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O beijo e Santa: devoção e sociabilidade nas Minas do século XVIII Ms. Meynardo Rocha de Carvalho Universidade Federal do Rio de Janeiro No século XVIII mineiro era costume comum à véspera do dia de Santa Cruz, comemorado a cada três de maio, reunirem-se os membros das famílias mais devo- tas para enfeitar as suas cruzes. Rito que consistia em adornar, com flores e fitas, pequenas cruzes de madeira para serem afixadas geralmente na porta de entrada dos domicílios ou na parede da frente da casa. Segundo essa tradição , na mesma noite do dia dois para o dia três, Nossa Senhora passava beijando cada uma das cruzinhas enfeitadas e, dessa forma, dispensava as mercês necessárias a cada uma das zelosas famílias . Esse costume mineiro, ainda observado nos dias atuais, reflete o encontro de duas devoções fundamentais ao cotidiano colonial: a devoção à cruz e a devoção à Nossa Senhora. Ambas promovidas pelo Estado português como elementos de ho- mogeneização e identificação do Império e, ao mesmo tempo, vivenciadas pelos colonos de acordo com as possibilidades culturais fomentadas pela colonização. Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína (org.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV Editora, 005. p. 5. De uma maneira geral, refiro-me aqui ao capítulo : Tradição oral e História Oral: revendo algumas questões. De Julie Cruikshank. p. 49- 64. Para estudos elaborados sobre textos folclóricos dos séculos XVIII e XIX, citados pela autora, a tradição oral é identificada com esperanças nacionalistas de se reconstituir uma herança cultural perdida ou em processo de desaparecimento. Por outro lado, pôde servir de instrumento ao Estado para ampliar os controles tanto políticos, quanto administrativos. Vi- são da qual compartilho e que se encontrará mais bem desenvolvida pelo texto, no entanto, substituindo a tradição oral, que nos remete ao objeto, pela idéia de devoção, que dinamiza e dá vida ao processo em si. Segundo a tradição oral das Minas Gerais. Refiro-me nesse caso ao Bispado de Mariana, mais especificamente a região de Ouro Preto e Mariana, bem como São João Del Rei e Tira- dentes, onde a devoção à cruz enfeitada pode ser observada. Trata-se de uma pesquisa em sua fase inicial.

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O beijo e Santa: devoção e sociabilidade nas Minas do século XVIII

Ms. Meynardo Rocha de Carvalho� Universidade Federal do Rio de Janeiro

No século XVIII mineiro era costume comum à véspera do dia de Santa Cruz, comemorado a cada três de maio, reunirem-se os membros das famílias mais devo-tas para enfeitar as suas cruzes. Rito que consistia em adornar, com flores e fitas, pequenas cruzes de madeira para serem afixadas geralmente na porta de entrada dos domicílios ou na parede da frente da casa. Segundo essa tradição�, na mesma noite do dia dois para o dia três, Nossa Senhora passava beijando cada uma das cruzinhas enfeitadas e, dessa forma, dispensava as mercês necessárias a cada uma das zelosas famílias�.

Esse costume mineiro, ainda observado nos dias atuais, reflete o encontro de duas devoções fundamentais ao cotidiano colonial: a devoção à cruz e a devoção à Nossa Senhora. Ambas promovidas pelo Estado português como elementos de ho-mogeneização e identificação do Império e, ao mesmo tempo, vivenciadas pelos colonos de acordo com as possibilidades culturais fomentadas pela colonização.

� Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. � FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína (org.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV Editora, �005. p. �5�. De uma maneira geral, refiro-me aqui ao capítulo ��: Tradição oral e História Oral: revendo algumas questões. De Julie Cruikshank. p. �49-�64. Para estudos elaborados sobre textos folclóricos dos séculos XVIII e XIX, citados pela autora, a tradição oral é identificada com esperanças nacionalistas de se reconstituir uma herança cultural perdida ou em processo de desaparecimento. Por outro lado, pôde servir de instrumento ao Estado para ampliar os controles tanto políticos, quanto administrativos. Vi-são da qual compartilho e que se encontrará mais bem desenvolvida pelo texto, no entanto, substituindo a tradição oral, que nos remete ao objeto, pela idéia de devoção, que dinamiza e dá vida ao processo em si. � Segundo a tradição oral das Minas Gerais. Refiro-me nesse caso ao Bispado de Mariana, mais especificamente a região de Ouro Preto e Mariana, bem como São João Del Rei e Tira-dentes, onde a devoção à cruz enfeitada pode ser observada. Trata-se de uma pesquisa em sua fase inicial.

