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MARIO SERGIO CORTELLA YVES DE LA TAlLLE NOS DA MORAL PAPIRUS 7 MARES

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MARIO SERGIO CORTELLA

YVES DE LA TAlLLE

NOS DA MORAL

PAPIRUS 7 MARES

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Capa: Fernando CornacchiaFoto de capa: RennatoTesta

Foto (orelha):Almir Cândido de Almeida eÉdison Mendes de Almeida

Coordenação e edição: Beatriz MarchesiniDiagramação: OPG EditoraRevisão: Solange F. Penteado,

Tais Gasparetti eThiago ViUela Basile

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (ClP)(Câmara Brasileira do Livro, SPI BrasU)

Cortella. Mario SergioNos labirintos da moral JMario Sergio Cortetla, Vves de La

Taille .- 5!\ ed. - Campinas. SP: Papiru$ 7Mares, 2009. - (PapirusDebates).

ISBN 978-85'61773-08-9

1. Educação - Filosofia 2. Educação - Finalidades e objetivos3. Educação moral 4. Psicologia educacional 5. Valores (Ética)I. La Taillel Vves de. 11. Tftulo.

09-00094

índices para catálogo sistemático:1. Educação em valores 370.1 i 4

2. Valores éticos: Educação 370.1143. Valores naeducação 370.114

CDD-370.114

Exceto nocaso decitações, agrafiadeste livroestá atualizada segundooAcordo Ortográfico daUnguaPortuguesa adotado noBrasil a partirde 2009. em conformidade ao prescrito noVocabulário Ortogrâfico daLrngua Portuguesa (Volp) da Academia Brasileira de Letras e suascorreções eaditamentos divulgados até adata desta publicação.

72 Edição2010

Proibida a reprodução total ou parcialda obra de acordo com a lei 9.610J98.Editora afiliada à Associação Brasileirados Direitos Reprográficos (ABDR).

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:©M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. - Papírus 7MaresR. Dr. Gabriel Penteado. 253- CEP 13041 - Vila JoãoJorgeFone/iax: (19) 3272-4500 - Campinas - São Paulo - BrasilE-mail: [email protected] - www.papirus.com.br

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o outro: Um de nós ou um estranho?

Yves - Agora, voltando um pouco em nossa discussão,até pouco tempo atrás a ciência e a tecnologia eram vistas como

para se atingir alguma coisa maior·do que seus objetivostangíveis) ou seja, çomo meios para a felicidade e o progresso.Hoje, o meio vira o fim, quer dizer, a ciência pela ciência, não

existe mais aqllilo que a transcende - daí, portanto, a perdado sentido. Paralelamente) há o individualismo. Mas qual o

preço do individualismo? É a "Então,eu não sou mais da família x, do do grupo tal, mas souum do mundo). No séculcIXVIII, isso era muito claro:para ser um cidadão do mundo) eu preciso enxergar algumacoisa de comum' neste mundo... que as permitiam

essa identificação. Hoje, não exíste mais isso. Então o

individualismo prevalece; as pessoas se retraem nas tr'ibos) nosgrupos. E aí reside um perigo: isso cria muito mais) digamos,"raiva) do outro., do que realmente apego à própria tribo. Vejo

... -""hoje com alguma preocupação a maneira como tem sido

a ,alteridade. Parece que o respeito ao outro comodiferente acaba não tendo todo Q valor moral que seria devido.Em presta-se muito mais atenção às diferenças do queà pessoa do outro. Então, as pessoas se organizam em torno

de grupos, notadamente ligados à vida privada, não a um

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Emerson M. Ferreira
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ideal político. l)or exemplo, "sou negro»)) "gosto de ecologia»)mas esses traços não se ligam a projetos coletivos. Acho qlleisso é lIma busca desesperada de encontrar llill lugar nomundo - o qlle não deixa de ser coerente com um n1undomais violento, porque estamos vivendo u.n1a certa volta àintolerância de outras épocas.

