o curso da água na história simbologia, moralidade e a gestão de recursos hídricos

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FUNDAO OSWALDO CRUZESCOLA NACIONAL DE SADE PBLICA

PS-GRADUAO EM SADE PBLICA

Tese apresentada para titulao de Doutorado

O CURSO DA GUA NA HISTRIA: SIMBOLOGIA, MORALIDADE E A GESTO DE RECURSOS HDRICOS

Por: Elmo Rodrigues da Silva

Orientador: Fermin Roland Schramm

Setembro de 1998

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AGRADECIMENTOSGostaria de agradecer: Fundao Oswaldo Cruz que me acolheu e tornou possvel a viabilizao do presente trabalho, concedendo os recursos materiais necessrios; ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) pela bolsa de estudos e Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a qual concedeu-me o licenciamento para a realizao do doutoramento. Reconheo e sou grato ao apoio dos professores e funcionrios do Departamento de Engenharia Sanitria e do Meio Ambiente dessa instituio, de que sou membro do corpo docente.

Sou muito grato aos funcionrios e professores da Escola Nacional de Sade Pblica (ENSP), e aos companheiros de doutorado pelas discusses e trabalhos conjuntos realizados durante o curso.

Agradeo, particularmente, ao Prof. Fermin Roland Schramm pela orientao e conselhos preciosos que me foram concedidos durante todo o processo de construo da tese.

Especialmente, sou muito grato Dr. Helena Amaral da Fontoura pelas sugestes e apoio durante a fase de concluso desse trabalho.

Ao conselheiro e amigo Professor Breno Marcondes Silva (in memoriam), pela sabedoria e luta dedicada s causas ambientalistas.

Ao Paulo Blank, pelo apoio teraputico e compartilhamento da ansiedade de doutorando.

Patrcia Ford, pelos ensinamentos de ingls.

A todos meus amigos prximos, pela pacincia em me escutar, dividindo as angstias e alegrias de nossas vidas.

Aos meus irmos, cunhados e sobrinhos, minh irm Elcy, pelo carinho e conforto nessa difcil passagem. minha me Maria do Carmo e meu pai Paulo (in

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memoriam), por todo amor, dedicao e esforos a ns proporcionados. minha sogra Nilca, conselheira e amiga das horas de dificuldades, e a toda sua famlia, que tambm me considero parte.

Ana, minha companheira e amiga, pela ateno, amor e carinho compartilhados durante todos esses anos, e ao meu pequeno e querido filho Guilherme. Dedico a vocs esse trabalho, o qual foi realizado no momento, sem dvida, mais delicado de minha vida.

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O

rio no precisa ser nosso; a gua no precisa ser nossa. A gua annima conhece todos os meus segredos. E a mesma lembrana jorra de cada fonte. Gaston Bachelard (Leau et les rves. Essai sur limagination de la matire)

Penetra o tempo a gua em movimento desde os mananciais subterrneos s nuvens inclinadas pelo vento. Nos longos cus, de esperas e de enganos, a gua da memria vara o tempo em minutos, em meses, em mil anos. E permanece intemporal o rio, lanando ao tempo o eterno desafio. Luciano Maia (Jaguaribe - memria das guas)

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RESUMO

Esse trabalho consiste em uma reflexo sobre a problemtica atual da gua em termos de sua gesto, identificando os possveis interesses e valores conflitantes subjacentes a tal gesto. Para lograr tal objetivo, buscamos compreender as formas de relacionamento homem/natureza, em particular com a gua, atravs de uma contextualizao histrica. Desde a Antigidade, essencial para a existncia da vida, a gua foi revestida de forte contedo simblico, presente nos mitos e lendas de diversas culturas. Do mundo antigo e sacralizado, desembocamos no mundo moderno, secularizado e pluralista, baseado na

cientificidade e no tecnicismo. Contudo, a gua foi, e continua sendo, geradora de mitos, crenas e doenas, fonte de energia e abastecimento, meio de transporte, opo de lazer e alimento. Ao final do Sculo XIX, nos primrdios da institucionalizao da Sade Pblica, o paradigma higienista contribuiu para a reformulao dos planos urbansticos em vrias cidades, atravs da abertura de vias, canais, redes de abastecimento de gua e esgoto, com conseqente aumento da poluio hdrica, decorrente da crescente urbanizao e industrializao. Ao final deste sculo, o Brasil, como diversos outros pases, enfrenta o dilema de ter que se desenvolver e, simultaneamente, preservar o meio ambiente. A gua, por ser um bem de uso difuso e pblico, serve como bom exemplo desse impasse e, ao tornar-se um recurso dotado de valor econmico, passa a ser um gerador potencial de conflitos entre diversos usurios. Neste caso, a mediao do Estado torna-se necessria por meio de polticas que assegurem a sua distributividade de maneira eqitativa. Com a atual Lei 9.433/97, que instituiu a Poltica Nacional de Recursos Hdricos, surge uma oportunidade no pas para conhecer e melhor gerir tais recursos em seus usos atuais e futuros, evitando-se uma possvel escassez ou degradao generalizada dos mananciais.

PALAVRAS-CHAVE: Recursos Hdricos; Conservao de Recursos Naturais: Histria; Meio Ambiente; tica.

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ABSTRACT

This work reflects upon

the present issue about water as related to its

management, identifying the possible interests and conflicting values related to its administration. In order to reach this objective, we are seeking to understand the relationship man to nature, especially with water, by means of a historical context. Since ancient times, essential for the existence of life, water received a strong symbolic content present in the myths and legends of various cultures. From the ancient and sacred world, we enter into the modern world, secularized and pluralist, based on science and technicality. However, water was, and continues to be the generator of myths, beliefs and sicknesses, a source of energy and supply, a means of transport, an option for leisure and food. At the end of the 19th century, when public health was first institutionalized the hygienist model contributed to the reform of urban plans in various cities, through the opening of waterways, channels,

networks for water and sewer services, with, as a consequence, an increase in water pollution, as a result of growing urbanization and industrialization. At the end of this century, Brazil, like various other countries, is facing the dilemma of having to develop and simultaneously preserve the environment. Water, because it is a diffuse and public property, serves as a good example of this impasse and being a resource with economic value, turns out to be a potential source of conflicts of interest among various users. In this case, the interference of public powers is necessary through policies that guarantee its distribution on an equal base. With the present Law 9.433/97 which created the National Policy of Water Resources, an opportunity for the country to know and use these resources better, now and in the future, has appeared, thus avoiding a possible shortage or general degeneration of water resources.

KEY-WORDS: Water Resources; Conservation of Natural Resources - History; Environment; Ethics

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SumrioAPRESENTAO INTRODUO CAPTULO I: UM PERCURSO NA HISTRIA ATRAVS DA GUA 9 11 18

I.1 A SIMBOLOGIA DA GUA 18 I.2 A TECNOLOGIA HIDRULICA E A GESTO HDRICA 26 I.2.1 NA ANTIGIDADE: A GUA SACRALIZADA 26 I.2.2 NA IDADE MDIA : O DESAFIO DA GUA E AS GRANDES EPIDEMIAS 31 I.2.3 NO RENASCIMENTO EUROPEU : A GUA DOMINADA PELA TECNOCINCIA 34 I.3 AS M UDANAS NOS CONCEITOS DO PROCESSO SADE-DOENA: A INSTITUCIONALIZAO DA SADE PBLICA 38 CAPTULO II: A GUA E A BUSCA DO CONTROLE SANITRIO NO BRASIL II.1 O PERODO COLONIAL: A GUA NO CONTROLADA II.2 O FIM DO IMPRIO E A 1. REPBLICA: O INCIO DAS ORGANIZAES INSTITUCIONAIS - A POLCIA SANITRIA II.3 O NACIONALISMO : M UDANAS INSTITUCIONAIS NA SADE E A CODIFICAO DA GUA II.4 O INCIO DO PLANEJAMENTO ESTATAL: A GUA E O APROVEITAMENTO REGIONAL DE BACIAS HIDROGRFICAS II.5 O DESENVOLVIMENTISMO : A GUA E AS EMPRESAS DE ECONOMIA M ISTA II.6 O REGIME M ILITAR: A GUA INTEGRADA E O CONTROLE AMBIENTAL II.7 DA DCADA DE OITENTA FASE ATUAL: A CRISE DA GUA E AS NOVAS PROPOSTAS DE GESTO CAPTULO III: A ATUAL PROPOSTA DE GESTO DE RECURSOS HDRICOS III.1 U M BREVE P ERFIL SANITRIO DO PAS III.1.1 ASPECTOS GERAIS DO SANEAMENTO BSICO III.1.2 ASPECTOS GERAIS SOBRE RECURSOS HDRICOS E P ROBLEMAS DE POLUIO III.2 A CRISE DA GESTO HDRICA NO BRASIL III.3 A B ASE DA GESTO DE RECURSOS HDRICOS III.3.1 A GESTO DE RECURSOS HDRICOS NO CONTEXTO DA GESTO AMBIENTAL III.3.2 O P ROCESSO EVOLUTIVO DOS MODELOS DE GESTO DA GUA III.3.3 OS MODELOS DE GESTO HDRICA EM ALGUNS PASES III.3.4 UMA BREVE DESCRIO DO SISTEMA FRANCS DE GESTO III.3.5 A P ROPOSTA BRASILEIRA DE GESTO DE RECURSOS HDRICOS 46 48 50 58 61 64 67 73 80 83 83 91 98 103 103 109 121 127 133

CAPTULO IV: O DEBATE TICO E OS CONFLITOS RELATIVOS GESTO HDRICA 139 IV.1 O POSICIONAMENTO TICO ACERCA DA QUESTO AMBIENTAL 141 IV.2 ALGUNS CONFLITOS DE INTERESSES E VALORES IDENTIFICADOS NA GESTO DOS RECURSOS HDRICOS 151 CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 167 179

