nossa améria: revista do memorial da américa latina

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Nossa Améria: Revista do Memorial da América Latina

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GOVERNADORGERALDO ALCKIMIN

SECRETÁRIO DA CULTURAANDREA MATARAZZO

FUNDAÇÃO MEMORIALDA AMÉRICA LATINA

CONSELHO CURADOR

SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO PAULO ALEXANDRE BARBOSA

REITOR DA USPJOãO GRANDINO RODAS

REITOR DA UNICAMPFERNANDO FERREIRA COSTA

REITOR DA UNESP (em exercício)JÚLIO CEZAR DURIGAN

PRESIDENTE DA FAPESPCELSO LAFER

DIRETORIA EXECUTIVA

DIRETOR PRESIDENTEFERNANDO LEÇA

DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRODE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINAADOLPHO JOSÉ MELFI

DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAISFERNANDO CALVOZO

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIROSÉRGIO JACOMINI

CHEFE DE GABINETEIRINEU FERRAZ

DIRETOR PRESIDENTEMARCOS ANTONIO MONTEIRO

DIRETOR INDUSTRIALTEIJI TOMIOKA

DIRETOR FINANCEIROMARIA FELISA MORENO GALLEGO

DIRETOR DE GESTãO DE NEGÓCIOSJOSÉ ALEXANDRE PEREIRA DE ARAÚJO

REVISTA NOSSA AMÉRICA

DIRETORFERNANDO LEÇA

EDITORA EXECUTIVA/DIREÇãO DE ARTELEONOR AMARANTE

EDITORA ADJUNTAANA CANDIDA VESPUCCI

ASSISTENTE DE REDAÇãOMÁRCIA FERRAZ

DIAGRAMAÇãO (ESTAGIÁRIO)FELIPE DE PAULA LOPES

REVISãO (ESTAGIÁRIO)ADRIANO TAKESHI MIYASATO

DIAGRAMAÇãO E ARTEESTAÇãO DAS ARTES/SILVIA SATO

TRADUÇãO E REVISãOESTAÇãO DAS ARTES/DEISE ANNE RODRIGUES/MATRIX BRAZIL TRADUÇÕES

COLABORARAM NESTE NÚMEROAlberto Beuttenmüller, Carlos Cavalcanti, Félix Peña, Fernando Iturburo, Flávio Saes, Francisco Cesar Filho, Gastón Ugalde, Harry Vanden, Ignácio de Loyola Brandão, Jorge Luis Antonio, Jurandir Müller, Reynaldo Damazio, Rubens Barbosa, Tullo Vigevani.

CONSELHO EDITORIALAníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr., Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes.

NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral da Fundação Memorial da América Latina. Redação: Avenida Auro Soares de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Email: [email protected].

Os textos são de inteira responsabilidade dos autores, não refletindo o pensamento da revista. É expressamente proibida a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista.

NossaRevista do Memorial da América Latina N°42 - Ano 2011 | 3º trimestre - R$8,00

Número 42ISSN 0103-6777

DEBATE 52Rubens BarbosaFélix Peña

POLÍTICA 43Tullo Vigevani

HOMENAGEM 56Ignácio de Loyola Brandão

RESENHA 60Reynaldo Damazio

CURTAS 63Da Redação

POESIA 66Fernando Iturburo

AGENDA 64Da Redação

PERSONALIDADE 48Flávio Saes

EDITORIAL 04Fernando Leça

REFLEXÃO 06Harry Vanden

ECONOMIA 12Carlos Cavalcanti

ARTE 19Leonor Amarante

OLHAR 24Gastón Ugalde

HISTÓRIA 30Alberto Beuttenmüller

FESTIVAL 35Francisco Cesar FilhoJurandir Müller

CULTURA 39Jorge Luis Antonio

LITERATURA 17Leonardo Carlos Esteves

SECRETARIA DEESTADO DA CULTURA

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Durante quatro dias reuniram-se, em Buenos Aires, dirigentes de centros de cultura da América Latina e de alguns congêneres europeus, em torno da pau-ta do X Encontro de Centros Culturais da América e da Europa.

A pauta, que privilegiou o tema das novas tecnologias, intercalou visitas aos mais destacados centros culturais da capital argentina com exposições e debates no Centro Cultural San Martín, sede do evento, valorizando a coope-ração e a troca de experiências úteis ao processo de integração latino-america-na. O próximo encontro deverá ter São Paulo como sede.

A escalada da violência nas grandes cidades atinge grande parte dos países da América Latina, especialmente aqueles do triângulo da América Central, Hon-duras, Guatemala e El Salvador, como analisa Harry Vanden, professor da Uni-versity of South Florida. Outra questão oportuna que Nossa América aborda: a

integração energética, dentre as várias formas de integração do Continente, tema examinado pelo professor Carlos Cavalcanti, e que está na ordem do dia das agendas de dirigentes políticos.

Um dos museus mais atuantes da Espanha, o Instituto Valenciano de Arte Moderna, tem sido um canal eficiente na divulgação da arte Ibero-americana. Le-onor Amarante, editora da Revista Nossa América, esteve lá e traça um perfil da ins-tituição. Nesta edição também publica-mos parte de uma experiência em que o fotógrafo boliviano Gastón Ugalde mis-tura fotos e performances envolvendo a natureza. Ele viajou por alguns meses registrando cenas e interferindo na bela paisagem do Salar Uyoni na Bolívia.

O nascimento da arte latino-ame-ricana, desde os seus primórdios até os dias de hoje é o tema do jornalista e crítico de arte Alberto Beutenmüller. Já o Festival Latino-Americano de Ci-nema, idealizado pelo Memorial desde

EDITORIAL

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Fernando Leça Presidente do Memorial da América Latina

2006, chega à sexta edição ampliando seu raio de ação. Desta vez, mais cine-mas paulistanos se juntam à iniciativa e abrem suas portas para o evento, que prioriza uma produção densa e criati-va, conforme artigo de Francisco Cesar Filho e Jurandir Müller, diretores do festival. Ainda na área cultural, Nossa América foca as infovias, que têm sido o melhor fio condutor e divulgador da poesia digital. Como está essa questão atualmente, e quais são os grandes no-mes do movimento? Quem responde é o escritor Jorge Luis Antonio.

O Brasil é hoje a sétima economia do mundo. O que isso significa para os países da região? Para o sociólogo Tullo Vigevani, no contexto de incertezas e mudanças, o Brasil ganha proeminência ancorada em sua melhoria econômica. Nossa América também lembra de Cel-so Furtado, um dos mais importantes economistas do século vinte, que dei-xou importante legado, especialmente

quanto à questão do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, como analisa o sociólogo e economista Flávio Saes.

Os vinte anos do Mercosul e sua atuação ganham análise de Félix Peña, economista argentino, e de Rubens Bar-bosa, coordenador da seção nacional do Mercosul. Outro tema é a morte do escritor Moacyr Scliar. Quem lembra é o amigo, e escritor, Ignácio de Loyola Brandão. Por último um assunto urbano recorrente, o trânsito nas grandes cida-des, que tem sido um dos responsáveis pela baixa qualidade de vida dos cida-dãos, e é focalizado no livro Fé em Deus e pé na tábua, de Roberto da Matta. A rese-nha é de Reynaldo Damazio.

Concluindo a edição, elegemos a poesia de Fernando Iturburo, um jovem poeta chileno e intelectual promissor.

Boa leitura!

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REFLEXÃO

Harry E. Vanden

VIOLÊNCIA

Em 21 de junho do ano passado uma gan-gue salvadorenha atacou a tiros um mi-croônibus nos arredores de São Salvador. Depois dos tiros, os indivíduos não deixa-ram os passageiros saírem, encheram o ôni-bus com gasolina e o incendiaram. Morre-

ram 14 pessoas, apesar dos esforços da polícia em retirar os que estavam sendo queimados vivos. Em 2004 outra gangue (mara – assim são chamados esses grupos na América Cen-tral) atacou um ônibus em Honduras com um fuzil AK-47, matando 19. Os passageiros dos ônibus nada tinham feito, somente estavam tentando viver. Nos dois casos, os jovens membros destas novas gangues juvenis estavam vitimando inocentes para demonstrar seu poder e sua brutalidade fren-te aos esforços dos governos para controla-las. Atualmente

Das GaNGUEs Da aMÉRICa CENTRaL

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Eles se dividem em bandos, têm regras próprias e se utilizam de disciplina mortal para manter o controle.

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há mais de 100.000 mareros no triângulo norte da América Central (Guatemala, Honduras e El Salvador) e segundo vá-rias estimativas eles são responsáveis por 70% dos homicídios nessas peque-nas nações. As taxas de homicídio em El Salvador e na Guatemala estão iguais ou maiores do que eram durante suas guerras civis. Em El Salvador, a taxa anual é de 56 mortos para cada 100.000 pessoas, o que é cinco vezes mais do que se considera para classificar uma epidemia pela Organização Mundial de Saúde. Violentam as jovens que negam ser suas namoradas, ou cujas famílias resistem a seu controle nos bairros, ou que vão à polícia para testemunhar em relação aos crimes. Matam outros jo-vens que negam incorporar-se a seus bandos ou que resistam à seu controle, e fazem guerras brutais contra as gan-gues rivais e, muitas vezes, decapitam suas vítimas. Nos últimos anos estão envolvidos em sequestros e com os

cartéis que estão utilizando a América Central para transportar as drogas que vão para os Estados Unidos.

Nos anos 70 e 80 milhares de centro-americanos escaparam das vio-lentas guerras civis na América Central, deixando sociedades com violações de direitos humanos e uma cultura predo-minante de violência. Muitos chegaram aos Estados Unidos onde viveram em bairros pobres em Los Angeles e outras cidades; lá os jovens salvadorenhos, guatemaltecos e uns hondurenhos en-contraram gangues norte-americanas que dominavam muitos desses bair-ros. Como forma de defesa, uns for-maram suas próprias gangues como a Mara Salvatrucha (M.S. ou M.S. 13) ou se apoderaram do que foi uma gangue mexicana, a ‘Eighteenth Street Gang’ ou M 18. Quando milhares deles foram deportados dos Estados Unidos por causa de seus crimes, reconstituíram as gangues em seus países de origem, in-

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corporando a mesma violência extrema que as forças militares de El Salvador e da Guatemala utilizaram durante anos para liquidar os guerrilheiros e reprimir as massas e a violência que a guerrilha liberava para resistir e libertar seus paí-ses do controle oligárquico.

Muitas das crianças deportadas deixaram suas famílias nos Estados Unidos e viveram com parentes que não conheciam, em condições econômicas muito marginais e sem o amor e o apoio de suas famílias nucleares. Uns viveram nas ruas e outros buscaram segurança onde puderam. Para eles, as maras que iam se formando, ofereceram um tipo de família substituta. Agruparam-se em bairros utilizando as ruas e algumas pra-ças e espaços que puderam ocupar como pontos de referência. Uns viveram com suas famílias, outros viveram em casas

abandonadas ou mesmo nas ruas. Pou-co a pouco se ia desenvolvendo uma identidade bairrista e os vários grupos marginais iam se apoderando de bairros onde viviam e agiam. Se financiaram por meio de roubos de crianças quando foram às escolas, jovens e maiores que encontraram na rua, a “renda” ou cota semanal que faziam com cobranças a negócios que funcionavam no bairro ou com os próprios vizinhos, ou a cota que cobravam dos ônibus e táxis que pas-savam por seu bairro. Inicialmente se concentravam nos bairros pobres (colô-nias) em São Salvador, Santa Ana, São Pedro Sula, Tegucigalpa, ou na Cidade da Guatemala, mas nos últimos anos se encontram dispersas em quase todas as partes do território nacional, especial-mente nos locais pobres urbanos ou semiurbanos onde os governos não go-

Para os rapazes deportados, as gangues oferecem um tipo de família substituta.

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Harry Vanden é professor de Ciências Políticas da Universidade de South Florida.

vernam. Muitas vezes estão em número superior ao da polícia local e, frequen-temente, estão mais bem armados, utili-zando não somente pistolas e escopetas de fabricação caseira, mas também sub-metralhadoras AK-47 e M16 e até gra-nadas. Dividem-se em “bandos” locais, dirigidos por um home boy, têm suas pró-prias regras, e se utilizam de disciplina corporal e até mortal para manter seu controle. Põem luz verde naquele que sai da mara e qualquer um poderá matá-lo. Se acolhem meninas, por regra geral jovens, para incorporar-se, elas devem se submeter a uma surra brutal de 13 segundos para o M 13 ou 18 segundos para M 18, administrada pelos mareros. Geralmente têm entre 12 e 22 anos, mas há uns mais velhos, além de crianças de 9 ou 10 anos. Comunicam-se entre eles e com outros bandos por meio de seus celulares, e os poucos que são presos (que tem que ser separados por ‘afilia-ção’ para que não matem os membros da mara rival) utilizam a experiência para aperfeiçoar suas habilidades criminais e fazer contato com membros de outros bandos. Os líderes que permanecem na prisão por mais tempo, frequentemente

mandam ordens a seus companheiros por celulares clandestinos ou mensa-gens secretas.

