedia e à comunicação diz respeito” (Pintoet al, 2000:11), são elencadas 1325 referên-cias a notícias sobre este campo vindas a lumenos principais órgãos da imprensa nacional.Quantas falam sobre a realidade dos mediaregionais? Sessenta e seis (66). Contas fei-tas, menos de 5 por cento do total2.

A percentagem espanta? Sim e não.Espanta, se tivermos em consideração que

existem em Portugal, só no que diz respeito

à imprensa escrita local e regional, cerca de900 títulos devidamente registados no Ins-tituto de Comunicação Social. Com tantojornal, os acontecimentos dignos de notaforam tão exíguos? As decisões tomadas pelosproprietários dos títulos e pelo Estado rela-tivamente à marcha do sector foram assimtão escassas?

Não espanta se, como faremos adiante,olharmos para as principais características daimprensa local e regional e para o conteúdodas decisões que sobre ela foram tomadasdesde 1975.

E volta a espantar se analisarmos o quedizem dois estudos de opinião sobre aimprensa local e regional portuguesa. Oprimeiro, realizado em 2000 pelo Institutode Pesquisa e Opinião de Mercado (IPOM)3,mostra que 1.600 dos 2.859 entrevistadosliam, na altura do trabalho, mais jornaisregionais que nacionais. Isto é: cerca de 56por cento da amostra então escolhida optavapor ler notícias de âmbito regional emdetrimento das de âmbito nacional, o queevidencia bem uma das principais característi-cas deste tipo de imprensa: “a estreita so-lidariedade com a estrutura social local”(Alves, 1990: 242).

Em Outubro de 2003 ficaram a conhecer-se as conclusões de um outro estudo sobrea imprensa regional, este da Marktest4. Maisde metade (50,9 por cento) dos inquiridosreferiu ler ou folhear jornais regionais. Aindaassim, o número de pessoas que têm algumtipo de contacto com os jornais nacionaisditos de informação geral (64,7 por cento)é superior aos leitores que contactam coma imprensa regional (50,9 por cento).

Alguma coisa parece não bater certo. Seos estudos científicos mostram de formaevidente a importância da imprensa local eregional, por que razão não tem ela visibi-lidade na leitura cronológica a que aludimos?A resposta talvez esteja no facto de os estudosapenas mostrarem as potencialidades da

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imprensa local e regional. Não falam dassuas dificuldades e, por isso mesmo, nãopodem retratar a fraca qualidade da esma-gadora maioria dos títulos. Acima de tudo,não explicam – nem era esse o objectivo –o atraso estrutural em que o sector se en-contra. Podem ser estas, entre outras, asrazões que explicam a quase ausência dereferências aos media regionais na cronolo-gia.

O objectivo deste ensaio passa, justamen-te, pelo debate que nos pode conduzir àscausas e as consequências do hiato entre aquantidade e qualidade na imprensa local eregional portuguesa. O que atrás fica escritopermite-nos assumir que a esmagadoramaioria dos títulos está longe de fazer o quese lhe pede: ser

“um canal de transmissão de mensa-gens capaz de desempenhar um papelactivo na“‘fabricação de ideias’ den-tro de uma comunidade em cujo seiocresceu a nossa cultura pessoal”(Mathien, 1983:32).

Desde logo, porque, em boa medida, asua sobrevivência tem sido assegurada muitoà custa dos apoios que o Estado temdisponibilizado. Citemos apenas dois exem-plos: dos 900 títulos, 645 beneficiam deapoios estatais; e, só entre 1999 e 2003, foramgastos mais de 89 milhões de euros em ajudas.

Independentemente de outros factores quepodem contribuir para o entendimento destasituação, este artigo irá centrar a sua atençãona dimensão política do problema, por en-tendermos que aí se situa o cerne dos pro-blemas. Neste sentido: as políticas desenha-das, desde o primeiro Governo Constituci-onal, para a comunicação social e regionalnão têm incentivado a procura da qualidade,mas antes a manutenção da mediocridade.Mais: em vez de falarmos na tomada dedecisões, talvez seja mais relevante referiras não-decisões, tão escassas são as medidasque, no seu conjunto e pelo seu alcance,deixam antever a definição clara de umapolítica para o sector. As leituras indicam-nos que o trabalho de Steven Lukes (“Power:a Radical View”) sobre a tomada de decisãoé decisivo para tentarmos sustentar minima-mente a hipótese que nos guiará ao longo

do ensaio: Mais do que incentivar o desen-volvimento da imprensa local e regional, aspolíticas – ou a falta delas – definidas paraeste sector pelos vários Governos têmcoarctado a sua evolução.