Mario Sergio - Que bom que você USOil essa expressão,Yves. Eu venho me rebelando há LIID certo tempo contra apalavra ;"rolerància», e gostaria de conversar um pouco arespeito da ideia que ela transmite. Na minha área, no campodas Ciências da Religião, fala-se n1.uito em tolerância religi?sae se utiliza...

Yves - Se me pern1.ite) a problemática da tolerância vemmesmo da religião.

Mario Sergio - É verdade, e ela aparece, por exemplo,em Locke quando ele escreve 11m tratado acerca da tolerância)discutindo a própria capacidade de convivência de umasociedade religiosamente cindida) dividida... Qlle foi, semdúvida, um impulso fllndamental para qlle o mercadopudesse ter um pouco de paz no IDlln·do europeu do séculoXVIII. Mas ell me rebelo porque acho que a palavra"tolerância» produz qllase um sequestro semântico, poisquando algllém a usa) está querendo dizer qLle suporta ooutro. Afinal, ;tolerar é Sllportar.

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Yves - Ou seja} baseia-se na indiferença.(

Mario Sergio - Exato. Eu o suporto, aguento. Vocênão é como eu, aceito isso, mas continuo sendo eu mesmo ..Não quero ter contato'"só a sua individualidade. Emvez de utilizar a palavra "tolerância') tenho preferido umaoutra: "acolhimento" .. Há llma diferença entre· tolerar que.você não tenha as mesmas convicções que eu - sejam

""religiosas. políticas ou outras - ePorqlle acolher significa que eu o recebo na qllalidade dealgllém como eu.

Com frequência brinco que, em português) em francês

e em inglês, usamos de forma equivocada a primeira pessoado pluraL Em português) usamos "nós»; em francês) nous; eminglês, we. Mas o espanhol - e às vezes o italiano - tem umanoção mais inclusiva da primeira pessoa do plural: nosotros(e em italiano) às vezes se usa noi altri, mas não em todas ascircunstâncias). E nosotros é um termo especial porque é avisão mesma do acolhimento e não da tolerância.. e

"eles», eu tolero. Eu agllento você, tudo bem. Ora) essaexpressão é ffillitü ruim e, hoje) ela aparece na escola con1ffillita força. Atualmente está disseminada a noção de que épreciso ter políticas de tolerância) quando, no meu entender,deveria se trabalhar de fato com políticas de acolhimento, ,emque o "out'ro" tem o mesmo status que "él-l» ....O que está

expresso na ideia de nosotros. Por vezes) faço campanha a favor

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da substituição do "nós) por "nÓS-olltros») para que a gentevá se No meu entender, essa seria, inclusive) limaforma de estimttlar uma das virtudes, que é a fraternidade.

Yves - É interessante. Já trabalhei com algo nessesentido, inspirado em Iuri Lotman, no meu livro, Vergonha)a ferida moral. Pense em dois sentimentos: vergonha e medo.Para sentir vergonha, você precisa estar perante alguém que

d ".I » " Ó ') 1\ 1:'correspon a ao nos , a esse n s-outros a que voce se releria,não perante o tolerante, no sentido pobre da Porquese eu apel1.aS tolero uma pessoa, ela não está inclusa no "nós"e) assim, sua opinião não me importa muito. Claro que a·tolerância é 'sllperior ao menosprezo, à agressão, a fazer malao outro, mas ainda é, digamos, fraca. Já com "eles", a relaçãoé de medo. Então, simplificando, se tenho vergonha perantevocê é porqlle o considero como um "nós", eu e vocêI: S ,-J • h dlormamos um nos. e eu nao sentIr vergon a, mas me o,é porque você representa "eles» para mim. E acho que asociedade de hoje é cada yez mais LIma sociedade de "eles",de pessoas qllais mais sentimos medo do que de pessoasperante 'as quais podemos sentir vergonha, notadamentevergonha moral. Então, a tolerância, interpretada con1ü vocêbem colocou, fere a ideia do "nós»} separa. Claro, insisto,ainda é melhor isso - "viva e deixe viver» - do que atacar ooutro, mas sem dúvida reforça a ideia de individualismo,reforça a ideia de descomunhão, de distância entre pessoas.