Os governos lutaram para contro-lar o aumento de poder e violência das gangues, implementando políticas de ‘mão dura’ e ‘super mão dura’, coorde-nando em nível regional e trabalhando com o FBI, mas obtiveram muito pouco êxito e as maras se adaptaram, mudando suas roupas de gangue para o tipo pre-ppy, removendo as tatuagens, estabele-cendo melhores linhas de comunicação entre si e estreitando sua comunicação com os cartéis.

Em 2011 o problema continua aumentando, a população civil está trau-matizada e vários especialistas acredi-tam que as maras já estejam funcionando como governos de fato, nos territórios que controlam. Sem as mudanças eco-nômicas e sociais necessárias, é duvido-so que desapareçam.

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ECONOMIA

A energia, atualmente, é um vetor neces-sário para qualquer projeto bilateral ou plurilateral de integração econômica. O papel exercido pelo comércio e pelos acordos comerciais nas décadas de 1990 e 2000 é complementado – e, em alguns

casos, superado – por iniciativas de cooperação energética. O Brasil, de forma acertada, identificou a integração da in-fraestrutura de energia entre os países da América do Sul como poderoso instrumento de promoção da paz, da se-gurança e do desenvolvimento da região. Nesse contexto, as iniciativas brasileiras devem ser entendidas como políti-cas de Estado e não de governos. Seus antecedentes podem ser identificados, de forma clara, na segunda metade do sé-culo XX, e incluem: a construção da Usina Hidroelétrica

Carlos Cavalcanti

NA AMÉRICA DO SUL

INTEGRAÇÃO ENERGÉTICA

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Binacional de Itaipu e seu papel na so-lução do antigo litígio de fronteira com o Paraguai; a constituição da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilida-de e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), como instrumento para sedi-mentar a estabilidade militar e política no Cone Sul, contribuindo para a cria-ção do Mercado Comum do Sul (Mer-cosul); e a construção do Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol), para assegurar atendimento à demanda energética bra-sileira, sobretudo da indústria paulista, e fomentar o desenvolvimento econô-mico da Bolívia, evitando instabilidade social naquele país e suas consequências para as zonas fronteiriças do país.

Na década passada, a política brasileira de integração energética ga-nhou renovado impulso com foco na integração da infraestrutura – de for-ma ordenada e levando-se em consi-deração a visão ampla do continente. A iniciativa lançada em 2000, pelo en-tão presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, no contexto da re-alização da Primeira Cúpula de Presi-dentes da América do Sul, foi elevada a patamar estratégico por seu suces-sor, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, ao longo de seus oito anos de governo. Foi, ainda, complementada pela integração comercial, criada pela rede de acordos de livre comércio en-tre o Mercosul e os demais países da América do Sul, e a integração polí-tica, cristalizada na União de Nações Sul-Americanas (Unasul).

Por sua natureza, a integração energética apresenta-se como desafio mais complexo do que a integração co-mercial. A grande quantidade de capital necessária ao desenvolvimento de pro-jetos de energia, os altos rendimentos desses projetos, a crescente demanda e a concentração de recursos em poucas regiões e países (com diferentes graus de acesso e risco), adicionam à integra-

ção do setor de energia claro compo-nente geopolítico.

Em todas as grandes economias, energia é, antes de tudo, questão de se-gurança nacional. Todas elas enfrentam, a seu modo, situações complexas para garantir o suprimento ao seu setor pro-dutivo e aos seus cidadãos. Para tanto, adotam políticas domésticas e externas condizentes com esses desafios: sem maniqueísmo, sem partidarismo e sem as limitações conjunturais do pensa-mento de curto prazo.

Os Estados Unidos, por exem-plo, enfrentam o desafio de garantir suprimento adequado de petróleo à sua economia valendo-se da importação de países e regiões politicamente sensíveis (Arábia Saudita, Colômbia e Rússia) e instáveis (Iraque e Nigéria), ou, até mesmo, hostis ao país (Equador e Ve-nezuela). Do mesmo modo, enfrentam delicado equilíbrio entre preservação ambiental e segurança energética no de-senvolvimento de novos projetos (Alas-ca e Costa Oeste) e na importação de energia (areias betuminosas do Canadá).

A União Europeia, fruto do con-tínuo esforço de integração econômica e política iniciado no setor energético com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca), em 1951, lida com intrincado cenário relacionado ao seu suprimento de energia. Suas vitais importações de gás (Rússia e Ucrânia) e de petróleo (Ásia Central e Oriente Mé-dio) e seus novos projetos de importa-ção (Cáucaso) estão atrelados a regiões instáveis e à acirrada disputa política e militar entre países produtores (Azer-baijão, Cazaquistão e Rússia) e interme-diários (Armênia, Geórgia e Turquia).

Outras economias emergentes, como China e Índia, também enfren-tam desafios comparáveis. No primeiro caso, a necessidade de importação de petróleo está ligada ao tratamento de te-mas como pirataria no Golfo de Áden e

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no Estreito de Malaca ou exploração e produção em países africanos afetados por guerras civis e insurgências. No se-gundo caso (assim como no primeiro), o desafio está na importação de energia do Irã e na vinculação dessa necessidade às questões de paz e segurança interna-cional envolvendo o regime de não pro-liferação de armas nucleares.

Em nenhuma dessas situações as soluções são buscadas por meio da esca-lada retórica ou de rupturas políticas, mas, sim, de acordo com estratégias políticas, econômicas e militares de longo prazo.

Diante da magnitude dos riscos enfrentados por esses países, o Brasil encontra-se em situação confortável. Os

recentes atritos diplomáticos com a Bo-lívia e o Paraguai, por exemplo, foram solucionados de forma pacífica e com ônus econômico absorvível pelo País. Foram eventos isolados que não ame-açaram sua segurança energética ou o projeto de integração do setor na Amé-rica do Sul. Além disso, a região oferece inegável estabilidade política, institucio-nal e social, quando comparada a outros centros de suprimento de energia.

Atualmente, há renovadas opor-tunidades nessa área: os grandes proje-tos de energia, que vão desde a constru-ção de barragens à ampliação do parque de refino de petróleo e que contam com a ativa participação das multinacionais

A conexão de rede de distribuição de energia elétrica adicionará nova camada de cooperação ao Mercosul.

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Carlos Cavalcanti é doutor em Eletrônica pelo Instituto Nacional Politécnico de Grenoble, na França, e diretor do Departamento de Infraestrutura da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp).

brasileiras; os experimentos de conexão da rede de distribuição de energia elétri-ca do Brasil, da Argentina e do Uruguai, que adicionarão nova camada de coope-ração ao Mercosul, como por exemplo, no contexto do “Plano de Ação para a cooperação em matéria de biocombustí-veis” (Decisão nº 49/07).

A integração energética pode, por exemplo, ser catalisadora de melhores relações diplomáticas entre os países da região. O Chile, que não possui relações formais com a Bolívia e o Peru desde o século XIX, em razão da Guerra do Pacífico, é altamente dependente da im-portação de energia. Já a Bolívia é um dos maiores exportadores de gás natural do continente e o Peru possui projetos substanciais na área de hidroeletricidade e gás natural. Nesse contexto, a comple-mentaridade energética entre essas eco-nomias pode gerar o impulso necessário para que os países reatem relações no nível internacional, contribuindo para a estabilidade política da América do Sul.

Acesso à energia continua sendo um fator que evidencia o desenvolvi-mento de um país e, principalmente, a qualidade de vida de sua população.

A participação da biomassa pri-mária é dominante nos países com va-lores de IDH mais baixos. Do lado dos países com valores de IDH mais altos, ao contrário, observa-se a importante participação, no setor residencial, da

eletricidade e do gás natural, fontes que demandam altos investimentos em in-fraestrutura de geração e transporte.

Torna-se claro que, para atingir os Objetivos do Milênio, é preciso incen-tivar os países a aproveitarem melhor seus recursos energéticos, desenvolven-do, por exemplo, as fontes hidráulica, eólica, geotérmica, solar e de biomassa avançada (biocombustíveis líquidos para transporte). Esse esforço deve ser reali-zado em conjunto com a modernização dos marcos regulatórios, a integração da política energética a outras políticas do-mésticas, como a agrícola e a industrial, e a transferência de tecnologia.

Portanto, reafirmamos que a in-tegração energética é a melhor opor-tunidade de se combater a pobreza, por meio do desenvolvimento sus-tentável. Ao integrarem os objetivos econômicos, sociais e ambientais, as políticas de energia dos países da re-gião podem, de forma harmonizada, contribuir para a prosperidade e segu-rança das futuras gerações.

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Por ocasião da morte de Ernesto Sábato, Allan Pauls, escritor argentino, opinou que ele não morrera “como es-critor, e sim como o que se chama de autoridade: alguém que a comunidade consulta quando atravessa situações de emergência e incerteza, para que a ilu-mine e console com sabedoria”.

De fato, o escritor, ensaísta e ar-tista plástico argentino Ernesto Sábato (1911-2011), célebre autor dos roman-ces da trilogia O túnel (1948), Sobre heróis

e tumbas (1961) e Abbadón, o exterminador (1974), é considerado um dos mais im-portantes escritores do seu país no sé-culo XX, ao lado de Julio Cortázar, Bioy Casares e Jorge Luis Borges.

Sábato lançou 16 livros e rece-beu o prêmio Cervantes de literatura (1984). Antes já havia conquistado o Prêmio de Consagração Nacional da Argentina, o Prêmio Medici na Itália, em 1977, e o prêmio Jerusalém (Israel). É doutor honoris causa nas universidades

LITERATURA

ERNESTO SÁBATONUNCA MAIS

Leonardo Carlos Esteves

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de Murcia (Espanha), Rosario (Argen-tina) e Turin (Itália).

Ernesto Sábato começou a se tor-nar conhecido no Brasil como diretor Literário da Enciclopédia Nosso Universo Maravilhoso, editada em 1959 pela Livra-ria El Ateneo. As páginas finais de cada tomo eram dedicadas à literatura infan-til e juvenil, reunindo excertos de textos como Platero e eu (Juan Jamón Jimenez), No tempo de Nero (Monteiro Lobato); contos tradicionais como Riquête, o do topete, O novo traje do Imperador, e Alice e a Rainha Vermelha; além de um guia de leitura para a juventude.

Outra preciosidade da enciclopé-dia ensinava “Como fazer teatro de fan-toches”, com bonecos e marionetes de vários materiais, sugestões de cenários, e algumas peças adaptadas. Por sua popu-laridade, mereceu o lançamento de livro à parte, assinado por Sábato e Eugenio Hirsch, diretor artístico da enciclopédia.

É difícil imaginar uma influência maior, ou mais poderosa, de um escri-tor do que a de introduzir milhares de crianças no mundo da literatura, do te-atro e em outros campos do conheci-mento. Mas, talvez, no futuro exercerá influência ainda maior.

Os fatos de sua trajetória pessoal chegam a chamar mais atenção do que seus livros: nos anos 1940, Sábato aban-donou a promissora carreira em física nuclear após ter deixado o Partido Co-munista. Doutor em Física na Universi-dade Nacional de La Plata foi convidado para investigar radiação atômica no La-boratório Curie em Paris e, em 1939, é transferido para o prestigiado MIT (Mas-sachusetts Institute of Technology).

A proximidade da construção da bomba atômica provocou uma mudança radical em sua vida. Ele regressou à Ar-gentina, assumiu o cargo de professor na Universidade de Buenos Aires e, em 1943, rompeu com a Física, passando a se dedi-car somente à literatura e à pintura.

Mais tarde, em alguns de seus ensaios, o escritor lembrará angustiado de seus confrades da Física, citando as congratulações enviadas por cientistas japoneses aos norte-americanos pela “eficácia da bomba de Hiroshima”.

Outra mudança foi a saída do Partido Comunista, nos anos 30, ainda considerado vanguarda da esquerda e centralizador da luta contra o fascismo. Sábato chegara a ter um alto cargo na hierarquia (Secretário Geral da Juventu-de Comunista), mas acaba por fugir de um Congresso, em 1934, na Bélgica. Vai a Paris e só regressa dois anos depois.

