o chapéu do bruxo: ciência do-it-yourself como...

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Costa. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 5(gt17):1-16 O chapéu do bruxo: ciência do-it-yourself como controvérsia sociotécnica GT 17 – Periferalidade e subalternidade na produção do conhecimento Clarissa Reche Nunes da Costa

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Costa. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 5(gt17):1-16

O chapéu do bruxo: ciência do-it-yourself comocontrovérsia sociotécnica

GT 17 – Periferalidade e subalternidade na produção do conhecimento

Clarissa Reche Nunes da Costa

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"Apesar de ter se tornado uma das cientistas mais influentes do país, suas

condições de trabalho na UFRJ não condiziam com sua relevância. Um de

seus últimos postos de trabalho foi uma escrivaninha que cabia atrás de

um fichário vertical, ocupando 1 metro quadrado. Em maio de 2016, a

cientista resolveu aceitar uma proposta da Universidade Vanderbilt, na

cidade norte-americana de Nashville. Na ocasião, ela comparou sua saída

do Brasil com a mudança de Harry Potter do quartinho embaixo da escada

para uma “Hogwarts de possibilidades”.

Um ano depois, como vai a vida em hogwarts?

Hogwarts é um barato [risos]. No Brasil, eu era contadora, técnica de

laboratório, qualquer coisa que precisasse. Já aqui eu recebo broncas bem-

humoradas do pessoal da administração se faço essas coisas. Também é

um ambiente encorajador. O objetivo aqui é ajudar todos a fazer o melhor

que podem. Notei que uma das minhas fontes de paz é não falar mais dos

problemas que enfrentei. Detesto, e vou passar a evitar falar disso nos

congressos, com os amigos, porque falar do pesadelo que era tentar fazer

ciência no Brasil me faz fisicamente mal. Tenho pena — no melhor dos

sentidos — dos colegas brasileiros, porque entendo o que eles passam e

sei como a vida deles poderia ser bem diferente."

Entrevista cedida pela neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel

para a revista Galileu em julho de 2017.1

Em meio a sorrisos, ela foi colocada cuidadosamente em cima da mesa e logo 5 ou 6

pessoas se amontoaram para vê-la. Ela me foi apresentada como "nosso projeto que deu

realmente certo": uma caixinha de mdf e acrílico com um chapéu de bruxo gravado na

tampa. Era a "Harry Topper", uma mini centrífuga de bancada construída do zero por jovens

pesquisadores e pesquisadoras em uma colaboração entre o Clube de Biologia Sintética e o

Clube do Hardware Livre, ambos sediados na Universidade de São Paulo, apesar de

agregarem estudantes e pessoas interessadas de fora desta instituição. Tal equipamento, que

comprado no mercado custa cerca de 1500 dólares, é essencial para a realização de

experimentos em biologia molecular e foi construído pelos jovens na ocasião da participação

1 Disponível em: <http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2017/07/falar-do-pesadelo-que-era-tentar-fazer-ciencia-no-brasil-me-faz-mal.html>

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destes na competição internacional de engenharia genética Igem em 2016. O custo total da

Harry Topper não chegou a 90 dólares.

No site do time que participou da competição há uma breve explicação sobre o nome

escolhido para a mini centrífuga. A referência é a mesma usada por Herculano-Houzel no

trecho da entrevista supracitada: o bruxo Harry Potter. Os motivos que levaram os jovens a

construir eles mesmos o equipamento se aproxima das queixas da neurocientista, ou seja, o

sucateamento e falta de verba e apoio que os cientistas brasileiros enfrentam no realizar de

seus trabalhos. Porém o caminho trilhado para que seja possível tal realizar foi bem diferente

nos dois casos: a cientista famosa decidiu buscar Hogwarts e ao fazer isso, ao aceitar o

convite da universidade estrangeira, resolveu mandar um recado para a comunidade

científica brasileira; já os jovens pesquisadores decidiram eles mesmos construírem o próprio

bruxo e ao chegarem no MIT, universidade que hospedeu a competição, decidiram mandar

um recado para "Hogwarts". No site da equipe, antes de apresentar com detalhes e manual

técnico o projeto da mini centrífuga, o time fala em termos de privilégios:

