nós e a europa - eduardo lourenço

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    Em 7 de Setembro de 1988 foi otrlbuido .0Premio Eurepeu de Ensolo Charles Velllon.instituido pelo Funda9Qe Charles Veillon, deLausanne, ao conjunto do obra de EduardoLourenco e 0 prop6sito do publlcccoode N6s e a Europa ou as duos razoes

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    NOS E A EUROPAau as duas razoes

    /1 terras portugueses

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    I D E N T I D A D E E M E M O R I A *o caso portugues

    Quer para individuo, quer para grupo, quer para umanacao, a identidade, em sentido obvio, e urn pressuposto. A essetitulo, aquila que surge como problema au questao de identidadepara cada uma dessas realidades, individual, grupal ou nacional,nso diz respeito a identidade propriamente dita mas a sua moda-lidade, a sua expressao e, sobretudo, a sua perturbacdo. Podia,pais, concluir-se que, em sentido rigoroso, nao ha nunca questaoalguma de identidade. Seria uma conclusao apressada. Mais exactoe afirrnar que para a indivlduo, grupo, a nacao, a questiio deidentidade e perrnanente e se confunde com a da sua mera e:~ds-tencia, a qual nao e nunca urn puro dado, adquirldode uma vezpor todas, mas acto de querer e poder permanecer conforme aoser ou ao projecto de ser aquilo que se e .

    Acontece, todavia, que, tambem em sentido proprio, 56 n o casodo individuo se pode falar de projecto,porque s6 no seu caso haurn autentico sujeito dele, uma relacao de interioridade consigomesmo. Urn grupo ou uma nacao s o s'ao sujeito como metaforado individuo que simbolicamente e por analogia constituem.Sujeito, quer dizer, memoria, reactuallzacao incessante do quefomos ontem em funC;aodo que somas hoje au querernos ser ama-nha, A esse titulo, tambem a identidade, mesmo a do individuo,nao e mero dado mas construcao e. invencao de si. Quer dizer, aomesmo tempo, a possibilidade ou ameaca de des-construcao, 0que,em termos psicoarialitlcos, se pode considerar como perda ou crisede identidade.

    Palestra proferida por ocasiao de urn coloquio em Durhan (USA) em 1984.

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    \Povo com larga memoria espontanea e cultivada de si mesmo,

    nacao com definicao politica, territorial e cultural de muitos se-culos, Portugal nao parece exemplo particularmente interessantedo fenomeno, hoje tao angustioso para outros povos, comunida-des ou continentes inteiros, de crise de identidade. Nos pensamossaber quem somas por ter sido largamente quem fomos e pensa-mos igualmente que nada ameaca a coesao e a consistencia da rea-lidade nacional que constituimos. Para ser mais clare, a nossa situa-cao nao nos poe os problemas que a ser basco, corsc, belga,irlandes, catalao, ou noutro registo, mexicano, argentino ou cana-diano poe aos individuos dessas comunidades ou nacoes - pro-blemas que sao 0 Pais Basco, a Corsega, a Belgica, a Irlanda, aCatalunha, 0 Mexico au a Argentina. Nem 0 estatuto linguistico,nem estatuto cultural, nem a situacao historico-politica sao, paraportugueses, problema com qualquer relevo. Deve ser mesmo dificilencontrar urn pais tao centrado, tao concentrado, tao bern defi-nido em si mesmo como Portugal. 0 nosso problema, como 0escrevi noutra ocasiao, nao e problema de identidade, se por issose entende questao acerca do nosso estatuto nacional, ou preo-cupacao com 0 sentido e teor da aderencia profunda com que nossentimos e sabemos portugueses, gente inscrita num certo espacoffsico e cultural, mas de hiperidentidade, de quase rnorbida fixa-Cao na contemplacao e no gaze da diferenca que nos caracterizaou nos imaginamos tal no contexte 'dos outros povos, nacdes eculturas.Nas relacoes consigo mesmos os Portugueses exemplificam urncomportarnento que so parece ter analogia com 0 do povo judaico.Tudo se passa como se Portugal fosse para os portugueses comoa Jerusalem para 0 povo judaico. Com uma diferenca: Portugal~ao espera a Messias, 0Messias e 0seu proprio passado, conver-tido na mais consistente e obsessiva referenda do seu presente,podendo substitulr-se-lhe nos momentos de maior dtivida sabre siau constituindo ate a horizonte mftico do seu futuro. FernandoPessoa que nao pode nunca imaginar nenhum futuro concreto parao Portugal do ' seu tempo, embora soubesse 0nosso passado mortocomo impe ri o h is to r ic o, so p6de conceber 0 nosso destino comodescoberta de Indias que niio vem no mapa. Quer dizer, e apesardo que a formula possa conter de inovador e futurante, uma espe-cie de repeticiio do ja feito e do ja sido. Talvez todos os P!Jvosexistam em funcao de certo momento solar que confere sentidoe euforiza rnagicamente a memoria do que sao. Mas poucos com