Esse transe estará presente em toda sua obra, em especial nos seus dois primeiros livros de ensaios Uno y el universo e homens e engrenagens, em que responsabiliza a ciência pela “matança mecanizada” da Segunda Guerra e clas-sifica os comunistas como portadores de “enérgica miopia”. Nesses livros, exercita também o estilo do aforismo, criando a mais conhecida piada usa-da pelos estudantes sobre os textos de Kant. “Gengis Kant: bárbaro conquis-tador e filósofo alemão” (aforismo de Uno y el universo).

A “autoridade” citada por Allan Pauls levou o ex-presidente argentino, Raul Alfonsín a convidar Sábato para liderar a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (a Cona-dep, em 1983), o que resulta no monu-mental “Nunca Más”.

Esse livro, que muitos chamam de Relatório Sábato, foi o auge da partici-pação cívica desse autêntico “morubixa-ba Guarani” (guia, aquele que ilumina) e serviu como base na busca por justiça e lastro para levar chefes dos governos militares aos tribunais, conquista que ainda é um sonho para muitos, especial-mente para nós brasileiros.

Leonardo Carlos Esteves é jornalista.

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ARTE

O RITMO FRENÉTICO DO

Instituto Valenciano de ArtePresença constante na América Latina

IVAM

Leonor Amarante

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O Instituto Valenciano de Arte Moderna (Ivam) é um museu ativo que mantém o mesmo ritmo frenético, tanto das exposições temporárias exibidas em suas salas, quanto das itinerantes, orga-nizadas em instituições culturais dos vá-rios países com os quais mantém parce-ria, em especial o Brasil.

Valência, cidade que tem vocação natural para a cultura, inaugurou o primei-

ro museu de arte moderna da Espanha, o Ivam, mesmo antes do famoso Rainha Sofia, em Madri. Com um edifício arro-jado que se impõe na paisagem, o Ivam tem a internacionalização como marca da gestão atual. Com isso, artistas de primei-ra grandeza provenientes de vários países expuseram em suas salas, alguns deles em retrospectivas antológicas, como a de Jas-per Johns, um dos precursores da pop art

Em um edifício arrojado, a marca é a internacionalização.

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americana, realizada em março deste ano e que tomou todo o espaço expositivo, com trabalhos fundamentais para se compre-ender a sua trajetória, sendo que algumas peças fazem parte da coleção do museu.

Essa atuação, em praticamente todos os continentes, foi impulsionada ainda mais na gestão atual de Consuelo Císcar. Um dos pontos altos das ações político-culturais do Ivam ocorreu há seis anos, quando o museu abriu suas portas para a produção da China, hoje, uma das mais instigantes e promissoras do circuito de arte internacional. Com isso, a cidade de Valência pôde conferir as obras de trinta artistas contemporâ-neos e abrir, igualmente, as portas da Europa para muitos deles.

O Ivam é uma aposta na valori-zação do patrimônio artístico espanhol; sua atuação, que transcende os domí-nios de Valência, está em perfeita sin-tonia com um mundo globalizado onde não há mais espaço para museus estáti-cos, sem a participação da comunidade, e confortavelmente à espera de visitan-tes. O Ivam pode ser também sinônimo de energia e profissionalismo, que fluem como principais combustíveis de sua mobilização permanente.

O Museu que mantém o Centro Julio González, um edifício novo, inau-gurado em 1989, com uma importante coleção, ainda conta com um curioso espaço, o Junta do Muro, localizado no subterrâneo do edifício, onde os visi-

La sombra de la conciencia, de Natividad Navalón, 1998.

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tantes podem ver uma grande extensão do muro medieval da cidade de Valên-cia, que foi demolido há mais de um sé-culo e descoberto durante a construção do museu.

Além do extenso calendário de exposições que movimenta o museu durante todo o ano, o Ivam ainda tem uma programação de cinema, debates e seminários internacionais, como os En-contros Ibero-Americanos, que reúnem anualmente críticos, jornalistas, direto-res de museu e curadores de importantes instituições de todo o mundo. Consuelo Císcar lembra que a projeção nacional e internacional da coleção do museu foi impulsionada no ano de 2006, com os múltiplos convênios firmados com instituições públicas e privadas para

possibilitar a itinerância das obras da coleção. Isso garante, por exemplo, as constantes parcerias que o museu man-tém com instituições brasileiras, como a Fundação Memorial da América Latina, que já realizou diversas mostras em sua galeria Marta Traba, organizadas pelo Instituto Valenciano de Arte.

Sem dúvida a presença do Ivam em Valência, ponto forte da contemporanei-dade na Europa, contribui para oxigenar a área cultural da Espanha, colocando-se como foro dinamizador e permanente de debates sobre as questões pertinentes à arte moderna e a contemporânea.

Leonor Amarante é editora da Revista Nossa América.

No extenso calendário de exposições, a obra do artista chileno Roberto Matta ocupou as salas do Ivam.

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Um mundo para crianças, escultura de Andreu Alfaro

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OLHAR

Gastón Ugalde

DESERTO DE SAL

O olhar inquieto de Gastón Ugalde o co-loca entre os fotógrafos/artistas mais atuantes da Bolívia. Neste ensaio reali-zado a 3.650 metros de altitude, no Salar Uyoni na Bolívia, a maior planície salga-da do mundo, ele se serve de elementos

múltiplos que vão do cinema, passando pelo teatro e pelas artes plásticas. Cada trabalho, do ponto de vista fotográfi-co, se transforma num estudo sobre a luz natural enquan-to performance e intervenção na paisagem. Neste salar, de aproximadamente onze camadas, com espessuras que variam entre 2, 10 e 120 metros de profundidade, Ugalde pensa em viver um dia. Por enquanto, ele segue com suas fotos e obras que o colocam entre os melhores artistas da Bolívia, país que ele representou na 53ª Bienal de Veneza, em 2009.

FOTO E PERFORMANCE

A 3.650 METROS DE ALTITUDE

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HISTÓRIA

Alberto Beuttenmüller

A origem da Arte da América Latina está presente nas nações indígenas forma-doras da cultura da Mesoamérica, tais como Olmecas, Maias, Astecas, Toltecas etc. Estas civilizações, na época de es-plendor, entre 250 e 900 d.C., eram mais

avançadas que as nações da Europa deste mesmo período. Para o leitor ter uma ideia das conquistas das civilizações da Mesoamérica, basta dizer que usavam um calendário mais preciso que o nosso Gregoriano atual e, bem antes des-te, mais perfeito que o velho calendário Juliano, atualizado pelo Papa Gregório XIII. O uso do calendário Mesoame-ricano foi geral na região, aperfeiçoado pelos maias com a Conta Longa, período este de 5.200 tuns (anos). A Conta Longa findará no dia 21 de dezembro de 2012 e há quem creia

DNADA ARTE LATINO-AMERICANA

MESOAMÉRICA

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que o mundo também terminará nesse mesmo dia.

Outro exemplo do avanço das civilizações da Mesoamérica é a des-coberta do zero no sistema de posição matemática pelos maias. Os maias co-meçaram a usar o zero no século III d.C., os árabes no século V, os euro-peus no século XV, exceção feita à

Espanha que, uma vez invadida pelos árabes, aprendeu a usar o zero em suas contas no século XII.

A maioria das nações mesoa-mericanas, notadamente os maias, tinha escrita formada por glifos e hieróglifos, aprendida com os Olme-cas, a raça-mãe da Mesoamérica, que viveram entre 1.200 a.C. até 400 a.C. e inventaram a bola de borracha e o jogo de pelota.

Tudo isso estava escrito nos códi-ces maias, mas, infelizmente, por ordem do bispo do Yucatán, Dom Diego de Landa, os padres queimaram todos os livros maias. Somente três se salvaram, com os nomes de Códex de Dresden, de Madri e de Paris, nome das cidades onde estão expostos em bibliotecas de Alemanha, Espanha e França.

O Códex Grolier, exposto no clube de mesmo nome em Nova York, o quarto códice, sumiu após a exposi-ção e nunca mais se soube dele. De to-dos os códices, o de Dresden demons-tra o grande saber astronômico dos maias, que faziam cálculos dos eclip-ses com grande perfeição e deixaram, inclusive, datas de eclipses, depois da queda da própria civilização, por volta do século IX d.C.

Peças pré-colombianas do Museu de Antropologia do México.

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ARTE DA MESOAMÉRICA

Entre todas as artes da Mesoamé-rica, a arte maia é o reflexo de seu estilo de vida e de sua cultura. Além disso, é das raras raças em que a arte era inte-grada; ou seja, a arquitetura, a pintura, a escultura, os entalhes em madeira ou pedra, tudo fazia parte de um estilo só em cada templo. Esta arte manifestava-se em desenhos, pinturas em afrescos

ou papel, baixo e alto relevos em pedra, madeira, barro, jade e até osso. O pro-cesso técnico com metais era conheci-do, mas devido à sua escassez era apro-veitado apenas em adornos.

A música era bastante aprecia-da e existem provas de obras teatrais que apareciam em cerimônias públicas. A realeza maia preparava finas joias para os seus palácios, principalmente de jade e obsidiana, trazidas por mer-

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cadores das terras altas da Guatemala: tronos gravados, pinturas murais, assim como a cerâmica com cenas da corte, além de estelas que recordavam o pas-sado guerreiro da cidade, ou a vida de um rei-sacerdote invulgar.

A Arte Maia não era usada apenas pela realeza, mas também pela gente co-mum, conforme peças de arte encontra-das na casa de pessoas que não pertenciam à elite. As demais raças da região acompa-nhavam os costumes maias, astecas ou de Teotihuacán, cidade que foi abandonada por volta de 400 d.C. sem uma explicação

e sem sabermos, até hoje, quem foram os habitantes que ali viveram.

A escultura maia mais comum eram as Estelas, monólitos de pedra com gravações de governantes ou deu-ses, e textos que nos ajudaram a en-tender melhor a cultura maia. A maior estela do mundo maia é a estela E, da cidade de Quiriguá, que pesa 65 tonela-das, e mede 10,5m de altura. Os maias e os mesoamericanos, em geral, usaram muito peças de jade em suas obras de arte e, apesar de sua dureza, conseguiam fazer peças refinadas.

Alberto Beutenmüller é poeta e jornalista, membro da Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica/Unesco). Autor de diversos livros, recentemente ministrou o curso “História da Arte na América Latina”, realizado pelo Memorial.

A presença de Diego Rivera (1886-1957) neste texto deve-se ao fato de que o muralismo mexicano, a partir de 1920, tem algo em comum com a Mesoamérica, seja nos temas ameríndios, seja nos mitos herdados de Astecas e Maias. Pode-se dizer que o muralismo mexicano tem o seu DNA lá atrás, embora pouca gente se dê conta disso.

No Brasil, tivemos dois muralistas – Candido Portinari (1903-1962) e Emi-liano Di Cavalcanti (1897-1976) – ambos realizaram diversos murais, mas Portinari notabilizou-se pelos dois murais da Or-ganização das Nações Unidas (ONU), Guerra e Paz. Os dois murais retornaram

ao Brasil para restauro, mas em seguida voltaram para a sede das Nações Unidas.

Justamente no segundo semes-tre estudaremos o módulo 2, que será iniciado pelo Muralismo Mexicano de 1930, pintura que nos lembra os murais maias da cidade de Bonampak, pinta-dos há mais de mil anos atrás. Por isso, é sempre interessante compararmos o presente da Arte com seu passado. Só assim descobriremos as origens de sua criatividade, o seu DNA verdadeiro.

DIEGO RIVERA, MESTRE DO MURALISMO MEXICANO

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Historicamente marcante, notadamente a partir das décadas de 50 e 60, a produção cinematográfica da América Latina ex-perimenta atualmente fase de inédita ex-pansão e de significativo reconhecimento internacional. Se os anos 90 foram carac-

terizados pela retomada da produção pelos seus tradicionais centros de realização – Argentina, Brasil e México – e a déca-da seguinte consolidou essa tendência, estamos assistindo ao desabrochar da criação audiovisual em outros territórios, em um movimento auspicioso e multifacetado, com novas pro-postas dramáticas e estéticas ocupando as telas e apresentan-do diferentes personagens e cenários. Significativo desse mo-mento atual é a prestigiosa premiação conquistada por títulos latino-americanos nos últimos três anos, como nos festivais de

FESTIVAL

Francisco Cesar Filho e Jurandir Müller

MEMORIAL FAZ SEU 6º FESTIVAL DE

CINEMALATINO-AMERICANO

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Memorial da América Latina como ins-tituição realizadora e sede principal, o evento tem mapeado essa nova produ-ção, trazendo filmes e jovens diretores de um amplo leque de países da região, incluindo aí Costa Rica, Equador, Uru-guai e Panamá, entre outros.