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ndice de TabelasTABELA 1 - ESTIMATIVA DA DISPONIBILIDADE HDRICA POR REGIO DO PLANETA ...................................................79 TABELA 2 - DEMOGRAFIA DO BRASIL (1980/1991).............................................................................................................85 TABELA 3 - POPULAO BRASILEIRA ATENDIDA COM SERVIOS DE A BASTECIMENTO ...............................................86 DE GUA, SISTEMA DE ESGOTOS E COLETA DE LIXO .........................................................................................................86 TABELA 4 - DISTRIBUIO DOS DOMICLIOS PARTICULARES PERMANENTES, POR GRANDES REGIES, SEGUNDO ALGUMAS CARACTERSTICAS E SITUAO DO DOMICLIO .......................................................................................87 TABELA 5 - CASOS DE BITOS POR DOENAS DE VEICULAO HDRICA NO BRASIL - 1981/1989............................89 TABELA 6 - POTENCIAL HDRICO DE SUPERFCIE NOS ESTADOS DO BRASIL ..................................................................93 TABELA 7 -ESTIMATIVAS DA CARGA POTENCIAL DE M ATRIA ORGNICA PRESENTE NOS RECURSOS HDRICOS DO BRASIL - 1988 (% DAS EMISSES TOTAIS)..................................................................................................................95 TABELA 8 - SNTESE DOS PRINCIPAIS PROBLEMAS REGIONAIS RELACIONADOS AOS RECURSOS HDRICOS NO BRASIL...............................................................................................................................................................................97 TABELA 9 - SNTESE SOBRE OS SISTEMAS DE GESTO DA GUA NA EUROPA ............................................................ 126 TABELA 10 - SNTESE SOBRE OS SISTEMAS DE GESTO DA GUA NA AMRICA LATINA ......................................... 127 TABELA 11 - INSTRUMENTOS PARA GESTO DA DEMANDA DE RECURSOS HDRICOS................................................ 152

ndice de Figuras, Quadros e AnexosFIGURA 1 - PRINCIPAIS USOS DO SOLO E POSSVEIS INTERFERNCIAS NOS RECURSOS HDRICOS ...............................................................................................................................ERROR!MARCADOR NO DEFINIDO . FIGURA 2 - ESQUEMA DAS INTERAES ENTRE FATORES LIGADOS AO DESENVOLVIMENTO..................................... 108 FIGURA 3 - EVOLUO DOS M ODELOS DE GESTO DE RECURSOS HDRICOS.............................................................. 111 FIGURA 4 - PLANOS DE NEGOCIAO SOCIAL ........................................................ERROR!MARCADOR NO DEFINIDO . FIGURA 5 - M ATRIZ DE GERENCIAMENTO DOS RECURSOS HDRICOS ........................................................................... 119 FIGURA 6 - ESTRUTURA A DMINISTRATIVA NO DOMNIO DA GUA NA FRANA ERROR!MARCADOR NO DEFINIDO . FIGURA 7 - SISTEMA FRANCS DE GERENCIAMENTO DE RECURSOS HDRICOS.ERROR!MARCADOR NO DEFINIDO . FIGURA 8 - ORGANOGRAMA DA POLTICA NACIONAL DE RECURSOS HDRICOS......................................................... 137 QUADRO 1-O S DIVERSOS POSICIONAMENTOS RELATIVOS AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL ........................ 149 ANEXO 1 - LEI N 9.433, DE 8 DE JANEIRO DE 1997...................................................................................................... 191 ANEXO 2 - U SOS DIVERSOS DA GUA.............................................................................................................................. 201

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APRESENTAO

Gostaria de justificar o meu interesse em desenvolver o tema proposto, o qual foi resultante de minha preocupao com a problemtica hdrica a ponto de conduzir a trajetria de minha vida profissional. Assumo, neste momento, o eu sujeito/observador/ator da vivncia, a 1 pessoa do singular que se identifica, e no se neutraliza, em relao ao objeto investigado. Assim, arrisco-me a tecer algumas consideraes a respeito de minhas

motivaes, as quais se referem minha prpria memria histrica com relao poluio das guas. Vrios fatores me levaram a abandonar a profisso de engenheiro civil para me dedicar s causas ambientais, tornando-me um especialista, se assim posso dizer, em

engenharia ambiental. Talvez, um fato marcante ocorrido em minha infncia, em meados da dcada de 60, tenha sido o maior desses motivos, o qual relato a seguir.

Vivendo s margens do rio Bengalas, em Nova Friburgo, quase todas as manhs, descia sua beira para contemplar os peixes, s vezes pescava, ou dava deliciosos mergulhos em suas guas ainda claras. Sob certo impacto, em um dia de inverno, me deparei com as suas guas tingidas de vermelho, com centenas de peixes: bagres, mussuns, lambaris, cascudos, flutuando inertes ou saltando desesperados no seu leito, refletindo uma triste

imagem no espelho dgua do rio e da minha conscincia. Nas suas margens, vrias pessoas atnitas acompanhavam o cortejo mrbido da ictiofauna que anunciava o seu futuro destino: a cloaca mxima da cidade, fruto da total ausncia de preocupao, ou sensibilidade, para com a poluio.

Aqui utilizo como recurso, para melhor explicitar a minha vivncia, as palavras de Capalbo (1992):a intencionalidade da conscincia mostra que esta sempre temporal, que est aberta ao horizonte do tempo. No ato da imaginao este nos leva ao passado e memria. O que j passou se faz lembrana do j vivido e trazido [...] como perspectiva que se ante-abre, como possibilidade futura, ou seja, o futuro no , mas pode vir a ser. Sartre se refere temporalidade da conscincia dizendo que ela uma unidade que escorrega pelas mos. O passado [...] lembrana [que] revivida na presena do presente no igual ao passado [...], pois j tem [...] uma srie de [...] experincias que vo fazer com que essa lembrana revivida seja modificada. [...]. A conscincia imaginativa, que nos d a lembrana como componente do passado, capaz de nos fazer reviv-la como passado trazido presena do presente [e] nos lana em direo aos projetos futuros (p.192-193).

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Essa experincia no passado, talvez tenha sido a minha maior justificativa para me dedicar, tanto na formao de mestrado, quanto de doutorado, questo das guas como temtica. Primeiramente, sob um ponto de vista mais especfico, a tese de mestrado abordava um estudo tcnico de alternativas sobre tratamento de efluentes, para a recuperao de um pequeno curso dgua, localizado em uma regio rural, na Suia. Agora objetivo refletir sobre o tema, atravs de um entendimento mais geral e contextualizado historicamente, sobre as origens dos problemas relacionados gua, na atualidade, bem como de suas projees futuras, ou seja, a antecipao planejada de nossa ao, por intermdio da gesto da gua, a qual passa a ser vista como alternativa para o enfrentamento dos conflitos de uso e a possvel escassez hdrica, tanto no presente quanto no futuro.

A proposta desenvolvida neste trabalho tem como base a contextualizao histrica, pois concordamos com Morin & Kern (1995) que um mnimo de conhecimento do que o conhecimento nos ensina que o mais importante a contextualizao (p.12) de nosso objeto, mesmo que no consigamos atingir integralmente o conhecimento sobre o contexto que se insere o nosso objeto de pesquisa, nem ele prprio em sua totalidade. Assim, buscamos desvendar alguns segredos da gua, atravs de um mergulho em indagaes a respeito da problemtica relao homem-natureza, podendo, muitas vezes, levar destruio daquilo que nos essencial, como a gua, elemento constituinte da maior parte de nosso organismo e fundamental para nossa existncia.

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INTRODUO

Neste trabalho, buscamos mostrar as formas como as diferentes civilizaes se relacionavam com os rios, fazendo das suas guas o espelho a refletir a sua prpria imagem. Assim, metaforicamente, procuramos desenvolver a tese como se fosse o prprio curso de um rio, em que as idias foram escoando a partir dos mananciais, as fontes primais de nossa existncia, repleta de smbolos, mitos e crenas, pelas quais os povos desenvolveram seus sistemas organizativos baseando-se na ordem natural de um mundo sacralizado.

Destacamos aqui, a viso de Herclito de feso, segundo o qual a dinmica histrica era formada por fatos e coisas, comparando-a ao movimento das guas dos rios. Para ele, na natureza tudo flua, nada persistia, nem permanecia o mesmo, tornando impossvel entrar duas vezes na mesma corrente de um rio, pois aquela gua j no seria mais a mesma; a histria jamais se repetiria.

Habitando s margens dos rios, regies costeiras e insulares, as civilizaes construram seus imprios, lanaram seus dejetos, construram portos, pontes, aquedutos; navegaram, lavaram os corpos, beberam suas guas, pescaram, contraram doenas, e no decorrer do fluxo histrico, as correntes de pensamento, tal como afluentes que avolumam os rios, trazendo novos conceitos e valores, foram modificando o prprio curso da histria. Em certos momentos de inflexes e confluncias, ou encontro de rios, os saberes e crenas da poca eram colocados em questo, ao navegar por guas desconhecidas e revolucionar seu fluxo, como por exemplo, com o advento da revoluo cientfica e, posteriormente, o surgimento da industrializao, at chegarmos s sociedades complexas atuais, as quais se deparam com dilemas e desafios, em bifurcaes, ou afluentes de rios, tendo que escolher por qual deles navegar. Tal curso da histria desemboca no oceano atual, onde o meio ambiente, e a gua, como bom exemplo, deixou de ser smbolo e torna-se elemento de possveis conflitos devido sua degradao e escassez.

Os cursos dgua que nos acompanham, a despeito de sua histria geolgica ser muito anterior presena humana na terra, sofreram alteraes e novas conformaes produzidas pelas sociedades histricas. Desta forma, o destino dos cursos dgua sempre esteve condicionado ao fluxo do prprio processo civilizatrio, com as cidades se desenvolvendo ao longo dos rios .

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Hoje, desprovidos parcialmente de seu carter sagrado, tanto a gua, como outros elementos naturais, devido escassez progressiva e usos intensivos, tornaram-se fundamentais para a base de sustentao da sociedade e de seus desafios futuros. Portanto, decises importantes devero ser tomadas num contexto mundial cada vez mais complexo, apelando-se por novas consideraes ticas para orientar as aes que sero empreendidas, levando-nos a assumir responsabilidades e compromissos com as prximas geraes. Neste sentido, diz Garcia (apud Schramm, 1996a) que, delineada por um novo quadro epistmico, surge uma nova viso de mundo, a partir da qual o conceito de natureza humana vem sendo tratado de maneira complexa, quer dizer, tal natureza pode ser vista como uma realidade dinmica, construda historicamente e socialmente em nveis organizacionais interrelacionados e inter-definveis, possibilitada pela segunda natureza humana: tcnica, lgicolingustica, mas inserida num ambiente evolutivo de vnculos naturais, que so de tipo bioecolgico constitutivos da primeira natureza, pelo menos por enquanto.

Desenvolvemos nossa trajetria procurando visualizar a intrincada construo histrica das sociedades com seus padres culturais e paradigmas vividos no tempo e no espao determinado. Chartier (1990), ao expor seu ponto de vista sobre tal construo, considera que as estruturas do mundo social no so um dado objetivo, mas so historicamente produzidas pelas prticas articuladas (polticas, sociais e discursivas) que constroem as suas figuras, a sua realidade. Na viso de Teves (1992), cada realidade social dotada de uma inteligibilidade prpria, permeando normas, interesses coletivos, valores, princpios morais, enfim, a vida coletiva dos indivduos (p.17). Portanto, a partir dessa realidade, diversas vises de mundo se apresentam e/ou se manifestam simbolicamente. Baseando-se nos valores e padres culturais caractersticos de cada poca, os seres humanos imprimem suas aes modificadoras da natureza, alterando tanto seu conceito, como a sua prpria natureza. Tal viso compartilhada por Santos (1990), quando afirma que:A articulao entre subsistemas naturais e subsistemas histrico-sociais possibilita considerar, de um lado, que as condies do meio ambiente so utilizadas de formas diferenciadas pelas sociedades humanas em cada perodo histrico e, de outro, que a ao transformadora do homem gera uma segunda natureza humanizada (p.122).

Em todas as pocas, evidencia-se a incessante busca do ser humano por significaes a respeito de si prprio, bem como do mundo natural em seu entorno.

