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CARLA MARIA SEQUEIRA FERREIRA
O ALTO DOURO ENTRE O LIVRE-CAMBISMO E O
PROTECCIONISMO:
A QUESTO DURIENSE NA ECONOMIA NACIONAL
PORTO 2010
CARLA MARIA SEQUEIRA FERREIRA
O ALTO DOURO ENTRE O LIVRE-CAMBISMO E O
PROTECCIONISMO:
A QUESTO DURIENSE NA ECONOMIA NACIONAL
Dissertao de Doutoramento em Histria apresentada
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Orientadores cientficos: Prof. Doutor Jorge Fernandes Alves
Prof. Doutor Gaspar Martins Pereira
Apoiada pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia, no mbito do POCI 2010 Formao
avanada para a Cincia
PORTO 2010
Fotografia da capa: Quinta de Vale do Meo Pocinho. Almoo do Pessoal
Alberto Cerqueira, Novembro de 1928
Arquivo Histrico da Casa Ferreirinha
Aos meus Pais
NDICE
Introduo..15
Captulo I. Modalidades de interveno do Estado na economia regional
duriense..........................................................................................................................23
1.1. A tradio de interveno do Estado no sector do vinho do Porto, entre o
Pombalismo e a Regenerao....24
1.1.1. De Pombal revoluo vintista...24
1.1.2. A desagregao do sistema regulador, entre o vintismo e a
Regenerao...26
1.2. Condies de passagem do regime proteccionista do vinho do Porto e da sua
regio produtora para o regime liberal..34
1.2.1. A Regio vinhateira no terceiro quartel do sculo XIX..34
1.2.2. A conjuntura comercial...35
1.2.3. O confronto entre livre-cambistas e proteccionistas em torno da
questo vinhateira, em finais da dcada de 1850..36
1.2.4. Os projectos governamentais de liberalizao do sector, em 1860 e
1861...42
1.2.5. A iniciativa da Comisso de Vinhos da Cmara dos Deputados, em
1863...62
1.2.6. O contributo da Comisso de Inqurito de Vila Real..78
1.3. A vitria dos princpios livre-cambistas.79
1.4. Concluses..85
Captulo II. O impacto da legislao liberal e as condies scio-econmicas da
Regio Duriense no ltimo tero do sculo XIX.89
2.1. A Regio no ltimo tero do sculo XIX...91
2.1.1. A crise vitcola. A filoxera..91
2.1.2. A crise comercial.97
2.1.3. A crise social...98
2.2. A busca de solues regionais para os problemas vinhateiros...99
2.2.1. Companhia Comercial dos Lavradores do Douro.100
2.2.2. Companhia Vincola Portuense.107
2.2.3. Sociedade Agrcola de Lamego.108
2.2.4. Associao dos Agricultores do Norte de Portugal...109
2.2.5. Liga dos Lavradores do Douro..110
2.2.6. Liga Agrria do Norte112
2.3. As reivindicaes regionais e a interveno do Estado114
2.3.1. As iniciativas do poder central para a modernizao do sector.117
2.3.2. O combate filoxera.122
2.3.3. A Questo do tabaco..125
2.3.4. A defesa da marca regional e da denominao de origem.140
2.3.4.1. A aco do Estado144
2.3.4.2. A Comisso de Defesa do Douro..155
2.3.4.3. A Real Companhia Vincola do Norte de Portugal...167
2.3.4.4. A questo dos vinhos espanhis...194
2.3.4.5. Do Congresso Vitcola de 1895 ao Congresso Agrcola do
Porto..200
2.3.5. A Questo do lcool...203
2.4. Concluses225
Captulo III. A questo do Douro no primeiro tero do sculo XX....................227
3.1. A questo do Douro e o debate vitcola nacional nos incios do sculo
XX...229
3.1.1. O projecto de Elvino de Brito235
3.1.2. Os projectos de Manuel Vargas.239
3.1.3. O decreto de 14 de Junho de 1901.249
3.1.4. Novas propostas do Governo para a soluo da crise...254
3.2. O movimento duriense pela marca regional.256
3.3. Do projecto de Teixeira de Sousa ao regresso regulao vitcola.277
3.3.1. O projecto de Teixeira de Sousa277
3.3.2. Os projectos de Malheiro Reimo.279
3.3.3. A legislao de Joo Franco..312
3.3.4. A legislao de Ferreira do Amaral...314
3.4. Da legislao de 1908 Casa do Douro...333
3.4.1. O aperfeioamento da legislao reguladora no final da Monarquia e
no incio da I Repblica...333
3.4.2. Os conflitos em torno do tratado luso-britnico de 1914..347
3.4.3. O regulamento sidonista de 1918..359
3.4.4. O projecto de Nuno Simes e a primeira Casa do Douro..362
3.4.5. A aco da Junta de Defesa do Douro...365
3.4.6. A aco do ministrio Anto de Carvalho.380
3.4.7. A Conferncia Vincola de Bordus e a defesa das marcas
regionais...383
3.4.8. A polmica em torno do Lisbon Wine...384
3.4.9. O Entreposto de Gaia.388
3.5. O desenvolvimento do associativismo regional: dos sindicatos agrcolas
Casa do Douro.408
3.5.1. Os sindicatos agrcolas no Douro..410
3.5.2. A reorganizao regional e institucional duriense: a gestao da Casa
do Douro..419
3.6. Concluses430
Concluses433
Fontes e Bibliografia445
Anexos..471
SIGLAS E ABREVIATURAS
ACAP Associao Central de Agricultura Portuguesa
ACD Arquivo da Casa do Douro
ACP Associao Comercial do Porto
ACL Associao Comercial de Lisboa
AHACP Arquivo Histrico da Associao Comercial do Porto
AHP Arquivo Histrico Parlamentar
ACALJ Administrao do Concelho de Alij
AMALJ Arquivo Municipal de Alij
ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo
APTLM Arquivo Particular de Torcato Lus de Magalhes
CA Cmara de Alij
CCP Centro Comercial do Porto
CGAVAD Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro
CVRD Comisso de Viticultura da Regio Duriense
FCVRD Fundo da Comisso de Viticultura da Regio Duriense
FSAD Federao dos Sindicatos Agrcolas do Douro
LAN Liga Agrria do Norte
LLD Liga dos Lavradores do Douro
MA Ministrio da Agricultura
MOPCI Ministrio das Obras Pblicas, Comrcio e Indstria
PRP Partido Republicano Portugus
RACAP Real Associao Central de Agricultura Portuguesa
RCVNP Real Companhia Vincola do Norte de Portugal
U.I. Unidade de Instalao
AGRADECIMENTOS
Ao longo destes anos dedicados investigao de doutoramento foram muitas as
pessoas com quem me cruzei e que contriburam para a sua prossecuo. A todas
devido o meu reconhecimento. Contudo, devo individualizar alguns agradecimentos.
Ao Professor Doutor Jorge Fernandes Alves manifesto o meu reconhecimento
por ter aceite ser o Orientador da presente tese e pela amabilidade com que sempre me
recebeu.
Ao Professor Doutor Gaspar Martins Pereira agradeo a co-orientao rigorosa e
exigente, que possibilitaram levar a bom termo a tese que agora se apresenta.
Fundao para a Cincia e a Tecnologia agradeo o apoio prestado atravs da
concesso de uma Bolsa de Doutoramento.
minha anterior unidade de investigao, o GEHVID, e actual, o CITCEM,
manifesto o meu reconhecimento pelo apoio logstico, particularmente na fase final do
trabalho.
Agradeo tambm a todos os funcionrios de Arquivos e Bibliotecas por onde
passei, destacando os seguintes: Senhor Srgio Almeida e D. Sandra Bandeira, do
Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, Dr. Pilar Garcia, do Arquivo Histrico da
Associao Comercial do Porto, Dr. Jorge Laiginhas, do Arquivo Municipal de Alij,
por ter criado as necessrias condies de consulta e reproduo documental, Dr.
Fernanda Casaca, da Biblioteca Nacional, por ter autorizado a consulta de peridicos
retirados da leitura e que no existiam em mais nenhuma Biblioteca do pas, Dr. Marta
Rua e Dr. Paula Bonifcio, da Biblioteca Municipal do Porto, pelas facilidades
concedidas na reproduo documental. Merecem uma especial referncia as facilidades
concedidas pelos Monsenhor Jos Fernandes Bouas Pires, proco de Cambres, Senhor
Padre Joo Ferreira Rodrigues, proco de Valdigem, entretanto falecido, e o Senhor
Padre Jos Filipe Ribeiro, proco de Figueira, na consulta dos respectivos arquivos
paroquiais, bem como pelo Senhor Conservador do Registo Civil de Lamego, pela
colaborao prestada na pesquisa das fontes.
Os meus agradecimentos vo de modo particular para os descendentes de alguns
dos paladinos do Douro, de modo particular o Dr. Jlio Vasques, que me recebeu por
diversas vezes em sua casa, partilhando memrias e lembranas sobre seu av, e o Eng.
Carlos Jorge Magalhes, pela disponibilidade e confiana depositada em mim,
permitindo o acesso documentao particular de Torcato Lus de Magalhes.
Ao Dr. Miguel Nogueira, da Mapoteca da Faculdade de Letras do Porto,
agradeo a colaborao na cartografia apresentada.
Ao Arquivo Histrico da Casa Ferreirinha, pela cedncia da imagem utilizada na
capa.
tambm devido um reconhecimento aos amigos, particularmente Paula
Montes Leal, que acompanhou de perto a ltima fase do trabalho, pela presena amiga,
serena e encorajadora.
Por fim, um agradecimento muito especial minha famlia, pelo incentivo de
sempre e pela pacincia nas horas mais difceis.
RESUMO
O Alto Douro entre o livre-cambismo e o proteccionismo:
a questo duriense na economia nacional
A presente dissertao de Doutoramento em Histria visa compreender as
condies e os mecanismos de transio do modelo proteccionista de interveno do
Estado para o regime liberal, bem como o regresso a modalidades de regulao do
sector vincola, base da economia da regio demarcada do Douro, entre a Regenerao e
os incios do Estado Novo (1852-1932).
Pretende-se caracterizar a evoluo econmica, social e institucional da regio
duriense no perodo considerado, os interesses em presena e o grau de conflitualidade
com as outras regies vitcolas portuguesas e outros agentes econmicos suscitado pela
questo vinhateira.
Centrando a ateno nas consequncias da legislao liberal e nas reivindicaes
regionais de interveno do Estado, que se desenvolvem a partir do terceiro quartel do
sculo XIX e se mantm durante vrias dcadas, num perodo de crise agrcola e
comercial e suscitando uma continuada agitao poltica e social, procura-se
compreender as diversas estratgias de afirmao da produo regional face ao sector
comercial, na busca de solues para a questo duriense (associativismo vitcola e
comercial, defesa da marca regional, reivindicao de propostas legislativas).