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De acordo com Alfredo Bosi, “a produção dos meios de vida e as relações de poder, a esfera econômica e a esfera política, reproduzem-se e potenciam-se toda vez que se põe em marcha um ciclo de colonização. Como se fossem verdadeiros universais das sociedades humana”.� Logo, no sentido político, a metrópole exer-cia, dentro das possibilidades, uma relação de jugo sobre os territórios conquista-dos permeada pelo sentido de dominação como ação transitória a um estágio so-cial superior. Possibilidade somente alcançável a partir da intervenção de um agente sócio-político com capacidade de promover a civilização, que no caso por-tuguês, baseou-se na implantação da religião católica. Daí a reprodução das rela-ções culturais, econômicas e de poder permeadas pelo modelo político e religioso do Estado serem responsáveis pela criação de um novo tempo, a ser contado a partir da presença do colonizador e sob o prisma de seus valores5.

Para Portugal, a cruz foi o principal estandarte no processo de colonização por ser considerada, dentro da cultura católica, como um elemento por excelência transformador6 e, conseqüentemente, o principal símbolo de mudanças nos territó-rios conquistados, que a partir da presença da Santa Cruz e pelas mãos dos portu-gueses, saíam do desconhecimento e eram consagrados à Majestade Divina�. Per-mitindo que os “os monarcas portugueses primeiro atendessem à fé do que as

4 BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Cia. das Letras, �00�. p. ��. 5 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fon-tes, �00�. p. �4. 6 VARAZZE, Jácopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. São Paulo: Cia. das Letras, �00�. p. �6�.� CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, �99�. p. �09 e ��0. “a tradição cristã enriqueceu prodigiosamente o sim-bolismo da cruz , e condensou nela a história da salvação e paixão do Salvador”.

Cruz enfeitada – Tiradentes/MG – set. �005

Meynardo Rocha de Carvalho - ��05

conquistas, e primeiro pelejassem pela causa de Deus que pela sua própria”� sem, no entanto, deixarem de congregar a relação econômica com a religiosa. Já que, “o sistema colonial, efetivamente, constituiu-se no componente básico da época mer-cantilista, o elo que permitiu estabelecer as mediações essenciais entre os diversos níveis da realidade histórica”9. Ao retomar a compreensão desse elo metrópole-colônia, Serge Gruzinski chama a atenção para o processo de circulação cultural presente nesse processo, fomentado a partir da monarquia-católica. Terminologia ampla ao congregar política e religião de forma integrada e perceber uma interação cultural entre metrópole e colônia, de forma mútua e igualitária, sem as peias gera-das pelo entendimento bipolar e estático�0.

Assim, o modelo religioso promovido pelo Estado português tornou-se funda-mental à tessitura do império à medida que promovia a transição social anexando, concomitantemente, territórios e almas��. Porém ao fazê-lo, atuava muito mais como gênese de um processo do que propriamente responsável pelo seu fim, visto que as acepções católicas assumiriam nuanças próprias em cada uma das vastas regiões do Império. A própria idéia de ordenação político-social vinculava-se à dimensão providencial e messiânica da religião, permitindo ao Império, nos mo-mentos de maior necessidade, assegurar a unidade que lhe era tão cara, pois que era forjada sobre tantas diferenças.

Segundo João Francisco Marques, após o processo de Restauração, concluído em �640, a própria condição de liberdade experimentada por Portugal foi percebi-da como mercê divina, gerando a partir de então, uma onda de cultos à Virgem, aos santos e celebrações eucarísticas. Sendo assim, as múltiplas referências aos santos como intercessores em prol do Império português, inseriam-se na relação constante de cultos e práticas devotas que permitiam trazer o discurso hagiográfico para o âmbito do cotidiano��. No qual o culto mariano sobrepôs-se a outros como