    , tanto radicalismo e constancia como 0 povo portugues. Essa eufo-ria mitica deve-a, quase exclusivamente, ao papel medianeiro e sim-bolicamente messianico que desempenhou num certo momenta daHistoria ocidental convertida por essa rnediaeao, pela primeira vez,em Historia mundial. Que os outros 0 ignorem, saibam pouco auo tenham esquecido, deprime-nos, mas nao altera 0 essencial: no ssabemos, e esse saber e afinal a nossa unica e autentica identidade,tal como para 0 povo judaico a sua identidade e a de ser 0 inter-locutor privilegiado de Deus." E em funcao deste mito interior, desta memoria de urn povoque nao cultiva em excesso a memoria activa e criadora de si, quese processa a permanente reestruturacao do nosso presente con-creto, empirico , de portugueses. Nenhum desmentido brutal dopresente, nenhuma conseiencia da nossa pouca influencia all irnpor-tancia politica, econornica e mesmo CUlturalno mundo contempo-raneo, nem mesmo a recente experiencia da amputacao do seuespaco imperial, conseguiram alterar esse dado fundamental daautoconsciencia nacional, essa especie de bilhete de identidadeintimo que cada urn de nos traz no bolso interior da sua alma:descobrimos e baptizarnos a Terra, de Cabo Verde a india, doestreito de Magalhaes as Filipinas. E essa existencia imagindria , como seu lado ja deliranteexpresso nos Lusiadas, que mais do quetudo nos explica que 0 Portugal moderno e em particular, 0 dopas 25 de Abril tenha vivido a sua mais que modesta existenciae mesmo a sua factual mutilacao, sem traumatismo historico e cul-tural notorios. 0 que nos somos, por ter sido, nao nos parecepoder ser dissolvido au realmente ameacado por perigo algumvindo do exterior, improvavel federacao hispanica ou provavel, nofuturo, conf'ederacao europeia. Em qualquer entidade transnacio-nat que nos pensemos, figuraremossempre com uma identldade,que e menos a da nossa vida e capacidade colectiva propria, do queessa de actor hist6rico privilegiado da aventura mundial europeia.

    Infe1izmente (ou felizmente) esta relacao subjectiva connosco,esta Interiorizacao cultural de uma imagem positive, e mesmo pri-vilegiada de nos mesmos enquanto puro passado, ou memoria aindaviva dela nos vestigios artisticos au literarios (Jeronimos, Lusia-das, cronistas, arte barroca), nao so nao nos 'garante urn presentedigno deJa, como exerce sobre esse presente uma funcao ambigua.Par urn lado, subtrai osportugueses it consciencia deprimida queteriam de si sem esse passado; por outro, irnpede-os de investirna sua vida real, no seu presente, uma energia e uma ambicao que

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    sempre pareeerao mediocres comparadas com as do seculo deesplendor, ou, pelo menos, de dinamismo excepcional. Nada distotraduz au significa autentica crise de identidade,pois nao esta emcausa qualquer duvida seria acerca da nossa existencia ou valiaenquanto portugueses, mas constitui para cada urn de nos - oupara muitos de nos - uma especie de alibi inconsciente, de infor-macae inscrita na nossa memoria, propria para nos desmobilizare fazer perder de vista a urgencia vital dos povos que se pensarn,de preferencia, em termos de futuro. No [undo, sentimo-nos bernno nosso pais ltrico, bucolico, de hortas e sardinha assada, comurn suplemento de conforto importado do mundo onde se inventae reinventa sem cessar esse futuro, alias, caramente pago, mas ine-lutavel. Para empregar a linguagem de Ronald Laing, 0nosso graude seguranca ontologica, enquanto povo, e dos mais elevados.Situacao bern paradoxal, no entanto, tao grande e 0 contraste entreesse sentimento de seguranca e a consciencia da nossa fragilidadeobjectiva, se nos pensamos em termos de pura Iorca economica,politica, tecnica ou cientifica. Basta que nos cornparernos com avizinha Espanha, socialmente tao proxima de nos, para ressentira nossa singularidade. Comparada connosco e a Espanha que emtermos de identidade nos aparece, para reutilizar 0 celebre con-ceito de Ortega y Gasset, como invertebrada na sua pulsao histo-rica centrifuga que so voluntaristicamente se mantern una egrande para lembrar 0 slogan franquista onde a ferida intimase nega e afirrna corn ostentacao.