Debruando-nos sobre os debates entre livre-cambistas e proteccionistas em
torno da questo vinhateira, que percorreram a sociedade duriense e nacional, desde os
Governos aos grupos polticos representados no Parlamento e aos grupos de interesses
econmicos, procuraremos perceber os jogos de foras polticas e econmicas em
presena, tentando aferir o grau de influncia das redes de clientelas regionais nas
decises tomadas pelo poder central, para a imposio tanto do modelo liberal como de
novas formas de regulao.
SUMMARY
The Upper Douro between free trade and protectionism:
the Douro wine issue in the national economy
The present Doctoral thesis in History aims to understand the conditions and
mechanisms of transition from the protectionist model of State intervention to the
liberal regime, as well as the return to regulatory measures for the wine sector, the
economic basis of the Douro demarcated region, between the Regenerao period and
the beginning of the Estado Novo (1852-1932).
The economic, social and institutional evolution of Douro region over the period
considered is characterized, as well as the interests at play and the degree of conflict the
with other Portuguese winegrowing regions and other economic agents brought on by
the wine sector issue, raised by the questo vinhateira.
An analysis is conducted of the consequences of the liberal legislation and the
regional demands for State intervention, which developed from the mid-1870s and
persisted for several decades, at a time of agricultural and commercial crisis leading to
continuous political and social unrest. The research intends to understand the different
strategies implemented to bolster regional production in relation to the commercial
sector, in the search for solutions to the Douro issue (viticulturist and commercial
associativism, defence of the regional brand, demand for legislative proposals).
The debates between free traders and protectionists on the wine sector issue
affected not only the Douro region but the country as whole, from Governments and
political groups in Parliament to economic interest groups. They ultimately reveal the
political and economic forces at play, and we seek to determine the degree of influence
regional clienteles came to have on the decisions taken by central power, both in
implementing the liberal model as well as in terms of the new forms of regulation.
INTRODUO
17
1. Objecto de estudo
O presente estudo, elaborado como dissertao de Doutoramento em Histria
apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tem como tema
fundamental a regio demarcada do Douro entre a Regenerao e os incios do Estado
Novo, considerado por Jaime Reis como o perodo crucial para o desenvolvimento
nacional1, procurando contribuir para o conhecimento da histria portuguesa atravs da
anlise de um sector chave da economia nacional.
Um dos principais objectivos consiste em compreender os mecanismos de
passagem das modalidades proteccionistas de interveno do Estado para o regime
liberal na economia da regio do Douro. Pretende-se determinar at que ponto o Estado
adoptou uma poltica livre-cambista para o sector vitivincola duriense, quais as
modalidades de interveno, ou desinterveno, do Estado. Partindo desta linha
temtica, procura-se caracterizar a evoluo econmica, social e institucional da regio
duriense no perodo considerado, bem como o grau de conflitualidade suscitado com as
outras regies vitcolas portuguesas e outros agentes econmicos. Tem-se ainda em
vista caracterizar a relao entre a produo e o comrcio, bem como as estratgias de
afirmao da primeira face ao segundo e ao poder central.
A temtica referida desenvolvida em trs captulos, cada um dos quais procura
obedecer a uma matriz semelhante: caracterizar a situao regional, a conjuntura
comercial, a situao institucional, o jogo de interesses em confronto, o debate regional,
inter-regional e sectorial, a aco do Estado. Nos captulos centrais da dissertao,
optou-se por uma descrio mais detalhada dos factos ocorridos, no sentido de melhor
contextualizar os problemas de partida e validar as concluses apresentadas.
O captulo I, partindo dos estudos realizados por historiadores da economia2,
debrua-se sobre a transio do regime econmico proteccionista para o regime liberal.
Embora se verifique a existncia de ampla bibliografia versando esta temtica, nota-se a
ausncia de estudos especificamente centrados no vinho do Porto e na Regio Duriense,
1 Cf. REIS, Jaime O atraso econmico portugus, 1850-1930. Lisboa: INCM, 1995, p. 9-32. 2 Cf. PEREIRA, Miriam Halpern Livre-cmbio e desenvolvimento econmico. 2. edio. Lisboa: S da Costa Editora, 1983; JUSTINO, David A formao do espao econmico nacional. Portugal, 1810-1913. Lisboa: Vega, 1989, 2 volumes; REIS, Jaime O atraso econmico portugus em perspectiva histrica: estudos sobre a economia portuguesa na segunda metade do sculo XIX, 1850-1930. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993; LAINS, Pedro A economia portuguesa no sculo XIX: crescimento econmico e comrcio externo, 1851-1913. Lisboa: INCM, 1995; CABRAL, Manuel Villaverde O desenvolvimento do capitalismo em Portugal no sculo XIX. 3. edio revista. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981.
18
fazendo com que o perodo em anlise neste captulo (1852-1865) seja, presentemente,
um dos menos conhecidos da histria do Douro.
Comeando por contextualizar a tradio de interveno do Estado no sector do
vinho do Porto entre o Pombalismo e a Regenerao, efectuamos a caracterizao scio-
institucional e econmica da Regio Demarcada do Douro no perodo entre 1852 e
1865, para nos centrarmos nos debates entre proteccionistas e livre-cambistas em torno
da questo vinhateira, que percorreram a sociedade duriense e nacional, desde os
Governos aos grupos polticos representados no Parlamento e aos grupos de interesses
econmicos. O objectivo principal perceber os jogos de foras polticas e econmicas
em presena e as razes do colapso do proteccionismo, at imposio do modelo livre-
cambista. Embora fizesse parte do projecto inicial, no se pde proceder ao estudo da
aco da Comisso Reguladora da Agricultura e Comrcio das Vinhas do Alto Douro
uma vez que no se conseguiu apurar o paradeiro do respectivo arquivo, nem a
imprensa da poca forneceu suficientes dados.
No captulo II procura-se avaliar as consequncias da legislao liberal, face
forte tradio reguladora do Estado sobre a regio e tendo em conta a ocorrncia de
outros factores de transformao (doenas da videira, alastrar do vinhedo a outras
regies do pas, introduo de novidades tcnicas, desenvolvimento dos meios de
circulao, etc.). De entre estes de salientar a crise agrcola e comercial do ltimo
quartel do sculo XIX, motivada pelas doenas da videira, pelo encerramento do
mercado francs e pelo desenvolvimento de fraudes e falsificaes internas favorecidas
pela legislao de 1865. Perante esta alterao de cenrio econmico e cultural, assistiu-
se ao emergir de reivindicaes pelo regresso a um regime proteccionista para a Regio
Demarcada do Douro, em choque com interesses de outros grupos scio-econmicos,
particularmente a viticultura do Sul e os grupos ligados aos interesses cerealferos, mais
prximos do poder central e exercendo forte presso sobre o Estado.
Partindo da caracterizao scio-institucional da Regio Demarcada do Douro,
analisaremos a procura de solues regionais para os problemas vinhateiros face nova
legislao liberal; dando especial relevncia s estruturas institucionais que configuram
formas de associativismo, procuraremos salientar o seu peso e importncia das suas
aces como mecanismo de afirmao, defesa e representao regional, em oposio s
demais regies vitcolas nacionais e ao sector comercial. Sero alvo de cuidada anlise
as reivindicaes regionais de interveno do Estado, expressas em diversas questes
que se desenvolvem a partir do terceiro quartel do sculo XIX e se mantm durante
19
vrias dcadas, suscitando agitao poltica e social: defesa da marca e denominao de
origem, restaurao da demarcao, criao de um entreposto, questo do lcool e das
fraudes, questo do tabaco. Neste mbito, voltamos questo central da dissertao: a
aco do Estado face crise do sector e s reivindicaes regionais, isto , at que ponto
e em que moldes, mesmo em tempos de liberalismo, o Estado interveio no sector e qual
o grau de influncia das elites durienses na aco governamental.
No captulo III, procuraremos compreender o regresso das s modalidades
proteccionistas de interveno do Estado na economia da regio do Douro. Partindo do
debate sobre a questo vitcola entre livre-cambistas e proteccionistas, analisaremos a
aco do Governo, atravs dos diversos projectos governamentais de incios do sculo
XX, onde se patenteou, por um lado, a importncia que o vinho do Porto continuava a
ter na economia nacional e, por outro, de forma clara, o conflito sectorial e regional e a
preponderncia do sector exportador e das outras regies vitcolas sobre o Governo,
visvel nos debates ento travados no Parlamento.
Atravs da anlise do movimento duriense em defesa da marca regional
continuaremos a tentar aferir o grau de organizao e influncia das redes de clientelas
regionais nas decises tomadas pelo poder central, que possibilitaram o regresso a um
regime proteccionista, com a legislao de Joo Franco. Continuaremos o esforo de
caracterizao das relaes entre produo e comrcio, entre Douro e Sul, da liderana
das movimentaes regionais, de carcter institucional e popular, a propsito da marca
Porto e Douro, com particular enfoque em 1914-1915, 1921, 1926-1928 (no mbito do
Entreposto de Gaia) ou a propsito da tentativa de criao de novas marcas de vinhos
generosos pelos vinhateiros do Sul.
Procuraremos igualmente caracterizar as relaes das elites regionais com o
poder e os partidos, particularmente durante o processo que conduziria a um novo
figurino institucional, com a criao da Casa do Douro. Analisaremos as diversas
aces organizadas pelas elites regionais com vista ao aperfeioamento da legislao e
defesa da marca Porto, no contexto internacional e nacional, centrando-nos na aco do
movimento dos paladinos do Douro; conferindo um carcter mais permanente e
organizado s movimentaes regionais, viria a ter importncia capital na reorganizao
regional e institucional operada no primeiro tero do sculo XX, com destaque para o
desenvolvimento de um novo tipo de associativismo regional os sindicatos agrcolas
e a criao da Casa do Douro, em 1932. Importa avaliar qual o papel das elites
regionais no novo figurino institucional, qual a influncia exercida sobre a nova
20
realidade, as aces desenvolvidas, a nvel local e nacional, bem como a postura
assumida pelo central em todo o processo e quais as consequncias da decorrentes.
2. Fontes de informao
Para alcanar os objectivos propostos, socorremo-nos do cruzamento de diversas
fontes documentais manuscritas e impressas, pesquisadas em diferentes arquivos
pblicos e privados. De toda as fontes consultadas foram elaboradas bases de dados
informticas.
A anlise dos debates sobre a questo vinhateira teve como base principal a
pesquisa efectuada nos Dirios da Cmara dos Deputados e dos Pares, tendo incidido
em certos perodos-chave, em que as discusses parlamentares produziram frutos: 1860-
1865, 1885-1893, 1902-1908. Os referidos Dirios esto acessveis por via electrnica,
embora com alguns hiatos, o que facilitou bastante a consulta; para os anos em falta por
via electrnica e no existentes na Biblioteca Municipal do Porto ou na Biblioteca
Nacional, socorremo-nos do Dirio de Lisboa e da imprensa da poca. Os Dirios
revelaram-se fundamentais no processo de caracterizao dos diversos grupos de
interesse em confronto, das dicotomias entre as diversas regies vitcolas e ainda dos
diferendos entre o Douro e o sector exportador. Mas mostraram-se igualmente
essenciais para a apreenso das estratgias de afirmao das elites regionais bem como
das relaes estabelecidas com os rgos do poder. Por isso, consultmos tambm os
Dirios da Cmara dos Deputados e dos Senadores para certos momentos capitais como,
por exemplo, os anos de 1912, 1914, 1919 ou 1921, anos de agitao no Douro e em
que a questo vinhateira foi novamente alvo de ateno no Parlamento.