� Sermão hystórico panegyrico da Conceição de Nossa Senhora, padroeyra do Reyno de Portugal. Pregado na Cappela real a � de dezembro de ��09 por D. Joseph Barbosa; offere-cido ao ilustríssimo e reverendíssimo senhor Nuno da Cunha Attaíde. Bispo da Inquisição Geral, capellão mor de Sua Majestade, do seu conselho de estado e de seu despacho. Lis-boa, na officina Real Valentim da Costa Deslandes. MDCCX, fls �04 a ��6. 9 NOVAIS, Fernando A. Portugal e o Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, �9�9. p. 5�. �0 GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories. Revista Topoi, nº �. Rio de Janeiro: � Letras, �00�. pp. ��5-�95. “a monorquia-católica cobre um espaço que reúne vários continentes; aproxima ou conecta várias formas de governo, confronta, de maneira às vezes bastante brutal, tradições religiosas totalmente distintas.” p. ��0. �� RAMINELLI, Ronald. Império da fé: ensaio sobre os portugueses no Congo, Brasil e Japão. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda, GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs.). O An-tigo Regime nos trópicos. A dinâmica imperial portuguesa. Sécs. XVI – XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, �00�. pp. ���-�4�. �� Decretos e determinações do Sagrado Concílio Tridentino. A invocação, a veneração e as relíquias dos santos, e as sagradas imagens. Coimbra: per Joam de Barreira, aos quatro de dezembro de MDLXIIII. Pp. �9-��.

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agregador dentro da diversidade estrutural do Império e, conseqüentemente, gera-dor de uma inclusão religiosa-patriótica��.

Se por um lado a presença da Santa Cruz identificava a possessão portuguesa refletindo a extensão de um Estado católico, por outro a devoção à Nossa Senhora fortalecia essa conquista à medida que vinculava as interações entre a diversidade das gentes e a unidade do Império. Adquirindo assim, a capacidade de fragmentar as variadas crenças presentes nos domínios portugueses e, ao mesmo tempo, pro-mover a “homogeneização possível” a partir das diretrizes católicas�4.

Em Minas Gerais, por ocasião da fundação do Bispado de Mariana�5, a devo-ção a Nossa Senhora já era algo corrente e refletia a mariologia como um dos as-pectos mais identificadores da colonização portuguesa, já que a santa povoava o imaginário, os sermões, as preces, além de ser a titular de variadas igrejas e capelas na colônia. Nossa Senhora também era tida como a madrinha de muitos neófitos e protetora dos homens que embrenhavam pelos sertões do Brasil em busca das des-cobertas que justificavam a colonização�6.

�� MARQUES, João Francisco. A tutela do sagrado: a proteção sobrenatural dos santos padro-eiros no período da Restauração. In: BETHENCOURT, Francisco e CURTO, Diogo Ramada. Memória da nação. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, �9��. p. �6�.�4 SOUZA, Juliana Beatriz Almeida de. Senhora dos Sete Mares. Virgem Maria no ultramar português. Tese de doutorado. Niterói: Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, �00�. p. 50. �5 A Arquidiocese de Mariana foi criada por Bento XIV através da Bula Candor Aeternae, de 06 de dezembro de ��45, e efetivamente instalada a �� de fevereiro de ��4�. TRINDADE, Raimun-do (Côn.). Instituições e igrejas no Bispado de Mariana. Rio de Janeiro: MÊS/SPHAN, �945. �6 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: NOVAIS, Fer-nando e SOUZA, Laura de Mello e (orgs.). História da Vida Privada no Brasil. Vol. 0�. São Paulo: Cia. das Letras, �99�. p. ��5.

* Conforme processo de tombamento do Iphan nº 00�5-T-��.

Nossa Senhora da Assunção com brasão e bandei-ras do Império. (Séc. XVIII – pintura de Manoel Ra-bello de Sousa) - Forro da Sé de Mariana – MG.*

Meynardo Rocha de Carvalho - ��0�

Com a normatização sócio-religiosa fomentada pelo Bispado sobre os minei-ros, criou-se a possibilidade de revisão de algumas práticas devocionais considera-das equivocadas, ao mesmo tempo em que se promovia oficialmente o exercício de um catolicismo barroco. Este, ao agir de acordo com os Decretos do Sagrado Concílio Tridentino, fazia tanto bem à Igreja, quanto ao Império, porque a ambos fortalecia��. Na concepção de Maravall, o barroco é um conjunto de meios cultu-rais e de tipos muito variados, reunidos e articulados para operar adequadamente com os homens, a fim de prática e satisfatoriamente, conduzi-los e mantê-los inte-grados no sistema social��. O termo aqui tem a função de dar conta de um proces-so de inclusão que transcende em muito o aspecto estético por ele demarcado. O sentido de barroco que interessa a esse trabalho articula-se entre um espaço geo-gráfico-temporal determinado e demonstra-se também na política, na economia e na situação social, vinculando-se às práticas sociais�9 a partir de uma ideologia homogeneizadora das mentes e comportamentos. Logo, ao buscar penetrar as consciências e funcionar como controle psicológico, o barroco articulou as diver-sidades componentes do Império português e fomentou o paradigma de autoridade e de pertencimento necessários à extensão do Estado absoluto.