Esta discussão é tanto mais relevantequanto se sabe que o anterior e o actualGoverno5 (os XV e XVI Governos constitu-cionais formados pela coligação PSD/CDS-PP)têm vindo a prometer a realização de umaverdadeira reforma estrutural no sector. Masnão a queríamos iniciar sem falarmos dascaracterísticas da imprensa local e regional.Agarraremos depois aquelas que nos parecemser as duas decisões mais relevantes sobre osector – elaboração do Estatuto da imprensalocal e regional e decisão de reduzir o porte-pago de que beneficiava, até aí a 100 por cento,a maioria dos títulos – para entender quemforam os actores e que movimentações en-cetaram para alcançar os objectivos.

Dada a amplitude da reforma prometidapelo anterior e pelo actual Executivo, lan-çaremos um olhar sobre o que é até agoraconhecido, para tentar perceber se, de facto,as prioridades e o processo de decisão seinverteram.

Só então arriscaremos dizer alguma coisana conclusão do ensaio.

Características da imprensa local e regi-onal

Deixamos para um artigo sobre estamesma matéria submetido para publicação naRevista Comunicação e Sociedade, númerotemático relativo à Economia Política daComunicação, a análise do conceito deimprensa local e regional em Portugal e odebate sobre o papel que ela pode desem-penhar numa altura em que a deriva pós-moderna e globalizadora obriga a reintroduzirno debate a importância das identidadesculturais e das comunidades locais e regi-onais.

Interessa-nos agora olhar para algumasdas suas características, de modo a perce-bermos de que realidade falamos quandofalamos da imprensa local e regional.

Os dados disponíveis no Instituto deComunicação Social mostram o seguinte:

i) Há 900 títulos de publicações perió-dicas;

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ii) O número de jornais diários nãoultrapassa os 30;

iii) A periodicidade mais comum é amensal, seguida da semanal;

iv) O conjunto de tiragens médias situa-se perto dos 4.500 exemplares. Metade dosjornais com direito a porte-pago (645 no total)não vai além dos 2.500 exemplares;

v) Só 8 por cento dos jornais tem tira-gens acima dos 10.000 exemplares;

vi) Só 23 por cento das empresasjornalísticas tem contabilidade organizada

vii) Só dez empresas ultrapassam os 500mil euros de vendas anuais de publicidade.

No documento que serviu de base àapresentação da reforma dos media regionais,o secretário de Estado com a tutela do sectorno XVI Governo Constitucional, FelicianoBarreiras Duarte, divulgou mais dados – unsactualizam os do ICS e outros são novos erelevantes.

Assim:i) A maioria dos jornais tem uma situ-

ação económica débil;ii) A tiragem média é de 4 mil exem-

plares;iii) A periodicidade mais frequente é a

mensal (43%), seguida da semanal (30%) eda quinzenal (23%);

iv) Apenas 15% da tiragem é vendida embanca;

v) 281 dos títulos que recebem porte-pagonão têm um único profissional com contratode trabalho.

O exercício da decisão

Por que razão se chegou a este estado?O olhar que lançamos, no artigo da RevistaComunicação e Sociedade a que aludimosacima, sobre as políticas de informação dosgovernos portugueses que se seguiram àRevolução do 25 de Abril mostra que semprea imprensa local e regional foi uma espéciede parente pobre dessas mesmas políticas.Mesmo quando, com os Governos de Cava-co Silva, a pulsão liberalizadora viu chegadoo seu tempo, o sector não deixou de serolhado com o mesmo paternalismo de sem-pre.

Essa realidade é evidente quando seanalisam as decisões mais relevantes queforam tomadas sobre o sector. Antes de

partirmos para aí, importa, contudo, perceberdo que falamos quando falamos da tomadade decisões. O que é, afinal, decidir? Numprocesso de tomada de decisões, que valorese circunstâncias fazem pender a balança paraum dos lados e não para o outro? A não tomadade decisões pode ser ela mesma uma decisão?Quem intervém no processo decisório e quemtem poder para tomar decisões?

O interesse pelo estudo das decisões temem Herbert Simon um dos principaispercursores. Logo a seguir à II GuerraMundial, Simon procurou mostrar que osmodelos matemáticos usados até então paraestudar as decisões eram insuficientes, ad-vogando que o importante é analisar o in-divíduo (o decisor) e a organização onde elese insere. Por isto: na medida em que adecisão contém em si uma proposta de acção,ela perceber-se-á tanto melhor quanto me-lhor pudermos identificar os actores nelaenvolvidos.

Ou seja: a decisão não é mais que

“o instante final de um processo quese inicia um tempo antes, muitas vezesnum momento difícil de identificar.Esse momento é aquilo a que muitasvezes se chama o estímulo da deci-são” (Camões, 1997: 81).

Podemos igualmente falar de um “con-junto de acções e factores dinâmicos quecomeça com a identificação de um estímulopara a acção e termina com o consenso ouenvolvimento para a acção” (idem,ibidem).”Importa reter nestes conceitos umaoutra variável. É que, havendo muitosintervenientes no processo de decisão, osfactores externos são inequivocamente rele-vantes.” O ambiente muitas vezes podetambém decidir” (idem, ibidem).