Uma outra fonte de informao privilegiada foi a imprensa peridica. Tambm
aqui tivemos de contornar os hiatos cronolgicos, particularmente a propsito da
imprensa regional, atravs do cruzamento com jornais de mbito nacional. A imprensa
peridica assumiu, ao longo de todo o processo de investigao, um papel basilar na
reconstituio dos factos e no conhecimento das diversas posies face s questes em
foco. Na imprensa regional, procurmos consultar peridicos editados nas principais
localidades da Regio, com especial destaque para O Douro, A Voz do Douro, A
Defesa do Douro e A Regio Duriense (Rgua), O Eco da Beira e Douro, O
Lamecense, Gazeta do Norte e O Progresso (Lamego), O Vilarealense (Vila
21
Real), O Eco do Douro (Alij), Gazeta de Tabuao e O Taboacense (Tabuao),
Ecos de Meso Frio (Meso Frio), Ecos de Foz Ca (Vila Nova de Foz Ca) e
Gazeta de Armamar (Armamar). De entre os jornais de mbito nacional assumiram
especial importncia O Nacional, O Comrcio do Porto, O Eco Popular, O
Peridico dos Pobres no Porto e A Ptria, que se veio a constituir como rgo
defensor da Regio, embora fosse publicado em Lisboa, em virtude do seu director ser
Nuno Simes, antigo Governador Civil de Vila Real e estreitamente ligado aos
movimentos regionais.
De consulta obrigatria viriam tambm a revelar-se os peridicos especializados
em assuntos vitcolas ou editados por associaes do sector, de modo particular o
Boletim de Ampelografia e Enologia, Boletim da Liga dos Lavradores do Douro,
Douro Agrcola, Jornal de Horticultura Prtica, Arquivo Rural, Boletim da Real
Associao Central da Agricultura Portuguesa e A Vinha Portuguesa.
O Arquivo Histrico da Associao Comercial do Porto revelou-se de
importncia basilar para conhecer as posies do comrcio exportador na questo
vinhateira e caracterizar as relaes com a produo e com o poder central.
De grande importncia no processo de anlise e estudo das elites regionais ao
longo de todo o perodo em estudo, viria a revelar-se o arquivo particular de Torcato
Lus de Magalhes e o Arquivo Municipal de Alij, permitindo reconstituir,
detalhadamente, o movimento de defesa da marca Porto bem como o movimento dos
paladinos do Douro. Neste mbito, foi tambm importante o contributo dado pelo
Arquivo do Ministrio da Agricultura, incorporado na Torre do Tombo, fornecendo
informao til relativamente aos sindicatos agrcolas da Regio e questo do
Entreposto.
O Arquivo da Casa do Douro, nomeadamente o fundo da Comisso de
Viticultura da Regio Duriense, a que s tivemos acesso numa fase tardia da
investigao, revelou a existncia de um manancial importantssimo de informao, que
pretendemos explorar em maior profundidade num futuro prximo.
A finalizar, uma breve referncia s condies de investigao. Ao longo deste
trabalho beneficiei do apoio da Fundao para a Cincia e a Tecnologia, atravs de uma
Bolsa de Doutoramento, bem como da insero em centros de investigao sediados na
Faculdade de Letras do Porto, nomeadamente o GEHVID (Grupo de Estudos de
Histria da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto), entre 1999 e 2007, e o CITCEM
22
(Centro de Investigao Transdisciplinar Cultura, Espao & Memria, desde 2007.
De resto, parte deste trabalho foi elaborada no mbito do projecto O Douro
Contemporneo: Sociedade, Economia e Instituies, realizado entre 2004 e 2007, no
quadro das actividades do GEHVID, continuando, aps essa data, enquadrado no grupo
de investigao Memria, Patrimnio & Construo de Identidades, do CITCEM. O
apoio dado pelas entidades referidas revelou-se crucial, ao criar as condies
necessrias para levar a bom termo o trabalho que agora se apresenta.
CAPTULO I MODALIDADES DE INTERVENO DO ESTADO NA
ECONOMIA REGIONAL DURIENSE
25
1.1. A tradio de interveno do Estado no sector do vinho do Porto, entre o
pombalismo e a Regenerao
1.1.1. De Pombal revoluo vintista
A partir da dcada de quarenta do sculo XVIII, surgem os primeiros indcios de
crise, tanto econmica como social, no sector do vinho do Porto. Ao aumento da
procura por parte dos mercados externos, sucedera o alargamento da rea de cultivo da
vinha, muitas vezes para terrenos no apropriados, e a qualidade do produto baixara.
Por outro lado, na tentativa de enfrentar a grande procura de vinhos, multiplicavam-se
as fraudes e falsificaes, com o recurso a vinhos de outras regies no fabrico de vinho
do Porto. Iniciava-se, ento, uma crise de superproduo caracterizada pela queda das
exportaes e descida abrupta dos preos.
Em face do enorme peso que o vinho do Porto tinha j na economia portuguesa,
o Estado interveio na procura de solues para a crise, regulamentando a produo e o
comrcio deste produto, iniciando, dessa forma, um longo perodo de polticas
proteccionistas relativamente aos vinhos durienses1. Tambm o desenvolvimento de
conflitos sectoriais, com produo e comrcio acusando-se mutuamente de fraudes e
falsificaes, motivaram a interveno precoce do Estado para regular esses interesses
e, simultaneamente, controlar um sector-chave da economia nacional2.
Por alvar de 10 de Setembro de 1756 era instituda a Companhia Geral da
Agricultura das Vinhas do Alto Douro.
Alicerada nos princpios mercantilistas do proteccionismo, o principal objectivo
da Companhia era equilibrar os preos, restaurar a qualidade, regularizar a produo e
comrcio do vinho do Porto e estabilizar a exportao. Nesse sentido, procedeu
demarcao da regio produtora (separando a zona de produo de vinhos de maior
qualidade, destinados exportao, da rea de cultivo dos vinhos de pasto), associando-
a elaborao de cadastros e classificao de parcelas e respectivos vinhos em funo
da qualidade, bem como limitao da produo e fixao de preos para as
1 PEREIRA, Gaspar Martins A evoluo das tcnicas vitivincolas no Douro oitocentista. In VIEIRA, Alberto (coord.) Os vinhos licorosos e a histria. Funchal: Centro de Estudos de Histria do Atlntico, 1998, p. 226. 2 PEREIRA, Gaspar Martins O vinho do Porto: entre o artesanato e a agroindstria. Revista de Histria da Faculdade de Letras do Porto. 3. Srie: vol. 6 (2005) 187.
26
diferentes categorias de vinhos3. Como parte importante do novo sistema restritivo, a
nova legislao estabeleceu o exclusivo da barra do Porto para a exportao dos vinhos
durienses, proibiu o uso da baga de sabugueiro e criou duas categorias principais: vinho
de ramo (destinado a consumo nas tabernas do Douro e do Porto) e de embarque
(destinado a exportao). No sentido de evitar as falsificaes, proibia-se a entrada de
vinho proveniente de zona exterior demarcao, com vista defesa da qualidade.
A Companhia tinha funes de regulao da produo e comrcio, atravs do
manifesto obrigatrio do vinho produzido pelos viticultores, controlo do movimento dos
vinhos de ramo dentro da demarcao, fixao dos preos, fiscalizao e classificao
do vinho destinado exportao. Atravs da Companhia, a lavoura estava protegida da
concorrncia dos vinhos de outras regies e tinha garantias de escoamento e de preos
mnimos. Como refere Alberto Ribeiro de Almeida, pretendeu-se proteger um domnio
estratgico da economia portuguesa atravs de uma Companhia que foi um instrumento
para o estado controlar uma regio e o sector econmico do vinho do Porto4.
A demarcao da regio produtora revestia-se de particular importncia como
parte integrante de um sistema de controlo e certificao. Alm disso, detinha um
poder simblico, associando-se ideia de identidade e poder regional, numa regio
sem unidade administrativa5. As demarcaes pombalinas, com base numa lista de
produtores e quintas, valorizaram o Baixo Corgo, a rea mais antiga de vinhedo,
condicionadas pelos factores humanos, desde a tradio vitcola e a relao com o
mercado at s possibilidades de transporte e aos tipos de vinhos correspondentes ao
gosto dos principais consumidores6.
Como refere Gaspar Martins Pereira7, a poltica pombalina procurou controlar o
conflito social suscitado pela crise comercial, protegendo e subordinando os interesses
dominantes. Contudo, o antagonismo entre viticultores e negociantes acabou por se
agravar. Enquanto a viticultura saudava a Companhia e o regime restritivo e regulador,
os viticultores de outras regies e, de modo particular, o comrcio exportador, iniciavam
3 PEREIRA, Gaspar Martins A regulao da Regio Demarcada do Douro: do absolutismo ao liberalismo. Comunicao apresentada ao XXIV Encontro da APHES, Lisboa, Novembro de 2004 (policopiado). 4 ALMEIDA, Alberto Ribeiro de Alvar rgio. Roga Boletim da Associao dos Amigos do Museu do Douro. Edio especial (Outubro de 2006) 37. 5 PEREIRA, Gaspar Martins A regio do vinho do Porto. Origem e evoluo de uma demarcao pioneira. Douro Estudos & Documentos. Porto. 1 (1996) 182. 6 Idem, p. 183 7 PEREIRA, Gaspar Martins A regulao da Regio Demarcada do Douro: do absolutismo ao liberalismo. Comunicao apresentada ao XXIV Encontro da APHES, Lisboa, Novembro de 2004 (policopiado).
27
longa batalha no sentido do seu derrube por se considerarem prejudicados com as
restries impostas. Como afirma Vital Moreira, desde a crise de meados do sculo
XVIII que se digladiam a propsito do Douro dois princpios: o princpio regulacionista
ou proteccionista e o princpio da liberdade de comrcio8.
Com a viradeira, iniciava-se um novo ciclo. A Companhia via alguns dos seus
privilgios serem restringidos, mas mantinha-se o modelo institucional anterior. A
interveno do Estado revestia outras formas: agravamento da carga fiscal sobre a
circulao dos vinhos durienses cobrada pela Companhia e utilizada para obras pblicas
na Regio Demarcada do Douro.