A monarquia portuguesa ao congregar-se com a religião católica, utilizou-a como instrumento privilegiado para inserção dos indivíduos na dinâmica da socie-dade colonial através de uma variada gama de devoções, o que permitiu a aproxi-mação entre as diretrizes estatais e a variedade cultural da população, gerando uma religiosidade mestiça e imbricada, que ao mesmo tempo, era propícia à inser-ção na dinâmica social do período�0.

Foi a partir desses encontros coloniais que, a mesma cruz que representava�� a presença do Estado, nas Minas do XVIII também estava diretamente vinculada a devoções extra-oficiais, como a defesa dos perigos das doenças, dos conflitos fami-liares e dos malfeitores comuns na região do ouro. Daí a sua colocação em portei-ras, currais, galinheiros, nas portas das casas, nas beiras das estradas, nas pontes

�� MARAVALL, José Antonio. A cultura do barroco. Análise de uma estrutura histórica. São Pau-lo: EdUSP, �99�. De acordo com esse autor, o barroco é um conjunto de meios culturais e de tipos muito variados, reunidos e articulados para operar adequadamente com os homens, a fim de prática e satisfatoriamente, conduzi-los e mantê-los integrados no sistema social .p. ��0.�� Ibidem. �9 CHARTIER, Roger. Textos, impressões e leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, �00�. pp. ���-��9. �0 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Cia. das Letras, �00�. p. 6�. O termo mestiçagem se propõe a designar as misturas que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos, imaginários e formas de vida, vindos de quatro continentes, América, Europa, África e Ásia. Portanto, trata-se de um conceito que surge com o objetivo de compreender o múltiplo e o imbricado, situações baseadas na possibilidade dos encon-tros postos em ação a partir da Idade Moderna européia. Embora a análise de Gruzinski esteja focada para a realidade mexicana, o processo de mestiçagem é análogo em todas as áreas coloniais do Novo Mundo e, por isso, nesse trabalho é tomado por empréstimo.�� GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Cia. das Letras, �00�. p. �5.

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etc; de forma que os maus espíritos e assombrações que teimavam em insuflar bri-gas e confusões na região do garimpo, fossem afastados.

Segundo Dom Frei Manuel da Cruz, primeiro bispo de Mariana,

a Capitania estava incendiada pela ganância e pela busca do metal mais pre-cioso, então aqui farto e fácil. O território desta região aurífera, não inferiori-zado a outros na multidão de habitantes e adventícios (...) atrai os mineiros para a extração do ouro (...). Daí , vários iludidos e apegados aos vícios são dominados pela ganância do ouro. Nem digas que alguns eclesiásticos ficam imunes de se queimar nessa desonra (...). Então encontrarás muito de seus vizinhos iludidos e apegados a atitude de ambição, vaidade, soberba e aos

Cruz na Ponte do Ro-sário – final do séc. XVIII – São João Del Rei – MG

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perigosos prazeres da carne. Impelida certamente a estes hábitos pela abomi-nável cobiça do ouro (...)��.

Nesse contexto de inseguranças, “a Bela, a Vera, a Sacratíssima Cruz e o Filho de Deus eram fonte de saúde, de perdão e graça aos fiéis do catolicismo barroco”��. A devoção era fortalecida com a festa de Santa Cruz e com as ladainhas que se fa-ziam a ela, como por exemplo, as dos mil bagos de milho. Nessa, passando-os um a um, de mão em mão, ao redor de uma mesa, os devotos diziam: “Jesus, Maria José, minha alma Vossas é”�4. Afirmativa que se complementava com a seguinte oração:

Arreda e afasta satanás,

Porque essas almas não são suas.

Ao dia da Santa Cruz

Direi mil vezes Jesus�5.

Também era comum colocar cruzes nas pontes e cruzeiro no ponto mais alto da cidade. Normalmente, o cruzeiro era decorado com os martírios do Cristo e as cruzes das pontes, que também eram decoradas, tinham a função de espantar o “sujo”�6 que ao andar solto por aquela região da colônia – produto dos vícios da sociedade mineradora – intuía as pessoas para que cometessem suicídios se jogan-do das “alturas” das pontes, além de outras sortes de atitudes promovidas pela ilu-são diabólica gestada encontro de culturas.