Inicialmente, segundo Barbosa (1994), nas sociedades ditas tradicionais, as formas de inteligibilidade do real depositada no sagrado, constitua o lugar simblico pelo qual a

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sociedade buscava seus sentidos, funcionando como garantia da estabilidade da diferenciao entre os homens. Dito de outra forma, as diversas explicaes sobre a realidade eram efetuadas por manifestaes mitopoiticas, as quais foram sendo substitudas, gradativamente, pelo conhecimento racional. Para Reale & Antiseri (1988):O homem se acha imerso na natureza, e sem dvida, consiste numa natureza capaz e destinada a modificar a [sua] prpria natureza e a outorgar-lhe um significado. Para assegurar-se contra a instabilidade e a precariedade da existncia, o homem primeiro apelou s foras mgicas e construiu mitos que uma vez desvanecidos, tratou de substituir por outras idias que dessem segurana: a imutabilidade do ser, o progresso universal, a racionalidade inerente ao universo ou o universo regulado por leis necessrias e universais (p.452).

A partir destas consideraes iniciais, cabe-nos explicitar como foi elaborada nossa abordagem metodolgica de pesquisa. Ao incio de nosso projeto, pensvamos em tratar da gesto da gua, atravs de pesquisa emprica baseada em estudos de casos, mas abandonamos tal idia e optamos por compreender de forma ampla e

descritiva as relaes existentes entre a sociedade e a gua, procurando conhecer, desvendar tais relaes, atravs de pistas e caminhos indicirios, adotando as idias de Ginzburg (1990) 1 para realizar a nossa pesquisa. Gradativamente, fomos desenvolvendo o tema, procurando os aportes de diversas reas do conhecimento, pois como nos fala Morin (1996):a objetividade cientfica no exclui a mente humana, o sujeito individual, a cultura, a sociedade: ela os mobiliza. E a objetividade se fundamenta na mobilizao [...] da mente humana, de seus poderes construtivos, de fermentos socioculturais e[...] histricos (p.58).

Por outro lado, cada vez mais, torna-se impossvel restringir-se a um s campo de anlise para certos objetos de investigao, sobretudo em questes relativas ao meio ambiente, um tema complexo que tem como referncia fundamental a pesquisa interdisciplinar e o olhar construtivista. Aqui fazemos apelo novamente a Morin (1996):nada isolvel: no h um fato puro totalmente isolvel; a objetividade no isolvel das crenas, o crculo passa e repassa pela lgica, pela linguagem, pelos paradigmas, pela metafsica, pela teoria, pela linguagem, pela cooperao, pela competio, pelas oposies, pelo consenso. E tudo isso alimentado pelas aplicaes sociais, pelo Estado, pelas empresas. H uma interpenetrao e uma interconexo entre esse crculo da cincia [...] e todos os outros crculos da sociedade [...]. E no centro intelectual e mental do crculo cientfico, existe esse circuito entre empirismo e racionalismo, entre imaginao e verificao, entre ceticismo e certeza (p.61).

Para efeito da investigao, recolhemos materiais e informaes a partir de1

Para o historiador Ginzburg, esse mtodo indicirio parte da pressuposio da no-transparncia do real, quer dizer, trata-se de procurar indcios, sintomas, pontos de vista individuais e locais, sem perder de vista a questo da totalidade, ou seja, da inteligibilidade do mundo, embora reconheamos a impossibilidade de se conhecer a totalidade do real.

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um perodo que vivenciamos no campo da gesto hdrica, atravs de um intercmbio com a Cooperao Brasil-Frana (Agncia Tcnica do Rio Paraba do Sul), onde vinham sendo realizadom um projeto de desenvolvimento de metodologias e um banco de dados para implantao de um sistema de gesto de bacias hidrogrficas, o qual foi desativado em Julho de 1998. Alm disso, como fontes de referncia, acompanhamos diversos seminrios, congressos e debates sobre a proposta de lei governamental para a atual Gesto de Recursos Hdricos (Lei 9.433/97). Cabe ressaltar que muitas dificuldades ocorrem em analisar um processo que est em pleno curso de implementao em vrios Estados do pas, por isso, optamos por compreender o seu movimento, o processo de sua construo.

Os objetivos principais deste trabalho foram: refletir sobre o debate atual em torno da forma como se gerencia a gua, cujo processo no est desvinculado de seus precedentes histricos, e identificar as implicaes tico-prticas para a sociedade deste novo modelo de gesto de recursos hdricos, o qual depende de mudanas nas concepes sobre o modelo tradicional de desenvolvimento da sociedade. Assim, tende-se a buscar alternativas como o modelo de desenvolvimento econmico auto-sustentvel, acordado mundialmente durante a Conferncia Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1992, e referendado no importante documento norteador das aes para lograr tal objetivo, ou seja, a Agenda 21.

A fim de compreendermos melhor como se deu a relao homem-natureza, tendo a gua como exemplo para discutir tal relao, procuramos nos situar, como j

assinalamos, dentro de um contexto histrico para descrever a construo dos diversos paradigmas, no perdendo de nosso horizonte a preocupao fundamental de inserir a

discusso nos campos problemticos da Sade e do Meio Ambiente, os quais tm um grande desafio comum e interrelacionado: enfrentar novos problemas e dar continuidade aos que no foram resolvidos e se acumularam por muitas dcadas, ou seja, tentar solues inovadoras para os conflitos de interesses e valores existentes nas instituies e na sociedade globalizada atual. Sob este aspecto, parece-nos que chegamos a uma poca onde o passado, o presente e o futuro se engendram, tal como uma teia, uma rede, um emaranhado, um delta de um rio, produzindo um mundo tardo-moderno, esse projeto inacabado de sociedade, onde velhos padres e crenas se dissolvem como se fossem mergulhados num solvente universal - a gua intemporal da histria.

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No primeiro captulo, acompanhamos a relao simblica das sociedades antigas com o meio natural atravs das crenas e mitos relacionados gua. No desenrolar do processo histrico, importantes obras hidrulicas foram realizadas e, posteriormente, buscou--se a conquista da gua por meio de novos conhecimentos e tcnicas hidrulicas surgidos a partir do advento da cincia e de seus mtodos, marcando uma transformao radical no mundo e nos paradigmas que orientavam a sociedade, at ento. Posteriormente, mudanas tambm foram observadas nos conceitos do processo sade-doena. O problema das

epidemias, que assolou vrios pases europeus durante sculos, impulsionou a busca por medidas tcnicas sanitrias, as quais foram possibilitadas pela revoluo cientfica e

tecnolgica. O paradigma experimental surgiu a partir da decadncia da viso naturalista, sendo Paracelso (1493-1543) um dos impulsores da nova concepo experimentalista do conceito de sade-doena, a qual consolidou-se somente no sculo XIX, com o surgimento da chamada medicina cientfica. A viso higienista da Sade Pblica tornou-se dominante no sculo XIX e incio do sculo XX, porm outras correntes de pensamento, no campo da medicina e da administrao pblica, passaram a entrar em cena a partir das novas

descobertas, colocando em questo o modelo sanitrio adotado at ento. Dentro deste contexto, a sade coletiva, o meio fsico e a poltica tornaram-se interdependentes, levando-se a mudar a infra-estrutura e os traados das cidade, e a implantao da rede de gua canalizada desempenharia um papel fundamental para anular toda a manifestao de insalubridade.

No segundo captulo, abordamos o controle sanitrio realizado no Brasil e exercido pelo aparelho estatal que seguiu os moldes e conceitos europeus. Procuramos acompanhar o processo de institucionalizao das aes de Sade/Saneamento, atravs de recortes temporais arbitrrios, segundo etapas que foram contextualizadas, de maneira geral, de acordo com os ciclos macroeconmicos, bem como com as mudanas polticas endgenas e exgenas, as quais interferiram diretamente na criao, continuidade ou abandono dos modelos das polticas setoriais. Optamos por destacar algumas etapas importantes na organizao institucional dos servios de sade pblica e saneamento, em particular, queles relativos aos recursos hdricos, setores considerados fundamentais para manuteno dos padres adequados de qualidade ambiental e, conseqentemente, para a melhoria da qualidade de vida da populao. Para se ter uma visibilidade dos recortes temporais adotados e buscando estabelecer uma reproduo da forma como se constituram, no pas, a institucionalizao de tais servios, considerando-se tambm outros setores relacionados gesto da gua, como, por exemplo, o setor hidreltrico, identificamos sete fases de

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organizao da estrutura de poder poltico e econmico e os modelos de gesto adotados em cada uma dessas fases arbitradas.

No terceiro captulo, tratamos da atual proposta de Gesto dos Recursos Hdricos, a qual se encontra em pleno processo de discusso e implementao em vrios estados brasileiros aps a aprovao da lei federal n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que instituiu a Poltica Nacional de Recursos Hdricos e a posterior implantao do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hdricos. Essa lei, em fase de regulamentao, foi criada para fornecer instrumentos legais a fim de disciplinar tanto a apropriao, como os mltiplos usos das guas territoriais. A Gesto dos Recursos Hdricos pode ser conduzida atravs de alguns modelos, dentre eles, temos o instrumento de comando/controle utilizado atualmente no pas. Outra forma de abordar tais questes pode ser realizada com o emprego de instrumentos econmicos, aplicando-se os conceitos de poluidor-usurio-pagador. A proposta brasileira prev a organizao do seu sistema baseado no modelo francs de gesto, ou seja, a partir da criao de Comits e Agncias de Bacias Hidrogrficas de Rios Federais. Esses comits so representados por diversos rgos do governo, bem como por representantes dos usurios e de lideranas oriundas das organizaes sociais, promovendose a participao social e a descentralizao na administrao dos recursos hdricos ao nvel da bacia hidrogrfica. Com o propsito de acompanharmos a implantao desse modelo, traamos um breve perfil sanitrio do pas no que diz respeito gua e ao esgotamento sanitrio, por considerarmos a questo sanitria, um dos problemas prioritrios no contexto da proposta de gesto hdrica. A seguir, evidenciamos alguns fatores relacionados com a crise da Gesto de Recursos Hdricos e apresentamos as diferentes concepes que orientam tais modelos de gesto, bem como a forma de sua organizao institucional e as bases legais de sua orientao.

No captulo final, concentramo-nos sobre o debate tico-ambiental, o qual, desde suas origens, vem alimentando as motivaes, induzindo mudanas e indicando algumas dificuldades para a implantao de uma nova tendncia de gerir o meio, envolvendo atores com diferentes vises e interesses, os quais podem, a despeito de sua pluralidade e antagonismos, apontar solues para recuperao, ainda que parcial, dos ambientes degradados, como o caso dos recursos hdricos. Algumas questes relacionadas a este debate conduzem a um novo posicionamento no rumo do desenvolvimento sustentvel,

tentando compatibilizar a economia e a preservao do meio ambiente. Face grave realidade social e ambiental do mundo, os problemas suscitados pela possvel escassez de recursos

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naturais referem-se s consideraes ticas em torno das decises atuais sobre o ambiente e as aes a serem tomadas implicam em compromissos e acordos que traro conseqncias para as prximas geraes. Assim, apresentamos as diversas concepes que alimentam a discusso de tais problemas, evidenciando as correntes de pensamento do campo filosfico que orientam as prticas scio-polticas do campo ambiental. Levantamos algumas questes relacionadas ao nosso objeto, evidenciando a dicotomia existente entre os interesses atuais da sociedade e a preservao ambiental, em particular, a da gua. Dentre os assuntos trazidos pela Lei de Recursos Hdricos, apontamos alguns potencialmente polmicos, a saber, a

competncia e os critrios de outorga pelo uso da gua e da cobrana pelo uso/poluio, alm da representatividade e participao social no processo decisrio de gesto por bacias.

