o consumo cultural na infÂncia como um aprendizado …
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ÁREA TEMÁTICA: ST10 Sociologia do Consumo
O CONSUMO CULTURAL NA INFÂNCIA COMO UM APRENDIZADO PARA A FORMAÇÃO
DE CIDADÃOS
CORREIA, Ligia
Mestre em Ciências Sociais, Pontificia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
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Palavras-chave: infância; Revista Recreio; consumo; cidadania.
Keywords: childhood, Recreio Magazine; consumption; citizenship.
PAP1142
Resumo
O objetivo desse artigo é investigar como o consumo de um produto cultural por parte das
crianças tem a possibilidade de incentivar o engajamento delas em causas voltadas ao
coletivo, e conseqüentemente a formação de futuros cidadãos. Para isso pretende-se traçar
um comparativo, sobre essa perspectiva de incentivo a cidadania, entre um produto cultural
disponível no mercado atualmente e outro que fez parte da infância da década de 1970: A
revista Recreio, uma revista infantil desenvolvida pela Editora Abril, a maior, editora do
Brasil. Abordando exemplos de duas gerações diferentes pretende-se buscar a correlação
com o tipo de convite que essa mídia fez e faz às crianças e os impactos na atuação das
mesmas.
Abstract
The objective of this article is to investigate how the consumption of a cultural product by
children has the possibility to promote the engagement of themselves in cases related to the
collective and as a result the upbringing of future citizens. Therefore, the article is intended
to display a comparative about that perspective of incentive to citizenship, between a
cultural product available in today’s market and another that was part of the childhood in the
1970’s: Recreio Magazine, a kids magazine created by Editora Abril, the biggest, publisher
in Brazil. Encompassing examples of the two generations it intends to find the correlation
with the type of call to action made by those media to the kids and the impact in their
behavior.
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Investir em conquistar o apreço das crianças é investir no futuro. Garantir que elas tenham afeição por uma
marca, desejo e identificação por determinado produto é certamente um dos objetivos de negócios de grande
parte das empresas que atuam no mercado mundial, ainda que elas não tenham em sua linha, produtos
exclusivamente desenhados aos pequenos consumidores. Esse cenário nem sempre foi assim. O
reconhecimento das crianças como público consumidor, que teve início na década de 1980, foi o primeiro
passo para que elas fossem incluídas em diversas discussões. A Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, estabelecida pela ONU, em 1989 reforçou a importância de incluir esse público nos debates sociais
e também nos que se referiam às mídias. Tanto que, três anos mais tarde, em 1992, foi fundada, no Brasil, a
Agência de Notícias dos Direitos da Infância, ANDI1, que entre outras coisas busca garantir os direitos das
crianças e “a criação de uma cultura de participação infanto-juvenil na mídia e na sociedade”, também
monitora, avalia e reconhece a importância dos meios de comunicação destinados ao público infantil; não
somente a dos que noticiam os acontecimentos que dizem respeito a crianças, mas, sim, a dos que
proporcionam formação cidadã.
O mercado, desde a revolução industrial, é uma esfera na qual as pessoas podem exercer suas escolhas e
estampá-las em seus hábitos pelas mercadorias que consomem, como afirma Nestor Garcia Canclini2, o
consumo é que define como um indivíduo se integra à e se diferencia na sociedade e, a partir dele, cria e
organiza novas identidades culturais, essa dinâmica ganhou ainda mais força desde os anos 1990. O espaço
na esfera política está cada vez mais restrito, ou menos atrativo, aos cidadãos, que têm suas escolhas cada
vez mais favorecidas no ambiente do mercado (Canclini, 2006), o consumo, moldado pela maneira como as
indústrias culturais incentivam ou desprezam o multiculturalismo, como a força que define a cultura
contemporânea. Entretanto, o universo do consumo que parece tão democrático, também exerce influências
nas escolhas, afinal há a participação influente do grupo formado pelas indústrias e pelas culturas mais ricas,
que tendem a impor seus valores e produtos. Cabe ao consumidor, com seu poder de escolha, aceitar ou optar
por produtos que descrevam ou mesmo representem suas identidades e repertórios culturais. Ao incluir nesse
contexto as crianças, enquanto público, alguns pontos são agravados pois as esferas de influência são
ampliadas e a possibilidade de atuação político-social é ainda mais distante e a do mercado favorecida.