Simon identificou dois tipos de decisões:programadas ou de rotina e não programa-das. A tipologia clássica opta por uma clas-sificação que nos parece mais rigorosa:

i) decisões estratégicas (grande impactoa longo prazo, envolvendo muitos membrose todos os níveis organizacionais);

ii) decisões tácticas (impacto de médioprazo);

iii) decisões operacionais (impacto decurto prazo);

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Para a discussão que nos interessa aquilevar a cabo deve acrescentar-se a importân-cia dos aspectos políticos na tomada dedecisão: os jogos de poder, os grupos deinfluência, os lobbies e a defesa dos seusinteresses. Veremos mais à frente como umadas principais decisões sobre a imprensaregional – o corte no porte-pago – tem todosestes condimentos.

O contributo de Lukes

Se o trabalho de Herbert Simon é im-portante pela sua componente pioneira, ocontributo que Steven Lukes deu para oentendimento da tomada de decisões noâmbito do exercício do poder é igualmentede enorme relevância.

A primeira constatação de Lukes é esta:para perceber o exercício do poder, não bastaanalisar as práticas facilmente observáveis.A sua tese é a de que o poder tem trêsdimensões:

i) Visão unidimensional. A análise dosprocessos de decisão faz-se através do es-tudo do comportamento dos vários protago-nistas sociais. O que interessa é perceberquem fez impor o seu ponto de vista e porque razão o que conseguiu impor. Ou seja:só podemos chegar a conclusões quando oconflito e a luta pelo exercício do poder sãoabertos e observáveis.

ii) Visão bidimensional. O poder tem duasfaces: a tomada de decisões e a não tomadade decisões. Neste último caso, evita-se aacção sobre questões em relação às quais nãoimporta decidir, maneira de afastar da agen-da pública as matérias mais complexas eproblemáticas para o exercício do poder.

iii) Visão tridimensional. Nas duas visõesanteriores, a noção de conflito está semprepresente. Ora, a melhor forma de exercer opoder passa por eliminar o conflito, estágioa que corresponde justamente a visão tridi-mensional.

A nossa proposta inicial passava porconsiderar que a imprensa regional e localde Portugal tem sido vítima da não tomadade decisões. O que nos obriga, tendo por certoque a sua operacionalização em termos ci-entíficos não é fácil, a olhar com um poucomais de cuidado para as não decisões.

Lukes recorre aos trabalhos de Bachrache Baratz6 e de Matthew Crenson7 para nosexplicar que estamos perante um processoem que

“os pedidos de mudança (...) podemser sufocados mesmo antes de seremverbalizados. Ou ‘mortos’ antes desubirem à arena da tomada de de-cisões. Ou, falhando todas estascoisas, destruídos durante o estágioda tomada de decisões no processopolítico” (Lukes, 1974: 18, 19).

Do que se trata, no fundo, é de reco-nhecer que estamos perante assuntos de fron-teira no espectro político. Ora, Bachrach eBaratz consideram fundamental identificaressas questões, na exacta medida em quea sua não colocação na agenda pode dizermuito do poder político em causa e dosinteresses que giram em torno de si.

Mais: para os mesmos autores, a ideiade que o poder na tomada de decisões sóé observável quando o conflito é abertotambém se aplica à análise das não-deci-sões.

“Se não há conflito, aberto ou encober-to, a presunção só pode ser a de que háum consenso, caso em que a existência denão-decisões é impossível”, escrevem osautores, citados por Lukes (Lukes, 1974: 19).

Matthew Crenson é ainda mais lapidar.A sua tese é basicamente esta: a análise dasnão-decisões é mais relevante do que aanálise das decisões, visto que estas não nosdizem nada sobre os grupos e os problemasque foram postos de lado na vida políticade uma determinada comunidade. A suaperspectiva agrada a Lukes, que a catalogacomo estando na fronteira entre as segundae a terceira dimensões do poder.

Seja como for, Steven Lukes prefereaquilo a que chama uma concepção “radi-cal” do poder, que tende para a eliminaçãodo conflito no exercício do mesmo. Asleituras feitas sugerem-nos outra ideia, quetentaremos aprofundar na conclusão dotrabalho: no caso dos media regionais elocais em Portugal, o exercício da nãodecisão não é paradoxal com a eliminaçãodo conflito no exercício do poder. É com-plementar.

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Pela política dentro

Defendemos no início do trabalho que asdecisões mais relevantes e de carácter estri-tamente político tomadas até hoje no que dizrespeito aos medias regionais e locais seprenderam com a elaboração do Estatuto daImprensa Regional e com o corte no porte-pago. Tentaremos agora sustentar esta ideia.

A análise de todos os programas dosvários Governos constitucionais desde o 25de Abril até hoje (que fazemos na RevistaComunicação e Sociedade a que aludimosacima) é um bom ponto de partida. Desdelogo, porque nos ajuda a elucidar a questãocentral deste ensaio. Com mais ou menosespaço nos vários Diários da República ondeos programas são publicados, há um fiocondutor claro e evidente nas preocupaçõesdos executivos: apoiar sempre, através daatribuição de subsídios, a imprensa regionale local.