    Nestes ultimos dez anos 0 estranho paradoxa do nosso incrivelsenrimento de seguranca ontologica nacional recebeu uma con fir-macae (injesperada, Refiro-me a perda das eolonias portuguesas.Pareceria, a primeira vista, que a amputacao do nosso secularespaco imperial provocaria 0 que, em termos clinicos ou meteoro-16gicos, se chama uma depressdo, Podia pensar-se que, tal comoa ideologia colonizadora e colonialista do Antigo Regime 0 afir-maya, esse imperio fazia parte da nossa definicao, que era a nossaautentica imagem de marca, alem de ser, economicamente, espacoprotegido - e Portugal, atraves dele, 0 pars colonizador por exce-t e n c ia , primeiro e ultimo da serie, Todavia, apos urn processo dolo-roso e absurdo, essas .colonias tornaram-se independentes, sem quequalquer fenomeno que, de longe au de perto, se assemelhe a urntraumatismo da imagem nacional se tenha produzido entre nos.Por menos do que iS50sofreu a Espanha, em 1898, uma autenticacrise de identidade, fonte de uma interrogacao sistematica dos seus

    mites, dasua imagem, da sua valia, do seu projecto historico.Entre nos, nada que se the possa comparar, Isto significa que soem termos ae.imagindrto. e imaginario fabricado por uma ideolo-gia arcaizante e reaccionaria, a identidade nacional estava vinculadaa existencia de territories ultramarinos, eufemismo inutil para suporprolongamento patrio 0 que foi sempre, e a justo titulo, vividopela consciencia nacional como colonias. Desde as rneados doseculo XIX que, a esse titulo, grandes espiritos haviarn pensaco quepodiarn ser perdidas au mesrno vendidas sem que a nossa iden-tidade sofresse com isso. Por essencia eram 0 outro,

    Ha vinte anos que a Franca abandonou a Argelia e ainda hojese percebem os traces desse traumatismo historico, quer na ordempolitica, quer na ordem da reflexao, Os comentarios suscitados pelaguerra e independencia da Argelia na sua relacao com a conscien-cia francesa deles constituem hoje uma biblioteca. Da nossa perdade Angola e Mocambique vivemos 0 luto com insolita serenidade,quase pura indiferenca. Podemos tam bern dizer, com justificadoborn senso, tardio, mas salutar. A guerra colonial e 0 seu fim catas-trofico - de urn ponto de vista colonialista - mostraram nao soas limites obvios do nosso poder enquanto nacao colonizadora, mastambern a prodigiosa irrealidade da imagem e dos mites que nosperrnitiam usufruir candidamente - num mundo em plena meta-morfose - da ideia de que erarnos senhores dos territories desme-didos que no tempo da distraccao (relativa) imperialista ocidentaltlnharnos podido guardar. Apesar de tudo, e enquanto mitolo-gia, podia pensar-se que criara raizes no nosso inconsciente e queem presenca deuma tal li(:iio de coisas, desse fim imperial de nulagloria, surgisse uma autentica crise de c on sc ie nc ia n a ci on a l e atra-ves dela qualquer coisa que afectasse justamente a vivencia da nossaidentidade. Era desconhecer 0 que ha nela de realmente singular.

    A consistencia, a f'orca, a coerencia do nosso sentimento deidentidade estao amalgamadas com a vivencia de urn espaco-tempoproprio, hornogeneizado pela lingua, pela historia, pela cultura,pela religiao enquanto habitus sociologico, pela sua propria mar-ginalizacao no contexte europeu, a seu lado ilha sem 0ser. Mastalvez mais ainda pela presenca e permanencia, por assim dizer ,ftsicas, ao alcance dos olhos e das rnaos, de um a estrutura socialde urn arcaisrno extremo, quer dizer, de urn enraizamento profundono passado. Portugal e urn tecido historico-social de malha cer-rada, uma aldeia de todos, uma parentela com oito ou mais se-culos de coabitacao, uma arvore genealogica comum que nao con-

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    sente, au consente mal, no seu seio, a diferenciacao que se volveindiferenca, a irrupcao de urn viver individual autonorno e auto-nomizado que so a nascimento e a proliferacao grandiosas dacidade burguesa instituiram. E essa a nossa identidade organica,sem distancia interior, social ou cultural possivel, salvo em termosde excepcao caramente pages que faz dos seus aetores emigradosdo interior ou de si mesmos. E essa condicao que nos marcapara a vida como portugueses: e a comunidade nacional comotribo que, a semelhanca das antigastribos de Israel, transporta-rao para toda a parte as tabuas invisfveis da lei santa.