A relação entre consumo das crianças e a formação de futuros cidadãos soa, inicialmente, como uma
proposta intrigante e por isso mesmo passível de ser estudada. Se a perspectiva do consumo, enquanto
inspiração para a prática da cidadania, pode ser muito produtiva quando aplicada a adultos, que já são
cidadãos ativos, pelo menos, com direito ao voto, certamente traria ainda mais ganhos se praticada desde a
infância, através do contato com os meios de comunicação, já que, desde a década de 1980, os meios de
comunicação, o marketing e as indústrias culturais em geral fazem grandes investimentos na conquistada
afeição desses indivíduos, acreditando não só no seu poder de influência nas decisões de compra de uma
família como também no potencial de consumo futuro. O aprendizado de uma atuação mais participativa
nesse campo do consumo pode ser uma maneira de gerar experiência e conhecimento para uma postura
semelhante no campo social e político, e, como em todos os aprendizados, quanto mais cedo acontecer, mais
habitual será, como ensina a sociologia do gosto, de Pierre Bourdieu (1999).
O objetivo desse artigo é iniciar uma discussão a respeito do papel dos produtos culturais no incentivo a
postura participativa do consumidor infantil e a possibilidade de incentivar a sua participação na construção
de conteúdos que irão impactar o coletivo. No presente caso, o debate foi proposto ao mapear o espaço
destinado às criancas e o convite feito para que contribuam com o conteúdo da revista Recreio, da Editora
Abril, e uma outra publicação da editora, revista Recreio disponível no mercado durante a década de 70.
Traçando um comparativo entre produtos culturais da mesma indústria em momentos diferentes pode trazer a
tona aprendizados e boas práticas sobre essa perspectiva de incentivo a cidadania, do convite a participação
feito pela revista.
A sustentação teórica dessa discussão é basicamente construída com Nestor Garcia Canclini (2006), com a
sua abordagem do consumo enquanto prática cidadã; David Buckingham (2007), com o debate sobre as
mídias, consumo e cidadania na infância; Henry Jenkins (2009) apontando as possibilidades de participação
no universo das novas tecnologias e os novos conceitos e metodologias no estudo de comunicação partiram
de Jesús Martín-Barbero (2001).
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A metodologia utilizada foi etnografia de produto inspirada nos estudos culturais da América Latina que
propõem, dentre outras coisas, considerar que o repertório e as experiências prévias do espectador, leitor ou
audiência em geral interferiam e muito na absorção do conteúdo transmitido nas mídias. “O sujeito da
comunicação não é o meio, mas a relação. Importante não é o que diz o meio, mas o que fazem as pessoas
com o que diz o meio, com o que elas veem, ouvem, leem” (Martín-Barbero, 2009)3.
Foi feita, portanto, a leitura capa a capa4 dos exemplares da revista Recreio com o foco de análise nas capas
e sessões que convidavam os leitores a contribuir com a elaboração de conteúdo para a revista e os espaços
destinados a participação deles. Foram ao todo 958 exemplares, 453 cuja circulação foi de 1969 a 1982 e
532 da atual desde março de 2000 até maio 2010, aconteceu de 22/03/2010 a 21/05/2010. A revista atual
também conta com um site e perfis nas redes sociais, todos foram visitados para dar visão geral do objeto,
mas não fazem parte da análise principal desse artigo.