O evento brasileiro firma-se, as-sim, como uma das vitrinas internacio-nais para a nova cinematografia latino-americana, atento a seus caminhos pre-sentes e futuros – preocupação expressa na realização de seminários, encontros e debates, prestigiados por produtores, distribuidores e exibidores; por direto-res, atores e críticos.

Entre muitos exemplos, desta-camos na sexta edição do evento (11 a 17 de julho de 2011), o lançamento, no Brasil, do longa-metragem dirigido pelo consagrado ator cubano Jorge Perrugor-ría (astro do sucesso Morango e chocolate). Trata-se de Afinidades, uma codireção com Vladimir Cruz baseada no livro Mú-sica de cámara, de Reinaldo Montero.

Outro destaque é Post mortem, o novo filme do chileno Pablo Larraín (diretor do sucesso Tony Manero). Pas-sado nos dias imediatamente anterior e posterior do golpe militar que depôs o presidente Salvador Allende, foi selecio-nado para os festivais de Veneza, San Sebastián e Nova York, além de ter ven-cido a competição do Festival de Carta-gena em 2011.

A curadoria do Festival de Ci-nema Latino-Americano de São Paulo também privilegia o passado recente, traçando recortes que permitem ao pú-blico interessado acompanhar o desen-volvimento do audiovisual da região. Assim, em 2011, o foco volta-se ao chamado Novo Cinema Argentino que, a partir de meados da década de 1990, encantou cinéfilos de todas as latitudes ao valorizar a excelência de seus roteiros e um modelo de produção que otimiza seus (poucos) recursos financeiros. A

Roterdã (Água fria do mar, da Costa Rica, e o mexicano Ao mar), Sundance (o boliviano Zona sul) e Berlim (onde o peruano A teta assustada venceu o Urso de Ouro), culminando com o reconhe-cimento à produção argentina O segredo de seus olhos), eleito melhor filme estran-geiro pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Esse novo cenário audiovisual tem sido acompanhado pelo Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo desde sua criação, em 2006. Realizado anualmente no mês de julho, e tendo o

Cenas de O guardião, de Rodrigo Moreno, cineasta argentino.

Fresa e chocolate, dos cubanos Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabio.

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Cena do filme Histórias extraordinárias do diretor e ator argentino Mariano Llinás.

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programação inclui títulos como o do marco inaugural do movimento, Histó-rias breves, com episódios dirigidos por Daniel Burman, Paula Hernández, Lu-crecia Martel, Bruno Stagnaro, Adrián Caetano, Sandra Gugliotta, Ulises Rosell e Andrés Tambornino.

Talvez a grande atração do festi-val em 2011 seja a sessão Homenagens, que é dedicada ao escritor e roteirista colombiano Gabriel García Márquez e ao diretor e roteirista brasileiro Orlando Senna, ambos personalidades relevantes do cinema da América Latina.

Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1982, Márquez esteve en-volvido com diversas produções cine-matográficas, como roteirista de mais de uma dezena de longas, como um dos fundadores da importante Escuela Internacional de Cine y TV de San An-tonio de los Baños (EICTV), em Cuba, e como diretor. Seu raro A lagosta azul, curta-metragem que dirigiu em 1954, na Colômbia, figura na programação.

Nascido na Bahia, Orlando Senna também participou da mesma

escola fundada por Gabo, como dire-tor do curso de cinema, na década de 1990. Mas antes já havia firmado seu nome como realizador do internacio-nalmente premiado Iracema, uma transa amazônica (1976), inovadora mescla de documentário e ficção codirigida por Jorge Bondanzky. Sua significativa car-reira como roteirista inclui obras dirigi-das por Hector Babenco (O rei da noite, 1975) e Geraldo Sarno (Coronel Delmiro Gouveia, 1979).

O Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo presta, assim, um tributo ao passado do cinema da região, atualizando a produção recen-te e apontando seus caminhos futuros. Essa é a sua vocação.

Francisco Cesar Filho e Jurandir Müller, diretores do festival.

Afinidades, filme dirigido pelos cubanos Jorge Perugorria e Vladimir Cruz.

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A poesia sempre procura novos caminhos, meios, suportes, formatos, dimensões e tec-nologias para realizar suas infinitas finalida-des de criação, plurissignificação e transgres-são da linguagem. Há várias décadas, e das mais diferentes maneiras, outro tipo de poe-

sia contemporânea circula por novos caminhos, a fim de incor-porar os signos verbais aos não verbais e buscar outros espaços. Há meio século ela tem procurado as infovias em todas as suas modalidades, desde quando o computador passou a ser, além de instrumento de cálculo e armazenagem, portador de uma lin-guagem para diferentes finalidades, dentre as quais as artísticas e literárias. O processo criativo da poesia digital e a sua dissemi-nação pelas infovias pressupõem duas das muitas abordagens de um tema contemporâneo, que são as negociações semióticas

CULTURA

Jorge Luis Antonio

OS NOVOS CAMINHOS DA

INFOVIAS POESIA

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da poesia com as artes, design e tecno-logia computacional. Ele pode ser en-tendido, por exemplo, como: arte, ciên-cia e tecnologia; mudança de paradigma na criação de imagens e surgimento das imagens digitais; os processos criativos com os meios eletrônicos, as poéticas digitais: heurísticas, experimentais, de recodificação, envolvendo o que foi de-nominado de poetécnica ou arte e poesia em tempo de tecnologia, de acordo com Julio Plaza e Monica Tavares em Processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digi-tais (1998). Também pode ser estudado como uma comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais, em suas relações entre tecnologia e imaginário, videoarte e videopoesia, poesia eletrônica, tecno-poesia ou poesia multimídia, de acordo com Denise de Azevedo Duarte Guima-rães, em Comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais (2007), mostrando que os meios de comunicação audiovisuais tam-bém se tornaram recursos expressivos para a poesia contemporânea. Desses enfoques mais amplos e muito válidos, faz-se necessário tratar tão somente de ciberpoesia, infopoesia, poesia digital ou poesia eletrônica, denominações citadas por estudiosos como Pedro Barbosa em A Ciberliteratura (1996), Melo e Castro em Poética dos meios e arte high tech (1988), Funkhouser em Prehistoric digital poetry (2007), dentre outros.

Os processos criativos dessas ne-gociações semióticas adequam-se a cada estágio da tecnologia computacional e a cada possibilidade que o poeta encontra para explorar as artes e o design. Isso depende da parceria que ele estabelece, da sensibilidade e criatividade do poeta, do designer digital e do programador, do conhecimento interdisciplinar deles. Há exemplos significativos dessas re-lações, parcerias e releituras em vários momentos da poesia digital e em vários países e já se delineia uma história em obras de Barbosa, Funkhouser etc.

As negociações semióticas com as tecnologias compreendem: a media-ção poeta-máquina, por meio de signos e códigos; a mediação dos signos e dos códigos verbais e não verbais; a inter-venção do poeta na tecnologia compu-tacional para uma finalidade poética; e a transmutação intersistemas (poético e tecnológico), que se produz pelas inter-faces. Isso resulta na tecnopoesia.

A poesia digital, ou qualquer nome que se atribua a ela (poesia ele-trônica, ciberpoesia, poesia cibertextual, poesia hipermídia etc.; há cerca de cem denominações para esse tipo de poesia), embora tenha meio século de existência, necessita ser compreendida como uma continuação da poesia até então existen-te, como uma realização das experimen-tações das vanguardas do século XX, das poesias denominadas experimental, concreta, sonora e visual, da mesma forma que entendemos a poesia dos sé-culos XX e XXI como continuação das poesias dos séculos anteriores.

Uma das formas necessárias para entender esse fenômeno poético é traçar o seu percurso em etapas, fases, limites e meios, que têm início no meio impresso e vai, gradativamente, desligando-se dele, adotando processos criativos, técnicas e suportes das artes e do design, passan-do a ser exposto no meio tridimensional, para chegar ao meio digital ou ciberespa-ço. Diversos percursos podem ser apon-tados a partir dos critérios utilizados pe-los estudiosos da poesia digital, cada um deles com suas dificuldades metodológi-cas de abrangência e de denominações.

Quanto à denominação geral, esse tipo de poesia continua com nomes varia-dos e isso está relacionado às constantes mudanças, variações, atualizações carac-terísticas da cibercultura, que se distingue pelo excesso de informações, potenciali-zação e miniaturização, pela dromocracia (governo da velocidade) e pelo tecno-pólio (predomínio da tecnologia sobre

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a cultura). Mesmo sendo possível traçar alguns elementos que a caracterizam, e isso é válido para todo tipo de poesia digital, essa denominação é determina-da pela tecnologia computacional usada pelo poeta ou interpretada pelo teórico. E isso depende do ponto de referência adotado: se se firma o olhar no meio im-presso, há o risco de valorizá-lo demais e tatear mapeamentos do que foi feito nas primeiras experimentações no meio digital e, sob a perspectiva de uma teoria literária do meio impresso, só produzir ideias pouco claras ou repetir lugares-co-muns. Se a perspectiva for apenas tecno-lógica, como a de um tecnólogo, designer digital ou de um engenheiro de compu-tação, por exemplo, corre-se o risco de uma valorização tecnológica excessiva, em detrimento da poesia feita com e nos meios digitais. Dentre as várias tipologias existentes, pode-se pensar, por exemplo, em: poesia-programa; infopoesia; poesia-computador; poesia hipertextual ou po-esia hipermídia; poesia-internet; poesia interativa, colaborativa e performática; poesia-código; poesia migrante; e poesia performática cíbrida.

Dentre os inúmeros enfoques, pode-se adotar o estudo de uma tecno-arte-poesia, das relações da poesia com as artes, design, ciências e tecnologias e estabelecer alguns percursos. Assim, é possível compreender a absorção de processos artísticos antes e depois da poesia digital (artes visuais, escultura, ar-quitetura, artes sonoras, performance), os recursos do design reapresentados em suas funções poéticas (tipografia, te-oria do cartaz e do anúncio publicitário, comunicação visual) e a própria poetiza-ção das tecnologias: tipografia, máquina de escrever, fotografia, clichês, rádio, ci-nema, televisão, vídeo, computador etc.

A disseminação da poesia digital pelas infovias indica um dos muitos per-cursos contemporâneos da poesia, seja ela de que tipo for, e está relacionada,

neste estudo, à leveza de Calvino em Seis propostas para o próximo milênio (1991), à poesia e o limite das coisas e o caminho do leve, obra-exposição de Melo e Cas-tro no Museu de Serralves (Porto, Por-tugal, fev.-abr. 2006).

“Infovia”, substantivo formado por “info” (de “informação”) + “via”, significa uma via de comunicação entre computadores, utilizada para a troca de informações, conjunto de linhas digitais por onde trafegam os dados das redes eletrônicas, que surgiu da ideia de criar uma rede sem centro, quebrando o tra-dicional modelo de pirâmide conectado a um computador central.

Há dois caminhos básicos para a poesia digital: o espaço simbólico do com-putador isolado, desde 1959, antes da rede (1995) e o espaço universalmente acessível do computador em rede. Assim como os rumos da poesia são infinitos, as infovias têm inúmeros desdobramentos.

Tudo está dito de Augusto de Campos

Jorge Luis Antonio é doutor em Comunicação e Semiótica, e foi professor da Faculdade Paulista de Artes.

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Jorge Luis Antonio é doutor em Comunicação e Semiótica, e foi professor da Faculdade Paulista de Artes.

As vias pelas quais a poesia é dissemi-nada são infinitas. Todos os tipos de suportes e meios vêm sendo utilizados pelos poetas. Como sempre surgem novidades, a poesia sempre tra-balha com o material do hoje. Por exemplo, na Arte Robótica, temos os robôs PaCo (www.fun-dacion.telefonica.com/at/vida/vida10/pagi-nas/v7/epaco.html) e ISU (www.leonelmoura.com/isu.html).