    Quando se nasce numa comunidade deste tipo, 0 perigo naoe 0 de perder a identidade, e 0 de confundir a particularidade delacom a universalidade, 0 de naoser capaz, senao a superficie, dese abrir e dialogar com 0 outro, 0 de nos imaginarmos narcisica-mente 0 centro do mundo, criando assim uma especie de universede referencias autistas onde naufraga 0 nosso sentimento da reali-dade e da complexidade do mundo. Nao esta 0 comportamentogenerico dos portugueses isento dessa tentacao ou inclinacao, tantomais supreendente quanto pareee desmentido pelo fe~omeno his-torico da nossa dispersiio pelo mundo, exemplificador, segundoJaime Cortesao, do famigerado humanismo cosmopolita dos Por-tugueses. Ta!vez, com outra profundidade, Fernando Pessoa, quenos via ao mesmo tempo de dentro e de fora e que.projectava sobrePortugal 0 seu proprio mito da despersonalizacao, atribui aosportugueses, como caracteristica, se assim se pode dizer, uma espe-de de sublime VOCa9aOe ndo-identidade. Aptos a ser tudo e todos,nao seriamos ninguem, nao terfamos, no fundo, nos que nos ima-ginamos tao particulares, autentica personalidade. Urn portu-. gues que e s6 portugues nao e portugues. Sob a formula parade-xal, Pessoa, aqui, como em muitos outros dommios, ecoa umacaracteriologia celebre de Oliveira Martins. A aparencia de ducti-lidade que nos caracteriza, a capacidade de adaptacao de que osportugueses deram ou dao provas atraves do mundo, parecem darrazao ao paradoxo pessoano. Na realidade a questao e urn poucomais complexa, 0 mesmo Fernando Pessoa, na Ode Maritima,evoca os reais e sirnbolicos navios-nacoes, a bordo dos quais todosnascemos, como diria Pascal, ja embarcados. A poucas nacoes seaplicaria tao bern, como a Portugal, a imagem navio-nacao emelhor ainda a de nacao-navio, pela identidade de destine e 0 pro-jecto que encarnou, deslocando-se no espaco e no tempo, mas ta ose mpre a m esm a na diferenca apenas apreciavel que a Historia vai

    constituindo. E nem sequer no periodo em que parecia nave per-dida au naque!e, como 0 presente, ern que so se desenha comobarco exiguo e sem rumo transcendente, a man~ira antiga, esse par-ticular sentimento caseiro da sua realidade, essa quase absurda ino-cencia do seu estatuto entre as nacoes, nunca verdadeiramente seperdeu. Como se tivesse nascido - e assirn 0imaginaram os seuscronistas e poetas - sob 0 olhar de Deus, ficando como imunea tempestade da Historia. Delirio pouco consentaneo com a suaevidente realidade de nacao hoje marginalizada ou a margem damesma Historia? Se se quiser. Mas essa e tambem uma multoantiga e constante maneira de se r portugues.

    Vence-Durhan, Maio-Junno de 1984.

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    P O R T U G A L - lD E N T I D A D E E I M A G E M *Homens e povos acordarn tarde sobre si mesmos. E por iS50