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CAPTULO I: UM PERCURSO NA HISTRIA ATRAVS DAGUA

Inicialmente,

destacaremos

a

importncia

do

simbolismo

e

das

representaes mticas que influenciaram

as aes humanas sobre o mundo natural. Em

seguida, evidenciaremos a mudana do pensamento, como o ocorrido na Grcia Antiga, com o surgimento da filosofia e das novas concepes sobre os fenmenos naturais baseadas em explicaes racionais. O apelo ao aperfeioamento da razo propiciar o avano da

criatividade, da engenhosidade presente na tecnologia hidrulica, vendo no artifcio a extenso do humano para o enfrentamento das adversidades do mundo natural, atravs de um processo de construo e desconstruo de valores e crenas constituintes das sociedades histricas.

Percebe-se que outros perodos importantes, como o do Renascimento Europeu e do surgimento do mtodo cientfico, provocaram revolues nos rumos da histria e, conseqentemente, dos paradigmas vigentes, atravs de novas descobertas em diversos campos do conhecimento, dentre eles o da medicina. Com a posterior industrializao, fortes impactos sobre o meio ambiente trariam problemas jamais experimentados pelas sociedades ocidentais. A necessidade de se ter maior controle sobre as doenas provocadas, no s por efeito do meio, mas tambm como resultantes da industrializao, na Inglaterra, que tornavam os setores de trabalho insalubres, levaram ao surgimento do que viria a constituir a Sade Pblica e o controle sanitrio.

I.1 A Simbologia da guaA simbologia conceituada por Chevalier & Gheerbrant (1996) como uma cincia que trata das relaes e interpretaes referentes a um smbolo. Em seu sentido etimolgico, o termo smbolo conduz tambm ao termo dibolos, sendo que o primeiro termo significa um ato de lanar e unificar, enquanto que o segundo age em sentido contrrio, separando. Se admitirmos que a experincia humana construda no movimento permanente entre o simblico e, em seu complemento, o diablico, pode-se dizer que o homem se produz e reproduz atravs da negao e afirmao, e as diferentes culturas foram fundadas a partir da negao da natureza por meio do sistema simblico - a linguagem. Desde suas origens, as

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culturas elaboraram a diversidade e ameaas presentes no mundo, atravs dos smbolos e construram seus mitos.

Os mitos, por sua vez, podem ser considerados como uma das diferentes formas de organizao do imaginrio social, que utilizando-se de explicaes sagradas e mticas para os fenmenos naturais, os quais temiam e fugiam de seu controle racional, organizaram suas instituies, construram seus imprios e concretizaram suas aes. Nas palavras de Vieira & Weber (1997):Atravs [de] padres historicamente transmitidos de significaes compartilhadas e corporificadas em smbolos e instituies (crenas e mitos, valores e normas, formas mais elaboradas de conhecimento...), os seres humanos elaboram e consolidam sua base de conhecimentos, suas atitudes e estratgias de comportamento, sempre s voltas com as coaes estruturais impostas pelo meio ambiente natural (p.26).

Cassirer (1973) considera que um sistema social se organiza como um campo de foras em torno de alguns significantes chaves contidos no mito, ou nos mitos fundadores da cultura, sendo que a experincia primria do indivduo penetrada, por todos os lados, pelas figuras do mito, estando como que saturada por sua atmosfera. O mito conceituado por Ferreira (1975), como a narrativa de significao simblica, geralmente ligada cosmogonia, e referente a deuses encarnadores das foras da natureza e/ou de aspectos da condio humana, ou ainda como forma de pensamento oposta do pensamento lgico e cientfico(p.931).

A viso mitopoitica, quer dizer, anterior viso filosfica e racionalizante, serviu como modelo explicativo durante a maior parte da histria humana, e jamais foi totalmente abolida. Na Antigidade, a gua, por exemplo, por ser um dos elementos vitais para todas as sociedades, era revestida por um vasto contedo simblico, demonstrando a sua importncia na organizao das primeiras civilizaes situadas nas bacias de grandes rios e nas costas mediterrneas. O elemento aqua, sempre foi inspirador de indagaes e motivo de venerao em diferentes culturas antigas.

Ferenczi (1990) especula que a origem desta estreita vinculao com a gua, e da forte presena de suas imagens simblicas no inconsciente, estaria relacionada tanto memria intra-uterina, como nossa origem ocenica, podendo ser constatada atravs dos vrios mitos e rituais presentes em diversas religies. Para Ferenczi parece existir um forte desejo humano de regresso ao lquido amnitico, mas apesar de suas dificuldades em

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conceituar tal hiptese, ele no abandona o pressuposto de que:as formaes psquicas mais diversas (sonho, neurose, mito, folclore, etc.) representam por um mesmo smbolo, o coito e o nascimento: ser salvo de um perigo, sobretudo da gua (lquido amnitico); do mesmo modo, [...] elas exprimem as sensaes experimentadas [...] na existncia intra-uterina atravs das sensaes de nadar, flutuar, voar. Um verdadeiro smbolo teria valor de monumento histrico, seria um precursor [...] dos modos de agir pertencentes a uma poca superada, portanto restos mnimsicos aos quais somos propensos a retornar, tanto no plano psquico quanto no fsico (p.54).

Assim, ele intui que fragmentos inteiros de histria perdida, ou inacessvel por outros meios, estariam conservados como hierglifos nas formas de expresso simblicas ou indiretas do psiquismo e do corpo. A partir desta idia, entrar na gua seria como repetir o smbolo mais arcaico, ou seja, o do retorno ao tero materno, e ser salvo ou resgatado das guas representaria o episdio do nascimento, da sada da gua para a terra. Fazendo uma analogia com a origem humana remota, Ferenczi (1990) especula sobre a existncia de um desejo humano de retornar ao oceano abandonado dos tempos primitivos, ao que denomina de regresso talssica.

Na viso mitolgica, a gua, da qual o oceano sem dvida seu maior smbolo, traz consigo as sementes da vida, os segredos e os fermentos de suas mltiplas formas, alm dos medos que s vezes so evocados pelas figuras mticas dela oriundas quando em estado de decomposio (a lama e os pntanos). Schama (1996), assim como Ferenczi, acrescenta que:ver um rio equivale a mergulhar numa grande corrente de mitos e lembranas, forte o bastante para nos levar ao primeiro elemento aqutico de nossa existncia intra-uterina. E, com essa torrente, nasceram algumas de nossas paixes sociais e animais mais intensas: as misteriosas transmutaes do sangue e da gua; a vitalidade e a mortalidade de heris, imprios, naes e deuses [...] Desde a Antigidade, se comparava o [...] fluxo [dos rios] circulao do sangue pelo corpo (p.253).

Apesar dos apelos mgico-religiosos, o homem se viu diante de situaes e desafios concretos, os quais necessitava enfrentar. Desde a gnese da histria das

civilizaes, o domnio da gua era perseguido, sendo limitado ao desenvolvimento de tcnicas, como por exemplo, de irrigao, de canalizaes exterior ou subterrneas, de

construo de diques, dentre tantas outras. Decrosse (1990) considera tais tcnicas como fundadoras das civilizaes hidralicas na Antigidade.

Face ao seu papel

fundamental na economia de sobrevivncia, as

sociedades antigas asseguraram a coerncia civilizadora atravs da organizao religiosa e

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administrativa que, vinculadas funo agrria e alimentar, determinaram as aes sobre a gua, integrando-as de maneira complexa a outras tcnicas, atravs de um conjunto de ritos e mitos, como por exemplo, os da criao e da fecundidade. Os deuses podiam simbolizar tanto a admirao quanto o pavor provocados pelos grandes fenmenos naturais. Dito de outra forma, a diversidade e as ameaas do mundo eram elaboradas atravs de meios simblicos, expressos em seus rituais que puderam ser interpretados atravs do legado dessas culturas, presente nas runas das construes e na linguagem escrita.

Muitos destes mitos podem, ainda hoje, ser observados atravs de rituais de devoo e oferendas aos deuses aquticos. Crespo (1997a), ao descrever as tradies religiosas afro-brasileiras, explica que Iemanj, por exemplo, a divindade reinante sobre as guas do mar e que habitava na capital religiosa dos Iorubs, If. Ao fugir dessa regio, foi perseguida e capturada pelo rei e seu exrcito. Para escapar, ela utilizou-se de um presente de seu pai, Olokum, uma garrafa que deveria ser quebrada caso se encontrasse em apuros. Ela quebrou-a e um rio foi criado, levando-a para o oceano, morada de seu pai. Tornou-se assim, a senhora das guas salgadas. Casou-se com Oxal- deus do ar e do cu - que recebera a misso de criar o mundo. A partir desse encontro, surgiu a maior parte dos Orixs, dentre eles, Oxum, senhora dos rios, cachoeiras e fontes, e Nan-Buruku, palha, renovando a terra ao limpar a gua 2 . a divindade das lamas e

mangues, sereia velha das guas mansas, que varre a sujeira do mundo com uma vassoura de

Na Mitologia egpcia, por exemplo, Osris

era a personificao da

fecundidade, a fonte total e criadora das guas. O Nilo era a efuso de Osris e Set/Tifo a sua anttese, a personificao da aridez e da fome, representando tudo o que era seco e

causticante. O Nilo era originado da unio entre Osris aqutico e sis terrena, da qual nasceu o menino-deus Hrus que, ao eliminar Tifo, obrigou o oceano destruidor a recuar, deixando nas margens do rio Nilo o lodo aluvial que adubava as plantaes.

Na origem da criao grega, Graves (1967) descreve um dos mitos em que, no princpio de tudo, o ar uniu-se ao dia dando o nascimento da Me Terra, do Cu e do Mar. Da unio do Ar com a Me Terra apareceu o Oceano, Mtis e outros Tits. O Mar, por sua

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A tradio indgena, no Brasil, tambm rica em mitos e lendas aquticas. Pode-se observar que os nomes de grande parte dos rios brasileiros so de origem indgena. A palavra Paraba, por exemplo, conforme definio por Ferreira (1975), vem do tupi e significa imprestvel, ou seja, um trecho de rio que no pode ser rio navegado.

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vez, uniu-se aos Rios originando as Nereidas. O Cu e a Terra (Gaia) eram os smbolos masculino e feminino que, atravs da fertilizao das guas, produziam a vida, a qual passava a ser regida por Eros. Os rios e as fontes, ao serem considerados filhos de Oceanos pelos gregos, eram divinizados e a eles dedicavam oferendas.

Na concepo de Fontana (1994), os rios, fontes de vida e vias de comunicao de todas as antigas civilizaes, possuam importncia simblica significativa e a gua representava o nascimento e a morte, a origem e o fim da vida. A vazo do rio jusante era vista como uma progresso indiferenciao (o oceano), e montante, o retorno ao princpio (a fonte), sendo que a sua travessia tinha o significado de passagem de um estado do ser para outro (a margem oposta). Desta forma, os cursos dgua estavam impregnados de simbolismo - ao se aproximar de suas fontes, encontrar-se-ia a corrente da vida, da morte e a corrente da conscincia pelas quais seramos levados desde o nascimento.