A atenção de autoridades, organismos reguladores e mesmo população tem se voltado ao excesso de
estimulos aos quais as crianças são expostas, tanto nas mídias quanto no mercado em geral. A indústria e o
consumo são frequentemente responsabilizados pelas mazelas do mundo e baixa atuação dos indivíduos em
causas que beneficiam a coletividade. Porém, é importante atentar para o principal exemplo e influenciador
dos costumes e comportamento infantil: a família. David Buckingham (2007) ao fazer uma análise da
percepção do consumo no universo das crianças, questiona grande parte dos mitos existentes e aponta que,
apesar da maioria dos discursos acadêmicos e políticos que acusam a publicidade de manipular as vontades
do público infantil, não é tão fácil ganhar esses consumidores. “Para as crianças em geral, a propaganda é
menos significativa como fonte de informação do que outras fontes, como os familiares, os amigos ou as
visitas às lojas”. (2007, pp.217). São os adultos que inserem e treinam as crianças para o mercado e para o
mundo das compras, levando-as para o supermercado e comemorando quando as mesmas já sabem escolher
o que querem das gôndolas, eles ainda são os grandes influenciadores da percepção de qualidade por parte
desse público, além de serem os financiadores do consumo, contribuindo também com os recursos
econômicos. Mesmo na escola as crianças aprendem a consumir desde tecnologia até as carreiras de maior
sucesso (Canclini, 2006).
O ponto interessante que surge nesse debate é a possibilidade de um caminho para pensar a experiência do
consumo como um treino para a atuação participativa (Canclini, 2006), inclusive pelo fato de se ensinar nas
escolas como consumir e utilizar a tecnologia e as novas mídias. Novas teorias a respeito do consumo vem
fortalecer essa possibilidade, consumidores mais exigentes principalmente por suas relações em grupos e
com as mídias nos quais tem interação maior e voz ativa, as escolhas de consumo deixam de ser um
passaporte para pertencimento a um grupo e passam a descrever as preferências dos indivíduos (Alonso,
2006). O mesmo consumidor pode participar de grupos diferentes, que representem suas preferências e até as
causas pelas quais ele está disposto a lutar. Henry Jenkins (2009), aponta que os indivíduos que fazem uso
frequente dos meios digitais se agrupam e atuam em comunidades nas quais compartilham suas experiências,
o que faz com que eles fiquem mais fortes, tendo mais chances de promover mudanças tanto nas mídias
quanto nos produtores de bens; é a inteligência coletiva construída em conjunto.
As crianças, nesse cenário de consumo enquanto identidade, tem muito a contribuir pois elas são produtoras
de cultura e conteúdo (Buckingham, 2007); mais do que criaturas que se apropriam de valores e coisas que
são ensinadas ao longo dos dias, elas também elaboram sua visão para dar sentido ao mundo que as rodeia. A
criança não sabe menos que os adultos, mas sabe outras coisas (Cohn, 2005, pp.33). Esse pressuposto aponta
uma perspectiva produtiva no que diz respeito ao que pode ser estimulado, na infância, para mudar a relação
das pessoas com as mídias e, por consequência, com a sociedade, estimulando a atuação cidadã. Para isso as
mídias têm um papel fundamental e o espaço destinado à contribuição das crianças na construção de
conteúdos midiáticos pode fazer uma diferença impactante nesse processo. É prudente reforçar que, para a
validade da discussão e o incentivo à cidadania, deve-se no minimo permitir o acesso aos espaços e ao
conteúdo, a informação amplamente divulgada e acessível a todas as pessoas é fundamental para esse
desenvolvimento. Isso sem contar que o público infantil apresenta menor resistência ao manuseio das novas
mídias e tecnologias, portanto para que a construção da inteligência coletiva traga o maior ganho possível
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para todos é importante, antes de qualquer coisa, atentar para o processo de como isso deve ser feito.
Buckingham alerta :
[...] isso envolverá educação para estimulá-la a refletir sobre suas relações com a cultura de consumo e para
entender os princípios econômicos com os quais esta opera [...] Em segundo lugar um forte
reconhecimento legal dos direitos da criança como consumidoras: direitos a informação e orientação
precisas, a um tratamento justo e a responsabilização pública das empresas [...] Esse reconhecimento
deveria ser entendido como uma forma de ‘capacitação’ das crianças que as habilitasse a assumir
autoridade e controle maiores em suas relações com as empresas comerciais. (2007, pp.240)
O exercício da cidadania entre os consumidores poderá ser mais rápido e eficaz se contar com a força da
distribuição e o incentivo das mídias, logo, o quanto antes os consumidores espectadores forem convocados e
aceitarem participar, maior a chance de bons resultados, pois os pequenos consumidores de hoje poderão
aprender a ser cidadãos mais atuantes amanhã. O mesmo mecanismo que as indústrias produtoras de bens
usam através do planejamento de marketing deve ser também utilizado para o incentivo à prática cidadã, pois
a cidadania, além de participação nos direitos humanos, significa fazer-se presente e atuante nos processos e
políticas que impactam os indivíduos e os grupos. “A cidadania já não se constitui apenas em relação a
movimentos sociais locais, mas também em processos de comunicação de massa.” (Canclini, 2006, pp.110).