    que. 0 essencial das suas actividades se passa a construir esse pas-sado original sem 0 qual nao teriam futuro, ou apenas urn pre-sente sem espessura. E a este processo, ao mesmo tempo real eimaginario, que chamamos preocupacao e busca de identidade.Com mais pertinentes razoes do que as invocadaspor FernandBraudel no seu ultimo livro-testamento, L'Identite de la France,tambern nos podiamos dizer que existfamos como portugueses antesde nos tornarrnos, de nos inventarmos como Portugal. 0 nossocorpo futuro -a terra portuguesa, essa orla iberica coroada deespuma que antes da conquista e colonizaeao romana era Lusita-nia, povo de habitos celtas no Norte e de pastoreio no Centro-e ainda 0mesmo que hoje nos distingue dentro do espaco penin-.sular. Por mais profunda e preciosa que nos seia esta continui-dade ffsica, os elementcs.definidores da nossa imagem ao longodos seculos ;~"filhos da Historia, quer dizer, desses encontrosimprov~v~isd~ a~~;~d~~e~~ssid~d~. Sempre viuvos da nossadissidencia iberica, alguns historiadores espanhois, e entre eles Clau-dio Sanchez Albornoz no seu celebre livro Espana, un enigma his-torico, consideram a existencia de Portugal, a sua realidade comonacao independente, como mero acidente historico. Nao vou dis-cutir aqui se a realidade de uma nacao com oito seculos de exis-tencia e compativel com 0 ins6lito conceito de acidente historieo,quer dizer, com a ideia de existencia precaria, contingente ou injus-tificavel. 0 que e incornpreensivel para Sanchez Albornoz e que

    Publicado no Expresso, 4 de Julho de 1987.

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    urn pequeno povo como Portugal nao tenha realrnente problemasde identidade, nem de identificaciio, como paradoxalmente, e aoutro nivel, as teve sempre e continua a ter a imperial Espanha,aquela que com maior acuidade 0 seu maior ensaista chamou inver-tebrada. E que 0 misterio da nossa identidade, da nossa perma-nencia e continuidade ao longo dos seculos esta precisamente rela-cionado com a nossa pequenez e com a vontade de separacao doresto da Iberia que conferiu ao povo portugues urn outro destine,urn destine menos europeu do que aquele que a Espanha de Car-los V e Filipe II tiveram de cornpartilhar e de que. foram pecamestra,

    Qualquer que seja a explicacao mais plausivel para a nossaautonomia, afinal uma entre outras, enquanto a Espanha era urnpuzzle de nacoes cristas e muculmanas - Leao, Castela, Navarra,Aragao, Catalunha, Granada- a destino portugues define-sequando Portugal abandona 0 seu projecto iberico au 0 integra nom.ais vasto e imprevisivel das descobertas maritimas e da colooi-zacao. Sem mudar de corpo, difundimo-nos atraves de terras e con-tinentes construindo uma segunda dimensao, a dimensao imperialdo seculo XVI, espaco de cornercio, de poderio, de evangelizacaoe de cultura, ao mesmo tempo real e fabuloso pela desproporcaoentre 0 que nos eramos como potencia europeia e a vastidao dessenovo espaco. Nem Roma nem Cartago conheceram uma tal dis-torcao entre a que senhoreavam e as forcas de que dispunham.So 0 exemplo de Veneza se Ihe poderia comparar, se Veneza tivesseside urna verdadeira nacao e nao LImaaristocracia comercial semambicoes colonizadoras.

    A aventura maritima e coionizadora dos Portugueses nao ternsimile algurn na Europa moderna e par isso 0 nosso poeta nacio-nal preferiu cornpara-la a da Roma antiga. Da Roma antiga pro-pagamos a lingua que os seus soldados nos ensinararn, e da Romacrista, na sua epoca contra-reformista, 0 cristianismo segundo 0Concilio de Trento, cujas irnagens intactas ou corroidas pelo tempose encontram hoje desde Macau ao interior do Brasil. Esta outradimensao da realidade portuguesa alterou profundamente - e naaparencia para sempre - a maneira de ser e 0 ser mesmo do quenos chamarnos Portugal. Nem lingua - da mesma raiz e tao pro-xima -, nem religiao ou religiosidade, igualmente as mesrnas, nemsensibilidade ou costumes, par diferentes que sejam nas suas seme-lhancas, nos separam do resto da Espanha mais do que a parti-cular versao de uma aventura maritima e colonial, paraiela a de

    Espanha, mas que nos deixou urna outra memoria dela, e com elauma outra identidade. Importa pouco saber se esta divergenciapeninsular foi um bem ou urn mal para os povos que a encarna-ram. Esta inserita na Historia e e irreversfvel. Com algum para-doxo podiamos dizer que nada nos separa da Espanha senao anossa propria scrnelhanca, de diferente maneira assumida e vivida.