É no XI Governo Constitucional – osegundo dos Governos de Cavaco Silva – quese decide aprovar o Estatuto da ImprensaRegional (Decreto Lei nº106/88, de 31 deMarço), “através do qual o Governo reco-nheceu formalmente o inegável interessepúblico deste sector da comunicação social”(Silva, 1995: 24). O que se pretendia como Estatuto?

“Consagrar, de modo explícito, oapoio do Estado à afirmação daimprensa regional, designadamentepela criação de instrumentos de ajudaà reconversão tecnológica e moder-nização das suas estruturas e equipa-mentos. Ao longo destes anos, foramjá mais de 400 os jornais regionaisbeneficiados, e os projectos de inves-timento concretizados permitiram quehoje, de forma objectiva e inegável,o País disponha de uma imprensaregional de melhor qualidade, maispujante e com crescente afirmaçãosocial e cultural” (idem, ibidem).

Há três reparos que, a nosso ver, ajudama perceber o que está por detrás desta de-cisão.

i) O Estatuto contém um erro susceptívelde desvirtuar as boas intenções do Governo.

É que a definição de imprensa regionalconstante do Estatuto, a partir da qual selançam as bases para esta “política”, confun-de conceitos básicos. A definição mete nomesmo saco realidades distintas. Um sema-nário que, por exemplo, se edita num deter-minado concelho de Trás-os-Montes mas quecobre, com o contributo de jornalistas pro-fissionais, os distritos de Vila Real eBragança, não é igual a um outro que, apesarde editado no mesmo concelho, publicaapenas e só notícias dessa localidade e semo contibuto de jornalistas profissionais. Asduas realidades estruturalmente distintas. E,sendo assim, talvez mereçam “políticas”distintas.

ii) Na mesma altura da publicação doEstatuto, a tutela do sector estava entreguea Marques Mendes, então secretário de Estadoadjunto do ministro adjunto e para os As-suntos Parlamentares. Ora, Marques Mendes,em 1987, no encerramento do II Congressoda Associação de Imprensa Não Diária, tinhasobre a imprensa regional e local esta visão:“A imprensa regional assume-se por méritopróprio, com a carolice, o salutar amadorismoe a invulgar dedicação que são próprios dequem sente, com sinceridade, o que vive, oque exerce, o que faz e o que realiza”8. O“salutar amadorismo” pode bater certo coma “imprensa regional de melhor qualidade”que o então primeiro-ministro, vislumbrava?

iii) O comentário de Cavaco Silva aoEstatuto é elucidativo quanto à visão que oGoverno tinha sobre os media regionais elocais. Porque nos parece muito redutorconsiderar que a atribuição cega de subsídiospossa ser considerada uma política.

É, porém, no seu segundo Governo deGuterres (XIV Constitucional) que se tomaráa decisão que, provavelmente, mais abalouo sector desde o 25 de Abril.

Quando assumiu, em 1995, o lugar desecretário de Estado da Comunicação Socialno primeiro Governo de António Guterres,Alberto Arons de Carvalho encontrou “umsector que, a par com alguma gente nova comarrojo e com ideias, tinha muita gente aco-modada, muita gente que estava à frente dejornais regionais para manter uma tradiçãofamiliar, sem nenhuma visão empresarial”9.

Mais do que isso: “Também tive a noçãoque havia um sistema de auxílios do Estado

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que afastava a imprensa regional da procurada qualidade. O porte-pago a 100 por centofazia com que houvesse muitos jornais quetinham uma tiragem ditada pela relação comos anunciantes e não pela relação com osleitores. Eram jornais praticamente gratuitos,em grande parte”10. “Chegava a ser assus-tador. As pessoas viajam pelo país, vão aosquiosques comprar os jornais nacionais e nãoencontram o jornal da terra. Como o porte-pago permitia que a distribuição fosse todafeita, de borla, pelo correio, os jornais locaisnão tinham visibilidade” nas bancas.

O secretário de Estado decidiu que eratempo de alterar este estado de coisas epugnar pela “moralização” (sic) do sector. Eisso só se podia fazer alterando as regras doporte-pago.

O processo conheceu duas fases. Numaprimeira, quando o Governo era minoritário,a proposta enviada à Assembleia da Repú-blica não colheu a simpatia dos gruposparlamentares, que a viam como um entraveao futuro da imprensa regional e local.

Com a conquista, nas legislativas de 1999,de 115 deputados (no limiar da maioriaabsoluta), o PS passou a ter outras condiçõespara fazer aprovar diplomas na Assembleiada República. Arons de Carvalho voltou àcarga. Percorreu o país de lés-a-lés, falou comtodas as associações do sector em busca deapoios, tentou sensibilizar outra vez algunspartidos da oposição (nesta segunda etapa jánão abordou o PSD. Com o CDS/PP nãochegou a conversar em nenhuma altura),escreveu a todos os directores dos órgãos decomunicação social regional e local, expli-cou as suas razões na imprensa nacional enalguns media locais e regionais.