Editora Abril e “as revistas” Recreio
A Editora Abril iniciou suas operações no Brasil com o lançamento, em 12 de julho de 1950, de um título
destinado ao público infantil, a revista em quadrinhos O Pato Donald. Com esse lançamento, Victor Civita
repetiu a trajetória que seu irmão construiu na Argentina. O título foi o primeiro de uma extensa linha de
quadrinhos de sucesso, cuja receita, subsidiou outros projetos dentro da editora. A história da Abril mostra
uma preocupação e cuidado com a infância e, por isso, sua trajetória também pode ser contada pelos títulos
destinados ao público infantil. Essa particularidade pode levar a duas interpretações: a primeira delas é a
adequação ao desejo do fundador a outra é o lucro, garantindo desde cedo a fidelidade do público. Além dos
quadrinhos Disney, a Editora Abril também lançou outros produtos para crianças com base nessa licença:
livros de atividades, coleções de contos clássicos e até álbuns de figurinhas. Mas não foi só com
personagens Disney que se desenhou a história das publicações infantis na editora, dentre eles em julho de
1969, foi lançada a revista Recreio.
A “revista brinquedo” ficou e circulação entre julho de 1969 e maio de 1982, foi um dos grandes sucessos
editoriais destinados ao público infantil e registrou grandes números de tiragem, levando, ao consumidor
infantil, histórias de grandes autores brasileiros, curiosidades folclóricas, científicas e de interesse geral,
sempre acompanhadas de um brinquedo, fosse no encarte para ser montado ou mesmo um brinde. Foram
453 edições projetadas para o leitor infantil e também com propósito de ser a primeira leitura da criança,
aproveitando uma fase na qual a escolaridade estava em crescimento (Pereira, 2009). Para isso fazia uso de
histórias e personagens nacionais, tratava de fatos ocorridos no Brasil e também exercitava habilidades
motoras importantes para as etapas do desenvolvimento infantil (Piaget, 1993). A cada edição, as histórias
tratavam de datas significativas no calendário nacional ou traziam regionalismos típicos das diferentes partes
do país. O conteúdo era elaborado para também incentivar a relação e proximidade entre pais e filhos, as
mães começariam lendo para seus filhos e montando brinquedos em conjunto com eles; depois, os pequenos
continuariam sozinhos.
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Figura 1 - Capas da primeira e ultima edições de Recreio (número 1 e 453)
A primeira fase da revista durou 12 anos, de julho de 1969 a maio de 1982. Depois de duas décadas sem
grandes movimentações no mercado brasileiro de revistas infantis a Abril, que no ano 2000 completaria 50
anos da sua fundação, não era a líder nesse segmento5; uma ironia, uma vez que sua história fora iniciada
com um produto destinado às crianças. Nenhuma publicação além de Turma da Mônica teve êxito,
tampouco longevidade, do ponto de vista do mercado principalmente por ausência de um plano editorial bem
definido (Scalzo, 2009) e também pela complexidade das transformações do momento que afetaram grande
parte das industrias culturais (Borelli, 2000). O censo de 2000 reforçou o tamanho da oportunidade, havia
quase 20 milhões de crianças entre 5 e 10 anos6 no Brasil. O superintendente da Abril recebeu a atribuição
de se tornar líder em vendas de exemplares no segmento infantil, com uma marca própria da editora que a
consolidasse na liderança do mercado de revistas.