    Ao contrario da Espanha que e multi pia na sua relacao con-sigo mesrna, Portugal e , par assim dizer, excessivamente uno.A esse titulo, como noutra ocasiao 0 escrevi, Portugal, 0 de onteme ainda mais 0 de noje, nao teve nunca, nem tern, propriamente,problemas de identidade. Se tern problemas dessa ordem, querdizer, de interrogacao au duvida, sabre 0 seu estatuto enquantopovo autonomo, inconfundfvel, serao antes problemas de superi-dentidade. Nao se pode dizer dos portugueses aquila que Nietzs-che dizia dos alernaes (ou se pode dizer de outros povos) - queera uma gente que passava (passa?) a vida a perguntar: 0 que Ifser alemiio? Todos os portugueses sao, ou se sentem, por assimdizer hiperportugueses. Talvez alguns pensem que isso significa,afinal, que Portugal nao so tern, como todos as povos, em cer~osmomentos problemas de identidade, mas que os tern da pi ormaneira, sob 0 modo de hipertrofia da sua realidade ou da incons-ciencia. Acaso por eumesmo ser portugues, penso que Portugal_ sobretudo 0 Portugal dos seculos XI X e XX - tem urn problemade imagem. Enquanto individuos, os Portugueses vivem-se, nor-malmente, como pessoas sem problemas, pragnuit~cas,. adaptaveisas circunstancias, confiantes na sua boa estrela, herdeiros de urnpassado e de urna vida sernpre duramente vividos mas ~em fractu-ras ou conflitos particularmente dolorosos ou tragicos. E enquantopovo ou nacao que esta imagem, eminentemente positiva e banalde si mesmos, e objecto de singular distorcao, it primeira vista,misteriosa e contradit6ria. .Ate ao seculo XIX - momenta em que a Europa, em plenarevolucao econornica, polftica e social, nos entra em casa, militar-mente com as invasoes napoleonicas e ideologicamente com 0modele liberal -, so uma pequena elite, em geral de experienciacosmopolita, era sensive1 a imagem de Portugal no espelho dosoutros au no olhar dos outros. A relacao dos Portugueses con-sigo mesmos, sem term os de comparacao concreta, era alheia aocomplexo de inferioridade que pouco a pouco se difundiu no escolda sociedade portuguesa do seculo XI X e culminou no processopublico feito ao passado portugues ou a componentes decisivas do

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    seu per:i1,. pela seracao de Antero de Quental, de Eca de Queirose de Oliveira Martins. A consciencia da nossa marginalidade, espi-cacada. pela me~o.ria rornantica do seculo XVI e do nosso papel~essa epoca, atingiu entao 0 seu nivel mais doloroso. A Europae ao mesmo tempo 0 modelo a imitar e 0 nosso desespero pel adiS,t iincia que d:la no s separa. Nem 0 facto de 0 nosso pequenoP~IS perten~er ainda ao nurnero das nac6es com urn espaco colo-mal P?tenClalmente rico reequilibrava en tao a imagem rn edfo cre, ~,o sentJ~~nto colectivo da nossa pouca valia entre as novas naCoesheg.emoll~cas do Ocidente . De uma delas, e ainda por cirna da maisantiga aliada, a quem nos uniam Iacos de interdependencta eco-nornica, que era sobretudo dependencla - nos viria em 1890 urnulti~atum q.ue reduzia a nossa dimensao imagimiria, de nacaocolomzadora. as suas proporcoes Infirnas, Nem na Europa nemfora dela erarnos povo que contava e com quem era necessario con-ta~. Toda uma literatura repercutiu esta vivencia dolorosa, pessi-mlsta: do nosso presente sern futuro au se investiu na invencaod.e mitos compensadores da nossa frustracao de antigo povo glo-rroso, como 0 de urn Quinto Imperio, que tera em Fernando Pes-soa a sua expressao mais acabada.

    Felizmente, no plano rnais chao mas mais realista da vida por-tuguesa: este pessi~isUlO era 0 aguilhiio, talvez necessario, paraurn projecto colectivo de n!novac;;ao material da sodedade portu-guesa que, com dificuldade mas nao sem relative sucesso, integra vaPortuga! no processo mais vasto da segunda revolucao industrial.Sob regimes diversos, de Fontes Pereira de Melo a Salazar, urnso processo d: modernizac;;ao, em geral caramente pago, quer noplano econom~co por urna sobreexploracao do mundo rural, querno plano politico pela supressiio ele e lementates Iiberdades civicasc.orr!giu a ~magem depressiva que Portugal tinha de si mesmo no;fina ls do secuJo XIX e ainda em parte do seculo XX. Tambe _f . em naoOJ menor, e de consequenctas menos perversas, a correq:ao quesob 0 plano do imaginano, 0 inconsciente nacional ~pos it cruicaum tudo nada parricida dos grandes ieleoJogos do seculo XIX. Foino mesmo periodo que urna outra faccao da intelligentsia nacio.nal construiu uma imagem idealizante e idtlica da realidade portu-guesa, que Portugal se tornou para S 1 mesmo e em parte se expor-tau como jardim da Europa a beira-mar plantado reservabuc6lica de uma Europa em acentuado processo de urb~nizariiode tecnica e tecnicismo. '