Vivia-se uma era de prosperidade comercial e o aumento da procura externa
levou ao alargamento da regio demarcada, essencialmente no interior da regio j
demarcada, qualificando para feitoria alguns vinhos at ali de ramo9, denunciando a
valorizao crescente do Cima Corgo. Em simultneo, o abrandamento na aco de
controlo e fiscalizao da produo e comrcio e a expanso do vinhedo a terras de
qualidade inferior conduziram ao reaparecimento das adulteraes no fabrico dos
vinhos.
1.1.2. A desagregao do sistema regulador, entre o vintismo e a Regenerao
A partir de 1820, com a instaurao de um regime poltico de feio liberal, o
regime restritivo duriense comeou a ser cerceado. A Companhia viu progressivamente
os seus poderes e privilgios diminudos, a sua aco de fiscalizao reduzida. Contudo,
o novo regime poltico no tinha ainda fora suficiente para implementar, de imediato,
um novo regime econmico, de carcter liberal, tanto mais que o errio pblico era
dependente da enorme carga fiscal que recaa sobre o vinho do Porto. Assim, o decreto
de 17 de Maro de 1821 mantinha a Feira da Rgua e os bilhetes de qualificao, ao
mesmo tempo que permitia a destilao da aguardente nas trs provncias do Norte,
deixando de ser um exclusivo da Companhia. Diversas cmaras da regio duriense
solicitavam s Cortes o fim da demarcao e, pelo decreto de 11 de Maio de 1822,
desaparecia a diviso entre as zonas de vinho de feitoria e de ramo, conservando-se
somente a linha exterior da demarcao. A carta de lei de 21 de Agosto de 1823, na
8 MOREIRA, Vital O Governo de Baco: a organizao institucional do Vinho do Porto. Porto: Edies Afrontamento, 1998, p. 67. 9 PEREIRA, Gaspar Martins A regio do vinho do Porto, p. 186.
28
sequncia da vilanfrancada, reps a legislao anterior a 1820, embora confirmando a
supresso de alguns dos privilgios da Companhia, particularmente o exclusivo da
venda de vinho nas tabernas do Porto e o monoplio do comrcio no Brasil.
Em finais da dcada de 1820, o sector do vinho do Porto atravessava uma crise
comercial, com uma reduo de 20% no volume das exportaes, devido reduo das
importaes inglesas e brasileiras (consequncia das restries impostas Companhia e
concorrncia dos vinhos espanhis no mercado brasileiro). Conceio Andrade
Martins defende que esta crise se ter ficado a dever, tambm, conjuntura poltica
interna portuguesa, marcada pelas lutas liberais e pelo cerco cidade do Porto, com
incndio aos armazns da Companhia, em Gaia10.
A vitria do liberalismo, em 1834, trouxe consigo a extino da Companhia.
Pelo decreto de 30 de Maio de 1834, assistia-se primeira reforma profunda do sector,
com a adopo de um sistema de desregulao. A demarcao foi abolida, bem como o
exclusivo da barra do Porto para a exportao dos vinhos do Douro. Contudo, como o
Estado necessitava de receitas fiscais e de divisas11, manteve parte dos direitos pagos
pelo vinho do Porto e criou um novo imposto de 12$000 ris em pipa, com o argumento
de assegurar o crdito dos vinhos ao desincentivar a apropriao da marca por vinhos de
outras regies. Este facto determinou a reaco de alguns deputados do Douro e da
ACP, que resolveu protestar contra os inconvenientes da nova lei, que agravava de
forma excepcional os vinhos de segunda qualidade12.
Em 1837, Passos Manuel promulgava o regulamento de 8 de Maio, regulando o
depsito de vinhos, aguardentes e espirituosos em Vila Nova de Gaia e Porto.
Salientava-se a obrigao de armazns separados para vinhos de consumo e exportao,
proibio de transferncia de vinhos entre eles e a criao de livros de manifestos e
contas-correntes de todas as operaes de entrada e sada de vinho e aguardente.
No perodo subsequente nova legislao, as exportaes aumentaram
relativamente ao perodo de crise. Contudo, esta expanso comercial inverteu-se com a
concorrncia dos vinhos franceses e espanhis no mercado britnico. Rapidamente se
avolumaram stocks nas adegas do Douro e nos armazns dos exportadores, os preos
10 Cf. MARTINS, Conceio Andrade Memria do vinho do Porto. Lisboa: ICS, 1991, p. 93-95. 11 BARRETO, Antnio Douro. Lisboa: Edies Inapa, 1993, p. 24. J em 1833, o decreto de 13 de Abril havia imposto o direito adicional de 18$000 ris em pipa de vinho do Porto exportada para Inglaterra (MARTINS, Conceio Andrade Memria do vinho do Porto, p. 325). 12 Pelo decreto de 30 de Novembro de 1836 seria mantido o imposto de 12$000 ris sobre todo o vinho do Porto, mas estabelecia-se a possibilidade de reembolso de metade dos direitos de exportao pagos pelos vinhos de segunda qualidade.
29
sofreram uma baixa. Por outro lado, sem a presena de mecanismos de controlo, as
fraudes e falsificaes abundavam, em nmero crescente. Os vinhos do Douro
comeavam a perder crdito nos mercados internacionais. Produtores e comerciantes
durienses culpavam o novo regime de liberdade comercial e a extino da Companhia
pela situao de crise vivida. Diversos deputados pelo Douro comearam a reclamar
alteraes lei, particularmente os direitos de consumo na cidade do Porto, e de
exportao pela respectiva barra. Em resposta, as Cortes setembristas restauraram a
Companhia por 20 anos (decreto de 7 de Abril de 1838), acompanhada da demarcao e
do exclusivo da barra do Porto para a exportao dos vinhos do Douro. Conforme refere
Vital Moreira, tinha sido reposto o sistema regulacionista13. Na Cmara dos Deputados,
continuava a assistir-se ao debate entre dois sistemas de regulao e interveno do
Estado. A par da apresentao de projectos de liberalizao do sector, certas
municipalidades durienses reclamavam o restabelecimento dos privilgios e exclusivos
da Companhia, com vista a solucionar a crise do Douro.
Nos incios da dcada de 1840, o sector registava uma nova crise. A regio
duriense pedia, instantemente, a reposio dos anteriores privilgios e exclusivos da
Companhia. Vrios notveis constituam a Associao Agrcola do Alto Douro,
procurando pressionar o Estado a adoptar medidas. Tambm a ACP defendia medidas
restritivas, de carcter temporrio. Em 1842, Costa Cabral, em face das diversas
representaes e protestos, convocou, por duas vezes, uma comisso para propor ao
Governo as medidas adequadas a solucionar a crise de sobreproduo. J em 1843, o
Governo de Costa Cabral publicava a carta de lei de 21 de Abril de 1843. As atribuies
da Companhia eram alargadas, passando a dispor de um subsdio anual de 150 contos,
proveniente dos direitos de consumo e exportao dos vinhos, com a obrigao de
adquirir anualmente 20 mil pipas de vinho de 2. e 3. qualidades. Pelo decreto de 23 de
Outubro de 1843, a demarcao mantinha os contornos estabelecidos no decreto de 11
de Maio de 182214.
Apesar da nova legislao, a crise comercial e agrcola agravou-se nos anos
seguintes, num quadro de instabilidade poltica e social. O debate em torno da
Companhia continuava. De um lado, a ACP, acusando-a de ser a principal causa da
crise. Do outro, a viticultura duriense, considerando-a a sua tbua de salvao. Com a
13 MOREIRA, Vital O Governo de Baco, p. 67. 14 Ou seja, abrangia o Baixo e o Cima Corgo. Apesar de, desde a dcada de 1820, se assistir expanso do vinhedo no sentido do Douro Superior, este s viria a ser contemplado nas demarcaes do sculo XX.
30
crise de superproduo a fazer-se sentir, diversas municipalidades solicitavam a
interveno dos poderes pblicos. Em 1849, uma Comisso Especial era encarregada de
analisar as causas da crise do sector vitcola. As suas concluses apontavam o aumento
da produo relativamente ao consumo em diversos pases da Europa, com destaque
para Frana, Espanha e Itlia. Para obviar a esta situao, propunha-se a diminuio dos
direitos de consumo sobre os vinhos e a abertura de novos mercados. No que dizia
respeito ao sector do vinho do Porto, a Comisso sugeria a reviso da legislao de
1843, alteraes demarcao de feitoria, de modo a incluir apenas os genunos vinhos
do Douro, e maior eficcia na fiscalizao dos vinhos, aguardentes e jeropigas entrados
nos armazns de Vila Nova de Gaia com destino Europa.
No ano de 1852, as crticas e contestao contra a Companhia acentuaram-se,
sendo considerada, por muitos, a causa da crise que o sector atravessava.
Cientes do papel que o vinho do Porto desempenhava na balana comercial
portuguesa, vrios autores clamavam a ateno e o interesse dos poderes pblicos para a
situao crtica da regio vinhateira, reclamando a tomada urgente de medidas de fundo.
Neste cenrio, os debates entre os defensores da liberdade de comrcio e o
sistema restritivo intensificaram-se, ao mesmo tempo que a ideologia livre-cambista via
aumentar o nmero de adeptos.
A questo dos vinhos do Douro era, poca, justamente considerada uma das
mais difceis da economia portuguesa, por conjugar interesses de diferentes classes e
sectores, tornando difcil a sua resoluo. semelhana do que se verificava no sector
dos cereais, a oposio entre produtores e comerciantes suscitava e agravava a polmica
entre proteccionistas e livre-cambistas15.
A ACP, porta-voz dos exportadores e comerciantes, encabeava as
reivindicaes pela adopo de um sistema liberal para o sector do vinho do Porto. Com
esse objectivo, formaram-se diversas comisses de estudo, donde imanaram
representaes aos rgos do poder. Alegando pretender manter a proteco ao vinho do
Douro, mas livrando-o das restries a que estava sujeito, sugeria-se a reduo dos
direitos, de modo a aumentar o consumo nos pases estrangeiros e recuperar a posio
perdida para outros vinhos.
Em Fevereiro de 1852, a comisso especial de estudo da ACP propunha ao
Governo, como medidas para solucionar a crise do comrcio, a unio dos armazns de
15 Cf. CABRAL, Manuel Villaverde O desenvolvimento do capitalismo em Portugal no sculo XIX. 3. edio revista. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981, p. 212-231.
31
1 e 2 qualidade em ambas as margens do rio Douro, junto cidade do Porto. O
relatrio da referida comisso sugeria ainda a realizao de um cadastro de toda a
produo duriense e a aplicao de duas qualificaes (embarque e consumo; todo o
vinho qualificado como de 1 qualidade passaria a ser considerado de embarque e
exportado livremente, o vinho qualificado como de 2 qualidade poderia ser exportado
para fora da Europa 18 meses aps a publicao da lei). O objectivo principal seria,
como j referido, aumentar a capacidade de concorrncia nos mercados estrangeiros.