As infovias propiciaram a produção e a disseminação da poesia digital em muitos paí-ses: Poetry – New Media – Links of Imagina-tion (http://vispo.com/misc/links.htm); Brazi-lian Digital Art and Poetry on the Web (www.vispo.com/misc/BrazilianDigitalPoetry.htm); BBC Arts and Poetry - A Showcase of Visual Poetry (www.bbc.co.uk/arts/poetry/ondisplay/index.shtml); PopBox (http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/home.htm); Museu do Essencial e do Além Disso (www.arteonline.arq.br/museu/poesiadig.htm); etc. Também há muitos exemplos nas Hispano-Américas (este mapeamento é provisório e incompleto): Ar-gentina: Ana Maria Uribe (1944-2004) (www.vispo.com/uribe/index.html), Fabio Docto-rovich (www.sitec.fr/users/akenatondocks/DOCKS-datas_f/collect_f/auteurs_f/D_f/DOCTO_f/docto.html), Ivana Vollaro (www.cronicasvisuales.blogspot.com/); Javier Roble-

do (/www.youtube.com/results?search_query=Javier+Robledo&aq=f); Ladislao Pablo Györi (www.lpgyori.50g.com); Muriel Frega. Chi-le: Escaner Cultural Revista Virtual de Arte Contemporâneo y Nuevas Tecnologias (www.escaner.cl); Felipe Cussen; Isabel Aranda Yto; Martin Bakero (www.myspace.com/pneuma-tiko/videos); Martin Gubbins; Nilda Salda-mando-Diaz; Revista Laboratório (www.re-vistalaboratorio.cl). Costa Rica: Teknokultura Revista on Line (http://teknokultura.rrp.upr.edu/). Cuba: Desliz Revista de Arte, Literatura y Tendencias Contemporâneas (http://revista-desliz3.blogspot.com); Kevin Beovides Casas (http://eldiletante.ueuo.com/obras/yonky); Raul Aguiar; Samuel Riera. Uruguai: Clemente Padin (www.iis.com.br/~regvampi/spams_tra-shes/); Luis Bravo; Rafael Courtoisie; Santia-go Tavella. México: Alfredo Espinosa (www.alfredoespinosa.com.mx/); Bienal Internacional de Poesia Experimental (1987-2009, curado-ria de Cesar Horacio Espinosa Vera e Araceli Zúñiga, poetas visuais e experimentais.; Juan José Diaz Infante (www.altamiracave.com/Site/Altamira.html); Laura Elenes (1933- 2005): Po-esia Visual Atelen (http://web.me.com/elenes/LAURA_ELENES/ENTREVISTAS_Y_AR-TICULOS/Entries/1998/5/20_Cinco_biena-les_de_poes%C3%ADa_cinco.html).

Ao lado: Sujeito não identificado de Carlos Alexandre de Mattos Guimarães Abaixo: Pêndulo de Ernesto Manuel de Alves de Melo e Castro

ALGUMAS VIAS PARA NAVEGAR

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Com o fim da Guerra Fria, muitos acreditaram que os Estados Unidos seriam a única potência mundial. Menos de vinte anos anos depois, ob-servamos que países emergentes como Brasil, China e Índia passam a ter maior influência em aspectos importantes da política internacional.

As dificuldades internas norte-americanas, inclusive o enfraque-cimento do seu soft power, os desafios para resolver crises in-ternacionais, abrem o campo para mudanças no equilíbrio, tema de primordial interesse para o Brasil. Há movimentos buscan-do o fortalecimento do multilateralismo, para que outros ato-res participem efetivamente da gestão do sistema internacional. Uma característica importante do cenário internacional no fim da primeira década do século XXI, mais do que propriamente o surgimento de uma nova ordem, é a crise da estrutura existente

POLÍTICA

Tullo Vigevani

O PAPEL DO

BRASILNO MUNDO

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desde o final da II Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, a ascensão de novos in-teresses e demandas, bem como a ra-pidez das transformações, torna mais complexo o entendimento atual sobre a governança global. Nesse contexto de incertezas e mudanças, o Brasil parece adquirir uma nova posição de razoável proeminência, ancorada na melhoria da realidade econômica e social do país, e em ativismo internacional que busca o fortalecimento da multipolaridade. De fato, desde 1994, a inflação está nos padrões internacionais e o crescimento tem sido importante nos dez primeiros anos do século XXI, situando-se, em 2010, em aproximadamente 7,5%. Com isso, o país vai consolidando-se como a sétima economia do mundo. É impor-tante dizer que esse crescimento se dá juntamente com tendência semelhante em países de nossa região, particular-mente a Argentina, cujo crescimento foi de 9,2%, em 2010. Esse fato tem po-tencial consequência positiva. Porém, para que esse mesmo potencial possa ser efetivamente aproveitado, necessita primeiro ser construído. As vantagens do crescimento brasileiro não são auto-máticas na região. O tempo para reali-zar a construção não é infinito.

A participação ativa em arenas multilaterais é uma característica da polí-tica externa brasileira e tem relação com o objetivo de parte das elites de projetar o país como um ator relevante na con-figuração do sistema internacional. Essa característica manifestou-se ao longo de todo o século XX. A noção de multila-teralismo expressa a preferência por um padrão de interação coletiva nas suas di-versas dimensões, seja como método de negociação, de ação ou de regulação, ao invés de priorizar ações unilaterais ou bilaterais. Isso é importante para a com-preensão da política. A noção de multi-lateralismo pode fortalecer o interesse pela região, entendida como vetor de

aumento do poder de barganha do país. Mas, combinada com o crescimento bra-sileiro, a noção também pode ter como consequência o fortalecimento da ideia, nunca totalmente afastada no Brasil, de que as relações com o mundo são melhor administradas sem as amarras de acordos de integração regional, particularmen-te de uniões alfandegárias ou mercados comuns. Cabe lembrar que essa mesma ideia também tem significativo enraiza-

mento em alguns de nossos vizinhos, como: Chile, Argentina, Colômbia.

Hoje, em função da natureza dos novos desafios colocados pelas trans-formações globais e da retomada das discussões sobre os parâmetros de le-gitimidade internacional, há uma tenta-tiva do Brasil de aumentar o seu peso nos órgãos internacionais tradicionais, como Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial do Co-mércio (OMC) e Fundo Monetário In-

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ternacional (FMI), buscando modificar as estruturas que consolidaram hierar-quias no sistema internacional, confor-me disse Craig Murphy no livro Inter-national organization and industrial change. Fortalecem-se também uma série de arranjos multilaterais informais e seleti-vos, como o G-20 financeiro, que não podem ser vistos como alternativas ao padrão de multilateralismo tradicional. Esses objetivos, importantes e legítimos,

devem ser pensados como nacionais, mas também regionais. Isso coloca uma questão não suficientemente presente: a do fortalecimento da integração, sobre-tudo do Mercosul. Em outras palavras, esses objetivos deveriam ser absorvidos como parte de uma estratégia de interes-se regional, não apenas nacional. Cabe uma reflexão, não um paralelismo, sobre como isso acontece na União Europeia. Essa evolução não está claramente dese-nhada na América Latina.

Mudanças ocorridas no sistema internacional, que não se apresentavam como cenários previsíveis antes dos anos 90, influenciaram a política externa, inclu-sive a de integração regional na primeira década do século XXI. Cabe destacar: 1) o processo de intensificação do unilate-ralismo norte-americano, especialmente durante os governos de George W. Bush (2001-2008); 2) o impacto da ascensão chinesa; 3) a valorização das commodities agrícolas, a partir de 2003; 4) a reestru-turação dos eixos de desenvolvimento mundial, em particular o papel de Índia, Rússia e África do Sul; 5) o crescimen-to dos fluxos de comércio para países que, até 1990, não eram relevantes para o Brasil; 6) o papel atribuído pelo Brasil às negociações econômicas multilaterais, evidenciado pela participação ativa do país no G-20 financeiro.

Em conjunto, esses elementos fortaleceram o paradigma universalista e diminuíram relativamente o peso da integração regional. Ainda que mantida a ênfase política na integração e na rela-ção com os países vizinhos, no âmbito do Mercosul e da Unasul (União de Na-ções Sul-americanas), ela teve seu signi-ficado proporcionalmente reduzido. O paradigma universalista esteve presente nas formulações brasileiras em relação ao Mercosul, principalmente na defesa do intergovernamentalismo como prin-cípio institucional da integração, evitan-do-se o supranacionalismo. Perspectiva mantida constante de 1991 até hoje, re-centemente tem sido revalorizada, pois, no entendimento das elites e do gover-no brasileiro, ela viabiliza a busca pelo multilateralismo – seu interesse maior.

Antonio Patriota (2008), então embaixador do Brasil em Washington, diz em seu artigo “O Brasil e a política externa dos EUA”, no livro Política Ex-terna: “embora os Estados Unidos per-maneçam a única superpotência do sis-tema internacional, já não se pode dizer,

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hoje, que a ordem mundial se enquadre em um modelo rigorosamente ‘unipo-lar’. Os recursos políticos e militares de que dispõem o governo e a sociedade norte-americanos, ainda que virtual-mente incontrastáveis, não lhes assegu-ram a capacidade de definir resultados em escala global”. O objetivo brasileiro no governo Lula da Silva, e que conti-nua no de Dilma Rousseff, de contri-buir para uma nova geometria de poder mundial não implica confronto com os países ricos, em particular com os Es-tados Unidos, tampouco com a União Europeia. Todavia, diferenças vieram à tona em alguns temas, inclusive, latinos e sul-americanos. Foi assim na crise de Honduras de 2009 e, também, na avalia-ção de alguns governos críticos aos Es-tados Unidos, como é o caso da Vene-zuela. Exatamente essa situação, em que se consolidam diferenças de interesses tratadas de forma pragmática, exige de parte do Brasil a busca de afinamento maior com os países da região. Certa-mente foram construídos instrumen-tos importantes, além do Mercosul: a Unasul, a Cealc (Comunidade de Es-tados Latino-americanos e do Caribe). Mas ao discutirmos o novo papel que

o Brasil assume na região, não convém desconhecer que esses instrumentos se ressentem de grande debilidade ins-titucional. A possibilidade brasileira de contribuir de modo importante para a superação dessa debilidade é efetiva na atualidade. Provavelmente é um fato historicamente novo, determinado por diferentes razões políticas, mas também pela capacidade potencial de atração, inclusive comercial , econômica, de de-senvolvimento de projetos conjuntos.

A consequência da estratégia global player, ou universalista, repercute sobre inúmeros aspectos. Como tentamos ex-plicar, o mais importante é o da política frente à América do Sul. Esta estratégia reduz, ao menos em termos relativos, o papel do Mercosul e do restante da América Latina. Paradoxalmente, pode aumentar o interesse pelo Brasil de par-te de seus vizinhos. A razão para isso acontecer, com boa possibilidade de continuidade, é o crescimento econômi-co do país, que faz com que se torne um mercado crescentemente importante, sobretudo para os países do Mercosul. Em 2000 o share do comércio do Brasil com os países do Mercosul era de 14%, caindo a 10% em 2009, mantendo-se

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igual em 2010. Em valores absolutos, o comércio e os investimentos na região aumentaram fortemente, fazendo cres-cer o interesse pelo Brasil, particular-mente na Argentina e, também, no Chi-le. Ao mesmo tempo, a diversificação e o desenvolvimento de outros fortes interesses, faz com que o país passe a concentrar seus esforços em direção a outros atores considerados estratégicos.

O Mercosul continua importante, assim como a integração sul-americana, à qual se dá maior peso, mas esses obje-tivos não são o único foco. O Brasil de-monstrou interesse no desenvolvimen-to econômico dos países da América do Sul, inclusive, estimulando a estabilidade democrática, como demonstra a aprova-

ção, na Câmara dos Deputados no iní-cio de abril de 2011, de lei aumentando o pagamento da energia produzida em Itaipu pertencente à quota paraguaia. Do mesmo modo, apesar da modesta capacidade brasileira, como percebe-se pelo volume de recursos aplicados no Fundo para a Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional do Mer-cosul (Focem), criado no final de 2004, os investimentos públicos e privados na região têm crescido em importância. Inclusive os do BNDES e de agências públicas, como a Petrobras.

Ao contrário dos países desenvol-vidos, cujos recursos de poder econô-mico e militar garantem-lhes influência internacional, ainda que com riscos de over extension, a projeção externa do Bra-

sil é perseguida mediante intensa partici-pação nos foros políticos e econômicos, regionais e multilaterais. Nessa pers-pectiva, a questão regional para o Bra-sil tem clara dualidade ou ambiguidade. Por um lado, ela é importante e o Brasil aumenta parcialmente sua atratividade, é visto com simpatia, por não ter velei-dades nem possibilidades hegemônicas. Por outro, sua crescente importância econômica e política em escala interna-cional, faz com que ganhe sustentação em partes da sociedade a interpretação de que universalismo e multilateralismo sejam objetivos a serem alcançados pelo país por meio de suas próprias capaci-dades. Acreditamos que a integração profunda, como a que surgiu dos de-

bates entre argentinos e brasileiros de algumas décadas, seja parte do próprio interesse nacional e deva beneficiar a região, sem altruísmos fora de lugar, o que não é próprio de política de Estado, mas como parte da concepção de inser-ção global num mundo multilateral. O maior peso brasileiro poderia estimular essa perspectiva.