Em março de 2000 foi lançada a nova Recreio com o objetivo “produzir e difundir conteúdo de
entretenimento e informação para crianças, contribuindo para sua educação e formação”7, ou seja levar
informações para as crianças entre 7 e 11 anos, de maneira que eles compreendessem o conteúdo e ainda se
divertissem. O projeto pretendia ser educativo e divertido sem ser só didático, pois a Editora Abril estava
lançando um produto de entretenimento, e não queria correr o risco de ser considerado chato pela criança ou
de entrar no território da escola. Para isso, foi desenvolvido um modelo chamado sacola: toda semana tinha
a revista um brinquedo e ainda um material que ia ajudar na pesquisa para a escola, muitas fontes de
informação à disposição desse leitor: o complexo Recreio . Não é só uma revista, como o material de
apresentação utilizado pela área comercial descreve: “Personagem-brinquedo, site, fascículo. Recreio é muito
mais que uma revista. É a melhor opção [...] para envolver a criançada com entretenimento e informação”8.
Todas as partes se complementam e, partindo da revista impressa, mantêm uma relação entre si.
Figura 2 - O complexo Recreio
Os dois projetos editoriais de Recreio se propõem a levar informação de qualidade às crianças de maneira
divertida. Ambos buscaram adequação aos interesses de seu público no momento que estavam no mercado,
dessa forma endereçar a revista e seu conteúdo ao leitor. Fica explícita a semelhança dos produtos e o
convite ao consumo quando comparados os objetivos dos dois projetos, afinal o propósito de levar conteúdo
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relevante e de formação às crianças é bem visto pelos pais e educadores. Os projetos têm histórias, atividades
e brinquedos interativos; fórmula de sucesso junto às crianças comprovada pelas tiragens que chegaram em
ambos casos a 250 mil exemplares por edição.
Adentrando um pouco mais a análise comparativa dos produtos, é possível identificar pontos divergentes. As
capas, por exemplo, que significam muito para uma revista por conter a sintese convidativa da edição, com
imagens chamativas e destaque para os assuntos que podem atrair o leitor para a leitura completa da revista.
É o principal convite feito ao leitor frequente e ao ocasional também. A composição das capas das duas
versões da Recreio é bem diferente como pode ser identificado na comparação das figuras 3 e 4.
Figura 3 - 4 capas da Recreio Revista Brinquedo.
Figura 4 - 4 capas da Revista Recreio atual.
O primeiro fator identificado é a ausência de uma regra, ou um padrão na conposição das capas na versão
mais antiga da revista, em uma edição o foco total da capa fica para a história central e em outra o destaque
vai para o brinquedo. O mesmo não acontece com a Recreio atual, são muitas chamadas e parecem respeitar
uma organização esquemática na qual tem delimitados pelo menos 5 espaços de destaque na capa: imagem
central principal, cabeçalho, rodapé e outras duas chamadas.
É possível identificar, pela observação das capas, o tipo de conteúdo que as duas propostas trabalham. A
Recreio antiga, conforme sua proposta descreve, trabalhava para difundir entre as crianças temas,
personagens e datas nacionais de maneira a contribuir para a construção de um repertório nacional. Os temas
reais eram abordados fazendo uso de personagens infantis buscando gerar aderência a realidade das crianças
e então fazer sentido para elas, como o caso da edição 40 de 1970, foi dedicada ao aniversário de 10 anos de
Brasilia contada como uma viagem da Vovó Candinha e seus netos para a capital do país para prestigiar o
aniversário, no decorrer da história alguns aspectos da cidade como o arquiteto que a projetou, sua
localização e outros detalhes foram descritos.
A versão atual da revista tem como temática central de seu plano editorial divulgar lançamentos de produtos
dirigidos ao público infantil. Cinema, televisão e games são os principais assuntos, sempre abordados com
alguma antecedência, detalhes dos produtos que serão lançados, o enredo comentado e a descrição dos
principais personagens, da mesma maneira como acontece nas seções cultura ou televisão dos jornais ou
revistas adultas. A Recreio, por sua vez, faz deles o principal assunto de suas edições, o que pode ser
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questionado para um título que tem o objetivo de “despertar o interesse pelo conhecimento” em seu público.
As outras seções da revista abordam conteúdos diferentes; por vezes buscam, no lançamento destacado na
capa, um assunto que possa, ao mesmo tempo, ser explorado de maneira divertida e informar o seu leitor.