Nos comentrios de Rudhardt (1990), as guas nesta configurao mtica, desencadeadas pelas tempestades e cataratas, manifestavam as foras temveis que os deuses administravam e usavam de acordo com o humor, ou segundo seus desgnios. Apropriada para lavar, a gua era ainda considerada agente de purificao e, de maneira mais

fundamental, ela possibilitava a dessedentao e o crescimento da vegetao sobre a terra irrigada. Schama (1996) supe que o rio Jordo, representando a pureza no deserto, originou os rituais rudimentares de purificao e redeno que evoluram at o batismo cristo.

Nesta poca, os mitos e rituais eram assimilados por diversas culturas prximas. O rio Meandro, por exemplo, era uma ddiva sagrada para os gregos e por esse motivo, todos os meandros eram considerados smbolos da benevolncia fluvial, movimentando-se de um lado para outro, cortando vales e dando a conformao da bacia hidrogrfica, sendo igualmente venerados pelos frgios da sia Menor. Os sacerdotes egpcios representavam esta conformao hidrogrfica nos rituais de libao. Para garantir a existncia e continuidade da vida, a mesa de pedra talhada ou a mesa de libao era posicionada nas margens dos rios e sobre ela derramava-se vinho como oferenda a Osris, Hapi ou Serpis. Assim, ao escorrer pelos sulcos sinuosos da pedra, o vinho representava os meandros desses rios. Tal manifestao mtica relacionando sacrifcio, propiciao e abundncia fluvial,

parece ter sido compartilhada por vrias culturas da Antigidade que se desenvolveram nas bacias de grandes rios. Assim escreve Schama (1996):

23 o curso arterial e autocontrolado do rio sagrado semelhante corrente sangnea dos homens, constitura uma imagem permanente do fluxo da vida, a linha das guas, do comeo ao fim, do nascimento morte, da fonte foz [...]. Ademais, dominou a linguagem dos rios na Europa e no Ocidente, fornecendo imagens sobre a vida e a morte de naes e imprios e para a fatal alternncia entre comrcio e calamidade (p.266).

Devido s correlaes entre o culto e a forma como se administravam os recursos hdricos, Liebmann (1979) diz ser possvel compreender a importncia

desempenhada pela gua na mitologia. Os sacerdotes do antigo reino dos faras louvavam a importncia da gua pois, para eles, as coisas presentes no mundo s podiam existir graas ao da umidade - as guas provenientes dos templos eram ddivas dos deuses e consideradas sagradas pelos sditos. Cabe ressaltar que os sistemas teocrticos vigentes nos reinos egpcios podem tambm ser vistos como a forma encontrada pelos soberanos para a manuteno do poder, atravs da evocao dos mitos e subjugamento do povo, ou seja, colocando-os sob o desgnio dos cus e dos deuses.

Apesar de todo o poder mtico,

percebe-se gradativamente o seu

arrefecimento ou substituio como modelo explicativo e aglutinador social. Cardona (1995) ressalta que as condies histricas gerais so determinantes para a substituio da viso de mundo, ou paradigma, e as mudanas de concepes ocorrem no somente como resultantes da incompetncia de um sistema explicativo e de sua capacidade de resoluo para problemas concretos, como por exemplo, a verso religiosa dada pelos povos antigos sobre a origem e a circulao da gua na terra. Segundo este autor, as concepes mticas perduraram tanto tempo graas identificao dos indivduos com sua comunidade, atravs de uma complexa trama simblica que os mitos representavam. Essa funo social homogeneizadora do mito, em parte, explica sua sobrevivncia at que uma nova possibilidade de amlgama social suprisse a funo, antes desempenhada por ele.

Pode-se constatar tal processo de transformao do imaginrio a partir do sculo VII a.C., na sia Menor. No sculo posterior, a expanso das tcnicas ao se desvincular dos relatos mticos propiciou o surgimento de outras imagens explicativas com bases racionais, introduzindo uma nova e radical forma de pensamento apreendida na

experincia cotidiana. Tal acontecimento abalou profundamente as concepes vigentes at ento, provocando o que Rosset (1989) denominou de runa da representao animista (p.126).

As primeiras concepes cientficas e filosficas da cultura ocidental

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apareceram na Jnia, elaboradas pela Escola de Mileto. Destacamos, em particular, Tales de Mileto (?625/4-558 a.C.) ao afirmar que a gua era a origem de todas as coisas - a gua era o princpio da natureza mida e continente de todas as coisas, por isso ela era o princpio de tudo, e a terra se encontrava sobre ela. A gua seria a physis que, na poca, abrangia tanto a acepo de fonte originria como a de processo de surgimento e de desenvolvimento, correspondendo gnese.

Para explicar a origem dos rios, acreditava-se que eles fossem alimentados pela gua do mar, a qual ascendia atravs da destilao provocada pelo fogo interior das rochas que a teria livrado do sal ou ainda, por meio do refluxo capilar da gua em movimento ascendente, face ao peso exercido pelas montanhas. O surgimento da gua adquiria ento, um novo significado, o de processo geolgico sem conotaes metafsicas, onde tudo estaria originariamente encoberto pela gua, e sua evaporao permitiria que as coisas aparecessem. Contudo, no era possvel aos antigos filsofos explicar, cientificamente, o funcionamento do ciclo hidrolgico e responder corretamente s suas interrogaes como, por exemplo, o fato do nvel do mar ser constante apesar do aporte contnuo dos rios. Para uma explicao mais completa do ciclo hidrolgico faltavam-lhes os suportes experimental e quantitativo, os quais apareceriam somente ao final do sculo XVII, na Europa 3 .

Hubert (1990) remarca que, apesar disto, a idia da conservao da gua, de seu escoamento e de sua eterna renovao, estava presente no pensamento filosfico, em particular, na dialtica de Herclito de feso (?540-470 a.C.). Quanto aos aspectos qualitativos da gua, Plato (427-347 a.C.) j considerava a necessidade de disciplinar o seu uso e prescrevia alguma forma de penalizao para aqueles que a causassem algum dano pois, para ele, a gua era a coisa mais necessria manuteno das plantaes. Porm, a terra, o sol e os ventos, concorrentes da gua na alimentao das plantas, no estavam sujeitos ao envenenamento, desvio ou roubo, sendo que tais danos poderiam, eventualmente, acontecer gua, necessitando que a lei viesse em seu socorro.

Atravs de tais argumentos, Plato (apud Nicolazo, 1989) propunha: Qualquer um que tenha corrompido a gua de outrem, seja gua de fonte, gua de chuva estocada, jogando certas drogas [...] o proprietrio dever se queixar [...] e far ele prprio, a estimativa do prejuzo: e aquele que ser convencido de ter corrompido a gua, alm de reparar o prejuzo, ser obrigado a limpar a fonte ou o reservatrio, conforme as regras3

A compreenso da existncia do ciclo da gua como estrutura da hidrosfera originou uma nova cincia - a hidrologia, que no tem mais do que trs sculos de existncia.

25 prescritas pelos intrpretes, seguindo a exigncia dos casos e das pessoas (p.13).

Nicolazo (1989) remarca ainda que Aristteles (384-322 a.C.), refletindo sobre o surgimento da gua, especulava acerca das correlaes entre a gua proveniente da chuva e dos lenis subterrneos, postulando que os rios se originariam, em parte, da gua da chuva, bem como da umidade do ar no interior das cavernas nas montanhas que, ao se condensar no solo, davam origem aos mananciais.

Na Grcia, com o surgimento de uma

nova viso de mundo, os

fundamentos tericos seriam passveis de progredir, de serem repensados e/ou substitudos, constituindo-se num primeiro abalo na ordem esttica e sagrada do mundo. Neste sentido, no processo evolutivo da cultura ocidental, as mudanas ocorreram, em parte, porque os freios homeostticos4 foram sendo rompidos em conseqncia, principalmente, de quatro processos gradativos que culminaram na dessacralizao da natureza, como descritos por Layrargues (1996):a primeira etapa consistiu na passagem do animismo pago para o monotesmo, a segunda no desenvolvimento do pensamento aristotlico na filosofia grega, possibilitando a entrada em cena da terceira etapa, com a Revoluo Cientfica e o pensamento cartesiano, [que por sua vez, proporcionou o advento] da quarta, com a Revoluo Industrial (p.73-74).

Em cada um destes longos perodos, observa-se o desenvolvimento de tcnicas apropriadas para enfrentar os desafios impostos pelos fenmenos naturais, percebidos e tratados, diferenciadamente, em conformidade com as diferentes culturas e tradies, buscando conquistar o espao e seus recursos, os quais eram geridos de acordo com as possibilidades e avanos do conhecimento de cada poca, como trataremos a seguir.

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A sacralidade da natureza ocorre atravs do que se denomina freios homeostticos, os quais seriam cdigos legislativos empricos, de fundo religioso, anlogos aos princpios ecolgicos que regulam o equilbrio das relaes naturais. Pode-se dizer que os freios homeostticos mentais seriam produzidos pelas normas de comportamento vinculadas s tradies e aos costumes, as quais se manifestam atravs dos rituais mticos que do natureza o seu carter sagrado (Layrargues, 1996).

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I.2 A Tecnologia Hidrulica e a Gesto Hdrica

I.2.1 Na Antigidade: A gua SacralizadaA aglomerao de milhares de pessoas levou o homem, desde a Antigidade, a se ver confrontado com problemas de sobrevivncia, ou seja, relacionado a problemas ecolgicos, e a gua um bom exemplo disso. Para fazer face a tais dificuldades, era preciso desenvolver a criatividade e a engenhosidade, como pode ser observado nas obras de irrigao e captao para abastecimento de gua potvel, entre outras, construdas pelos povos antigos.

Os primeiros documentos escritos da humanidade, obra dos sumrios de aproximadamente 4.000 a.C. continham instrues sobre a irrigao de lavouras dispostas em terraos. Na civilizao egpcia, o fluxo do Nilo era controlado por meio de um dispositivo administrativo, gerindo as relaes entre as partes montante e jusante do rio, e projetando os nveis dgua durante os perodos anuais.

Em outros

antigos registros, como observa Azevedo Netto (1959), diversas obras

verificam-se, alm do desenvolvimento da irrigao na Mesopotmia,

relacionadas ao saneamento, tais como: as galerias de esgotos construdas em Nippur, na ndia, por volta de 3.750 a.C.; o abastecimento de gua e a drenagem encontrados no Vale do Indo em 3.200 a.C., onde muitas ruas e passagens possuam canais de esgotos, cobertos por tijolos com aberturas para inspeo, e as casas eram dotadas de banheiras e privadas,

lanando o efluente diretamente nesses canais; o uso de tubos de cobre como os do palcio do fara Cheps; a clarificao da gua de abastecimento pelos egpcios em 2.000 a.C., utilizando o Sulfato de Alumnio.

Nessa poca, j existiam

preocupaes quanto ao uso da gua e

transmisso de doenas a ela vinculadas. Conforme Azevedo Netto (1984), documentos em snscrito datados de 2.000 a.C. aconselhavam o acondicionamento da gua em vasos de cobre, sua exposico ao sol e filtragem atravs do carvo, ou ainda, pela imerso de barra de ferro aquecida, bem como o uso de areia e cascalho para filtrao da gua. Por volta de

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1500 a.C., os egpcios utilizavam a decantao. Bem mais tarde, a partir de 450 a.C., poos artesianos eram escavados na busca por suprimento de gua em regies ridas.