Em sesso de 15 de Maro do mesmo ano, a ACP nomeava nova comisso de
estudo. No parecer enviado aos poderes pblicos, reafirmavam-se os mesmos princpios
atrs referidos, acrescentando-lhe a manuteno do exclusivo da barra do Douro para a
exportao dos vinhos durienses, a extino do imposto de 400 ris pago Companhia,
bem como dos varejos anuais feitos por essa instituio nos armazns de Gaia e Porto;
admitia-se manter o pagamento dos 150 contos Companhia, com a obrigao desta
comprar 20 mil pipas (8 mil de embarque e as restantes de consumo para destilar).
Em Setembro, a ACP enviou uma nova representao Rainha sobre os
melhoramentos de que carece o comrcio de vinhos do Douro16, condenado runa a
menos que as suas sugestes fossem atendidas. Escudando-se nas reclamaes
britnicas sobre igualdade de direitos17, contestavam-se os direitos diferenciais e as
restries de exportao. Alegava-se que a elevao dos preos do vinho de 1.
qualidade e a elevao das taxas sobre estes vinhos haviam dado rude golpe no sistema
restritivo, contribuindo para a estagnao do comrcio. Apresentava-se o sistema de
provas, a diviso entre diversas qualidades de vinho e o diferencial de tributao como
sendo a raiz de todo o conflito entre os lavradores e comerciantes e a causa de
falsificaes e misturas, considerando que a forma de harmonizar todos os interesses
opostos consistia na adopo da liberdade de comrcio. Propunha-se a reduo a uma
nica qualificao dos vinhos a exportar e o abaixamento dos direitos de exportao18.
De imediato se desenvolveu a contestao regional, representada por diversas
municipalidades e pela Associao Agrcola do Douro, com o envio de representaes
aos poderes institudos, quer contra as reclamaes britnicas, quer contra as
16 Associao Comercial do Porto. Eco Popular, 18 Setembro 1852, 1-2. 17 O Governo britnico exigia a igualdade nos direitos de exportao do vinho do Douro, qualquer que fosse o seu destino, e a faculdade de sada directa dos vinhos de segunda qualidade para o mercado de Inglaterra por meio da classificao de todo o vinho do Douro em duas qualidades. 18 A Associao Comercial do Porto argumenta querer igualar os tipos de vinho, de modo a impedir que os de inferior qualidade, atravs de diversos artifcios, usurpem o lugar dos de primeira qualidade.
32
representaes da ACP, argumentando que, se o vinho do Douro estava sujeito a
direitos diferenciais, devia tambm ser alvo de proteco especial.
Os defensores do sistema restritivo argumentavam que, sempre que se verificara
o afrouxar do regime proteccionista, se assistira a dificuldades no escoamento da
produo e quebra dos preos. Sempre que a Companhia havia sido alvo de
remodelaes nas suas atribuies e funes, sempre que fora ensaiada uma nova
poltica, de carcter liberal, regressavam os factores de crise, tais como as fraudes,
falsificaes, alargamento da rea produtora a zonas de menor qualidade e utilizao de
vinhos estranhos regio no fabrico de vinho do Porto, acarretando o descrdito e a
estagnao. Por isso, os agentes regionais consideravam necessrio manter o sistema
restritivo, como garantia de qualidade e escoamento dos autnticos vinhos do Douro.
Na representao que a Cmara Municipal de Santa Marta de Penaguio enviou
Rainha, pedia-se que no fossem atendidas as exigncias britnicas, mas se
mantivesse o sistema restritivo, afirmando que tudo quanto interessava ao Douro, foi, e
vai ser destrudo sem piedade19. A municipalidade de Lamego remetia igualmente uma
representao solicitando a manuteno dos princpios proteccionistas, ameaando com
o boicote ao pagamento das contribuies.
Tambm a Associao Agrcola do Douro, na representao que dirigiu
Rainha, expressava a sua reprovao perante as reivindicaes inglesas, prevendo a
runa do Douro caso fossem atendidas e decretadas, pois o impedimento da exportao
dos vinhos de 2 qualidade era a garantia da manuteno da genuinidade dos vinhos da
regio duriense.
Esta posio regional encontrava eco em outros sectores. Na imprensa
portuense, por exemplo, defendia-se a inoportunidade das reivindicaes inglesas,
consideradas contrrias aos interesses de Portugal, pelo que no deviam ser atendidas20.
Alegava-se ainda que uma experincia constante de mais de um sculo, tem levado
ltima evidncia, que na Europa, e principalmente em Inglaterra, no possvel lutar
com os vinhos estrangeiros, seno o vinho do Douro de superior qualidade21. E
relativamente s doutrinas proteccionistas, a postura veiculada era semelhante.
19 2. Representao da cmara de Santa Marta. O Nacional, 26 Agosto 1852, p. 2. 20 Se a legislao que regula o comrcio dos vinhos do Douro carece de reforma, pea-se esta; mas nunca na ocasio em que ou como os estrangeiros a pedem Porto. 27 de Fevereiro. As reclamaes inglesas. O Nacional, 27 Fevereiro 1852, p. 1 21 O comrcio dos vinhos e as reclamaes inglesas. Eco Popular, 22 Julho 1852, p. 2.
33
Por outro lado, havia quem defendesse a manuteno do sistema restritivo, com
as alteraes necessrias, sugerindo, por exemplo, a igualdade de direitos de exportao
em todo o pas e a modificao no sistema de provas e arrolamentos22. Contudo, a
influncia das teorias livre-cambistas fazia-se sentir e o Governo, presidido pelo duque
de Saldanha e tendo como ministro das Obras Pblicas Fontes Pereira de Melo, atravs
do decreto de 11 de Outubro de 1852, reduzia os direitos de exportao do vinho do
Porto, ao mesmo tempo que extinguia a Companhia enquanto instncia reguladora do
sector, substituindo-a pela Comisso Reguladora da Agricultura e Comrcio das Vinhas
do Alto Douro. Tratava-se de um organismo paritrio, constitudo por dois membros
representantes da produo, eleitos por esta, e dois membros representantes do
comrcio, eleitos pela ACP, sendo presidida pelo director da Alfndega do Porto e
sedeada nesta cidade. Pelo novo decreto, cabia-lhe o exerccio das mesmas funes
atribudas extinta Companhia pombalina, excepto as de interveno no mercado. A
sua atribuio principal era fixar o quantitativo anual de exportao, em relao directa
com a procura, determinando, em consequncia, o corte proporcional na produo de
cada viticultor. Embora de tendncia liberalizante e desreguladora, a nova legislao
mantinha ainda princpios restritivos, com o objectivo de evitar o excesso de produo:
o exclusivo da barra do Porto para a exportao dos vinhos durienses, a demarcao, as
qualificaes (reduzidas a uma categoria exportvel ou no exportvel).
A nova legislao foi encarada com desconfiana na Regio Duriense,
manifestada em diversas representaes enviadas Rainha, em que se exigia a demisso
do Ministrio.
Desde os deputados regionais at imprensa (destacando-se O Peridico dos
Pobres no Porto), todos eram unnimes em considerar que o novo decreto no
significava a liberdade de comrcio, mas sim a satisfao da exigncia inglesa.
Todas as peties das cmaras municipais, anteriores ao novo decreto23, haviam
sido ignoradas pelos poderes pblicos, no em nome da necessidade e da convenincia
pblica, mas ordem de exigncias diplomticas24. Considerava-se que a nova
legislao iria acarretar o prejuzo dos lavradores em benefcio dos comerciantes.
22 Questo dos vinhos do Douro. Eco Popular, 15 Setembro 1852, p. 1-2. 23 Durante o perodo de discusso do projecto de lei, a Associao Agrcola do Douro e as cmaras municipais de Vila Real, Armamar, S. Cosmado, Santa Marta, Vilar de Maada e Lamego enviaram representaes contra o futuro Decreto. (Cmara dos Deputados. Pargrafos do discurso do Sr. Cunha Sottomaior sobre a lei da ditadura sobre vinhos. O Peridico dos Pobres no Porto, 18 Abril 1853, p. 366-368. 24 Notcias da capital. O Peridico dos Pobres no Porto, 27 Outubro 1852, p. 1086-1087.
34
No parlamento, os defensores do proteccionismo procuravam igualmente
demonstrar que o decreto de 11 de Outubro estava confeccionado, tanto contra os
princpios proteccionistas, como contra as doutrinas da liberdade comercial25.
Tornavam claro que o novo diploma legal reflectia o pedido da diplomacia britnica, ao
instituir a igualdade nos direitos de exportao do vinho do Douro, qualquer que fosse o
seu destino, e ao permitir o envio directo dos vinhos de segunda qualidade para o
mercado de Inglaterra atravs da classificao de todo o vinho do Douro em duas
qualidades (exportvel e no exportvel). Rebatiam a argumentao favorvel nova
legislao liberal, segundo a qual o decreto de 11 de Outubro de 1852 constitua a
aplicao dos mesmos princpios de liberdade de comrcio, de que o governo tinha dado
exemplo na extino da roda do sal, do monoplio do ch, na reforma das pautas26;
para os deputados da oposio, o novo quadro legal do sistema do vinho do Porto era,
pelo contrrio, o resultado de uma enorme confuso entre os princpios econmicos de
liberdade de comrcio e as teorias proteccionistas27
Simultaneamente, os deputados pelo Douro defendiam tratar-se de uma questo
econmica, que devia ser considerada debaixo de dois grandes pontos de vista: como
uma questo nacional, dado o seu peso na economia e a importncia que desempenhava
no desenvolvimento de outras indstrias, e como uma questo de interesse local, em
virtude de se tratar da base econmica da regio duriense. Um dos representantes
regionais, Afonso Botelho de Sampaio e Sousa, declarando intervir em nome dos
eleitores do Douro para tratar dos seus interesses, que entendia atacados, afirmava que o
decreto de 11 de Outubro concedeu garantias ao comrcio mas no satisfazia os
requisitos de proteco viticultura, necessitando de ser revisto28. Nesse sentido,
defendendo o sistema restritivo, apresentou, na sesso de 20 de Junho de 1853 da
Cmara dos Deputados, um projecto de alterao ao decreto que modificou o sistema
protector da viticultura do Douro, restabelecendo as demarcaes de ramo e de feitoria,
bem como o arrolamento com base nessas demarcaes. Por seu lado, Fontes Pereira de
Melo defendia o novo regime, declarando que o Governo no pretendia modificar o
25 Cmara dos Deputados. 2. discurso do Sr. Correia Caldeira, na parte relativa questo do Douro. O Peridico dos Pobres no Porto, 27 Abril 1853. p. 399-400. 26 Idem, p. 401. 27 Segundo o deputado Cunha Sottomaior, o Governo portugus diminuiu direitos, proibiu como quis e entendeu de sorte que os decretos so o amalgame das doutrinas mais absurdas das duas escolas Cmara dos Deputados. Pargrafos do discurso do Sr. Cunha Sottomaior sobre a lei da ditadura sobre vinhos. O Peridico dos Pobres no Porto, 18 Abril 1853, p. 366. 28 Cf. Dirio da Cmara dos Deputados, Sesso de 20 de Junho de 1853 consultado no site http://debates.parlamento.pt.