    Portugal tornou-se entao urna especie de aldeia orgulhosamentefeliz na sua marginalidade, na sua diferenca, As estrategias doinconsciente para nao se perder pe na realidade sao sempre as mes-mas. 0 Portugal de Salazar foi uma especie de equilibrio, preca-rio em si, mas longamente cultivado, entre rnodernizacao exteriore ruralizacao espiritual, sem poder evitar que a primeira destruisse,na raiz, as condicoes de perpetuacao da segunda. A esse processointeiro - ou fazendo parte dele na sua face economica - agre-gou-se entao 0 cuito do Imperio que vinha dos fins do seculo XIX,elemento capital para repor no seu antigo estatuto de naciio emi-nente a pequena nacao europeia que era (que e) Portugal. Houveurn memento em que a nova imagem de Portugal - pais modestomas governado com eficacia e sucesso com mao de ferro -, coma sua dimensaoimperial imagindria aparenternente restaurada, pare-cia justificar a ideologia cultural, inspirada no passado mais glo-rioso da nacao, momento em que Portugal parecia miraculosamentesuspenso entre 0 pragmatismo mais realista e 0 onir ismo mais deli-rante. 0 processo de descolonizacao universal, a rebeliao africana,as novas condicoes da evolucao economica ocidental converteriarnesse equilfbrio numa pura ilusao e obrigariam a uma reconsidera-cao des sa nova imagem de Por tugal, global e hipertrof iadamenteposit iva, perfeita antitese da irnagem pessimista do seculo passado.Treze anos de guerra colonial sern safda, colapso brutal do regimecriador dessa imagem euforica de nos mesmos, pareciarn razoesde sobra para imaginar que essa euforia culrivada, de aparenciaartificiosa ou artificial, daria lugar a uma reconsideracao colectivado nosso papel no mundo, a urn exame ou reexame da nossa mito-logia cultural, velha de dois seculos, de urn pais partilhado e osci-lando quase em perrnanencia entre 0 desanimo mais negro e 0 con-tentamento de si mais aberrante.

    Nao foi exactamente 0 que sucedeu, 0 fim de um regime que :parecia adaptado it . realidade portuguesa como uma luva, 0fimde urn imperio de quinhentos anos, 0 regresso obrigatorio ao n05SOespaco europeu do seculo XV nao deram lugar a nenhum reexameou exame espectacuJar da nossa imagem, embora ela sofresse,mesmo sem eles, uma metarnorfose inegavel, 0 Portugal de 1987nao e 0 mesmo de 1974; a sua situacao politica e historica sofreue esta a sofrer uma das mudancas mais radicais da sua historia(em unissono, nisso, com 0 Ocidente 110 seu conjunto), mas nasua essencia a imagemcultivada durante quarenta anos perrnaneceintacta. Embora pareca escandaloso a alguns, quase se poderia dizer

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    que em certa medida se reforcou, A nova imagem de Portugal~ refire-me menos it que os outros tern de nos mesmos que aquelaque ,nos acompanha na nossa accao e presenca dentro. de nos eno mundo - nao altera em nada a estrutura da hiperidentidadequ~:~.~~.peI9 ..!J?.~Il9.s seculo .XVl nos caracteri~a~"-'" ._.....