Muitas construes importantes foram realizadas no Egito, destacando-se as barragens escalonadas no Rio Nilo e os tanques de nivelamento. Liebmann (1979)

especula que o lago Mris, no osis de Faium, prximo ao Cairo, era provavelmente uma represa para regularizar as guas vazantes do rio Nilo, atravs de um canal de desvio das guas. Havia uma forte preocupao com as cheias dos rios, as quais eram medidas atravs dos nilmetros, espcie de fluvimetros que possibilitavam aos lavradores calcular os nveis da gua no curso inferior do rio.

No mundo antigo, os rios, ao mesmo tempo que proporcionavam s sociedades a idia do movimento de circulao do sangue pelo corpo, podiam significar tambm destruio e morte. Schama (1996) descreve que ao longo de dois sculos, entre fins do terceiro e incios do segundo milnio anterior Era Crist, numa das longas vazantes do Nilo, os pntanos do delta secaram, instaurando-se uma poca de anarquia e banditismo, indicando que esses perodos de seca coincidiam com rupturas na sucesso poltica e substituio dos faras.

H indcios, por intermdio das descobertas arqueolgicas, de que a civilizao acadiana se extinguiu devido seca do Tigre e do Eufrates. Liebmann (1979) descreve que vrias civilizaes entraram em decadncia em funo de desequilbrios

ambientais. Os Maias, por exemplo, teriam abandonado suas cidades, provavelmente, pela carncia de gua e eroso do solo provocadas pela destruio da mata primitiva. Ainda em relao a essa Civilizao, este autor constata que nas bases das pirmides eram colocados canos para captao da gua proveniente da condensao e das chuvas, destinando-se ao abastecimento de gua. Aplicando-se tcnicas similares utilizadas pelos povos mediterrneos, os canais eram cobertos por tampas e os canos conduziam a gua para cisternas impermeabilizadas de alvenaria construdas com um aglutinante similar ao cimento.

Na instalao dos grupos humanos, uma das primeiras preocupaes era de estabelecer uma rede para a circulao de gua. Inicialmente, as povoaes sempre se localizavam nas proximidades das fontes, mas com a transformao dos povoados em

cidades, as reservas das vertentes tornavam-se, em alguns casos, insuficientes e expostas

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contaminao. J se

reconhecia a importncia de se manter saudveis as populaes,

necessitando para isso, dispor de canalizaes para o abastecimento dgua e esgotamento sanitrio, como as descobertas em diversas cidades antigas. A canalizao da gua para os mltiplos usos j existia, por exemplo, no Antigo Egito e na Mesopotmia.

Na Prsia, descreve Liebmann (1979), a gua era canalizada atravs dos jubes (galerias subterrneas escavadas no solo com at 10 metros de profundidade) utilizados para conduzir a gua das montanhas at as plancies habitadas. Na Grcia foi desenvolvida uma tecnologia para captao e distribuio de gua a longas distncias. No sculo VI a.C., o tnel para conduo da gua construdo em Samos, foi considerado por Herdoto como a maior obra que teria havido na Grcia at ento. Ao sistema hidrulico, aplicava-se o princpio dos vasos comunicantes, bem como a pressurizao dos encanamentos, e uma das mais importantes canalizaes pressurizadas deste perodo foi construda em Emuros II (180 a 160 a.C.).

As variaes sazonais

de vazo dos rios, decorrentes das condies

climticas muitas vezes desfavorveis, obrigavam alguns povos a armazenar gua. Por outro lado, por motivos estratgicos, as cidades eram construdas normalmente em encostas e, raramente, possuam fontes perenes dentro de seus muros. Por isso, a gua de chuva era acumulada em cisternas para o abastecimento em perodos de carncia, sendo necessrio dispor de grandes reas como ptios, telhados das casas, dos templos e dos palcios, para a coleta das guas pluviais.

Na Ilha de Creta, nos terraos impermeabilizados, eram construdos tanques intercalados a fim de depositar os sedimentos e prevenir possveis entupimentos na rede. Provavelmente, esses tanques dos palcios tinham mais a finalidade de servir como filtro para depurao das guas provenientes dos telhados, do que a dedicao aos cultos. Na Grcia, as obras hidrulicas seriam realizadas no somente por interesses estticos ou religiosos, mas tambm pela necessidade evidente de suprimento de gua, funes - o culto e a funcionalidade. Alm disso, conjugando-se assim duas

ao evocar os deuses e

os mitos, a

populao era induzida a executar as obras de grande porte.

Os gregos possuam preocupaes sanitrias comprovadas pelo suprimento de gua e a eliminao dos esgotos. Nas construes localizadas em partes mais altas das

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cidades, coletava-se a gua pluvial em cisternas, das quais partiam

canalizaes

transportando a gua at s regies mais baixas. O grau de sofisticao do sistema grego pode ser demonstrado pelas descargas em vasos sanitrios encontrado em Atenas.

No sculo IV a.C., os romanos construram importantes obras hidrulicas. Em Roma, nesta poca, havia 856 banhos pblicos e 14 termas, onde o consumo de gua era de 750 milhes de litros por dia, conforme Liebmann (1979). Quanto aos esgotos, esses eram transportados por canalizaes, evitando o lanamento de guas servidas nas ruas. Desta forma, supe-se no ter havido grandes epidemias nesta poca, em parte, devido ao suprimento de gua para o abastecimento pblico, banhos e privadas, bem como aos cuidados com os esgotos. A construo da cloaca mxima, afirma Azevedo Netto (1959), era um conduto livre em pedra com 4,3 metros de dimetro, tornando-se o coletor tronco dos esgotos de Roma, em 514 a.C. A esse respeito escreve Grimal (1990):Em Roma, o problema da gua ocorreu [...] ao fim do sculo IV a.C., [...] 441 anos aps a sua fundao. Durante estes quatro sculos e meio, os romanos estavam satisfeitos com a gua de seu rio, o Tibre, dos poos escavados na parte baixa da cidade, alm das cisternas alimentadas pelas chuvas e construdas [estrategicamente] sobre as colinas[...]. A localizao de Roma era favorvel sob este aspecto, mas os vales entre as colinas eram midos [...onde] vrios crregos escoavam [...]. A Cloaca maxima (o maior dos esgotos) [...] serviu primeiramente, para a drenagem dos pntanos naturais [...] e depois foi utilizada para assegurar uma relativa higiene [...] (p.97).

Os aquedutos, embora no tivessem sido criados pela engenharia romana, foram disseminados por todo o seu Imprio. O transporte de gua potvel das montanhas para as cidades era concebido atravs destes dispositivos e foram construdos tambm, na Alemanha, Itlia, Frana, Espanha, Grcia, sia Menor e frica do Norte. Liebmann (1979) diz que em 312 a.C., Appius Claudius Crassus construiu o primeiro aqueduto romano ( ia v Appia), com 16,5 km de extenso. Por volta de 50 d.C., Roma possua 10 grandes canalizaes para abastecimento de gua potvel, com mais de 400 km e cada cidado recebia cerca de 95 litros dirios de gua. A gua pressurizada nas tubulaes j era conhecida e tais instalaes foram descobertas em Prgamo (na antiga Grcia e atual Turquia) no ano de 180 a.C.

Na Repblica Romana, junto s construes dos aquedutos, foram erguidos reservatrios ou castelos de gua (castella), os quais possuam cmaras, onde a central recebia o excedente das partes externas e alimentava as fontes. Das partes externas saam encanamentos para os banhos pblicos e casas de particulares mediante licena do imperador,

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e em certos trechos das canalizaes eram construdos tanques de sedimentao (piscinae), servindo de filtros.

Neste perodo, o controle do suprimento de gua ficava sob o encargo de algumas pessoas, as quais induziam a populao a utiliz-la adequadamente. Um papel

decisivo no abastecimento de gua das cidades romanas cabia, por exemplo, ao armazenamento preventivo de gua em depsitos especiais cujos canos de escoamento eram colocados, em geral, em alturas diversas. Os mais elevados destinavam-se ao abastecimento das residncias particulares e abaixo deles partiam os canos para os edifcios pblicos como os banhos e hospitais. Na parte mais baixa eram conectados os canos de alimentao dos poos pblicos. As residncias particulares sofriam as primeiras conseqncias em caso de falta dgua, a qual era poupada para os banhos, poos pblicos e hospitais. Os romanos tambm desenvolveram dispositivos especiais de medio de consumo de gua, os quais eram testados e lacrados, pagando-se uma taxa nica por tal servio. Escreve Liebmann (1979) que:j se compreendia a necessidade de se economizar a gua na adoo de latrinas dotadas de gua corrente proveniente da recirculao das guas [...] dos banhos pblicos (p.114).

Um dos problemas enfrentados pelos romanos era o das derivaes clandestinas realizadas pelos habitantes ribeirinhos. Na poca da Repblica Romana, somente a gua que transbordava fora das fontes poderia ser desviada para os banhos mediante o pagamento de taxas, e certos notveis se beneficiavam com o acordo dos cidados. Em 11 a.C., o Senado encarregara um corpo daquarii, sob o controle de um curador, de gerir a vazo da gua e garantir a sua regularidade.

No auge do Imprio Romano havia abundncia de gua transportada por adutoras e distribudas em fontes pblicas e nas casas de banho. Segundo Costa (1994), Roma era abastecida por um sistema constitudo por onze aquedutos, contando com uma distribuio diria de gua de cerca de 1000 litros por habitante, muito alm do necessrio para o consumo humano da poca 5 . Contudo, esta preocupao com relao distribuio e quantidade de gua parece ter sido reduzida durante a poca medieval havendo, de maneira geral, um declnio das condies sanitrias, bem como um avano das epidemias.5

Goubert (1990) afirma que no sculo XVIII estimava-se em 20 litros dirios de gua por pessoa para atender as suas necessidades bsicas. No sculo XIX, esse valor chega a 100 litros e, ao fim do sculo XX, essa estimativa varia de 300 a 1000 litros por habitante por dia, dependendo, entre outros, do nvel de desenvolvimento e do padro cultural de cada pas, alm do porte da cidade e dos tipos de atividades econmicas exercidas.

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I.2.2 Na Idade Mdia : O Desafio da gua e as Grandes EpidemiasA gua foi uma das grandes questes na Idade Mdia, a ponto de ser considerada a Idade da gua por Leray (1982) e, durante quase dez sculos, ela representou, segundo este autor, um ponto de reencontro das principais atividades da Idade Mdia (p.43), onde o meio de transporte hdrico tornar-se-a o pulmo da vida econmica de ento. Por outro lado, ao comparar este perodo com o desenvolvimento de algumas cidades da Antigidade, Liebmann (1979) nota que houve um retrocesso considervel do ponto de vista sanitrio. Tal fato pode ser comprovado pelo baixo consumo de gua que, em algumas localidades, chegava a menos de um litro dirio por habitante, gerando graves conseqncias para a sade da populao.

Com o aumento do comrcio e intercmbio propiciados pela navegao interior, esse perodo foi marcado por uma forte preocupao defensiva das cidades que se desenvolveram margem dos rios europeus. A crise econmica, poltica e religiosa ocorrida na segunda metade do sculo III, tornou necessria a construo de fortificaes ao redor das cidades atravs de muralhas e fossos, os quais eram abastecidos com a gua retirada de um rio considerado sagrado, localizado em suas proximidades. Guillerme (1990), ao descrever a forma de ocupao das cidades medievais, comenta que, ao fim da dominao romana no Ocidente no sculo V, havia ainda um certo carter sagrado relacionado gua.