35
decreto de 11 de Outubro, manifestando absoluta crena nas enormes vantagens do
sistema liberal para o comrcio dos vinhos do Douro29.
1.2. Condies de passagem do regime proteccionista do vinho do Porto e da sua
regio produtora para o regime liberal
1.2.1. A Regio vinhateira no terceiro quartel do sculo XIX
No incio da dcada de 1850, assistia-se ao desenvolvimento de um ciclo
depressivo no sector dos vinhos, que constitua uma parte significativa no total do
produto agrcola portugus. Tal ciclo depressivo, iniciado em finais da dcada de
quarenta, iria estender-se pelas dcadas seguintes30.
O aparecimento do odio, em 1852, originando quebras drsticas e prolongadas
na produo, de modo particular no Baixo e Cima Corgo, marcou um momento de
viragem na viticultura portuguesa31. Como refere David Justino32, o odio reduziu em
cerca de metade a produo vincola entre as dcadas de 1850-1870, acarretando, em
simultneo, alteraes importantes na geografia da produo vincola ao longo da
segunda metade do sculo XIX; no caso particular do Douro, propiciou a intensificao
da cultura da vinha no Douro Superior, iniciada na dcada de 182033.
Do ponto de vista social, os custos resultantes da praga foram elevados. Se, por
um lado, a crise do odio actuou como factor de modernizao da viticultura34, o
tratamento da doena, base de enxofre, conduziu a um aumento das despesas de
produo, levando runa de muitos lavradores. Sem meios para combater a molstia,
abandonaram-se as vinhas35, verificando-se, a breve prazo, a transferncia de
29 Cf. Dirio da Cmara dos Deputados, Sesso de 23 de Julho de 1853 consultado no site http://debates.parlamento.pt. 30 Cf. MARTINS, Conceio Andrade A Agricultura. In LAINS, Pedro; SILVA, A. F. (coord.) Histria Econmica de Portugal, 1700-2000: O sculo XIX, Lisboa: ICS, 2005, vol. 2, p. 222. 31 Idem, p. 233-234. 32 Cf. JUSTINO, David A formao do espao econmico nacional. Portugal, 1810-1913. Lisboa: Vega, 1989. Vol. 1, p. 29-49. 33 Cf. PEREIRA, Gaspar Martins A produo de um espao regional. O Alto Douro no tempo da filoxera. Revista de Histria da Faculdade de Letras do Porto. Porto. 2. Srie: vol. 6 (1989) 318. 34 PEREIRA, Gaspar Martins Crise e revoluo vitcola na segunda metade do sculo XIX. Porto: 2005. Lio de Sntese apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto para Provas de Agregao em Histria, p. 17. 35 Na sesso de 1 de Maro de 1861 o visconde de Gouveia props que o Governo dispendesse a quantia de 50 contos de ris com a compra e aplicao de enxofre para distribuir aos lavradores menos abastados.
36
propriedade36 e o desenvolvimento de uma nova geografia social, mais notria com a
invaso da filoxera. A desvalorizao do vinho conduziu desvalorizao das terras,
acentuando a dependncia da viticultura face ao comrcio. Sucederam-se as hipotecas e
a arrematao de propriedades em hasta pblica, com muitas delas a passarem para as
mos de comerciantes e capitalistas, surgindo um tipo de agricultor moderno, o
empresrio agrcola37.
1.2.2. A conjuntura comercial
Entre 1811 e 1864, a par de diversas mudanas na organizao econmica do
sector e da regio, sucederam-se anos de superproduo e graves crises vincolas38. O
perodo entre 1857 e 1860 registou a crise mais grave, tendo as exportaes cado 45%
e as receitas 34%, embora os preos se tivessem mantido relativamente elevados desde
185339. Como defendem Gaspar Martins Pereira40 e David Justino41, o odio,
espalhando-se rapidamente por toda a Regio e fazendo baixar a produo, permitiu o
escoamento dos stocks e a subida dos preos.
A causa principal da crise situava-se na recesso geral da procura mundial de
vinho do Porto, motivada pelo comportamento do mercado ingls, responsvel por mais
de 90% das quebras verificadas neste perodo. O vinho do Porto constitua uma das
principais fontes de receita do comrcio externo portugus e a Gr-Bretanha era o
principal mercado desde finais do sculo XVII42. Ao longo da segunda metade do
sculo XIX, esta situao inverteu-se e o vinho do Porto viu a sua posio ser ocupada
pelos vinhos espanhis e franceses. A perda de posio no mercado britnico agravou-
se em 1860, com a assinatura de um tratado de comrcio entre a Frana e a Inglaterra,
Na Sesso de 30 de Julho de 1861 da Cmara dos Deputados, renovou a sua iniciativa, propondo ao Governo a distribuio de enxofre aos lavradores que no tivessem meios de os comprar, pedido novamente ignorado. 36 PEREIRA, Gaspar Martins A evoluo histrica. In Viver e saber fazer. Tecnologias tradicionais na Regio do Douro: Estudos preliminares. 2. edio. Peso da Rgua: Fundao Museu do Douro, 2006, p. 116. 37 PEREIRA, Miriam Halpern Livre-cmbio e desenvolvimento econmico. 2. edio. Lisboa: S da Costa Editora, 1983, p. 141. 38 Cf. MARTINS, Conceio Andrade Memria do vinho do Porto, p. 91-106. 39 Idem, p. 95. 40 PEREIRA, Gaspar Martins A evoluo histrica, p. 115-116. 41 Cf. JUSTINO, David A formao do espao econmico nacional, vol. 2, p. 28-30. 42 LOPES, Teresa da Silva Os mercados do vinho do Porto. In PEREIRA, Gaspar Martins (coord.) O vinho do Porto. Porto: IVDP, 2003, p. 133.
37
que beneficiava, atravs da reduo de direitos, os vinhos franceses neste mercado43. No
ano seguinte, a Inglaterra estabeleceu direitos de importao proporcionais ao grau
alcolico dos vinhos, criando um entrave exportao de vinho do Porto, de forte
graduao.
A par da diminuio geral das exportaes, a situao do sector produtivo e
comercial, a nvel interno, era mais grave. O aumento da produo, em consequncia do
alargamento da rea vitcola, coincidindo com o retraimento das exportaes no incio
do sculo XIX, levara acumulao de stocks e diminuio dos preos, ao mesmo
tempo que a liberalizao do comrcio (ocorrida entre 1834 e 1838), fomentava a
concorrncia dos vinhos do Sul44. Durante as dcadas de 1820 e 1830, assistira-se
euforia da plantao de vinhas nos terrenos de vrzea, maioritariamente destinadas
destilao. Os nveis de produo foram sempre crescentes at dcada de 1850, data
em que tambm os vinhedos do Sul foram afectados pelo odio. A escassez provocada
pela praga fez subir os preos de vinhos e aguardentes, animando os proprietrios do
Sul a replantarem de vinha os seus terrenos. Assistiu-se, ento, a um aumento da
produtividade por hectare devido s alteraes na organizao da produo e
propagao de novas prticas culturais introduzidas com o combate doena da
videira45.
1.2.3. O confronto entre livre-cambistas e proteccionistas em torno da questo
vinhateira, em finais da dcada de 1850
A segunda metade do sculo XIX portugus ficou marcada pelo amplo debate
entre livre-cambismo e proteccionismo, em diversos sectores da economia, desde o
vinho aos cereais. Avultaram, neste perodo, as intervenes no Parlamento, os artigos
na imprensa, os comcios e reunies, dado que a teoria livre-cambista se tornara
dominante entre os economistas nacionais46. No caso do sector vitivincola, o debate,
iniciado ainda na dcada de 1820, encontrara no contexto poltico da Regenerao, o
43 Cf. MARTINS, Conceio Andrade Memria do vinho do Porto, p. 95-104. 44 Ibidem. 45 Cf. MATIAS, Maria Goretti Vinho e vinhas em tempo de crise: o odio e a filoxera na regio Oeste, 1850-1890. Caldas da Rainha: Patrimnio Histrico Grupo de Estudos, 2002, p. 72-103. 46 Cf. PEREIRA, Miriam Halpern Livre-cmbio e desenvolvimento econmico, p. 6.
38
ambiente necessrio para transformar em lei alguns dos projectos governamentais de
carcter liberalizante47.
No fim da dcada de 1850, a crise comercial vivida na praa do Porto fez
reacender a discusso entre livre-cambistas e proteccionistas em torno da questo
vinhateira, tornando-se transversal a toda a sociedade portuguesa. Regressavam os
debates no Parlamento, desenvolvia-se a troca de argumentos na imprensa,
desencadeava-se uma intensa reaco regional. A questo vinhateira tornava-se, assim,
na segunda metade do sculo XIX, uma verdadeira questo nacional.
As irregularidades cometidas pela Comisso Reguladora no arrolamento dos
vinhos48 forneciam argumentos aos partidrios dos princpios livre-cambistas, que viam
na falta de uma fiscalizao rigorosa, na m execuo da lei, a melhor demonstrao da
incongruncia do sistema restritivo e o meio mais fcil de provar as vantagens do
estabelecimento da liberdade do comrcio. Considerava-se, pois, que as leis que regiam
o comrcio de vinhos eram anmalas, por permitirem a existncia de fraudes e
irregularidades.
O baro de Massarelos, frente da Associao Comercial do Porto, tornava-se
um dos principais rostos de defesa dos princpios livre-cambistas, principalmente
atravs da imprensa. Analisando a crise comercial e a decadncia da regio duriense,
sustentava a opinio de que tal se devia existncia de uma lei especial, reguladora,
ainda em vigor. Considerava o sistema restritivo, no quadro das relaes comerciais
internacionais, completamente ultrapassado e a base da runa da produo vincola
duriense, por aniquilar a sua exportao. Ao contrrio da argumentao proteccionista,
alegava que as imitaes de vinho do Porto, que reconhecia abundarem nos mercados
externos, s poderiam ser vencidas, libertando o comrcio e a produo de todas as
restries.
O tratado comercial entre a Frana e a Inglaterra, celebrado a 23 de Janeiro de
1860, veio dar novo impulso s reivindicaes de liberalizao do sector dos vinhos, de
modo especial por parte da Associao Comercial do Porto. Em inmeros artigos de
opinio e editoriais publicados em O Comrcio do Porto49, defendia-se que o novo
tratado abria novas oportunidades de mercado, de modo especial para os vinhos de
47 Cf. CABRAL, Manuel Villaverde o. c., p.164. 48 Cf., a ttulo de exemplo, Do nosso correspondente da Rgua. Eco da Beira e Douro, 18 Novembro 1854, p. 3. 49 Cf., a ttulo de exemplo, Porto, 20 de Fevereiro. Vinhos. O Comrcio do Porto, 20 Fevereiro 1860, p. 1.