Tullo Vigevani é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, e professor titular de Ciência Política da Unesp, tendo publicado vários livros.

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PERSONALIDADE

Flávio Saes

CELSO FURTADO

A ampla repercussão nacional e interna-cional da obra de Celso Furtado per-mite afirmar que ele foi o mais impor-tante economista brasileiro do século XX. Basta lembrar que seus livros fo-ram traduzidos para 11 idiomas (inclu-

sive japonês, chinês, polonês, romeno, sueco e farsi), a ates-tar o interesse que sua obra despertou em todo o mundo.Podemos afirmar que a relevância de sua obra é fruto não apenas de sua envergadura intelectual, mas também de uma rica experi-ência de vida. Nascido em Pombal, no interior da Paraíba, convi-veu desde cedo com uma sociedade marcada pela pobreza e pela profunda desigualdade social. Em 1944, após concluir o curso de Direito no Rio de Janeiro, foi convocado para a FEB (Força Ex-pedicionária Brasileira), integrando, de janeiro a agosto de 1945,

ECONOMISTA BRASILEIRO DE PROjEÇÃO INTERNACIONAL

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as forças brasileiras que participaram da Segunda Guerra na Itália. Em 1946 iniciou seu curso de doutorado na Universidade de Paris, onde defendeu, em 1948, a tese “A Economia Colonial Brasileira”. Nesses anos pôde acompanhar a reconstrução da economia europeia no pós-guerra: a po-breza dos países europeus mais afetados pela guerra era enfrentada por meio de um vasto, e em grande medida bem-suce-dido, esforço de reconstrução.

Em 1949 foi chamado a colaborar com a Comissão Econômica para a Amé-rica Latina (Cepal) na secretaria geral do órgão em Santiago do Chile, e também no Rio de Janeiro como presidente do Grupo Misto Cepal-Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE). Em 1958, já desligado da Cepal, assumiu uma diretoria do BNDE: realizou estu-dos sobre o Nordeste, que convenceram o presidente Juscelino Kubitschek a criar a Superintendência do Desenvolvimen-to do Nordeste (Sudene). Furtado foi nomeado seu superintendente, cabendo a ele a estruturação do órgão. Em 1962, no governo de João Goulart, tornou-se o primeiro Ministro do Planejamento e, como tal, elaborou o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico.

Em 1964, já de volta à Sudene, teve seus direitos políticos cassados por dez anos pelo Ato Institucional nº1. Fora do Brasil iniciou uma brilhante carreira acadêmica internacional, passando por vários países e universidades, o que cul-minou com o convite para assumir a cá-tedra de Desenvolvimento Econômico na Universidade de Paris, onde perma-neceu por cerca de vinte anos. Em 1986 retornou ao Brasil e ocupou, no governo Sarney, o Ministério da Cultura. Manteve, nos anos 1990, intensa atividade: partici-pou de comissões e órgãos internacio-nais, principalmente na Unesco, fez-se ouvir em relação aos grandes temas da economia brasileira e continuou a publi-car artigos e livros (o último deles, Raízes do subdesenvolvimento, em 2003).

O foco central da obra de Furta-do é a questão do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, certamente resul-tado de sua sensibilidade para a questão da pobreza que observara, sob diferen-tes formas, desde muito jovem. A rique-za dessa vasta obra permite sua leitura sob inúmeras perspectivas (econômica, social, política, cultural). Procuramos, a seguir, explorar apenas um aspecto do pensamento de Furtado: o sistema

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“centro-periferia” de relações econô-micas internacionais em que se insere a questão do subdesenvolvimento latino-americano. Vale lembrar, Furtado atri-bui a Raúl Prebisch, primeiro secretário-geral da Cepal com quem trabalhou em Santiago do Chile, a concepção “cen-tro-periferia” como fundamental para a compreensão do subdesenvolvimento:

Essa visão está subjacente em For-mação econômica do Brasil, livro publicado em 1959, e que se tornou um clássico da História Econômica do Brasil. Fur-tado estuda longamente a dinâmica da economia brasileira (desde a economia escravista no século XVI até a economia de transição para um sistema industrial no século XX). Voltada, por séculos, à exportação, a economia brasileira teria encontrado na crise de 1929 e na Gran-de Depressão dos anos 1930 a opor-tunidade histórica de romper seu cará-ter periférico. Enfraquecidos os laços com a economia mundial, foi possível o deslocamento do centro dinâmico da economia brasileira para seu mercado interno, com especial relevo à indús-tria manufatureira. O aprofundamento da industrialização nas décadas seguin-tes permitia visualizar a constituição de uma economia nacional autônoma. Era essa a mensagem presente em A pré-revo-lução brasileira (publicado em 1962):

“Em síntese, o Brasil, ao iniciar-se a sétima década do século XX encontra-se no umbral de sua transmutação em na-ção industrial. Trinta anos de profundas transformações fizeram de uma simples constelação de economias periféricas do mercado mundial, com a dinâmica típica de um sistema colonial, uma economia industrial cujo processo de crescimento se traduz em diferenciação crescente, a ní-veis mais altos de produtividade, de uma estrutura cada vez mais complexa. (...) A nossa economia já não é comandada de fora para dentro, obrigando-nos a seguir, perplexos e impotentes, os ziguezagues de

um destino de povo dependente. Temos em nossas mãos os instrumentos de au-todeterminação que até há pouco tempo eram apanágio de uns quantos povos pri-vilegiados” (Furtado, 1962, p. 115).

Essa expectativa de uma econo-mia nacional independente, que pudesse caminhar rumo ao desenvolvimento por meio da elevação da produtividade e da distribuição de seus ganhos pelo conjun-to da população, se desfez ao longo dos anos 60. Em parte, pela opção política dos governos autoritários da época, não só no Brasil, mas também em outras nações latino-americanas, de maior integração econômica com as economias capitalistas desenvolvidas (em especial, os Estados Unidos). Mas também porque se percebia a crescente dificuldade de romper com o subdesenvolvimento dada a forma prévia de inserção das economias latino-america-nas na economia mundial. É o que Furta-do, no livro: Brasil: a construção interrompida (de 1992), chamou de “armadilha históri-ca do subdesenvolvimento”.

O fenômeno fundamental para o desenvolvimento econômico é o pro-gresso técnico: é por meio dele que se obtém o aumento de produtividade que resulta na elevação da renda per ca-pita. Quando a acumulação de capital se faz em ritmo mais rápido do que o crescimento da população (e, portanto, da disponibilidade de mão de obra), há uma pressão para a elevação dos salá-rios, de modo que essa sociedade ca-minha rumo ao que Furtado denomina “homogeneização social”. Não se tra-ta da igualdade absoluta entre todos, e sim da situação em que os “membros de uma sociedade satisfazem de forma apropriada as necessidades de alimen-tação, vestuário, moradia, acesso à edu-cação e ao lazer e a um mínimo de bens culturais” (Furtado, 1992, p. 38). Isso foi o que ocorreu no “centro”, ou seja, nos países que se industrializaram no século XVIII e no XIX.

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Mas esse não era um resultado ne-cessário do progresso técnico. Lembra Furtado que “... a teoria do subdesen-volvimento cuida do caso especial de situações em que aumentos de produ-tividade e assimilação de novas técni-cas não conduzem à homogeneização social, ainda que causem a elevação do nível de vida médio da população” (Fur-tado, 1992, p. 40). E por que isso ocor-re? Ou seja, qual é afinal a “armadilha histórica do subdesenvolvimento”?

Na periferia não ocorreu a produ-ção de novas técnicas e sim a absorção das inovações criadas nos países centrais. Mas essas inovações são de dois tipos: de um lado, processos produtivos mais eficientes; de outro, novos produtos que passam a integrar o padrão de consumo da sociedade. A possibilidade de absorção do progresso técnico na periferia se deu a partir do crescimento da renda gerada pelas exportações de produtos primários. Porém, não houve progresso nas técnicas da produção primária (exceto algum me-lhoramento em atividades de apoio como o transporte ferroviário); assim, a absor-ção do progresso técnico se fez princi-palmente pela incorporação, por meio de produtos importados, dos novos padrões de consumo da periferia. Mas com uma renda altamente concentrada, esses pro-dutos eram aqueles que atendiam aos grupos ricos dos países periféricos. A esse fenômeno, Furtado deu o nome de “mo-dernização”: a assimilação do progresso técnico por meio da incorporação de no-vos produtos ao padrão de consumo de certos grupos, sem expressiva transfor-mação do processo produtivo.

A esperança de que a industriali-zação pudesse conduzir à “homogenei-zação social” foi frustrada exatamente porque ela ocorreu numa economia marcada pela “modernização”. Após uma fase inicial em que a substituição de importações ocorreu nas indústrias mais simples, a industrialização se pautou pe-

los produtos de consumo dos grupos de alta renda (o segmento mais dinâmico da demanda). Ora, nestas indústrias, a tec-nologia importada dos países centrais era tipicamente intensiva em capital, em consequência, houve reduzida absorção de mão de obra, sem gerar pressão para a elevação dos salários da economia. Essa foi a “armadilha histórica do subdesen-volvimento”: a industrialização ocorreu em vários países da periferia, mas onde ela se fez num padrão imposto pela “mo-dernização” não se produziu a “homo-geneização social” que deve ser, afinal, o objetivo central do desenvolvimento.

Desse modo, Furtado mostra como o sistema centro-periferia, por meio da “modernização”, deixa sua marca nos países subdesenvolvidos. Ou seja, a superação do subdesenvolvimento exige muito mais do que alguns indica-dores quantitativos aparentemente satis-fatórios: rápido crescimento do PIB, au-mento da renda per capita, expansão das exportações, nada disso garante a efetiva promoção do desenvolvimento cujo cri-tério decisivo é a capacidade de promo-ver a “homogeneização social”. Esta a mensagem de Furtado que, ainda hoje, merece reflexão diante da euforia de mui-tos com nossos indicadores econômicos.

Flávio Saes é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado pela Universite de Paris III (Sorbonne-Nouvelle). Atualmente é professor titular da Universidade de São Paulo.

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DEBATE

MERCOSUL

ANáLISE DOS ESPECIALISTAS RUBENS BARBOSA E FÉLIX PEñA

20 ANOS

Quando da criação do Mercosul pelo Trata-do de Assunção, em 26 de março de 1991, as circunstâncias políticas e comerciais eram muito diferentes das que existem hoje. A prevalência das visões nacionais, as diferenças surgidas na América do Sul

e a emergência da China como primeiro parceiro comercial de muitos países da região, inclusive o Brasil, tornaram a negocia-ção no âmbito do Mercosul mais difícil. Em seu início, o Merco-sul estava voltado para a integração econômica e comercial. As negociações para a abertura dos mercados dos países membros foram importantes para as empresas brasileiras, servindo como exercício útil para o acompanhamento e a negociação de acor-dos regionais e multilaterais. A motivação para promover a libe-ralização comercial e a coordenação macroeconômica, com vistas

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a chegar-se a um mercado comum, foi sendo aos poucos perdida.

Os descumprimentos do Tratado de Assunção começaram em 1995, quando a Tarifa Externa Comum (TEC) entrou em vigência e o grupo passou para a fase de união aduaneira. Todos os países estavam imersos em graves crises econômicas.

Ao longo dos anos, em especial nos últimos quatro ou cinco, com as crescentes dificuldades institucionais para desenvolver o projeto de integração, como inicialmente concebido, os países, liderados pelo Brasil, passaram a enfati-zar os aspectos políticos e sociais das re-lações. Embora o novo foco represente uma distorção do Tratado de Assunção, muitos veem essas medidas como igual-mente importantes para a integração re-gional. Esse processo, no entanto, vive hoje um momento de crise institucional, que, caso fosse superada, poderia fazer crescer ainda mais o relacionamento co-mercial entre os países membros.

Os atuais órgãos do Mercosul fun-cionam de maneira precária, o que não permitiu maiores avanços nas negocia-ções. O Tratado de Assunção seguiu sen-do sistematicamente desrespeitado por todos os países membros, com crescen-tes exceções à TEC, aplicada apenas em cerca de 35% dos produtos, e restrições às exportações, como licenças prévias e restrições voluntárias, contrárias à letra e ao espírito do Tratado. A frequente mu-dança de regras gera insegurança jurídica e incerteza para os investidores e para as empresas industriais e exportadoras. Esses fatos não impedem que empresas, individualmente, aproveitem as oportu-nidades de comércio e de investimento existentes nos países do Mercosul, como ocorre com as brasileiras.