Apesar disso, a medida governamentalprovocou fragorosos protestos vindos depraticamente todas as associações ligadas àimprensa regional e local. Em sucessivoscomunicados enviados para os filiados e emsucessivas reuniões onde se juntavam osassociados, o argumento foi sempre o mes-mo: o repúdio veemente do “sistema deaplicação e comparticipação” do porte-pago,por este pôr “em causa a sobrevivência demuitos jornais regionais, locais e para asComunidades”.

Com a esmagadora maioria da imprensaregional local contra si, Arons não tinha outra

hipótese senão procurar apoios no Parlamen-to. Foi o que fez. Mas também aí encontrougigantes resistências. Da Esquerda à Direita,praticamente todos os partidos se opunhamà medida. Todos, excepto o Bloco de Esquer-da. Para “espanto” (sic) do secretário deEstado, os bloquistas permitiram, com os seusvotos, que a medida passasse no Parlamento.

O novo diploma entrou em vigor emMarço de 2001. Aplicado a publicações cujopeso não ultrapasse as 200 gramas, o De-creto-Lei 56/2001 determina que a expedi-ção passa a ser comparticipada em 95 porcento se o jornal for enviado para um as-sinante residente no estrangeiro. No que dizrespeito à expedição para território nacional,passavam a beneficiar de umacomparticipação de 80 por cento nos custosos jornais que tenham cinco profissionais aoseu serviço (três deles jornalistas) e comtiragem média de 5.000 exemplares e comperiodicidade igual ou inferior à trissemanal;os jornais com pelo menos três profissionaisao seu serviço, dois dos quais jornalistas, etiragem média de 3.000 exemplares e comperiodicidade superior à trissemanal e igualou inferior à semanal; os jornais com pelomenos dois profissionais, um deles jornalis-ta, e uma tiragem média de 1.000 exempla-res; e os jornais com apenas um profissionalao seu serviço e uma tiragem média de 1.000exemplares e com periodicidade superior àsemanal e igual ou inferior à quizenal. Depoisde uma fase de adaptação, em Janeiro de 2002o Decreto-Lei passou a ser integralmenteaplicado. Os valores de ajuda no porte-pagopassaram a ser de 60 e 80%, consoante assituações.

E por que razão foram reduzidos osapoios? Porque o Governo entendeu que asregras do jogo estavam falseadas, uma vezque muitos jornais regionais e locais, poden-do utilizar gratuitamente os serviços dos CTT,enviavam milhares de exemplares para casade pessoas que nem sequer eram assinantesdo jornal. O que trazia óbvias vantagens:exibiam-se tiragens elevadas junto dos anun-ciantes e dos poderes locais, de modo a atrairmais publicidade, mesmo que nem um exem-plar sequer da publicação fosse colocado àvenda nas bancas.

Falta, contudo, a parte politicamente maisrelevante desta história. É que Arons de

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Carvalho teve também que gerir e ultrapas-sar os temores dentro do próprio Governo,onde imensos colegas o alertaram para osarilho em que se estava a meter e, sobre-tudo, para as consequências que daí podiamadvir para o Executivo. De tal modo que,quando o diploma subiu a Conselho deMinistros, acabou por ser aprovado por umfio. Um fio que é, parece-nos, de uma enormerelevância para o que nos propusemos aquidiscutir.

Os ministros, conta o secretário de Es-tado, temiam que o país profundo se ergue-se contra o Governo, depois de posto emprática o corte no porte-pago. No meio dadiscussão, um deles avançou um argumentodecisivo: se era certo que a aprovação damedida causaria danos ao Executivo, não eramenos certo que esses danos seriam menoresquanto menos fossem os jornais locais eregionais a levantar-se contra o Governo. Porisso, havia que avançar rapidamente com ocorte e esperar que alguns jornais locais eregionais desaparecessem. Assim, a luta dosproprietários das publicações seria feita comuma tiragem limitada. Caso não se optassepor essa via, seria feita com uma tiragemilimitada e, ainda por cima, sustentada peloGoverno.

Isto é: a decisão final do Governo foitomada não porque o Executivo estivesseconvencido da bondade da medida, ou de queela beneficiaria, no futuro, a imprensa locale regional, mas porque o que interessava emminimizar os danos. Evitar o conflito.

Novo Governo, novas regras

O tempo encarregar-se-ia de provar duascoisas.

Primeira: meses volvidos sobre a redu-ção do porte-pago, era já claro para Aronsde Carvalho que, além da “moralização”, amedida não tinha surtido o efeito desejado.