39
menor graduao, no s da regio do Douro mas tambm das restantes regies
vincolas, que apenas seriam aproveitadas com a eliminao dos direitos de exportao,
com a reforma da legislao duriense50, com a aposta no estudo e fabrico de novos tipos
de vinhos, adequados nova pauta inglesa e aos novos gostos dos mercados
consumidores. Neste sentido, foram enviadas vrias representaes ao Governo e s
Cortes, insistindo na reforma da legislao vincola no sentido da liberalizao,
argumentando com uma melhor capacidade de enfrentar a concorrncia e aproveitar as
novas condies de mercado51.
A Junta Geral do Distrito do Porto juntou a sua voz da ACP na defesa dos
princpios livre-cambistas. Em sesso de 19 de Maro de 1860, convocada para a
discusso da questo vincola em face da nova pauta inglesa, considerou-se a legislao
vigente absurda, sendo imprescindvel reform-la de acordo com os verdadeiros
princpios da liberdade do comrcio, e como o pediam as reformas feitas em
Inglaterra52. Deliberou-se dirigir uma consulta especial ao Rei, instando pela reforma
da legislao vinhateira no sentido liberalizador, alegando que, dessa forma, beneficiar-
se-ia a viticultura duriense e a restante do pas, face s novas condies de mercado
proporcionadas pelo novo tratado. semelhana da ACP, mostrou-se particularmente
preocupada com as nefastas consequncias da tributao diferencial em Inglaterra,
particularmente para os vinhos finos durienses, mais graduados, solicitando que fossem
empreendidos esforos diplomticos junto do Governo ingls, no sentido de que os
vinhos portugueses ficassem abrangidos pela mesma escala tributria aplicada
Frana53.
Em oposio s iniciativas do sector comercial, a viticultura duriense pugnava
pela manuteno do sistema restritivo, admitindo e/ou solicitando as necessrias
alteraes, no sentido de uma maior eficcia da lei. frente das movimentaes,
encontravam-se os deputados regionais que, a par da interveno nas Cortes,
procuravam unir a regio vinhateira no mesmo combate. Nesse sentido, o deputado por
Lamego, Antnio Pinheiro da Fonseca Osrio, organizou uma reunio de lavradores na
Cmara Municipal de Lamego, em 18 de Fevereiro de 1860, para, em conjunto, se 50 Tendo Portugal perdido o estatuto de nao favorecida junto de Inglaterra, o sistema restritivo, na sua opinio, deixava de fazer sentido. 51 Cf. Associao Comercial do Porto. O Comrcio do Porto, 28 Maro 1860, p. 1. Esta tomada de posio contar com o apoio do baro de Forrester que, atravs de carta dirigida Direco, declara que tais reivindicaes correspondem a todas as teses que tem defendido desde 1844 (Cf. AHACP: Actas da Direco, Lv. 8, fl. 140). 52 Boletim noticioso: questo duriense. Eco Popular, 21 Maro 1860, p. 3. 53 Cf. Vinhos. O Comrcio do Porto, 10 Abril 1860, p. 1.
40
decidir a melhor forma de enfrentar a crise que a regio atravessava. Foram
apresentados dois projectos: um de Afonso Botelho de Sampaio e Sousa, deputado pelo
crculo de Sabrosa e um dos mais estrnuos defensores do Douro no Parlamento54, e
outro de Antnio Pereira Zagalo, tendo sido nomeada uma comisso para os apreciar e
dar o seu parecer55. Datado de 19 de Maro desse ano, o parecer manifestava a opinio,
unnime a nvel regional, de que a runa do Douro comeara com a extino da
Companhia, atravs do decreto de 11 de Outubro de 1852, originando a abundncia de
vinhos, a descida dos preos e o descrdito, considerando que a Regio Demarcada do
Douro possua caractersticas de excepo, pelo que necessitava de leis excepcionais.
Passando anlise dos dois projectos, conclua que eram opostos e inconciliveis: um
pretendia a ampla liberdade de comrcio, que a Comisso considerava no vantajosa por
conduzir contrafaco, enquanto o outro continha medidas excessivamente restritivas,
tornando-se, por isso, impossvel de realizar. Assim, a Comisso no se comprometeu
com nenhum dos projectos, optando por realar a necessidade de acabar com a
introduo de vinhos estranhos no Douro, que promoviam o descrdito, a abundncia e
o barateio: se o Douro no pode obter privilgios, que pelas leis lhe seriam talvez
devidos, no pode prescindir dos que lhe deu a natureza56. E decidiu mandatar Pinheiro
Osrio para, em colaborao com os demais deputados durienses, elaborar um projecto
que consignasse medidas de atenuao da misria regional, tais como o
estabelecimento, pelo Governo, de depsitos de enxofre, a distribuir pelos viticultores
com condies especiais de aquisio, proibio de entrada de vinhos estranhos
demarcao e promoo da exportao de vinhos do Douro genunos, estabelecimento
de um banco rural, aumento da disponibilidade de mo-de-obra, promovendo o granjeio
das vinhas por um pagamento adequado e impedindo os jornaleiros de se empregarem
em obras pblicas na poca das cavas57. Deveria ainda ser dada especial ateno
organizao de uma instituio regional supracamarria, a quem ficaria entregue a
representao regional. Desprovido de unidade administrativa, o Douro necessitava de
54 Cf. MARTINS, Conceio Andrade Sousa, Afonso Botelho de Sampaio e. In MNICA, Maria Filomena (coord.) Dicionrio Biogrfico Parlamentar. Lisboa: ICS/ Assembleia da Repblica, 2006, Vol. 3, p. 791-794. 55 Noticirio: Reunio de lavradores do Douro. O Comrcio do Porto, 24 Fevereiro 1860, p. 3. A Comisso compunha-se de Antnio Pereira Zagalo, Francisco de Melo Peixoto, Antnio Taveira Fonseca, Simo Jos Pereira e Antnio Alves da Fonseca. 56 Em virtude de resoluo da cmara dos srs. deputados se publica a seguintes acta da reunio dos lavradores do Douro, que se efectuou em Lamego, apresentada ao parlamento pelo sr. Deputado Pinheiro Osrio, em sesso de 26 do corrente. Dirio de Lisboa, 1 Junho 1860, p. 581. 57 Idem, p. 581-582.
41
um centro que unificasse o movimento reivindicativo, de modo a poder obter o auxlio
do Estado, uma vez que, por vezes, as posies manifestadas eram, como no presente
caso, divergentes entre si58. Deveria, pois, promover-se a organizao da viticultura,
segundo o projecto apresentado na Cmara de Lamego, em Fevereiro de 1849, aprovado
por todas as cmaras municipais do Douro59.
O clima de conflitualidade e discusso estendeu-se aos trabalhos parlamentares,
assistindo-se, no ano de 1860, a acesos debates travados entre os representantes das
diversas regies.
Tambm no Parlamento o tratado entre a Inglaterra e a Frana funcionou como
uma mola impulsionadora no relanar do debate sobre os modelos de regulao. Na
sesso de 24 de Fevereiro, Lus Vicente d Afonseca, deputado pelo Funchal, dirigiu
uma interpelao ao ministro da Fazenda (Jos Maria do Casal Ribeiro), salientando as
graves consequncias para Portugal decorrentes do referido tratado, particularmente no
sector dos vinhos, pretendendo esclarecimentos acerca da posio do Governo a este
respeito. Na sua resposta, Casal Ribeiro declarou que o Governo entendia que o tratado
no era desfavorvel a Portugal, revelando, assim, estar em sintonia com a posio
adoptada pelo sector comercial. Reafirmava ainda a vontade do Governo de apresentar,
brevemente, um projecto tendente reforma da legislao vinhateira do Douro60,
estabelecendo legislao mais liberal, livre dos princpios restritivos, de modo a que o
comrcio portugus pudesse aproveitar as alteraes feitas pela Inglaterra na sua prpria
legislao. Igual posio manifestaria na Cmara dos Pares quando, interpelado a este
respeito pelo visconde de Castro, na sesso de 12 de Maro, afirmou que o novo tratado
58 Como refere Antnio Barreto, no tendo a regio quem a represente, como um todo, falam por ela grupos de interesses, uns com origem no Douro propriamente dito, outros sedeados no Porto e em Vila Nova de Gaia (BARRETO, Antnio Douro, p. 56). 59 De acordo com Conceio Andrade Martins, existira, em 1839, uma Associao Agrcola do Alto Douro, presidida pelo visconde de Samodes, que teve vida efmera (cf. MARTINS, Conceio Andrade A interveno poltica dos vinhateiros no sculo XIX. Anlise Social. Lisboa. Vol. 31 (1996) 414 e Memria do vinho do Porto, p. 329-338). Segundo refere Gaspar Martins Pereira, em 1842 a Associao dos Agricultores do Douro estava sedeada na Rgua, contando com a adeso das cmaras municipais (Cf. PEREIRA, Gaspar Martins So Joo da Pesqueira, de finais do pombalismo s vsperas da I Repblica. S. Joo da Pesqueira: Cmara Municipal de S. Joo da Pesqueira. No prelo). Ainda segundo o mesmo autor, em 1849 a Associao dos Lavradores do Douro ainda se mantinha em funes, defendendo o regresso demarcao pombalina (ibidem). Esta Associao ainda existiria em 1853. No ano de 1860, viria a ser fundada nova Associao dos Agricultores do Douro, que teria papel de destaque no debate entre livre-cambistas e proteccionistas a partir de 1861, como se ver mais frente. 60 Logo ao iniciar a legislatura de 1860, o Governo, aps reunir com vrios deputados, declarara que em breve seriam apresentadas medidas relativas ao Douro, consideradas urgentes, dado o estado calamitoso em que a regio se encontrava. Perante as declaraes do ministro, os autarcas durienses procuraram acautelar os interesses regionais, e, em Abril de 1860, representantes das vrias cmaras do Douro reuniam-se para acertarem uma posio comum acerca da legislao que mais convinha ao Douro cf. Gazetilha: Notcias do Douro. O Nacional, 17 Abril 1860, p. 2.
42
iria beneficiar Portugal, porque permitia a abertura do mercado a outros tipos de vinhos,
denominados inferiores, centrando-se a a preocupao do Governo: identificar os tipos
de vinhos, mtodos de fabrico, formas de os melhorar, de modo a aproveitar o que se
consideravam novas oportunidades e nichos de mercado61.
As posies livre-cambistas comeavam, assim, a ganhar cada vez maior peso.
Defendia-se, insistentemente, a necessidade de alterar a legislao, substituindo as
restries (particularmente o exclusivo da barra do Porto para os vinhos do Douro) pelo
direito marca, como garantia de procedncia e genuinidade dos vinhos superiores do
Douro.