A necessidade de avanços institu-cionais, a fim de corrigir os rumos do Mercosul, deverá exigir esforços adi-cionais para fortalecer a TEC, o meca-nismo de solução de controvérsias, o

sistema normativo, o Parlamento e a transformação do sistema de votação (de consensual para ponderado).

Os números do intercâmbio co-mercial intrabloco alcançaram níveis re-cordes em 2010 (US$ 45 bi). Não são as virtudes do Tratado de Assunção, con-tudo, que despertam o ativismo do setor privado nos países membros. A realida-de é que o aspecto comercial do Merco-sul perdeu importância relativa. No caso do Brasil, as trocas dentro do bloco re-presentavam, em 1998, cerca de 17% do comércio exterior brasileiro. Em 2010, caíram para cerca de 9% do total.

Mesmo reconhecendo o reduzido impacto para a estrutura produtiva na-cional e a quase marginalidade para as necessidades brasileiras de modernização produtiva, o processo de integração sub-regional é um ganho político e econômi-co para os países membros, pela relevân-cia no plano estratégico-diplomático.

Para ser objetivo e não parecer apenas negativo, não se deve esquecer os avanços que ocorreram recentemen-te no processo de negociação. Depois de seis longos anos de discussão e im-passes, foram aprovados: o código adu-aneiro, com algumas concessões contra o livre comércio que entrarão em vigor até 2019; a gradual eliminação da dupla cobrança da TEC, em etapas sucessivas que terminarão em 2017; e a distribui-ção da renda aduaneira. Foram feitos avanços também no Fundo para a Con-vergência Estrutural (Focem) que hoje gira em torno de US$ 470 milhões. Com recursos do Focem, em larga medida integralizados pelo Brasil, estão sendo financiados nove projetos no valor de US$ 800 milhões para a construção de estradas no Paraguai e a implantação de linhas de transmissão elétrica na Argen-tina, no Paraguai e no Uruguai.

No tocante à agenda externa, a prioridade atribuída nos últimos oito anos às negociações multilaterais da Ro-

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ções recém-criadas, como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul), pela superposição de competências, foi uma garantia da não desintegração do sub-grupo regional.

É em meio a uma crise institucio-nal que o Tratado de Assunção comple-ta 20 anos e o Mercosul se torna cada vez menos relevante no contexto do co-mércio exterior brasileiro.

É o momento de termos uma ideia clara do que se pretende para o Merco-sul. E o Brasil deveria liderar, com vigor, os esforços para retomar o projeto inicial de liberalização comercial.

dada de Doha explica, em parte, a parcial paralisia dos entendimentos mantidos pelo Mercosul. O reduzido número de acordos comerciais assinados (Israel e Egito) e em negociação é resultado tan-to dos interesses conflitantes, como da dificuldade de entendimento entre os quatro países membros. Impõe-se a fle-xibilização das regras para permitir que cada país possa negociar individualmen-te. O fracasso da Rodada e as dificulda-des para avançar nos entendimentos com a União Europeia, sobretudo agora com as hesitações da Argentina, deixaram o Mercosul em situação de isolamento. O ingresso da Venezuela poderá tornar esse quadro ainda mais complicado.

A fidelidade do Brasil ao Merco-sul durante o governo anterior, apesar da perda de espaço para outras institui-

Rubens Barbosa é economista e cientista político. Foi embaixador do Brasil em Washington.

QUAL MERCOSUL SE PODERÁ CONSTRUIR NOS PRóxIMOS ANOS?

Depois de vinte anos não parece ha-ver dúvidas sobre a subsistência do Merco-sul. Ao menos, não se observam opções ra-zoáveis que sejam valorizadas pelos países membros, e as que se costumam propor apresentam altos custos políticos, e nem sempre oferecem perspectivas satisfatórias no plano comercial e econômico.

A questão central é, então, saber que tipo de Mercosul poderá construir-se nos próximos anos. Há três dados certos. Um é o de uma crescente insa-tisfação com os resultados concretos alcançados. Nem sempre os percebe-mos como capazes de gerar ganhos mútuos entre seus sócios, sobretudo levando-se em conta as assimetrias econômicas derivadas de diferenças na dimensão dos respectivos mercados e inclusas em seu grau de desenvolvi-mento relativo.

Outro fator é que as circunstâncias globais e regionais que levaram à sua cria-ção mudaram profundamente nos últi-mos vinte anos. Um mundo diferente ao dos anos 90 requer, também, enfoques modernos na construção de espaços re-gionais de integração e cooperação. Ob-serva-se isto também em outras regiões, incluindo, certamente, a Europa.

E o terceiro dado é que hoje todos os países do Mercosul – grandes e pe-quenos – têm múltiplas opções em sua inserção internacional. De certa forma, para todos, o bloco fica pequeno. O que não quer dizer que não lhes possa ser útil como âmbito para potencializar sua capacidade de competir no mundo, para acelerar seus processos de transforma-ção produtiva e para gerar um entorno externo mais favorável à democracia e à coesão social necessária.

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Félix Peña é diretor do Núcleo Interdiscipli-nar de Estudos Internacionais e do Módulo Jean Monnet da Universidade Nacional de Três de Fevereiro, em Buenos Aires.

A respeito do futuro, ao menos duas opções se abrem para a conti-nuidade da construção de um espaço comum no marco do Mercosul. Uma é continuar um processo de passos in-crementais que permitam desenvolver e aperfeiçoar instrumentos definidos originalmente no Tratado de Assunção, inclusive, tirando proveito do alcance pouco preciso de alguns compromis-sos efetivamente assumidos. É muito o quanto temos que progredir a respeito. Quem sabe seja preciso muito tempo e, sobretudo, muita tenacidade. Não é ne-cessário seguir ao pé da letra os mode-los teóricos, nem mesmo os de outros processos de integração. O importante é conseguir uma combinação inteligente de previsibilidade e de flexibilidade em suas regras do jogo e em seus mecanis-mos operacionais. Com credibilidade se

mobilizarão investimentos produtivos em função do mercado ampliado. A ou-tra opção é inclinar-se por um Mercosul com forte densidade retórica e pouca densidade nos feitos. Algo assim como uma “vitrine”, uma espécie de Cinecittà da integração, útil para fins mediáticos, mas não para incidir nas realidades da vida cotidiana de cidadãos, trabalhado-res e consumidores.

A primeira opção é a mais reco-mendável. Com vontade política e cria-tividade no plano técnico, ela é bem mais viável.

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HOMENAGEM

Ignácio de Loyola Brandão

O HOMEM QUE ESCREVIA SEM PARAR

SCLIAR

No final do mês de abril, no hospital Albert Einstein de São Paulo, inaugurou-se uma sala com o nome de Moacyr Scliar, o médi-co-escritor. Na plateia, dezenas de médicos e amigos de Scliar, entre eles Judith, a viúva, que não conseguiu subir ao palco para agra-

decer, com medo de não ser capaz de falar e desatar a chorar. Foi o irmão dela que fez a parte familiar. Por mais de uma hora eu tinha ouvido médicos comentarem o trabalho de outro mé-dico, não no consultório e sim diante da página escrita. Mais do que isso, falava-se da cultura judaica impressa na obra de Scliar, um filho de imigrantes judeus que se instalaram no bairro do Bonfim, em Porto Alegre. Moacyr nasceu e cresceu em meio humilde, e seu orgulho era esse: o de ter feito uma carreira lite-rária bem-sucedida nacional e internacionalmente, chegando à

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Academia Brasileira de Letras, apesar de sair de uma família muito simples.

Escrevendo, escrevendo, escre-vendo, disse Roberto, o cunhado. Escre-veu contos, romances, crônicas, infantis, biografias, ensaios. Nunca ninguém na família tinha visto Moacyr sem estar a escrever. Escrevia até na praia. Quem sabe por isso fosse tão branco, quase pálido. Um dia, Judith me contou que apenas o avião subia, Scliar descia a me-sinha e escrevia. Ninguém produz quase oitenta livros sem trabalhar o tempo in-teiro. Trabalhar mesmo, como médico, como diretor de departamento no go-verno do Estado, como cronista da Fo-lha de S. Paulo, como cronista de Seleções do Reader’s Digest, como palestrante.

Ouso dizer que não houve uma feira de livros, um festival de literatura, uma bienal, um seminário sequer no qual Moacyr não estivesse presente. Chegava a provocar ciúmes em alguns escritores a catadupa de convites que ele recebia. Porque estava em Boston, ou em Areia, na Paraíba; em Paris ou em Figueira da

Foz, Portugal; em Natal ou em Washing-ton, Nova York, Frankfurt, Roma, Sofia, Praga, Passo Fundo, Bagé, Buenos Aires. Talvez tenha sido o mais internacional dos escritores brasileiros atuais.

Aceitava e ia, lá estava falando. Quando falava, começava lento, parece que ia engasgar, não tinha o que dizer e, de repente, engrenava e revelava um homem informado que debatia literatu-ra, política cultural, falava de imaginação e fantasia, de cinema e teatro e seguia, calmo, coordenado.

Antes dele morrer, e em curto espaço de tempo, estivemos três vezes juntos. Em Pirenópolis, na segunda Fli-piri, festival de livros numa cidade goia-na que é um encanto, tão bela quanto Parati em matéria de arquitetura colo-nial, adorável cidade de 300 anos. Fazia sol, calor, no entanto, Scliar estava im-pecável de paletó e gravata e parecen-do fresco. Vou dizer que nunca o vi em mangas de camisa. Aliás, na van a ca-minho de Pirenópolis, desembarcados do avião em Brasília, conversávamos

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sobre a Academia Brasileira, as eleições, o ritual de visitas de convencimento de cada acadêmico na luta pelos votos, dos grupos e de como cada grupo se com-portava. Márcia, minha mulher, curiosa, perguntou: “Algum acadêmico já foi eleito por unanimidade?” Moacyr, no banco da frente, virou-se cheio de orgu-lho: “Eu fui.” Na ABL ele levava a sério, ia a todas as sessões, tomava parte nas comissões, fazia palestras, era ativo.

Depois, estivemos na TV Cultu-ra, fui um dos entrevistadores do Roda Viva. Com agudo sentido de humor, a certa altura, alguém lhe perguntou se fa-ria uma consulta com o doutor House, o célebre médico da série exibida pelo Universal Channel, famoso pela esquisi-tice. “Acham que eu me entregaria a um louco? Só se estivesse louco também”, respondeu sorrindo.

A última vez que nos encon-tramos foi no Palácio do Governo do Estado de São Paulo quando nos tor-namos comendadores da Ordem do Ipiranga. Sentamos lado a lado no palco

dos homenageados. “Quem diria”, me disse, “somos escritores e comendado-res. Será um caminho para o Nobel?”

Ele sabia ser bem-humorado. Seu riso era franco, ainda que eu jamais o te-nha visto dar uma gargalhada. Era gene-roso, leal, profissional. Em 1996, quando fui internado no Hospital Einstein para clipar um aneurisma cerebral, ele, médi-co, telefonou de Porto Alegre para mi-nha mulher: “Se achar necessário, se te der mais segurança, daqui a duas horas estarei em São Paulo e, como médico, acompanharei tudo, decifrando os pro-cedimentos.” Isso fazia dele o compa-nheiro de todos os tempos. Carlos Hei-tor Cony, que teve um grave problema de saúde, em sua crônica da Folha de S. Paulo reforçou: “Muito mais novo do que eu, preocupava-se com minha saúde, meus remédios, exames, regimes. Atento, cor-dial, queria estar informado, seguro de que eu cumpria as prescrições médicas.”

Quando estive em Porto Alegre, após sua internação, não o vi, estava na UTI, de onde saiu sem vida.

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Praticamente todos os médicos da cidade giraram ao redor do seu leito. Vi alunos comovidos, chorando. Sentei-me com Judith e falamos durante duas ho-ras, lembrando, entre outras, uma viagem a Portugal que foi divertida e solene, com boas comidas e bebidas. Ainda que ele comesse frugalmente e não bebesse.

Como? Um escritor que não bebe? Não bebia e não era por religião nem por saúde, era por não gostar. O que não significava que não participasse de uma roda onde os alcoolizados es-tivessem discutindo alguma coisa. Ele ficava ao lado, participando e mantinha-se irritantemente sóbrio e ganhando nos palpites e nas piadas.

Em Coimbra, houve um encon-tro com Miguel Torga, um clássico mo-derno. Quando soube que Torga mexia em cada nova edição de cada livro seu, Scliar não se conteve: “Mas assim a sua obra não acaba nunca!” E Torga, vetus-to, solene, concordou: “Um livro não acaba nunca de ser escrito e reescrito. O tempo muda, a história muda, os per-

sonagens mudam também, a linguagem precisa ser apurada.”