Este é o caso da edição 523 de 2010, com destaque para o filme Como treinar o seu dragão, que na seção
Túnel do tempo aborda a vida dos vikings e faz uma comparação entre o que a história do filme narra sobre
esse estilo de vida e o que a história real traz. Essa matéria aponta diferenças existentes entre a forma como
um produto de ficção descreve um povo e o que ele é na vida real, não com o intuito de desmentir ou apontar
erros, mas, sim, de informar o leitor para que ele saiba que sempre há diferenças entre a ficção e a realidade e
de despertar o interesse para que ele investigue mais o assunto. Esse tema também é abordado na edição 528
de 2010, sua capa traz o fenomeno de audiência entre as crianças Ben 10 na versão animação e live action na
qual o personagem é interpretado por um ator. Essa edição chama a atenção para as diferenças entre o
animação, filmes e realidade.
Porém, mesmo com abordagens e temas interessantes o destaque da capa, na versãoa tual da revista, sempre
fica para o produto cultural que está sendo lançado, como se a revista não confiasse na atratividade do seu
conteúdo para o publico infantil. Esses padrões são mantidos ao longo dos exemplares e com isso é possível
identificar a ausência de espaço para os leitores têm na construção dos conteúdos. A Recreio da década de
70 se propôs a estar próxima das crianças levando informações que as interessavam e também as trazendo
para o universo da revista. Isso não acontece com a revista atual, embora os leitores enviem perguntas e
desenhos não fica clara a abertura que é dada para os mesmos participarem. Para ilustrar essa diferença a
comparação das edições de aniversário da revista são bem ricas.
Figura 5 - Edição 390, aniversário de 10 anos da revista com festa na redação.
Na Edição 390 de 1979 a capa tem o destaque para os 10 anos da revista com duas crianças lendo a edição
número 1, o conteúdo trouxe a cobertura da festa que foi feita na redação e o texto convida o leitor a se
colocar na história da revista com perguntas do tipo: “Você já tinha nascido quando Recreio nasceu?”. Além
disso a equipe que faz a revista também aparece na matéria divulgando ao leitor a função de cada um, em
linha com a proposta de desmistificar como as coisas são feitas para que as crianças possam se interessar
pelo processo e saibam o que acontece nos bastidores da revista. O mesmo foi feito com diversos temas
como história em quadrinhos, cinema, jornal, sempre informando os leitores o funcionamento dos processos.
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Figura 6 - Edição 523, 10 anos da revista atual: pequena menção na seção Era uma vez.
A Edição 523 de 2010 também foi comemorativa embora não haja menção na capa, os destaques seguem o
mesmo padrão das outras edições, privilegiando o lançamento no espaço principal, no cabeçalho um
lançamento no mundo dos games e outros dois conteúdos. No conteúdo da edição somente uma menção a
respeito de aniversários e festa suspresa sem nenhum destaque para a história da revista ou para a relação
com o leitor durante esse tempo.
A diferença do relacionamento da equipe editorial com os seus leitores é percebida além das capa, é possivel
notar que a valorização da participação das crianças na construção conjunta do conteúdo das duas revistas. A
Recreio atual destaca em toda edição pelo menos dois convites diretos aos leitores para participar do
conteúdo da revista, na página final e na seção Curiosidades, como pode ser visto na figura 7. Além desses
convites para participar da revista a equipe também sugere um contato de relacionamento “Escreva para a
gente!”, esse por sua vez também está disponível por telefone, e-mail, site e correio regular. Não há uma
regra específica para participar, os leitores podem escrever o que quiserem, também não fica claro qual será a
utilização do material.
Figura 7 - Convites ao leitor feitos em diversas seções da revista: piadas, curiosidades, correio e coleção
A Recreio, revista brinquedo, apresenta evidente pré-disposição em construir o seu conteúdo em conjunto
com os leitores, ao longo dos 12 anos de existência houve diversas iniciativas que comprovam isso. Desde o
Correio dos amiguinho de Recreio até as mesas redondas, pesquisas de opinião, jornalzinhos, concursos e em
alguns casos as crianças mandavam suas histórias e entrevistas para a revista, os quais eram publicados. Essa
participação era estimulada em todas as edições com instruções objetivas a respeito do tipo de conteúdo que
os leitores deveriam enviar e até sugestões de como eles poderiam buscar essas informações, conforme
ilustra a figura 8 da edição 209 de 1973.