Neste ambiente de debate, com o Governo a prometer a reforma da legislao
por modo conveniente62, e no momento em que era constituda uma Comisso
especial, na Cmara dos Deputados, para se dedicar ao estudo da questo vinhateira63,
alguns deputados regionais procuravam antecipar-se ao Governo, apresentando
projectos de reforma da legislao, mantendo os princpios proteccionistas. Foi o caso
do deputado por Vila Flor, Antnio Joaquim Ferreira Pontes, que apresentou um
projecto de regulao do arrolamento dos vinhos do Douro, por considerar que a
fiscalizao no era suficiente nem eficaz64. Destinado a colocar um entrave ao
contrabando e s falsificaes que se praticavam no fabrico de vinhos do Douro,
recorrendo lotao com vinhos de outras regies, provocando o descrdito e a
acumulao de stocks, o arrolamento passaria a ser feito por uma comisso eleita por
todos os concelhos da regio demarcada. Depois da vindima, seriam lanados, em livro
prprio, os assentos relativos a cada adega, facultando uma cpia ao regedor da
parquia e ao administrador do concelho. Seguidamente, seria redigido o livro-mestre,
com indicao de todas as adegas do pas vinhateiro do Douro, com os nomes de todos
os proprietrios, quantidade, cor e qualidades mais notveis do vinho ou da jeropiga. O
lavrador que quisesse carregar o seu vinho teria de se dirigir ao regedor da parquia
para que este desse baixa e uma guia ao lavrador, a ser entregue ao administrador do
concelho que, por sua vez, lhe entregaria uma guia destinada ao transporte do vinho at
Rgua. A, era dada baixa no livro-mestre e entregue a guia a apresentar na Alfndega
61 Cf. Porto, 23 de Maro. Vinhos. O Comrcio do Porto, 23 Maro 1860, p. 1. 62 Porto, 14 de Maro de 1860. Vinhos. O Comrcio do Porto, 14 Maro 1860, p. 1. 63 Presidida por Afonso Botelho de Sampaio e Sousa, deputado pelo crculo de Sabrosa, e secretariada por Eduardo Pinto da Silva e Cunha, deputado por Vila Pouca de Aguiar (Cortes. O Comrcio do Porto, 14 Maro 1860, p. 1). 64 Apresentado na Sesso da Cmara dos Deputados de 10 de Maro de 1860, admitido e enviado Comisso dos Vinhos.
43
do Porto. Se o lavrador pretendesse vender o seu vinho antes de o carregar, teria
tambm de informar o regedor, de modo a que essa informao fosse inscrita no livro e
participada ao administrador e sede da Comisso, na Rgua. No ano seguinte, antes da
vindima, deveria proceder-se a novo arrolamento, a fim de verificar a existncia do
vinho que no tivesse sido carregado, bem como impedir que a mistura com o novo
produzisse um aumento fictcio na novidade desse ano; dando-se o caso de se verificar a
existncia de vinho no mencionado no primeiro arrolamento, seria apreendido e
destilado, vendendo-se a aguardente em hasta pblica e revertendo em benefcio da
Fazenda.
Manuel Antnio de Carvalho Seixas Penetra, deputado regenerador pelo crculo
de Peso da Rgua, procurou, igualmente, contribuir para o aperfeioamento da
legislao dos vinhos do Douro, mantendo-lhe o seu carcter restritivo. Nesse sentido, e
semelhana do deputado de Vila Flor, apresentou, na sesso de 11 de Abril de 1860,
um projecto de lei sobre arrolamento dos vinhos do Alto Douro para efeitos de
demarcao de feitoria Nesse projecto, admitido e enviado Comisso dos Vinhos,
Seixas Penetra argumentava com a importncia capital do sector dos vinhos do Douro,
pelo montante proveniente da exportao e dos direitos que sobre ele recaam. Tornava-
se, pois, evidente, a necessidade de proteco especial, aumentada pelo facto de se tratar
de vinhos cultivados em terrenos imprprios para outras culturas. No seu projecto de lei,
propunha o estabelecimento de quantitativos de benefcio por proporo do arrolamento
geral, a aplicar quando a produo excedesse as 30 mil pipas por ano. Nesse caso, o
arrolamento dos vinhos de feitoria seria feito por meio da louvao, entregando-se ao
viticultor um documento com o quantitativo que lhe era concedido para exportao.
Estabelecia ainda a fundao de um banco, com a obrigao de emprestar dinheiro aos
lavradores para os seus granjeios, comprar certo nmero de pipas, varivel conforme o
excesso relativamente s 30 mil pipas, e fabricar a aguardente do vinho do Douro; em
contrapartida, os lavradores tinham de comprar ao banco meio almude de aguardente
por cada pipa de vinho de exportao, num mnimo de 2 almudes, sob pena de lhes ser
negada a exportao do vinho de feitoria.
1.2.4. Os projectos governamentais de liberalizao do sector, em 1860 e 1861
Em face da forte presso exercida pelo sector da exportao, o ministro das
Obras Pblicas, Comrcio e Indstria, Antnio de Serpa, apresentava, em Maio de
44
1860, um projecto de reforma da legislao vincola do Douro, no sentido da liberdade
comercial, dando assim incio ao processo de abolio da regulao do vinho do
Porto65.
Antnio de Serpa era um dos principais intervenientes no debate poltico,
considerando o modelo livre-cambista como um meio fundamental para resolver o
problema agrcola66. Defendia a total liberdade de comrcio e opunha-se a qualquer tipo
de restries, deslocando o centro da discusso, do plano tcnico da pauta e do
mercado, para o plano mais vasto da concepo e da organizao da sociedade67.
Concebia o desenvolvimento atravs da introduo de capital, desenvolvimento de vias
de comunicao e do ensino agrcola68.
Eco dos debates parlamentares e da teoria dominante, o seu projecto propunha a
extino do sistema restritivo, complementada por uma lei consagrando a marca como
garantia de propriedade e genuinidade69. O objectivo principal da reforma seria
desenvolver a livre troca nos mercados internacionais, aderindo a um sistema j
desenvolvido em pases como a Inglaterra, cujo mercado se pretendia manter e
desenvolver para novos tipos de vinho.
No relatrio do primeiro projecto (Projecto 51-E, de 29 de Maio de 1860),
reconhecia-se o sector dos vinhos como o mais importante do comrcio. Declarava-se
que Portugal produzia vinhos inferiores que podiam ser preparados para a exportao,
em concreto para o mercado ingls, mas que a legislao duriense dificultava o
desenvolvimento deste ramo do comrcio. As restries, particularmente o exclusivo da
barra do Porto para a exportao dos vinhos de primeira qualidade, no impediam as
falsificaes e prejudicavam o comrcio dos vinhos do Douro e de outros vinhos,
privando o pas dos lucros da exportao dos vinhos inferiores. Para melhorar o sector,
preconizava-se a abertura de vias de comunicao e a instruo das classes agrcolas,
rejeitando a interveno directa do Estado, apontando assim j para um modelo de
desregulao. Como alternativa legislao vigente, institua-se a liberdade de
exportao de todos os vinhos pela barra do Porto, a revogao de todas as leis e
regulamentos protectores e a abolio do imposto de exportao de 2$400 ris em pipa,
reduzindo-o ao valor que pagavam os outros vinhos, procurando evitar, dessa forma, a 65 MOREIRA, Vital O Governo de Baco, p. 93. 66 Cf. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares Conflitos ideolgicos do sculo XIX. Revista de Histria das Ideias. Coimbra. Vol. 1 (1977) 41-118. 67 Idem, p. 79. 68 Idem, p. 107. 69 Cf. Porto, 23 de Junho. Lei das Marcas. O Comrcio do Porto, 23 Junho 1860, p. 1.
45
quebra das receitas pblicas, bem como a reaco dos empresrios e trabalhadores,
favorecidos pelo regime proteccionista70.
Mal foram conhecidos estes projectos, a ACP manifestou o seu total apoio,
atravs do envio de representaes ao Parlamento e demais poderes pblicos. Nas
pginas de O Comrcio do Porto, teciam-se grandes elogios ao esprito da reforma,
por consagrar a liberdade e, simultaneamente, a genuinidade contra as falsificaes71.
Pressionava-se a Cmara dos Deputados para que os projectos fossem aprovados ainda
antes da colheita seguinte, de modo a que o comrcio se pudesse preparar para a
concorrncia no mercado de Londres, tanto mais que todos os outros pases se
preparavam para tirar vantagens da alterao da pauta inglesa. O comrcio
fundamentava a sua posio com a alterao de circunstncias, desde que o sistema
restritivo fora implementado: a produo vincola, no pas e no estrangeiro, aumentara
muito, os vinhos do Douro haviam perdido o exclusivo que tinham em certos mercados
e o sistema restritivo no tinha sido capaz de evitar as fraudes e falsificaes72.
Tambm de imediato, a regio duriense alarmou-se e reclamou contra os
projectos ministeriais, insistindo nas vantagens do sistema restritivo.
A posio regional ficaria bem sintetizada na expresso do correspondente de
O Comrcio do Porto na Rgua: o Sr. Serpa decretou a morte da indstria vincola
apresentando uma medida inqualificvel sobre o cadver do Douro meio rudo pelos
vermes do oidium73. No sentir da Regio, o projecto no estabelecia a liberdade mas
sim a fraude e o abuso, havendo j a ameaa da Espanha, que declarara pretender
exportar pela barra do Porto os seus vinhos. Duvidava-se, igualmente, da eficcia da lei
das marcas proposta. Em consequncia, os povos prometiam aces de protesto e
multiplicavam-se as representaes contra as propostas do ministro, enviadas Cmara
dos Deputados pelas cmaras municipais da regio e centenas de lavradores.
Refira-se a representao enviada por cerca de 300 lavradores de Vila Real, em
15 de Junho de 1860, representativa do pensar da Regio a este respeito. Comeava-se
por manifestar perplexidade pelas propostas apresentadas, pois que, desde que o
ministro anunciara a reforma da legislao vincola, a esperana da regio residia em
obter uma melhoria da situao de crise vivida: quando anelvamos uma reforma,
70 RIBEIRO, Maria Manuela Tavares o. c., p. 115. 71 Cf. Porto, 8 de Junho. Indstria e Comrcio dos Vinhos. O Comrcio do Porto, 8 Junho 1860, p. 1. 72 Cf. Porto, 13 de Junho. Indstria e Comrcio dos Vinhos. O Comrcio do Porto, 13 Junho 1860, p. 1. 73 Interior. Rgua, 25 de Junho. O Comrcio do Porto, 28 Junho 1860, p. 2.
46
somos fulminados com uma extino74. Reconhecia-se a necessidade de uma reforma
da legislao, mas no no sentido em que estava direccionada. Espelhando o conflito
que separava o comrcio da produo, afirmava-se que o projecto satisfazia apenas os
desejos da ACP, referindo-se em particular representao de 22 de Maro, qual,
segundo a prpria ACP75, o Governo respondera prontamente com o projecto em
discusso. Ora, a questo vincola afectava duas classes, produo e comrcio, e, por
isso mesmo, ambas deviam ser ouvidas. No eram postos em causa os princpios de
liberdade, mas considerava-se no serem aplicveis ao