J nos sculos X e XI, as cidades se formavam s margens dos cursos dgua e, posteriormente, os pntanos foram sendo drenados e aterrados, servindo para novas ocupaes. As primeiras obras porturias situadas s margens dos rios teriam sido construdas pelos normandos. Leray (1982) remarca que tais portos ribeirinhos no existiam at a segunda metade do sculo XII, aps a ocupao do solo rural pelos artesos e, desde ento, os cursos dgua tornar-se-am importantes meios de transporte com a construo de barragens, eclusas, canais artificiais e portos.

A gua foi se tornando, cada vez mais, elemento vital para o desenvolvimento econmico. Tal fato pode ser comprovado atravs da implantao dos moinhos, especialmente projetados para fornecer fora motriz, impulsionando as atividades industriais de transformao, na poca. A gua, segundo Guillerme (1990), era o nervo

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econmico da urbanizao pr-industrial e sem ela no seria possvel o desenvolvimento de atividades como moagem, tecelagem, tinturaria, cortume, nem a existncia das comunas. A economia desse perodo coincide com a concentrao das habitaes e a infra-estrutura artesanal, onde o abastecimento era feito pela captao direta da gua nos rios. A introduo do processo de moagem teria contribudo com a primeira urbanizao, a qual necessitava de um afluxo de mo-de-obra destinada aos trabalhos pesados. O crescimento das manufaturas em tecidos e couro, consideradas a base da riqueza urbana da poca, aumentou a dependncia da gua em quantidade e qualidade para vrios fins e parece ter orientado a distribuio das manufaturas ao longo dos cursos dgua, de forma a evitar prejuzos e competies pelo recurso hdrico entre as diversas atividades.

Em algumas cidades, o planejamento urbano era feito em funo da circulao interior das guas como em Veneza. Calabi (1990) afirma ser esse modelo de cidade, entrecortada por canais, uma realidade que marcou profundamente a paisagem urbana medieval de vrias cidades europias. A infra-estrutura hidrulica dessa cidade, iniciada no sculo XI e concluda num sculo e meio, foi to importante a ponto de permanecer quase inalterada durante os sete sculos posteriores.

Quanto ao abastecimento de gua potvel, observa-se a deteno dos direitos pela aristocracia laica e eclesistica sobre a maior parte dos cursos dgua. No sculo XII, as fontes artificiais, vistas como sinal de urbanidade, eram importantes locais de

sociabilidade urbana e mantidas coletivamente pelos cidados, sendo que parte do consumo dirio de uma famlia era garantido atravs da compra de gua transportada pelos carregadores. A maior parte da populao escavava poos no interior das casas para suprir suas necessidades domsticas e artesanais, mas a presena de fossas e adubos em suas proximidades, contaminava quase todas essas fontes de gua subterrnea, contribuindo para o avano das doenas.

medida que cresciam as aglomeraes, as autoridades locais implantavam sistemas de esgotos, ou transferiam certas atividades para a periferia. Em algumas dessas cidades, as administraes regulamentaram normas para rios como o Tibre (em Roma) e o Sena (em Paris), proibindo o lanamento de animais mortos em seus cursos dgua, solicitando aos curtidores no lavar peles de animais nas guas ribeirinhas e impedindo os

tintureiros de jogar corantes nos rios.

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Ao fim da Idade Mdia, o conhecimento sobre as relaes entre o saneamento do meio e o processo da doena, embora emprico e at mesmo intuitivo, foi sendo estabelecido, podendo ser comprovado atravs da implantao de algumas normas legais. Pompeu (1976) remarca que o Acto ingls, promulgado em 1388, foi considerada a lei britnica mais antiga sobre poluio das guas e do ar. Essa lei proibia o lanamento de excrementos, lixo e detritos em fossas, rios e outras guas. Em 1453, em Augsburgo, leis rgidas de proteo dos mananciais foram institudas a fim de se controlar a contaminao dos rios que serviam ao abastecimento pblico.

Apesar da tentativa de disciplinamento do uso hdrico, parece que tais normas no surtiram muitos efeitos. Roche (1990) afirma que as cidades medievais, por meio de seus cidados e artesos, introduziram no meio ambiente um conjunto de perturbaes, tais como: poluio com modificao do equilbrio das guas fluviais,

contaminao dos lenis freticos, acumulao dos riscos epidmicos, alm da destruio de vastas reas florestais, reduzindo-se, consideravelmente, as vazes das guas superficiais e subterrneas, provocando o que denominou ser a primeira grande transformao dos ecossistemas (p.115).

A peste negra no sculo XIV, conjugada com a guerra e a insurreio popular, demonstrava um perodo de crise e um tero da populao, acometida pela doena, teria sido dizimada na Europa. Na Idade Mdia, ao contrrio da Antigidade, os hbitos higinicos eram pouco considerados, visto a dimenso dos problemas sanitrios com a deposio de restos orgnicos e lixo nas vias pblicas, nas instalaes sanitrias insuficientes ou ausentes, e nas reduzidas possibilidades de banho para a populao. Este perodo foi marcado por grandes epidemias alm da peste, dentre elas, a da varola, a do clera, a da lepra e a do tifo. Menezes (1984) refere-se a essa poca como um violento retrocesso nas condies de salubridade, a ponto do consumo de gua per capita chegar a um litro por dia e, ironicamente, diz ele: ningum praticamente tomou banho por mil anos (p.56).

Apesar das crises sucessivas, o crescimento econmico iniciado no sculo XIII, embora lento, criou novas possibilidades na Europa. A mobilizao de vrios recursos e o surgimento do setor empresarial apoiado no desenvolvimento dos estudos seculares, principalmente do humanismo clssico, da cincia e da tecnologia, possibilitaram um importante perodo na histria - a Renascena Cultural Europia. A expanso martima do

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Ocidente associada efervescncia cultural, demarcaram a linha divisria entre o mundo medieval e o moderno.

I.2.3 No Renascimento Europeu: A gua dominada pela TecnocinciaNesta poca, as cidades ainda conservavam a tradio energtica medieval intra-muros, dotada de uma vasta rede hidrulica acoplada aos moinhos. Guillerme (1990) explica que, gradativamente, nas regies prximas s cidades, reduzia-se o nmero dessas instalaes, configurando um perodo de estagnao, o qual teria provocado a recesso energtica e um estado de subdesenvolvimento permanente. Devido s guerras sucessivas, as cidades fortificadas aumentaram os fossos ao seu redor, onde inmeros canais foram

escavados, tornando as guas estagnadas e foco potencial de doenas, como a malria. Em torno do sculo XV, formou-se um microclima de forte nebulosidade que desapareceu somente no sculo XIX, com o aterramento dos fossos.

No que concerne arte hidrulica, conhecida atravs da literatura fluvial de fins do sculo XV e incio do XVI, constata-se a importncia das fontes (chafarizes) que eram projetadas pelos artistas clssicos, inspirando-se em diversas mitologias hdricas como por exemplo, as do rio Nilo e as da origem da criao grega. O movimento de retorno aos mitos da Antigidade era til como forma de representar a origem definitiva da vida tal como um manancial. A partir do comeo do sculo XVII, essa iluminao esotrica foi

concretizada sob a forma de chafarizes e repuxos dos jardins e parques das vilas renascentistas. Schama (1996) diz que:isso exigia dos arquitetos no s grande familiaridade com a gramtica da hidromitologia como toda uma nova tecnologia hidrulica ornamental. Achava-se, era inevitvel, que a origem desta tambm era greco-egpcia, como dizem os tratados de Alexandria datados do sculo III a.C.[...]. A nova mecnica baseava-se em teoremas que teriam sido propostos por fsicos e matemticos alexandrinos [...] (p.281).

O domnio das artes hidrulicas mais complexas requeria tanto habilidade tcnica, como um apurado conhecimento cientfico propiciado, naquela poca, pela filosofia. Shama esclarece que o ttulo de superintendente dos rios e guas, concedido a alguns dos mais famosos fontanierii (responsveis pelas fontes), era muito mais que um certificado de engenharia, pois demonstrava o virtuosismo do controle hidrulico atravs das foras aliadas da fsica e da metafsica. Os princpios baseados na hidrulica alexandrina serviam, ao mesmo tempo, para fins estticos e para resolver questes prticas de abastecimento de gua.

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Apesar de preocupados com a questo tcnica (corroso dos canos ou novas concepes de moinhos dgua), alguns engenheiros se viam como magos a ponto de serem tratados como hereges. Salomon Caus era considerado um dos mais ambiciosos e, nas palavras de Schama (1996), ele teria produzido:uma das obras mais extraordinrias de toda a histria da hidrulica: as razes das foras moventes. [...] Caus se situa na tradio dos mestres da fons sapientiae que se inicia com Plato e Aristteles, prossegue com a Escola de Alexandria e com os filsofos-artistas da Renascena, como Alberti e Leonardo (p.283).

A importncia da tradio hidrulica romana pode ser constatada atravs das runas dos grandes aquedutos construdos pelo vasto imprio, embora estes sejam apenas uma pequena amostra de como era tal sistema hidrulico. Os engenheiros da Renascena tiveram acesso aos detalhes da construo e da manuteno deste sistema em 1425, quando foi descoberta a obra De aquis urbis Romae 6 . No sculo XIII, muitos experts foram contratados para executar as obras do programa de reforma papal. A renovao da gua pura e corrente era vista, por esta congregao, como parte essencial a ser concretizada atravs de vrias obras hidrulicas, dentre elas a reconstruo de alguns aquedutos da poca do Imprio Romano.

Na hidrulica crist,

j no sculo XVI, Papas como Jlio II novo imprio espiritual ao

tinham

pretenses de estabelecer em Roma um

utilizar imagens

simblicas do Nilo unindo-se ao Tibre. Michelangelo, por exemplo, havia concebido em algumas fontes um cenrio inspirado nas divindades fluviais. A imagem associativa dos rios parece ir alm de uma nostalgia clssica, pois para Schama (1996), havia a pretenso dos papas renascentistas de herdar no s o legado cultural do Egito antigo, mas tambm o ttulo imperial romano. Isto podia ser constatado atravs do programa de reconstruo de obeliscos egpcios em stios cristos, durante o pontificado de Sisto V.

Nesta poca, no Vaticano, construram-se vrios equipamentos sanitrios: chafarizes, novos encanamentos, banhos pblicos, mecanismos para despejo, cubas para lavagem de l e outros. Dentre as obras realizadas, os chafarizes desempenharam um papel de destaque para a Igreja, originando uma nova hidrulica sacra que, utilizando a concepo mstica e cristianizada da Fonte da Criao buscava resgatar a imagem simblica do

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Das guas da Cidade de Roma - Tratado escrito por volta de 97 d.C., por Sexto Jlio Frontino (?40-103 d.C.), sobre organizao jurdica e as tcnicas hidrulicas, escrito no perodo de Trajano.

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Nilo e de seu culto fertilidade, dentre outros mitos, e ainda recuperar a tradio da engenharia romana na utilizao das guas correntes.