Ainda sobre as pontes, cabe destacar a função de ligação desempenhada por elas, permitindo que qualquer um indivíduo passasse de um lado a outro do territó-rio. À medida que elas fossem amparo para uma Santa Cruz, impediam que o diabo também passasse, reduzindo assim o seu espaço de ação��.

�� Relatório do Episcopado de Mariana para a Sagrada Congregação do Concílio de Trento, ��5�, Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, fls. �9-�5. �� CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Quaresma e Tríduo Sacro nas Minas Setecentistas: Cultura Material e Liturgia”. In: Revista Barroco. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros. nº ��, �996. p. �09-���. �4 Tradições de Minas por Márcio Vinícius Horta. Disponível em: www.descubraminas.com.br Acesso em 05 de setembro de �00�.�5 Ibidem. �6 Nomenclatura popular dada ao diabo, evitando dessa maneira pronunciar seu nome. Aproveito aqui para registrar meus agradecimentos ao Sr. Abel André de Melo e a Dona Efigênia Sacramento, que muito contribuíram para esse trabalho através das muitas histórias que me contaram em Ouro Preto, em janeiro de �006. �� Para esse trabalho estou entendendo como Minas as pesquisas feitas nas cidades de São João Del Rei, Tiradentes, Ouro Preto e Mariana. Portanto, essas tradições orais às quais es-tou me referindo fazem parte exclusivamente desses locais e, embora ocorrendo em outras partes do Estado, não foram por mim pesquisadas.

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Apesar da forte dinâmica agregada ao culto à Santa Cruz em Minas no XVIII, o cos-tume de se enfeitar a cruz remete-se à própria Península Ibérica, mais especificamente ao século XVI, quando se institucionalizou a perseguição aos judeus em Portugal.

De acordo com Olinto Rodrigues dos Santos Filho, essa tradição é proveniente da tentativa de auto-afirmação vivenciada pelos cristãos-novos portugueses frente às in-vestidas da Inquisição��. O cuidado familiar dispensado então na ornamentação de uma pequena cruz de madeira, ao ser exposta na frente da casa, tinha por função de-monstrar a efetiva conversão do grupo ali residente. E, conseqüentemente, também servia de “bandeira de paz” frente às investigações do Santo Ofício e à demonstração pública do exercício religioso dentro da “normalidade” do catolicismo estatal. Esse costume que se estendeu à colônia com o processo colonizador, fortaleceu-se nas Minas mediante o ambiente de vigilância e ordenação imposto pelo Estado a uma re-gião fundamental à manutenção das rendas do Império. O que corrobora o sentido da colonização: a anexação de territórios vinculada à anexação das gentes mineiras.

Sociabilidade religiosa

No Antigo Regime, o indivíduo ao nascer era inserido numa rede social e a partir de tal condicionamento era levado a movimentar-se de acordo com as possi-bilidades de seu grupo. Era na interação com ele que o homem encontrava a con-dição de desenvolvimento das formas de sociabilidades que, embora móveis e va-riáveis, construíam-se a partir do modelo pré-estabelecido pelo Estado e centralizado na figura do rei.

A partir do momento que não se concebe o homem fora dessa rede de interde-pendências, pressupõe-se um sistema social de ordens e valores fora do qual não existe possibilidade de convívio ou pertencimento social.�9 Ou seja, ao contrário de uma rede no sentido literal, na sociedade de antanho, quanto mais o indivíduo se envolvia na teia social, maior a possibilidade de movimento, qual seja, se fazer representar no contexto através da existência social e da construção da identidade individual, relativamente autônoma.

Nessa relação, o modelo religioso tanto direcionava os colonos enquanto súditos do rei de Portugal, como da Majestade Divina. Paradigma que pleiteava uma ordenação total, já que a vida resumia-se principalmente a essas duas instân-

�� Opinião colhida em quadro explicativo sobre a cruz enfeitada na Biblioteca e Casa de Cultura de Tiradentes, em setembro de �005. Olinto José dos Santos Filho é historiador e pesquisador da ��ª SR Iphan – MG. Luiz Mott, no artigo Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu, também aborda o costume de se colocar pequenas cruzes de madeira nas portas das casas. Referindo-se ser um hábito resguardado pela tradição oral. In: NOVAIS, Fernando (org.). História da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Cia. das Letras, �99�. p. �65. �9 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Lisboa: Editorial Estampa, �9��. p. 4�.