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Figura 8 - Edição 209 - "Mande para nós a sua colaboração, publicaremos as melhores."
Um tipo de convite que as duas versões da revista apresenta é o de chamar a atenção dos leitores para
eventos e temas que estavam em pauta no momento desde cursos e exposições em locais publicos até temas
de segurança e saúde pública. O que difere, mais uma vez, é a maneira como os temas são abordados a atual
é mais informativa chamando a atenção das crianças para um tema que esteja em alta no momento e a forma
que impacta a rotina delas, como é o caso da campanha de vacinação contra o vírus H1N1, edição 528 de
2010, a matéria explica o que é a campanha, como isso impacta o leitor e ainda qual a atitude que ele deve
ter. A Recreio antiga, por sua vez, envolve as crianças e retrata a participação delas nos acontecimentos, um
exemplo é a reportagem da edição 418 de 1981 cujo conteúdo é a cobertura de um curso de artes feito na
Pinacoteca de São Paulo com depoimento dos participantes. Os dois casos estão representados nas figuras 9 e
10 abaixo.
Figura 9 - Edição 418 - Alunos dos laboratórios de artes plásticas da Pinacoteca de SP.
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Figura 10 - Edição 528 - Vacina contra o vírus H1N1: linguagem leve e informativa.
Reflexões obtidas
Numa época na qual a cultura participativa é uma lei, pois consumidores participam até mesmo sem serem
convidados, há a tendência a crer que o público em geral têm uma postura mais ativa do que a geração de
seus pais, como é o caso das versões da revista Recreio analisadas neste estudo. Isso por conta do poder de
colaboração mútua entre pessoas que nem mesmo se conhecem e se unem em torno de uma tarefa ou
objetivo na internet. As hipóteses iniciais presumiam que o leitor atual apresenta comportamento
participativo maior que a geração de leitores da revista anterior. Afinal, o engajamento virtual é, quase sem
perceber, um exercício de cidadania que pode impactar um grupo muito maior de pessoas.
Os resultados obtidos apontam para uma realidade atual um pouco menos engajada que a geração dos seus
pais, pois ainda com diversos espaços para atuação nota-se, no caso das revistas estudadas, menos iniciativa
e participação efetivamente. A cultura participativa e a inteligência coletiva têm sido temas entre os mais
disctutidos mundialmente na atualidade. As crianças, porém, ainda não foram envolvidas nessa tematica
nem enquanto objeto da discusão muito menos enquanto sujeitos participantes dela. Essa é a primeira grande
oportunidade encontrada nesse estudo, uma vez que as crianças são seres colaborativos por principio ao
compartilhar brinquedos e idéias durante suas brincadeiras. Entretanto, esse tema da midia digital e o novo
universo que ela abre diante das pessoas ainda é uma incognita para a atuação dos grandes especialistas,
sendo tratada como um aprendizado conforme o trabalho evolui (Jenkins, 2009), uma outra oportunidade de
envolvimento das crianças, já que a percepção mais concreta do mundo e o descompromisso em sempre
agradar permite uma visão de mundo diferente dos adultos e sua facilidade no trato com a tecnologia, talvez
seja um exercicio interessante para os pesquisadores dessa área.
Esta pesquisa se propôs a olhar o espaço destinado a atuação das crianças e o estimulo feito por um bem
cultural desenvolvido para elas em dois momentos diferentes, consequentemente gerações diferentes, na
década de 1970 e no início do novo milênio. Foi possível perceber que mesmo a revista Recreio, um produto
dirigido a crianças e que pretende ser a revista de escolha desse público, apresenta uma visão adultocêntrica,
principalmente por querer ser especialista e agradar ao leitor de qualquer maneira. Como algumas vezes
parece não se sentir competente o suficiente para tal, suas capas e o convite principal que faz ao leitor estão
sempre baseados em produtos de outras mídias dirigidos a ele: lançamentos da televisão, do cinema ou de
games. Mesmo com tantos canais para contato com o leitor, a Recreio acaba não explorando todo o
potencial existente para atrair a participação deste, como a Editora mostrou fazer bem na primeira versão da
revista com as cartas dos leitores, e assim perde a chance de ser uma referência entre as mídias, criando essa
abertura e possibilitando o exercício do direito ativo das crianças discutido por Buckingham.