    Perdemos urn imperio, e urn fact~,nias p'e'rdemo-Io menos narealidade do que pode parecer, porque ja antes 0 tinhamos sobre-tudo como imagindrio, E essa perda que poderia ter dado origema, uma. nova e rnais funda vaga de pessimismo que a doseculo XIX, esse iuto nao so quase nao existiu, mas foi assumidocom uma mistura de inconsciencia e de realismo porventura uni-cos nos anais da historla colonizadora europeia. Ja tinha aconte-cido isso urn poueo com a independencia do Brasil, nos principiosdo seculo XIX e que entao nao importava menos que Angola eMocambique nos anos 60 deste seculo, Em 1922, urn dos nossospresidentes pede dizer aos Brasileiros que nos lhes estavamos gra-tos pela sua independencia. Treze anos apos a independencia deAngola e Mocarnbique, os portugueses eonscientes podem nao estarcontentes com a situacao desastrosa, economicamente falando, dasnossas antigas colonias (e isso significa paradoxalrnente que agorapensamos mais nelas que antigamente), mas estao nao so confor-mados com 0 firn da aventura imperial, como de certo modo ali-viados e, ate, justificadamente orgulhosos por constatar que a estru-tura da nos sa hiperidentidade, a nossa dupla identidade de povoeuropeu nao-hegem6nico e de llOVO, apesar disso, disseminado esupervivente no espaco imperial, tinha algum fundamento. 0 mauuso da ideologia colonizadora que pudernos ter feito num certomomenta da nossa hist6ria nao invalidou, afinal, 0 que tarnbemhavia de positivo, de ecumenismo pratico, vivido, na complexa esecular aventura da Fenicia moderna que e Portugal, temperada .pela celebre bondade dos nossos costumes ou simplesrnente peJahumanidade de urn povo estruturalmente rural que nunca se encon-trou fora de S I quando no vasto mundo pode cultivar a sua hortae 0 seu jardim poueo voltairianos.

    1 3 . por ter conservado afinal, corn mais verdade e forca interna,a verdade que existia.mesmo na imagem hipertronada de nos mes-mos enquanto pcquena-grande nacao eolonizadora que os portu-gueses de 1981 sao ao mesmo tempo as mesmos e outros (eu creioque melhores nessa perspectiva da nossa imagem) que os da epocaque nos precedeu. 1 3 . com a nossa parte de realidade imagindria,corn a nossa memoria hoje rica apesar de tudo do que de positivo

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    sobrevive na .realidade do antigo imperio, que mais certos por den-tro connosco mesmos, paracloxalmente menos complexados, nosenfrentamos 0 que se costuma chamar 0Desafio Europeu, e que,no fundo deJes mesmos, os Portugueses niio vivem nem como desa-fio, nern como ameaca. Somos superlativamente europeus porqueja 0 eramos quando a Europa se definia na Historia do mundocomo continente medianeiro. E para a Europa, talvez, que nosconstituimos, se nao urn desafio, pelo menos urn problema, emborahaja nela problemas de mais aguda urgencia e fundura. Ja prova~mos que nao podiamos ser digeridos enquantc portugueses, ate por-que a nossa mais fund a vocacao - como Pessoa, que era tudoe ninguem, 0 mitificou - e a de estar no mundo como em casa,Se estamos ameacados de perder identidade no sentido de perdercertos particuJarismos que sao 0 folclore da identidade profunda,estamo-lo como 0 esta 0 universo inteiro e os povos ocidentais emespecial, unificados aos poucos no seu imaginario, nas suas tecni-cas, na sua musica, nos seus bons ou maus costumes.

    Escrevia ha pouco urn jornal frances que em Portugal nadaacontece como nos outros paises. Pode tornar-se a frase como sequiser. Eta assinala a evidencia de uma diferenca que bern ou malassumida pareee constitutiva da nossa imagem e des problemas oudificuldades que ao Iongo destes dois seculos nos tern posto.o nosso passado - a leitura mitol6gica dele - esquizofreniza urnpouco essa imagern, faz-nos viver como peixes na agua entre 0 pro-saismo mais rasteiro e a onirismo mais cabal.

    Nacao pequena que foi maior do que as deuses em geral 0 per-'mitem Portugal precisa dessa especie de deifrio manso, desse sonhoacordado que, as vezes, se assemelha ao dos videntes (voyants nosentido de Rimbaud) e, outras, a pura inconsciencia, para estariI altura de si mesmo. Poucos povos serao como 0 nosso tao inti-mamente quixotescos, quer dizer, tao indistintamente Quixote eSancho. Quando se sonharam sonhos maiores do que nos, mesmoa parte de Sancho que nos enraiza na realidade esta sempre prontaa tornar os moinhos par gigantes. A nossa ultima aventura quixo-tesca rirou-nos a venda dos olhos, e a nossa imagem e hoje rnaisserena e mais harmoniosa que noutras epocas de desvairo 0 podeser. Mas nao nos muda os sonhos. E so isso importa para poder,sem perda de identidade, perseverar numa presenca nossa nomundo e do mundo ern nos nao muito Indignadaquela que, nummomento solar' , nos definiu como povo da mediacao europeia comvocacao universal.

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