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cias: o reino da terra e o Reino dos Céus. Sendo que o alcance do último seria uma conseqüência do comportamento cotidiano experimentado no primeiro. E qual poderia também resvala-lo ao inferno de acordo com a ação do próprio homem.

A partir dessa proposição é possível compreender que a perspectiva religiosa difere da perspectiva laica. Isso porque ela vai além da realidade da vida cotidiana, conduzindo o indivíduo a uma compreensão mais ampla e complementadora do seu dia-a-dia. Para a qual a fé e a devoção são elementos fundamentais. Já que “a religião ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada e projeta ima-gens de ordem cósmica no plano da experiência humana“.�0

A religião pode ainda ser compreendida como um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motiva-ções nos homens através da formulação de conceitos, de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatalidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas��.

Dessa forma, pensar a interseção feita pela Cruz Enfeitada entre o privado e o público nas Minas Gerais, não chega ser uma demarcação estática. Visto que, se de dentro pra fora a função da cruz enfeitada era demonstrar que a casa perten-cia a uma família devota e afeita ao catolicismo estatal, de fora pra dentro as benes-ses advindas do Reino dos Céus, através do beijo de Nossa Senhora, completavam o processo. Qual seja o da ordem cósmica, bem como, das teias sócio-religiosas da sociedade mineira. Importa ressaltar ainda que “o beijo, desde a Antiguidade, assu-mira a significação espiritual de união e adesão mútuas”��. Assim, Nossa Senhora ao beijar cada uma das cruzes enfeitadas, praticava um ato de adoração e amor para com a Santa Cruz e, conseqüentemente, para com o seu Soberano Filho, re-presentado também por ela. Além de através do beijo, exemplificar a concórdia, a submissão e o respeito que deveriam fazer parte do cotidiano devoto, exterioriza-dos pela cruz enfeitada na fachada das residências em consonância com o Estado oficialmente católico. Porém, se as vidas dos santos deveriam funcionar como mo-delos de comportamento à população, o exemplo de Nossa Senhora também fun-cionava como espelho e, como tal, deveria ainda refletir a obediência, a pobreza e a castidade tão necessárias a uma vida virtuosa e religiosamente súdita��.

�0 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, �9�9. p.�04. Já em Durkheim, na “Definição do fenômeno religioso e da religião”, a religião aparece vinculada a tudo que é sobrenatural, ou seja, a toda ordem de coisas que ultrapassam o alcance do entendimento humano. Logo, a religião respalda tudo que escapa à ciência e ao pensamento claro. In: DURKHEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, �996. p. 0�-�� �� Ibidem., pp. �04 e �05. �� CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Op.cit., pp. ���-���. �� ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia. Condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil – ��50-����. Rio de Janeiro/Brasília: Jose Olympio/ Editora da UnB, �99�. p. �9�. Embora estudando os conventos e recolhimen-tos femininos, a autora chama a atenção para a obediência como a primeira virtude. Já que dela dependiam o funcionamento e a harmonia da vida comunitária.

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Todo o processo de proteção desempenhado pela cruz enfeitada, iniciava-se com o cuidado familiar em adornar a sua cruz. O que representava um esforço ativo na busca da proteção e congregação com a cultura católica vivenciada dentro da casa, mas que só se completava com a exterioridade do culto. Essa em conso-nância aguda com a administração metropolitana�4. Assim, a materialização das mercês divinas realizadas através do ritual religioso, permeado pela simbologia própria, além de proporcionar o ânimo e a motivação necessária à realidade da vida individual ou do grupo familiar, permitia num processo mais amplo, qual seja a congregação com o grupo social, a participação nele e a identificação advinda do ethos�5. Essa interação levava o indivíduo a uma modelagem “imposta” pelos pa-drões sociais vigentes, no qual o caráter, os valores morais e estéticos, e a própria visão de mundo, eram fomentados a partir desse senso social vigente. A devoção religiosa ao agir sobre o indivíduo, levava-o a uma modificação tão fundamental ao convívio social, quanto à salvação de sua alma. Logo, esse processo por excelên-cia, era gerador da civilização necessária à manutenção do Estado nas Minas Ge-rais e, conseqüentemente, da estabilidade do Antigo Regime português.