"Lab Hardware: Privilege for Few

For several brazilian laboratories and researchers it's very difficult to afford good Lab

equipment because they are very expensive. Moreover, when an acquired

equipment breaks, it can not be quickly or easily repaired without the company's

assistance. Lack of autonomy often yield a sense of inferiority that strongly feed and

make us whirl around a vicious loop of dependence. Rather than be a mutual

relationship between academy and companies, these last ones not only charge high

prices for equipment repair, but they also delay delivering support."2

O objetivo deste ensaio é testar as potências e limitações de observar a mini

centrifuga como coração de uma “controvérsia sóciotécnica”, ou seja, exercitar em um

rascunho de mapeamento um olhar atento para este objeto tendo em mente uma sociologia

das associações. Para tanto, em primeiro lugar explorarei de forma breve alguns conceitos

presentes em tal chave teórica, cujo maior nome é o sociólogo francês Bruno Latour. Depois,

procurarei descrever o cosmos acionado pela mini centrífuga e os arranjos que foram

2 Disponível em: <http://2016.igem.org/Team:USP_UNIFESP-Brazil/Hardware>

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necessários para que tal equipamento viesse a existir, arranjos estes que, de forma provisória

e instável, provocam fricções não somente nos elementos que compuseram tal empreitada -

seu cosmos -, mas também nas próprias noções do que é, ou melhor, do que pode vir a ser,

o fazer científico - sua cosmopolítica.

Uma ciência do social a partir da incerteza (inclusive do que é o próprio social)

No livro "Reagregando o social", Bruno Latour escreve um manifesto-metodológico

em favor de uma outra sociologia, uma sociologia que dê conta da complexidade. Contra

aquilo que chamou de "sociologia do social", Latour propõe uma "sociologia das

associações", por vezes também chamada de sociologia "da inovação" ou "da tradução",

carregando assim nos múltiplos nomes a intenção de multiplicidade à qual essa abordagem

(ou filosofia?) se propõe. Latour segue seu projeto de crítica iniciado em seu livro "Jamais

fomos modernos" e tenta desmanchar o que seria uma sociologia modernizante,

despurificando a noção de social como área autônoma da vida cujo trabalho crítico seria

capaz de analisar e explicar.

Latour reconhece os ganhos históricos da sociologia Durkheimiana, a "sociologia do

social" onde é possível delimitar, por exemplo, um fato social, um grupo social, ou a

dimensão social de outras àreas como a economia. Porém tal empreitada já não daria conta

da própria função da sociologia como "ciência da vida em comum" (LATOUR, 2012, p. 18). Já

não mais nos cabe ignorar que vida em comum significa muito mais do que vida entre

humanos, este pequeno círculo que é a preocupação da sociologia do social. Para Latour:

“A cada instância, precisamos reformular nossas concepções daquilo que estava

associado, pois a definição anterior se tornou praticamente irrelevante. Já não

sabemos muito bem o que o termo “nós” significa; é como se estivéssemos atados

por “laços” que já não lembram em nada os vínculos sociais.” (2002, p. 23)

Estamos ligados pela atmosfera, pela vacas criadas extensivamente, pelo

aquecimento global, pelos acordos internacionais firmados (ou não) pelos Estados, pelas

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redes sociais na internet, pelo tutorial no youtube. Expodem os atores envolvidos na nossa

vida em comum, e as associações com tais atores se tornam fluidas, parciais. Nesta abertura

do social se dissolve inclusive o que seria sua unidade mínima, o indivíduo. Latour busca em

Gabriel Tarde um apoio nesta virada para a complexidade. Para Tarde, cada salto na

dimensão do olhar, seja para cima, seja para baixo, trás um mundo novo criado a partir de

novas relações. Desta forma, não há como basear a sociologia em um "indivíduo social",

tratado como unidade, pois “esses elementos últimos aos quais chega toda ciência, o

indivíduo social, a célula vida, o átomo químico, só são os últimos da perspectiva de sua

ciência particular” (2007, p. 57).