“Os dados mais recentes dos CTTdemonstram que o número de exem-plares distribuídos baixou pouco, seos compararmos com os anteriores àentrada em vigor da lei. A quebra detráfego postal de jornais regionais, deacordo com os dados dos CTT, limi-tou-se a cerca de 15% entre Janeiro

e Fevereiro de 2001 e idênticos mesesde 2002, o que revela que nem mesmoo fim do período transitório, quedecorrera desde Março até ao fim doano, provocou qualquer diminuiçãosignificativa no número de jornais oumesmo na circulação” (Carvalho,2002: 115, 116).

Os dados de que dispõe o actualgovernante com a tutela do sector (FelicianoBarreiras Duarte, secretário de Estado adjun-to do ministro da Presidência) corroboramo facto. “Poucos títulos desapareceram e nacirculação existem mesmo alguns númerosque mostram um aumento”11. Pode pergun-tar-se: a dura luta travada por Arons deCarvalho de nada valeu? Ou será que osnúmeros apenas provam que uma medida nãofaz uma política?

Segunda: apesar dos exíguos efeitos da“moralização” encetada no Governo socia-lista, estava “partida a pedra”, se nos épermitida a expressão, necessária para olançamento de uma verdadeira reforma nosector.

Relevante é, desde logo, o facto de oprograma do XV Governo Constitucionalvoltar a acentuar a defesa da imprensa re-gional pelo lado dos apoios. “O Governo querassegurar que o recente processo de concen-tração de empresas coexista de forma har-moniosa com as iniciativas de pequena emédia dimensão, regionais e locais. Issosignifica defender um regime de concorrên-cia e definir um quadro de apoio a algumasactividades de maior risco, como é, porexemplo, o caso da imprensa regional”.Sucede que este chapéu é apenas uma pe-quena parte do que o Governo de coligaçãoPSD/CDS-PP promete fazer com a imprensalocal e regional.

Na verdade, este modelo proteccionistanão parece bater certo com o “modeloempresarial” que o Governo quer pôr emmarcha no sector. E que fica mais claroquando se olha para o programa do XVIGoverno Constitucional. “Será implementadoum sistema de apoios que obedeça a aspec-tos de maior racionalidade, com melhorgestão por parte das empresas e do Estado,criando-se as condições para que a comu-nicação social regional e local se afirme como

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um forte instrumento de coesão nacional ede promoção do desenvolvimento do país àescala regional, distrital e local”. Mas a“redução do peso do Estado na comunicaçãosocial regional e local será feita depois deum período de transição durante o qual osapoios serão mais diversificados e maisadequados às exigências do sector, designa-damente na área da formação e da inserçãode profissionais, visando o surgimento degrupos empresariais de âmbito regional demédia dimensão, gerando condições para queos órgãos de comunicação se possam mo-dernizar e fazer face a uma situação que, nofuturo, terá mais mercado e menos Estado”.

“O modelo assente na carolice e no apoiodo Estado está perto da falência”, entendeBarreiras Duarte. Por isso, “há que escolhercaminhos alternativos. Tínhamos dois pos-síveis: ou caminhávamos para o modeloliberal (o Estado saía do sector e o mercadofazia a selecção), ou ficaríamos no meiotermo, optando pelo modelo empresarial.Optámos por este”.

E em que se traduz este modelo? “Nanecessidade de melhorar a qualificação dosector, de aprofundar a empresarialização ede permitir que o Estado dê apoios premi-ando o mérito e aqueles que são profissio-nais. Os jornais e as rádios vão ter oportu-nidade de receber de forma maciça, numperíodo transitório de três anos, novos apoi-os para que se criem as condições mínimaspara que o sector se profissionalize”. Findoesse período, subentende-se, o mercado faráa selecção.

Um plano de formação para o sector(apostas na gestão empresarial, no marketinge publicidade, na maquetagem, em anima-dores de rádio, entre outras coisas), a criaçãode instrumentos de apoio à contratação dejornalistas profissionais, a elaboração de umplano nacional de promoção da leitura, umamajoração dos apoios para os media locaise regionais do interior do país estão entreas medidas que o Governo conta pôr emprática.

Estamos já bem longe do modelo pro-teccionista que o Governo propõe no seuprograma. Na verdade, o modelo, emborahíbrido, tem, no limite, uma forte compo-nente liberal, na medida que o Estado propõeo seu afastamento da imprensa local e re-

gional, ainda que não o faça de supetão. Amelhor prova é a sua atitude em relação aofamigerado porte-pago. “Nunca o porte-pagovoltará aos 100%. Bem pelo contrário, eleirá diminuir paulatinamente”, assegura ogovernante.

Relevante para esta discussão é o factode Barreiras Duarte “ter sido avisado” porvários colegas do Governo da embrulhada emque se iria meter. “Achavam que eu deviater procurado fazer o tradicional: reunir comas associações do sector e decidir de formaa não criar grandes problemas”. Não hámelhor maneira de evitar o conflito.

O Conselho de Ministros de 7 de Ou-tubro de 2004 acabou por aprovar váriosprojectos de Decreto-Lei sobre o sector.