Porém, se a estabilidade política passava pela ordenação de mundo previs-ta pela religião católica, havia uma necessidade dessa religião englobar o maior número possível das gentes mineiras, levando-as a congregar dessa égide religiosa sócio-política. Assim, as pessoas ao se inserirem – necessariamente – nas redes de interdependência tão comuns à sociedade do período, passavam a “movimenta-rem-se” de acordo com as possibilidades de maior ou menor liberdade proporcio-nadas pelo envolvimento nessa “teia”.

O modelo plasmado pela Santa Cruz em interação com a vida de Nossa Senhora, era então, por excelência, fomentador de sociabilidades a partir das disposições esta-tais. Visto que em teoria, vincular-se à Santa Cruz, era de alguma forma também vincu-lar-se aos ditames de Lisboa e acatar as suas diretrizes. Mas também, porque a cruz ti-nha como um dos principais atributos a transformação de lugares profanos em sacros. E, de acordo com a expansão da devoção, tinha o dom de ir uniformizado o território e as almas, colocando-os sob a égide do Cristo em conformação com a ordem univer-sal propagada pela religião�6.

Porém, a partir das interpenetrações geradas pelo encontro de culturas e disposi-ções dos agentes sociais é possível pensar em práticas culturais permeadas pela apro-

�4 Sobre transição de valores de uma geração a outra, me inspirei em: LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, �000. Trabalho no qual incerteza e poder aparecem como elementos fundamentais para o entendimento da herança imaterial. �5 “O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e es-tético, e sua disposição é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete”. Idem., p. 9� �6 DaMATTA, Roberto. A casa e a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janei-ro: Rocco, �99�. Inspirei-me um pouco no Cap. I deste livro para pensar essa proposta. Nele o autor trata de “Espaço – casa, rua e outro mundo: o caso do Brasil”.

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priação entre grupos, mas sempre numa mão-dupla “entre a instituição e a comunida-de, entre o modelo normativo e a experiência coletiva”��. Comportando dessa maneira no cotidiano social, ajustes, combinações e resistências culturais próprias do encontro que é sempre múltiplo. E que nas Minas, tanto promoviam ao Reino dos Céus, quanto à aquisição do status social necessário e genuíno das redes de interdependências do período. Geradoras de dissimulação já que, nem sempre os interesses sociais e da sal-vação se equiparavam e, consequentemente, colocavam-se em desequilíbrio ou num equilíbrio fluido; gênese de uma religiosidade externa, visual e representativa. Na qual ficava clara a ordenação social e, conforme idealizada, a “vontade divina”��.

Dessa forma as representações adquiriram aspecto de verdades e passaram a ser mais fundamentais no barroco mineiro do que a exteriorização sincera propria-mente dita. O que levou a uma supervalorização dos signos como promotores dessas verdades e valores, e ainda, à manutenção da ordem social. Numa constan-te interação entre o público e o privado, muito mais complementadora, do que concorrente�9. Na qual a religião como principal elemento sociabilizador envolvia ambos os espaços. E criava neles as condições para que transmutados na alegoria barroca, tanto a Santa Cruz como as representações de Nossa Senhora, personifi-cassem para a população mineira os elementos concernentes à salvação. Inserin-do-se duplamente na construção das sociabilidades já que eram fim e gênese de relações individuais e de grupos40.

Dessa maneira a devoção à Santa Cruz e a Nossa Senhora, individual ou imbrica-damente, desempenharam condições fundamentais para a sociabilização dos minei-ros. Especialmente ao inseri-los numa ordenação imperial que ultrapassava a geografia ultramarina para alcançar também o Reino dos Céus.

�� CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes: �00�.p. ��4. �� HANSEN, João Adolfo. “O discreto” In: NOVAES, Adauto. (org.). Libertinos e libertários. São Paulo: Cia da Letras, �996. p. ��-�0�. �9 VENTURA, Maria da Graça A. Mateus. “Espaços de sociabilidade de um mercador portu-guês em Lima (�6�5-�6�9)”. In: VENTURA, Maria da Graça A. Mateus (coord.) Os espaços de sociabilidade na Ibero-América (sécs. XVI-XIX). Lisboa: Edições Colibri, �004. p. �6�-���. 40 ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fon-tes, �99�. p. �5. Segundo o autor, cada obra não apenas resulta de um conjunto de relações, mas determina por sua vez todo um campo de relações que se estendem até o nosso tempo e o superam.