Com um mundo em comum complexo, a tarefa metodológica da ciência deste mundo

parece quase impossível. Latour lança mão de um outro sinônimo para sua proposta,

chamando-a de teoria-ator-rede, e aqui nomeia o caminho metodológico que propõe

àquelas pessoas que pretendem se aventurar pela sociologia das associações-inovação-

tradução. O sociólogo e ex aluno de Latour, Tommaso Venturini, explica tais pressupostos e

observação da de fenômenos sociais:

"To understand how social phenomena are built it is not enough to observe the actors

alone nor is it enough to observe social networks once they are stabilized. What

should be observed are the actors-networks—that is to say, the fleeting configurations

where actors are renegotiating the ties of old networks and the emergence of new

networks is redefining the identity of actors." (2009, p. 264)

Venturini dedica-se a ser porta voz de uma saída para observar a vida em comum,

trazendo a proposta de mapeamento, ou cartografia, de controvérsias sociotécnicas como

um caminho possível para navegação na realidade dentro da chave da teoria-ator-rede. A

ideia central é a de "apenas" seguir os atores nas redes que emergem neste processo, tarefa

nada fácil.

A noção de controvérsia sociotécnica é o centro condutor para começar a olhar as

incertezas. Para Venturini, há controvérsia quando os atores envolvidos concordam que há

um desacordo e não podem mais viver ignorando um ao outro (2009, p. 261). Isso nos ajuda

a entender o porquê de Latour nomear o que faz de "sociologia da inovação", uma vez que

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só há controvérsia enquanto houver instabilidade, ou seja, uma vez que os atores envolvidos

apenas concordam, a controvérsia está encerrada.

Venturini aprofunda o entendimento sobre "controvérsia" esquematizado cinco

pontos: 1) controvérsias envolvem todo tipo de atores, ou seja, não apenas humanos; 2)

controvérsias exibem o social na sua forma mais dinâmica, ou seja, através de alianças e

negociações entre os diferentes tipos de atores; 3) controvérsias são resistentes à reduções,

ou seja, são complexas; 4) controvérsias são debatidas, ou seja, atores se posicionam

publicamente, se colocando em desacordo; 5) controvérsias são conflitos, ou seja, tal

desacordo pode ser desenrolado de forma democŕatica, mas muitas vezes a controvérsia

está envolta em situações de força e violência. (VENTURINI, 2009, p. 260).

A segunda parte do termo "controvérsia sociotécnica" nos ajuda a entender melhor o

porquê de "sociologia da tradução". Venturini nos conta o que é uma boa controvérsia a se

mapear: 1) é quente, 2) é atual, 3) é restrita (um recorte); é pública; 5) é científica/técnica

(2009, p. 262). Porque é científica ou tećnica? Dada a impossibilidade de se observar o social

em si mesmo, é necessário um esforço de tradução sociotécnica, ou seja, um esforço de

tradução entre agentes heterogêneos que juntos constituem relações.

Para Venturini, devemos mergulhar nas controvérsias, "mergulhar no magma":

navegar por algo quente, nem líquido nem sólido, moldável e que tem diante de si um

campo de possibilidades de vir-a-ser complexo. Proponho que comecemos a molhar o pé no

magma, para quem sabe nos dissolvermos nos canais por onde ele corre.

"Do It Yourself" x "Doing lt Together"

"Você está perdendo tempo". "Pra que inventar a roda?". Estas foram os comentários

que João ouviu dos professores que formavam a banca avaliadora na defesa de seu

doutorado em farmácia bioquímica sobre a construção e utilização da mini centrífuga em sua

pesquisa. João, que faz parte do Clube de Biologia Sintética, participou tanto do projeto da

Harry Topper quando do time que participou do IGem, sendo o tema da pesquisa de

doutorado dele uma das bases para o projeto levado à competição, a saber, síntese de

proteína por microalga.

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A escala de tempo foi realmente uma questão chave para a mini centrífuga. O projeto

todo demorou cerca de dois anos e meio para ser levado à cabo, passando por diversas

mãos. Não poderia ser diferente, afinal o projeto é um projeto "DIY", sigla para "do it

yourself", ou faça você mesmo em inglês. É muito difícil falar deste equipamento sem

localizá-lo dentro deste movimento, que ganhou força graças à potência do uso da internet

para a criação de comunidades. Neste ponto é que proponho olhar para a Harry Topper

como uma controvérsia sociotécnica: a existência de um hardware livre3 DIY para laboratório

só é possível pois complexas alianças entre diversos atores emergem.