Jamais esquecerei o encontro em um aeroporto, eu descendo de um avião, ele de outro, para uma bienal. Moacyr me cumprimentou e virou-se para al-guns professores e jornalistas que esta-vam à nossa espera: “Vocês estão con-templando uma amizade de 50 anos.” Por meio século, convivemos fazendo literatura. Ele, muito mais do que eu.

Assim como Encontro marcado, de Fernando Sabino, foi uma espécie de ro-mance de geração, o último de Scliar, Eu vos abraçarei mil vezes (recém-publicado pela Companhia das Letras), também pode ser considerado o livro de uma ge-ração que sonhou mudar o Brasil.

Ele fechou a vida esplendidamente.

Ignácio de Loyola Brandão é autor de diversos livros, entre eles Zero e Não verás país nenhum.

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RESENHA

Reynaldo Damazio

DEMOCRACIA NO TRÂNSITO:

REALIDADEE UTOPIA

O livro Fé em Deus e Pé na Tábua (Editora Rocco, 2010) surgiu de uma pesquisa reali-zada a pedido do governo do Espírito San-to, por meio do Departamento Estadual de Trânsito, cujo objetivo era fornecer subsí-dios para a melhoria das condições de trân-

sito na área da grande Vitória e, consequentemente, no restante do Estado. O ponto de partida para essa iniciativa de planeja-mento urbano foi a constatação alarmante de que os índices de acidentes e de abusos praticados cotidianamente apontavam não só um crescimento perigoso, como estar de pleno acordo com a situação grave que se espalha por todo o país. Na inter-pretação detalhada e crítica do antropólogo Roberto DaMatta, auxiliado por Gilberto M. Vasconcellos e Ricardo Pandolfi na elaboração da pesquisa e na análise dos resultados, a situação

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caótica e violenta no trânsito das gran-des metrópoles brasileiras, de certo modo, reflete e reproduz uma cultura de desigualdade, de desrespeito às leis, de apropriação do espaço público pelos interesses privados, e de traços elitis-tas predatórios que se consolidaram na história do país e fazem parte de nosso imaginário social, no pior sentido.

A primeira vítima nesse cenário ameaçador é o pedestre, elo mais frágil na relação desleal de forças entre a má-quina e o corpo, que alimenta as esta-tísticas com mortes e ferimentos graves, deixando sequelas irreparáveis. A partir daí, numa sucessão de arbitrariedades que incluem a prevalência do carro mais potente sobre o mais modesto, do rico sobre o pobre, da autoridade sobre o cidadão comum, do masculino sobre o feminino, o quadro se agrava ao tocar na dimensão mais ampla de um compor-tamento contrário aos princípios demo-cráticos e do respeito ao outro, ou à lei.

Na avaliação dos autores, “temos uma sociedade formalmente aberta ao movimento e à velocidade dos cruza-mentos e das temporalidades urbanas (especialmente marcadas pela ocupação fugaz e individualizada), que continua pesadamente enredada por relações sociais que distinguem seus ocupantes muito mais como negros e brancos, ve-lhos e jovens, homens e mulheres, ricos e pobres, pessoas comuns e autoridades do que como bons ou maus motoristas e pedestres, o que faz com que os espa-ços sejam recorrentemente reformula-dos, neutralizados ou ignorados”.

Esse traço cultural de dificuldade no reconhecimento da esfera pública como espaço democrático e do respei-to às regras que procuram organizar “o movimento de veículos e indivídu-os nas vias públicas”, converte-se num ambiente hostil, de guerra diária de to-dos contra todos, em que os motoristas pensam e agem com individualismo e

brutalidade, sem levar em consideração o ordenamento legal e até as melhorias nas condições do tráfego.

“A conjuntura de competição ne-gativa é promovida pela convergência conflituosa de valores e produz, seja a pé ou dirigindo qualquer veículo, um con-junto de comportamentos agressivos e enlouquecedores”, avalia DaMatta.

Se considerarmos que esse qua-dro cultural de violência e desrespeito às regras de convívio social se agrava com a constante entrada de novos ve-ículos em circulação, proporcionada pelo crescimento econômico do país e a consequente facilidade na aquisição de veículos, temos uma perspectiva de es-trangulamento no trânsito que só piora o convívio entre motoristas e pedestres, transformando o deslocamento no es-paço urbano num pesadelo. A quantida-de de carros nas ruas já provoca hoje uma dificuldade enorme de locomoção, não apenas acentuando a ocorrência de acidentes, como gerando uma situação de estresse permanente.

Diante de perspectivas tão pouco animadoras, a reflexão de DaMatta nos alerta para o fato de que “a imprudência, o descaso e a mais chocante e irreconhe-cível incivilidade brasileira no trânsito decorrem da ausência de uma visão igua-litária do mundo, justamente num espaço inevitavelmente marcado e desenhado pela igualdade mais absoluta entre seus usuários, como ocorre com as ruas e ave-nidas, as estradas e os viadutos”.

Talvez seja necessário, para que reconheçamos a essência democrática e igualitária que é inerente ao uso do espa-ço público, fazermos uma releitura críti-ca de nossa formação histórica, em sua raiz colonial, escravocrata e autoritária.

Reynaldo Damazio é editor, crítico literário e jornalista, autor de Horas perplexas.

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A universidade da integraçãoPor sua localização estratégica, em região fronteiriça, Foz do Iguaçu, no Paraná, foi o local escolhido para abrigar a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). A ideia remonta aos anos 80, mas somente no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, uma comissão foi criada pelo governo para estruturá-la. Com recursos de Itaipu, projeto de Oscar Niemeyer, o complexo de edifí-cios poderá abrigar até 10 mil alunos, em um terreno de 144 mil metros quadrados. Pelas estimativas, a universi-dade deve ficar pronta até 2014.

México diz não à violênciaA violência está mobilizando a população mexicana. A Marcha pela Paz com Justiça e Dignidade, convocada no início do mês de maio pela Rede Cidadã pela Paz e pela Justiça, chegou a con-tar com a participação de 200 mil pessoas engajadas ao longo do percurso. Começou em Cuernavaca a 80 quilômetros da Cidade do México, aonde chegou alguns dias depois se concentrando na praça central El Zócalo. Envolveu sindicatos, movimentos sociais, estudantes e organizações de direitos humanos em cada uma das dezenas de cidades pelas quais passou em silêncio. Seu maior objetivo é prestar apoio às famílias de milhares de vítimas que morreram por conta de um programa federal de combate ao narcotráfico, um plano implantado pelo governo, que, de acordo com dados da entidade, já matou mais de 40 mil pessoas.

CURTAS

Caça ao tesouroAs disputas continuam. De um lado o Peru, de outro a Universi-dade de Yale. Por enquanto, os peruanos recebem de volta ape-nas parte do acervo arqueológico de 46.332 peças que o explora-dor Hiram Bingham retirou de Machu Pichu, entre 1912 e 1915, a título de empréstimo, e jamais devolveu. A devolução inicial das 363 relíquias foi possível graças a um acordo firmado entre o governo peruano e a Universidade de Yale, nos Estados Uni-dos, que financiou as expedições de seu professor e ficou com o tesouro. O Peru quer tudo de volta, mas a Universidade não se compromete a abrir mão de tão precioso acervo. As peças que já chegaram ao Peru foram expostas no Palácio do Governo, para serem, em seguida, enviadas à Casa Concha, de Cuzco, onde fica-rão até a construção de um museu. As negociações prosseguem e, quanto ao restante do lote, há sérias controvérsias sobre qual das partes é a legítima detentora dos direitos de propriedade.

2 Sylvio Back recebe aOrdem do Rio BrancoO cineasta brasileiro Sylvio Back recebeu das mãos da presidente Dilma Roussef a insígnia de Oficial da Or-dem de Rio Branco pelo conjunto de uma obra consti-tuída por 37 filmes. Realizador de filmes como Lost Zweig (2010), Souza Lima – o poeta do desterro (1998) e Guerra do Brasil (1998), entre vários outros de uma carreira que começou nos anos 60, Back, que também é poeta e en-saísta, está com seu 38º filme, O Universo Graciliano, em fase de montagem. Sua carreira se distingue pelo foco no resgate de personalidades da vida artística e cultu-ral brasileira, como é o caso do escritor austríaco Zweig (que viveu no Brasil, onde faleceu) e de Graciliano Ra-mos, um dos expoentes da literatura nacional.

4

3

1Detentor de

quase oitenta prêmios

nacionais e internacionais,

Sylvio Back foi o único

cineasta a receber, este

ano, a honraria.

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Difícil imaginar a materialização de uma arte em comum entre os artistas dos pa-íses de língua portuguesa. Difícil não, quase impossível. A produção de cada região mantém suas especificidades e dialoga diretamente com a arte con-temporânea instalada nas grandes ex-posições internacionais, como bienais. O conjunto que compôs a mostra Arte Lusófona Contemporânea, organiza-da pelo Memorial da América Latina e exposto na galeria Marta Traba, reuniu artistas de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Al-guns deles já são consagrados em seus países como Kiluanji Kia Henda, de São Tomé e Príncipe, (obra ao lado), en-quanto outros estão ainda desenhando uma trajetória.

LÍNGUA APROxIMAARTE CONTEMPORÂNEA

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Animadíssimo o espetáculo dos gru-pos chilenos Mawaca e Merkén. Eles dividiram o palco do Auditório Si-món Bolívar como parte do tradicio-nal programa Conexão Latina que o Memorial apresenta mensalmente. O Mawaca pesquisa e recria com acen-to brasileiro o universo étnico glo-bal. São sete vozes femininas e um sexteto instrumental, que fazem um

Dois encontros do Foro Permanente de Reflexão sobre a América Latina já foram realizados este ano, dando se-quência ao projeto que começou em 2010, quando três foram promovidos. O primeiro deles, Imagens Errantes: Resistência e Cultura de Moda, pales-tra da jornalista e professora Maria Carolina Garcia sobre a trajetória da chita, um tecido de algodão estampa-

Foro Permanente de Reflexão sobre A.L.

Mawaca e Merkén no palco do Memorial

do com padrões florais, incorporado à indumentária brasileira. O outro foi Política de Segurança dos Estados Unidos após o 11 de Setembro e a Trí-plice Fronteira na América Latina, pa-lestra do professor Marcos Alan Fer-reira, que focalizou a política externa dos Estados Unidos para a região, a opinião de analistas e a posição do go-verno brasileiro.

Com o tema Centros Culturales: comu-nicación y nuevas tecnologías realizou-se em maio o X Encuentro de la Red de Centros Culturales de América y Europa. O encontro é uma iniciativa do Centro Cultural General San Martín, de Buenos Aires, Argentina, com o pro-pósito de promover o intercâmbio de reflexões. Participaram várias institui-ções, entre elas o Memorial da América Latina, representado por seu presidente Fernando Leça. Foram quatro dias de intensas atividades, com diferentes con-ferências sobre o tema, apresentações e visitas técnicas a centros da cidade.

Debate sobre comunicação e tecnologias

caldeirão sonoro, cujas canções são interpretadas em dez idiomas. Já o grupo Merkén defende o legado musi-cal latino-americano, com harmonias modernas, interpretando de maneira peculiar, do jazz ao pop, por meio de uma diversidade sem precedentes de instrumentos: charango, guitarra, per-cussão, piano, zamponhas e acordóns, além de vozes.

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POESIA

cuando sentados veíamos caminar a las muchachas junto con la primavera?

han pasado tú y el tiempopero aún estoy contigo viendo a las muchachas en flor

Después de enviarte cartas y regalos

empecé un poema sobre el color de la ceniza(no escribí mucho en verdad)pero yo sólo pensaba en ti

rezaba por recibir noticias tuyasy escribirte nuevas cartas

porque esos eran mis verdaderos poemasahí ponía mi énfasis amorosoen mis cartas para ti era librey con libertad podía buscarte

pero tuve que seguir escribiendo ese poema

Mi corazón es un ejército de negros liberadosen el centro, el actor

(que es el mismo corazón)lee un libreto antiguorecita largos versos

se calmabebe agua fresca

y sigue en las ofrendas

Fernando Iturburo nasceu em 1960, em Guayaquil, Equador, atualmente reside nos Estados Unidos e está con-vencido de que a poesia: “É uma produção verbal muito humana na qual não há mistérios e nenhuma índole: aí a claridade é claridade, e a confusão é confusão”. Entre outros, publicou os poemas: De aitines y laudes. Zacatecas, 1985; Vástagos. Guayaquil, 1990; El camino tomado. Guayaquil, 1997; Contra sí mismo. Quito, 2004.

Mónica: ¿recuerdas los días de Oregon?

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