Tal modelo disseminou-se por toda Europa. Contudo, como alerta Roche (1990), as preocupaes iam alm da esttica renascentista presente nos parques, jardins, palcios e monumentos. Em Paris, por exemplo, ao final do sculo XV, controlava-se a distribuio de gua atravs de canalizaes e uma dezena de fontes, sob a vigilncia da municipalidade, abastecia alguns privilegiados detentores de concesses gratuitas, s vezes honorrias. No governo de Henrique IV, ocorreram importantes transformaes a partir da construo de grandes obras, garantindo-se uma maior vazo de gua para abastecimento. Na poca, foi implantada a vigilncia das guas por oficiais do rei, sendo obrigatrio o pagamento das concesses para consumo, demonstrando j haver conflitos de poder em torno da apropriao dos recursos hdricos.

Durante vrios sculos, a gua esteve no centro das preocupaes arquitetnicas e mecnicas, seguindo o modelo vitruviano. Schama (1996) explica que no nascimento da hidrologia moderna, houve um reencontro deste antigo modelo, a partir da traduo dos Dez livros de Arquitetura de Vitrvio, em 1673, com os trabalhos de Pierre Perrault, de 1674, que deu origem ao clssico Tratado intitulado a Origem das Fontes. D Hubert (1990) argumenta que este ltimo, conjuntamente com Edm Mariotte e Edmond Halley, foram nomes importantes no incio da hidrologia cientfica 7 .

O perodo moderno foi marcado por grandes transformaes tcnicas, e Roche (1990), exemplificando algumas dessas mudanas, constata que por ocasio da seca ocorrida na Frana, entre 1639 e 1660, ocorreu uma micro-revoluo na tecnologia hidrulica, com o aumento do rendimento das bombas, as quais captavam mais gua diretamente dos rios, obrigando o governo da poca a melhorar o controle do uso das guas de domnio pblico e privado. Assim, tais tecnologias inovadoras introduzidas no setor hidrulico, associadas fabricao de tubos de ferro fundido, em 1664, possibilitariam, posteriormente,

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Padre Edm Mariotte, dando continuidade aos trabalhos de Perrault, desenvolveu uma metodologia para medir as velocidades de escoamento e das vazes, como parte de seu Tratado do Movimento das guas e de outros Corpos Fludos, publicado em 1686. Na Inglaterra, em 1690, Edmond Halley, com interesse particular no problema da medio da evaporao, permitiu explicar o dficit do escoamento evidenciado por seus antecessores, concluindo que os rios, as fontes e as guas subterrneas eram oriundos das precipitaes (Hubert, 1990).

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um aumento considervel na distribuio de gua canalizada para abastecimento 8 .

Com o desenvolvimento industrial txtil, dependente tanto de gua em abundncia como de novos terrenos, as atividades manufatureiras instalaram-se nas regies mais baixas e pantanosas, fora das cidades. Alm disso, o vapor dgua, indispensvel boa qualidade dos tecidos, apareceu como o motor econmico da urbanizao ocidental. A revoluo termodinmica, possibilitada pela mquina a vapor em 1764, tornou-se a principal fora geradora de movimento e da acelerao do processo produtivo, causando um forte impacto scio-econmico e ambiental.

A presena das mquinas a vapor para o bombeamento das guas colocou um dilema para a economia e a poltica das guas na Frana, ou seja, o de definir qual o modelo a ser adotado para o abastecimento parisiense. O modelo romano utilizava uma mobilizao hidrulica passiva da bacia hidrogrfica atravs da aduo nos rios e da captao das fontes que alimentavam a cidade, por simples gravidade. Por outro lado, o modelo ingls privilegiava o uso de mquinas a vapor no bombeamento de gua, no interior dos muros da cidade, tornando necessria a utilizao de equipamentos mais sofisticados e onerosos.

Nesta poca, a tecnologia hidrulica necessitava de um salto tanto quantitativo como qualitativo, em funo da demanda crescente de gua e do crescimento urbano. Para isso, era preciso impulsionar as pesquisas por novas solues tcnicas para possibilitar a implantao das redes para abastecimento pblico de gua e do esgotamento sanitrio. A partir de meados do sculo XIX, num contexto de fortes mudanas de mentalidades, iniciou-se a implantao do saneamento, bem como da administrao e legislao destes e de outros servios.

Pompeu (1976), ao discutir o direito das guas em vrios pases, assinala o texto francs mais antigo a respeito do combate poluio das guas, datado de 1829, previa a punio com multa ou priso quem atirasse nas guas drogas e produtos que8

Azevedo Netto (1984) destaca algumas tecnologias que foram importantes para a melhoria da qualidade da gua: introduo da tubulao em ferro fundido para as canalizaes (Inglaterra, 1746); uso do sulfato de alumnio para limpeza das guas (Inglaterra, 1767); descoberta do cloro (Sucia, 1774); construo do primeiro filtro lento (Esccia, 1804); primeira grande estao de tratamento (Paris, 1800); aplicao do cloro para oxidao da matria orgnica (1830). No Brasil, algumas destas tecnologias foram incorporadas um pouco depois, como na construo da estao de tratamento de gua (no municpio de Campos, em 1880) e no uso de filtros lentos (no municpio de Campinas, em 1891).

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provocassem o envenenamento ou destruio dos peixes. Essa lei, contudo, visava mais a pesca predatria do que propriamente a poluio das guas. Na Inglaterra, por sua vez, embora a introduo do sistema de rede de esgotos tivesse transferido as guas servidas aos cursos dgua, que antes permaneciam nas ruas, foram os resduos industriais, pela sua nocividade, os primeiros a serem includos na lei britnica de controle de poluio das guas de 1833.

Do ponto de vista dos problemas relacionados com a sade da populao, Roche (1990) afirma que havia, nesta poca, uma concepo privilegiada e aristocrtica. A dimenso coletiva da sade era tratada segundo uma perspectiva autoritria, ao se buscar o controle sanitrio e social das doenas atravs da higienizao das cidades e das habitaes 9 . Assim, complementa Roche:a apario de novas exigncias se produziu numa dupla tomada de conscincia moral e mdica, e posteriormente, sensorial e material [que] se manifestaram atravs dos discursos dos higienistas, dos mdicos, dos administradores e dos engenheiros [...] (p.126).

O problema das epidemias, que assolou vrios pases europeus durante sculos, impulsionou a busca por medidas tcnicas sanitrias, as quais foram possibilitadas pela revoluo cientfica e tecnolgica. Assim, a viso higienista tornou-se dominante no sculo XIX e incio do sculo XX, porm outras correntes de pensamento, no campo da medicina e administrao pblica, passaram a entrar em cena a partir das novas descobertas cientficas, colocando em questo o modelo sanitrio adotado at esta poca.

I.3 As Mudanas nos Conceitos do Processo Sade-Doena: a Institucionalizao da Sade PblicaA percepo dos mecanismos pelas quais as doenas se instalavam no organismo sempre foi motivo de indagao por vrias civilizaes antigas, onde tal

fenmeno era explicado por meio de

crenas e mitos. Segundo Costa (1994), certas

preocupaes com medidas sanitrias j podiam ser observadas no sculo III a.C., como, por exemplo, na relao feita entre insalubridade do meio e o paludismo. Nesta poca, Hipcrates9

Na Frana, segundo Foucault (apud Almeida Filho, 1988), implantou-se uma medicina urbana, a fim de sanear os espaos das cidades, disciplinando a localizao dos cemitrios e hospitais, arejando as ruas e construes pblicas e isolando reas miasmticas.

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tinha classificado e comparado as guas para consumo humano e recomendava a filtrao, ou fervura, para assegurar uma boa sade. Herdoto, Plato e Aristteles j aconselhavam o uso abundante de gua de boa qualidade. Apesar disso, o mecanismo de explicao do processo sade-doena pela teoria dos miasmas perdurou at o sculo XIX. Outros aspectos a respeito do pensamento mdico, na antiga Grcia, so esclarecidos por Rosen (1983):o tratado de Hipcrates - Ares, guas e Lugares - procurou informar ao mdico sobre a relao entre o ambiente e a sade (incluindo fatores como: clima, topografia, qualidade da gua, e mesmo organizao poltica), mas omitiu um dos elementos mais significativos: as ocupaes dos homens (p.28).

Na Antigidade, tais preocupaes no chegaram a ser sistematizadas. Isso s foi possvel a partir da revoluo cientfica e do desenvolvimento do mtodo experimental. Uma explicao mais completa e coerente sobre as concepes do processo de sade-doena teve que esperar mais de dois mil anos para surgir e s foi possvel atravs do

desenvolvimento de mtodos e teorias cientficas, bem como da introduo de equipamentos de investigao inovadores.

Cardona (1995) considera que, ao longo da histria, a compreenso dos paradigmas de explicao do processo sade-doena pode resumir-se a trs orientaes, a saber, a do paradigma mgico-religioso, a do paradigma hipocrtico-naturalista e a do paradigma experimentalista 10 . O primeiro deles, o mgico- religioso (ou espiritualista para este autor), predominou na histria da civilizao ocidental at o surgimento da cultura grega. Na concepo naturalista do processo sade-doena, Hipcrates foi um dos mais importantes representantes, ao explicar que a sade se dava por meio da homeostase entre os humores constitutivos do corpo, e a enfermidade surgia como uma alterao dessa homeostase. Tal analogia do equilbrio se relacionava tambm aos quatro elementos da natureza (terra, fogo, gua e ar), destacando a influncia que o meio e os hbitos tinham sobre a sade. Por ltimo, o paradigma experimental surgiu a partir da decadncia da viso naturalista, sendo Paracelso (1493-1543) um dos impulsores da nova concepo

experimentalista da sade-doena, a qual consolidou-se somente no sculo XIX, com o surgimento da chamada medicina cientfica. Tal concepo se conservou at hoje como paradigma ao redor do qual se estruturou a prtica mdica e a interpretao dominante do10

Tentando propor uma abrangncia maior ao conceito de paradigma de Kuhn (1962), Cardona (1995) diz que esse pode identificar-se com um determinado perodo ou era do desenvolvimento da humanidade, demarcando rotas pelas quais transitam a filosofia, a arte, a poltica e a tecnologia. Um paradigma dominante, para ele, se estenderia a todas as reas da atividade humana durante o tempo que mantm sua permanncia, configurando uma certa homogeneidade de pensamento. Tal viso se aproxima ao que Piaget & Garcia (1987) denominam quadro epistmico.

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processo sade e enfermidade.

Quanto institucionalizao dos servios de sade, Grundy & Mackintosh (1957) esclarecem que o primeiro exemplo de um sistema nacional de sade teria surgido na Dinamarca, em 1740, e pouco tempo depois, um conselho nacional foi adotado na Sucia. A partir do sculo XVIII, tais servios se expandiram por quase todos os pases da Europa. Esse processo de implantao seguiu a formao histrico-social de cada pas, conformando-se, como diz Labra (1985), com a instaurao dos Estados modernos e de seus aparatos

jurdicos institucionais, ideolgicos e repressivos (p.311) e com a criao dos servios de higiene e sade pblica, os quais tinham a finalidade de agir sobre o corpo social, sobretudo, aps a pandemia de clera vinda da sia que se espalhou pela Europa por volta de 1830 e, posteriormente, pelas Amricas.

A respeito das origens da sade pblica, Stern (1983) esclarece que antes do sculo XIX, alguns esforos haviam sido feitos para enfrentar as doenas por meio da ao comunitria e por decretos. Contudo, entre os sc