Vamos começar observando a mini centrífuga em si. Este equipamento serve para a

separação de amostras, que são colocadas em tubos, e os tubos colocados dentro da

centrífuga. Ao girar em alta rotação, a parte sólida se separa da parte líquida. A estrutura de

nossa mini centrífuga DIY é feita em grande parte de mdf, com alguns detalhes em acrílico,

ambos cortados em uma máquina de corte à laser. O receptáculo dos tubos é feito de

plástico e foi impresso em uma impressora 3D. Dos componentes eletrônicos, o mais

importante sem dúvida é a placa Arduino4, uma plataforma de prototipagem eletrônica.

Todos os arquivos para corte na laser, impressão na 3D ou códigos de programação

necessários para construção da Harry Topper estão disponíveis online, junto com um manual

que mostra a passo-a-passo como construí-la5.

Máquina de corte à laser, impressora 3D,placa Arduíno. Todos esses equipamentos

podem ser colocados dentro de uma categoria recente e que vem tomando cada vez mais

espaço nos debates públicos contemporâneos sobre tecnologia e seu uso: são "ferramentas

de fabricação digital", cujo principal defensor é o que vem sendo chamado de "movimento

maker". Tais ferramentas são de baixo custo e permitem a realização de tarefas que até por

volta de 2010 eram muito mais custosas e demoradas. Hoje a cidade de São Paulo conta com

3 Um hardware livre, assim como um software livre, segue princípios não-proprietários, ou seja, é de uso livre e os projetos para construção são totalmente abertos, podendo ser facilmente encontrados na internet.4 O Arduino é em si um hardware livre.5 Disponivel em: <http://2016.igem.org/wiki/images/d/de/T--USP_UNIFESP-Brazil--Seletora_centrifuge_manual.pdf>

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12 laboratórios de fabricação digital, onde tais máquinas podem ser acessadas

gratuitamente, e cursos como de programação em Arduíno são oferecidos também.

A bandeira da democratização e abertura é levantada por aqueles que se preocupam

com um livre acesso seja à informação, sejam aos meios de produção. Tanto o movimento

maker quanto o movimento diy encontram aplicações em várias áreas, como educação,

artes, design e ciência, obviamente com muitas intersecções entre elas. Seguir a mini

centrífuga nos leva tanto às ferramentas de fabricação digital quanto às políticas públicas

que possibilitam sua disseminação em terras brasileiras, sendo necessário um maior

mergulho neste canal pelo qual nossa controvérsia corre. Porém, como avisado no começo

do ensaio, este é um esboço e tal aprofundamento deverá ser feito nas próximas caminhadas

desta pesquisa.

Voltando à Harry Topper: durante os dois anos e meio que foram necessários para o

seu desenvolvimento, estiveram envolvidos neste projeto tanto participantes do Clube de

Biologia Sintética como do Clube de Hardware Livre. Ambos os clubes possuem muitas

características em comum, sendo sediados na Universidade de São Paulo mas de caráter

formal totalmente desvinculado da instituição. Ambos são auto-organizados e auto-geridos

por pessoas interessadas, em grande parte alunos e alunas da graduação ou pós-graduação

da USP, mas também pessoas de outras universidade, como a UNIFESP, ou interessadas nos

temas. Não há nenhuma apoio financeiro ou orientação de professores.

O Clube de Biologia Sintética surgiu a partir da vontade de um grupo de alunos de se

aprofundar nesta nova "fronteira" da ciência, a Biologia Sintética6. O grupo é muito

heterogêneo, sendo formado por jovens estudantes de áreas como Química, Física, Biologia,

Biomedicina, Arquitetura, Bioinformática e Ciências Sociais. Já o Clube de Hardware Livre fica

dentro no Instituto de Matemática da USP, sendo frequentado em grande parte por alunos

do curso de Ciência da Computação. A proximidade entre os dois clubes se deu muito a

partir do posicionamento político de ambos frente à um fazer científico mais democrático e

aberto.

6 Ramo da ciência que pretende trazer uma nova abordagem para a Engenharia Genética, criando padrões de linguagem e ferramentas mais universais para a criação de dispositivos biológicos, os "biobricks".