A reforma divide-se, genericamente, emcinco diplomas (um deles dedicado à Lei daRádio) e é complementada com cinco deci-sões administrativas. Vejamos, de formasintética, as linhas mestras que interessam àimprensa local e regional:

i) Alteração do regime dos incentivoslançando uma única medida que visa:

- Incentivo à criação de parcerias estra-tégicas

- Requalificação de infra-estruturas- Gestão e valorização profissional- Desenvolvimento tecnológico e multi-

média- Difusão do produto jornalístico- Expansão cultural e jornalística nas

comunidades portuguesas- Introdução de um critério diferenciador

entre regiões mais e menos desfavorecidas.

ii) Diploma do porte-pago- É adoptado o princípio de que se trata

de um apoio à leitura (assinantes) e não aosjornais, como acontecia até aqui

- Novo regime reduz a comparticipaçãomédia do Estado para 50% dos custos deexpedição, contra os actuais 80%

- Após os três anos de transição previs-tos, as publicações que não tenham qualquerrequisito de profissionalização perdem oporte-pago.

iii) Publicidade do Estado- Nas campanhas de valor superior a 15

mil euros, passa a ser obrigatório destinar

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25% desse valor à comunicaçãoo socialregional e local. Actualmente, o valor é de15% para campanhas superiores a 100 mileuros.

iv) Alteração ao Código da Publicidade- Os boletins pertencentes à administra-

ção local não podem ter publicidade, salvose forem empresas municipais.

v) Decisões administrativas complemen-tares

- Apoio à contratação de profissionais.O Estado suporta parcialmente os saláriosdurante três anos, sendo depois os jornalistascontratados em definitivo pelas empresas

- Plano de formação descentralizado paradiversas áreas

- Plano e campanha para incentivar aleitura da imprensa

- Protocolo com a Agência Lusa em queo Estado subsidia o serviço orientado paraas necessidades dos meios locais e regionais

- Criação de um portal ao serviço dacomunicação social regional e local.

Com estas medidas, o Estado contacombater a pulverização do sector e esperaque entre 50 a 100 meios locais e regionaisfiquem pelo caminho (não se sabe se a curto,médio ou longo prazo, o que faz algumadiferença para avaliar o impacto pretendidocom a reforma). Também por isso, os títuloscriados nos cinco anos imediatamente a seguirà entrada em vigor da nova lei não terãodireito a qualquer tipo de apoio do Estado.

Conclusão

Recordemos a hipótese de trabalho quedecidimos lançar no início do ensaio: maisdo que incentivar o desenvolvimento daimprensa local e regional, as políticas – oua falta delas – definidas para este sector pelosvários Governos têm sido um factor deconstrangimento à sua evolução.

A análise dos programas de Governo edas circunstâncias em que foram tomadasalgumas das mais importantes decisões sobrea imprensa regional e local portuguesa per-mite concluir que, sobre este sector, sempreos Governos tiveram uma visão limitada,consubstanciada no facto de verem nos apoios

a melhor – senão a única – forma de ajudarao seu desenvolvimento. Trata-se, a nosso ver,de uma atitude errada, mas que não nosespanta, visto que, se nos ficarmos apenaspelo exercício do poder dos últimos deten-tores da tutela do sector, percebemos queraramente houve uma ideia clara – uma po-lítica, enfim – sobre o que fazer para criarno país condições para o desenvolvimentosério de jornais locais e regionais, equilibran-do quantidade e qualidade.

A definição de uma política para o sectornão se pode nunca resumir, parece-nos, aodesenho, mais ou menos bem gizado, de ummodelo de apoios do Estado. Não se tratade defender o fim das ajudas. Fazê-lo desupetão seria seguramente contraproducente.Trata-se, isso sim, de perceber que os de-safios que se colocam aos jornais locais eregionais só podem ser ultrapassados estu-dando, um a um, os problemas que os afec-tam e definindo, a partir daí, uma políticaclara que os ajude a crescer em tamanho eimportância.

É, obviamente, mais cómodo – e poli-ticamente mais interessante – distribuir sub-sídios. Mas isso não faz, como temos vindoa notar, uma política. Mais: tende a preju-dicar quem investe com seriedade em pro-jectos jornalísticos, porque mantém artifici-almente o que naturalmente o mercado re-jeitaria.

Não nos parece, por isso, abusivo con-cluir que o actual estado da imprensa regi-onal e local portuguesa é tributário da au-sência de uma política digna desse nome parao sector. E mesmo quando alguma decisãoestratégica (para recorrer à tipologia clássi-ca) se toma sobre ele (caso do porte-pago),percebemos, pela movimentação dos actores,que estamos a falar, para regressar a Lukes,de uma decisão que fica na fronteira entrea visão bidimensional e a visão tridimensi-onal do poder. Porquê? Porque os váriosGovernos sabiam que a questão, trazida paraa agenda pública, podia causar grandeceleuma (visão bidimensional), como causou.Mesmo assim, quando se tratou de tomar umadecisão tão importante, o que prevaleceu foio argumento a favor da minimização doconflito (visão tridimensional).