Se o grande convite a participação e interação com o leitor está na capa das revistas, a Recreio parece ter
uma grande oportunidade, seu plano editorial propõe que sua missão é “Produzir e difundir conteúdo de
entretenimento e informação para crianças, contribuindo para sua educação e formação”. Considerando o
desenvolvimento e a atuação participativa do público nas novas mídias e a receptividade natural das crianças
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as tecnologias, a revista pode e deve estimular a participação do público infantil na construção de conteúdo e
o engajamento em projetos que podem beneficiar o coletivo. Iniciativas desse cunho no lugar de destacar
somente os lançamentos da televisão, do cinema ou dos games, contribuirão para despertar, nas crianças, a
curiosidade e o gosto pelo conhecimento. Esse caso reforça a importância do trabalho da indústria cultural
em estimular o engajamento das crianças na participação da produção de conteúdo, isso certamente trará à
sociedade ganhos qualitativos nos produtos midiáticos.
A contribuição das crianças, sem dúvida pode ir além de conteudos de melhor qualidade nos produtos
midiáticos, conforme apontado anteriormente sua visão de mundo de uma perspectiva diferente dos adultos
pode contribuir para o estabelecimento de uma agenda para o desenvolvimento de protocolos de educação
midiática envolvendo produtores e cidadãos. É importante, portanto, iniciar o movimento de envolver as
crianças e discussões da atualidade, de forma a concientizá-las do impacto dos atos dos individuais para o
todo, um dos principios básicos da cidadania (Machado, 1997). Além,é claro, do desenvolvimento da
postura critica diante das condições e conteúdos diversos que são oferecidos a todo momento. Não parece
necessário restringir ou mesmo banir a atuação da industria no mercado infantil, ou a publicidade destinada
aos pequenos consumidores, ou ainda limitar a transmissão dos produtos culturais diante da classificação
etária do conteudo disponível quando há uma educação critica orientando a postura e a conciencia dos
cidadãos. Porém, é importante que exista essa educação, necessidade cada dia mais urgente, uma vez que a
midia digital tem se tornado parceiro constante das pessoas. As crianças, por sua baixa resistencia ao
contato com a tecnologia, podem e devem ser utilizadas como disseminadoras dessa educação, para isso faz-
se impressindível que passemos a incluí-las inicialmente, ao menos como objeto nessa discussão.
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Referências 1Para mais informações sobre a ANDI ver: http://www.andi.org.br/ e http://www.redeandibrasil.org.br/quem-somos 2 Antropólogo Argentino e pesquisador da universidad Nacional Autonoma de México, onde dirige o programa de
estudos sobre Cultura. A afirmação “O consumo serve para pensar” é explicada na obra Consumidores e Cidadãos
(2006:59). 3Jesús Martin-Barbero, em Aula magna, 17 de agosto de 2009, na instalação do Fórum Permanente dos programas de
pós-graduação em comunicação do Estado de São Paulo, publicada no site da FAPESP. Disponível em:
http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=3933&bd=1&pg=1 4Scalzo (2009) comenta que para o ponto de vista do mercado, trabalha-se para que o leitor faça uma leitura de capa a
capa da revista, ou seja, que haja interação com todo o conteudo da revista desde as capas as matérias. 5Para mais detalhes sobre a história das revistas infantis no período ver: Correia, 2010; detalhes sobre a história da
editora e de seu fundador ver: Mercadante, 1987 e Pereira, 2009. 6 IBGE, censo 2000, contagem da população.
7 Objetivo da revista Recreio divulgado como “missão” no material de publicidade do núcleo infantil da Editora Abril.
8 Argumento utilizado pela publicidade comercial para a venda de espaços na revista.