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A aliança feita entre os dois clubes para o desenvolvimento de um hardware livre

para laboratórios de biologia molecular é muito interessante para se pensar a própria

dinâmica da Biologia Sintética. Esta disciplina tem grande inspiração na história do

desenvolvimento da computação, tendo como a criação de linguagens em comum o seu

principal desafio. Para isso, é fundamental uma comunidade engajada em compartilhar

informação de forma aberta, não-proprietária, para que juntos consigam desenvolver

ferramentas que sejam usáveis e reprogramáveis por tal comunidade. Por isso, dentro da

Biologia Sintética o movimento DIY é fortíssimo, sendo que os principais "pontos de

encontro" e de troca são as competições internacionais (o próprio Igem e uma outra

chamada Biomod), uma lista de discussão online chamada DIYBio e a Biobrick Fundation, que

organiza e padroniza as partes biológicas desenvolvidas por esta comunidade. Este é um

outro canal que precisa ser explorado.

A nossa mini centrífuga pode, talvez, ser vista como um ponto nos laços emergentes

de comunidade em torno do desenvolvimento da Biologia Sintética. O projeto no qual a

Harry Topper foi inicialmente baseada é de origem holandesa: foi tornado público por um

biohackerspace7 chamado Waag Society, cujo projeto mais proeminente é a Biohacking

Academy. Este é um projeto de hardwares livres para laboratórios, sendo que a Waag

Society disponibiliza o projeto completo de todos os equipamentos necessários para se

construir um "laboratório de garagem". Ano passado, Pieter van Boheemen, biohacker da

Waag Society, publicou uma nota em seu facebook8 se posicionando contra uma crescente

apropriação do termo DIY nos discursos individualistas de pessoas engajadas com políticas

liberais:

"The DIY movement that started as a positive, social, eco-friendly ideology seems

to have (somehow) ended up with the same general narrative as nationalists. The

7 O termo "hacker" é muitas vezes associado com o do-it-yourself. Hackign é descrito como a ação de conhecerprofudamente o funcionamento de um sistema, seja físico ou digital, a ponto de quem conhece ser capaz demodificar o funcionamento de tal sistema. Muitas vezes a Biologia Sintética pode ser chamada de "biohacking"por "hackear" sistemas biológicos. Um biohackerspace é um laboratório de biologia molecular aberto aopúblico geral, com pesquisas também abertas8 Disponível em: <https://www.facebook.com/waagsociety/photos/a.161450827204275.42373.157855434230481/1613829815299695/?type=3&theater>

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DIY community must wake up and explicitly take a stand against this ongoing

hijack. To me, the term "Do It Yourself" equals self-sufficiency, 21st century skills,

access to tools and knowledge, local culture, craftsmanship, sustainability,

durability, artisan spirit, environmental awareness and ownership.

For example, "Do It Yourself" might as well mean "Do lt Without Us". In other

words: why should you help anyone else? They can take care of themselves,

right? If can build my own drinking water filtration system based on YouTube

videos and open source designs, surely someone in a developing country should

be able to do so too (...). My interest in the DIY movement started as an

appropriation strategy. A strategy for the public to claim a seat at the table of

technological development discussions and make sure that the agendas and

benefits of scientific progress result in equality. (...) it is the right moment to be

very explicit about the importance of "Doing lt Together" as well as the absolute

necessity of open collaboration and fair distribution of whatever knowledge or

skills are obtained."

Em tom de manifesto, van Boheemen nos trás apresenta ética pregada pelo

movimento DIY dentro da ciência. A preocupação com aćões que ajudem no combate à

desigualdade fica clara, assim como a afirmação da importância de trabalhar em comunidade

e de forma aberta como um caminho necessário para tanto. Dentro da chave da controvérsia

sociotécnica, é de muita relevância acompanhar como estas alianças e conexões tem um

potencial de provocar instabilidades na própria noção do que é e para que serve a ciência, ou

seja, de provocar reflexões e inovações em nossa própria cosmopolítica.

"Se ele acha que é perder tempo, então o que ele pensa que é ciência é bem diferente do

que eu penso"

Na ocasião em que fui apresentada à Harry Potter, questionei Bruno, graduando em

Ciência da Computação, integrante do Clube de Hardware Livre e um dos principais

desenvolvedores do projeto, o porquê da referência ao bruxo da literatura. A conversa que se

iniciou entre ele e os integrantes do Clube de Biologia Sintética que assistiam sua

apresentação sobre a mini centrifuga foi muito interessante. A resposta que me deram foi a

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de que eles próprios se sentiam um pouco bruxos, pois haviam descoberto qual "magia" era

necessária para fazer funcionar aquele equipamento, que antes era uma caixa preta. Otto,

um dos integrantes mais antigos do Clube de Biologia Sintética, me disse:

"É como uma volta ao passado. Antigamente bruxo e cientista era a mesma coisa.