Quando olhamos, por exemplo, para osnossos vizinhos espanhóis (Espanha tem

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apenas 213 jornais locais e regionais, contraos 900 portugueses), percebemos bem aimportância que os media regionais e locaisali têm. A evolução neste e noutros paísesfez-se com o apoio do Estado, mas nuncana dependência do Estado. O caso maisparadigmático é, porventura, o dos paísesnórdicos. Apesar dos excelentes índices deleitura, o Estado continua a apoiar os jornais.Sucede que esses apoios não são dados, asmais das vezes, para os títulos sobreviverem,mas sim para crescerem.

Em Portugal acontece exactamente ocontrário. Em bom rigor, o Estado é “dono”de uma boa parte dos 900 títulos da impren-sa local e regional, porque sem as suas ajudaseles muito provavelmente não sobreviveri-am.

E é mau “dono”, acrescente-se. Tomemosapenas como exemplo o porte-pago (umasingularidade nacional, na medida em que,com excepção de França – onde acomparticipação do Estado é de apenas 30%– não existe apoio idêntico em toda aEuropa). Entre 1991 e 2003, foram gastosmais de 208 milhões de euros. E entre 1999e 2003 despenderam-se mais de 89 milhõesde euros em incentivos directos e indirectos.

As perguntas são legítimas: a qualidade e onúmero de leitores da imprensa local e regionalsubiram? Não. Subiu o número de títulos (40%),mas baixou o índice de leitura (11%).

As mudanças previstas pelo actual Go-verno parecem, contudo, abrir uma porta poronde possa entrar ar fresco para imprensalocal e regional. Ainda assim, o aviso feitopelos colegas de Barreiras Duarte quanto aos“perigos” que as mudanças encerram traz devolta a tentativa de eliminar o conflito natomada de decisões.

Era bom que assim não fosse. É que, nestetempo em que a “crise de esperança” nosenreda “num quotidiano higienizado e atoladono indiferentismo e absentismo políticos”(Pinto et al, 2003: 9,10), a imprensa locale regional, além de tudo o mais, pode serum instrumento decisivo para impedir quese enruguem ainda mais as nossas identida-des pessoais e comunitárias e que se reganhea importância da cidadania e da intervençãoe participação na esfera pública.

Se, um dia, um candidato à presidênciada República portuguesa decidir anunciar asua disponibilidade na imprensa local eregional, estaremos seguramente mais pertodesse desejável patamar.

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_______________________________1 Este texto resulta de uma investigação ainda

em curso tendo em vista a apresentação de umatese de Mestrado na Universidade do Minho.

2 O trabalho é de enorme relevância, não sóporque, para o período em análise, nada de análogoexiste em Portugal, mas também porque permiteperceber as grandes linhas de força e as decisõestomadas neste campo, na medida em que acompilação foi feita nos jornais “Expresso”,“Diário de Notícias” e “Público”, publicações que,pelo seu carácter, tendem a dar mais visibilidadeàs grandes decisões políticas.

3 “A imprensa regional em Portugal – elemen-tos para a gestão estratégica e planeamentopublicitário”.

4 “Bareme Imprensa Regional”, realizado pelaMarktest.

5 À data em que este texto foi concluído, oGoverno PSD/CDS-PP encontrava-se já em ges-tão, na sequência da dissolução do Parlamentodecidida pelo Presidente da República.

6 “The two faces of power”, American PoliticalScience Review, 56, 1992, pp. 947-52

7 The un-politics of air pollution: a study ofnon-decision making in the cities, Baltimore eLondres, The Johns Hopkins Press, 1971

8 “II Congresso da Associação de ImprensaNão Diária – Aposta no Futuro”, Lisboa, 1998

9 As citações usadas doravante e atribuídasa Arons de Carvalho resultam de uma entrevistafeita em Dezembro de 2001, no âmbito da recolhade materiais para a elaboração de uma tese demestrado sobre esta matéria. A reprodução doconteúdo da entrevista está devidamente autori-zada.

10 Hoje, o conjunto de incentivos do Estadoà comunicação social está divido em dois: incen-tivos directos (modernização tecnológica; forma-

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ção e qualificação profissional; criação de con-teúdos na Internet; inovação e desenvolvimentoempresarial; incentivos específicos; e incentivosà edição de obras sobre comunicação social) eincentivos indirectos (porte-pago). O porte-pagoleva, de longe, a fatia de leão.

11 Todas as declarações atribuídas a partir daquia Feliciano Barreiras Duarte resultam de umaentrevista feita em 22 de Janeiro de 2003 no âmbitoda recolha de materiais para a elaboração da tesede mestrado. O uso dessas declarações nestetrabalho foi devidamente autorizado.