Antigamente o cientista fazia seus próprios equipamentos, ele sabia de tudo que

acontecia alí, fazia até sua própria vidraria, conforme sua necessidade… parece que

até hoje tem um laboratório no Instituto de Física que faz isso, deve ser incrível!"

A questão da confiança no equipamento de mediação também foi apontada pelos

presentes: como confiar em algo que nós não sabemos como funciona? A construção do

equipamento trouxe uma óbvia apropriação de seu uso, uma desalienação deste ator, uma vez

que ao serem àqueles que construíram o equipamento, modificando-o e aprimorando-o para suas

necessidades, os próprios jovens são capazes de realizar a manutenção em caso de pane.

Quando questionei Bruno sobre o que ele achava da crítica que os professores

fizeram ao uso da mini centrifuga no doutorado de João, a resposta foi contundente: "se ele

acha que [construir a mini centrífuga] é perder tempo, então o que ele pensa que é ciência é

muito diferente do que eu penso". A ciência destes jovens parece ser uma ciência do

pertencimento. Retomando a fala do time sobre o porquê de se construir a mini centrífuga,

podemos pensar na potência imanente que uma maior autonomia tem para quebrar com o

que os jovens chamaram de "senso de inferioridade" que coloca quem faz ciência no Brasil

em "girando em torno de um círculo vicioso de dependência". Apesar da constatação da

situação periférica do fazer científico destes jovens ser bem próxima àquela que Suzana

Herculano-Houzel denuncia em sua entrevista, ou seja, de precárias condições materiais, um

ponto apontado por esta como negativo é positivado na mini centrífuga: o acúmulo de

função não é visto com maus olhos, mas sim como parte de uma ciência mais vagarosa,

menos alienada e quem sabe mais feliz.

Tommaso Venturini afirma que a cartografia de controvérsias tem uma forte posição

política: "not just changing the world, but giving others the chance to do so" (2009, p. 269). A

abordagem da teoria-ator-rede permite olhar para a complexidade da realidade que abriga

esta "reinvenção da roda" que é a construção da mini centrífuga por jovens pesquisadores e

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pesquisadoras no Brasil através de minha equivocada tradução. Como apontado no início do

ensaio, o trabalho para que este esboço seja um pouco mais do que isso ainda está sendo

trilhado, porém dificilmente será um dia acabado ou menos equivocado, afinal lido com a

realidade, e a realidade é o que resiste:

"La realidad es lo que resiste –escribió Roy Wagner en 1981–. ¿Resiste a qué

exactamente? Resiste a la conmensurabilidad, a la identidad y a la reducción a

una métrica estándar.En palabras de Eduardo Viveiros de Castro (2014) y su

antropología filosófica deleuziana, la asimetría y la inconmensurabilidad justifican

la aventura intelectual y política del Antropoceno. Aquí el investigador, el

investigado, la atmósfera y la etnografía son, muy al final, equivocación y

devenir." (TADDEI, Renzo e HIDALGO, Cecília, 2016, p. 29)

BIBLIOGRAFIA

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria-do- ator-rede.

Salvador/Bauru, Edufba/Edusc, 2012

TADDEI, Renzo e HIDALGO, Cecília. Antropología Posnormal. Cuadernos de Antropología

Social, 43 (2016): 21-32.

TARDE, Gabriel. 2007. Monadologia e sociologia e outros ensaios� (organização de

Eduardo Viana Vargas e tradução de Paulo Neves). São Paulo: Cosac Naify.

VENTURINI, Tommaso. Diving in Magma: How to Explore Controversies with

Actor-Network Theory. In: Public Understanding of Science. May 29, 2009.

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Anexo 1 - Fotos

Mini centrífuga "Harry Topper"

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Costa. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 5(gt17):1-∕ 16

Mini centrífuga "Harry Topper".

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Fotos da confecção da mini centrífuga. Fotos disponíveis em:

<http://hardwarelivreusp.org/2016/08/24/work_centrifuge/>

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