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Mario - Você citou Camus antes, e me lembreiagora do livro O estrangeiro. Embora Camus trate do temado próprio sentido da existência - ou do não sentido -; achoo título especial) porque O estrangeiro lembra alteridade. Umdos temas que a escola precisa trazer cada vez para ocotidiano dos alunos é a visão de alteridade: olhar o outrocomo outro) e não como estranho .. Vale lembrar que oslatinos llsavam uma expressão para "eu») que é a própria noçãode ego, e duas para o não eu. Uma é alter e a outra é alius.A/ter é o outro; alius é o estranho. Entender a alteridade éser capaz de olhar o outro como outro e não como estranho.É interessante porque alius) que gerou em português"alienígena», gerou também "alienação» e "alheio" .. Empor exemplo) quem não é daqui, ou seja, quem é urp. "ele" enão llffi "nós") é chamado de stranger ou de flreígner - aqueleque é de fora. Nos filmes clássicos de faroeste, aquele que nãoera daquela cidade era um "forasteiro". Ora) do ponto de ,vistaético, a noção de acolhimento supõe que o outro não seja vistocomo forasteiro ou como estrangeiro) não seja visto comoalheio. É a de entender o outro como outro e nãocomo estranho.

Yves - Portanto, como um "nós').

Mario Sergio - Exato. Como um "nós»), como nosotros.-Afinal de contas, quem é o outro de nós mesmos? O mesmo

qlle nós somos para os outros, ou seja, outros e não estranhos.

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Yves - Mas você concorda comigo qlle justamente essaretomada da noção de tr"ibos contribui para que se veja oalienígena e não o outro.

Mario Sergio - Sem dúvida. Passa-se a olhar o outrocomo aqllele qlle não é daqLli.

Yves - É algtlérn de fora minha fronteira e tIffi

possível inimigo de quem eu tenho medo.

Mario Sergio - E aí eu qlleria até introdllzir umaqllestáo para a gente pensar llm pouco mais. Costumo fazerllma d.istinção entre cOfillnidade e agrlIpamento.'·. Há duaspossibilidades resll1tantes da jllnção de pessoas: OLl tem-se umacomunidade ,0ll um agrupamento. O que eu entendo por"comunidade»? Uma cOffillnidade são pessoas jllntas comobj erivos partilhados, mecanismos de autopreservação eestruturas de proteção recíproca.

Yves - É um "nós)}.

Mario Sergio - Isso. O que é l1m agrllpamento?Agrllpamento é a junção de pessoas que têm objetivos que·coincicienl) lnas que não têm mecanismos de proteçãorecíproca nem estrutllras de preservação. Uma cidade tem deser uma comunidade, não um agrupamento_ Uma família temde ser uma cOffillnidacie, não um agrupamento. Um exemploconcreto qlle não canso de repetir: eu sou de Londrina) no

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norte do Paraná. Quem é daquela região como eu é chamadode "pé-vermelho'» por conta da cor da terra daquela área. Eu

me mudei para São Palllo no fillal de 1967 e fui estudar emlima escola, qLle lá está até hoje, Ila Rua da Consolação)chanlada Escola Estadual Professora MarÍna CintIa. E lá tinha, também o Grupo Escolar São PalIlo. Até hoje, quem passa lá-repara, porqlle do lado de fora, perto do Cemitério daConsolação, teln lllll graIlde ladrilhado com LIma· imagelll dol)adre Anchieta. Faço aqlli llm parênteses: Das dez maiorescidades do ffilUldo, São Palllo é a llnica qlle nasceu em llil1a

escola. r-rüdas as olltras llasceranl em fortes. Talvez a gente

tenha aí lllua sugestão de um bom tema para se pensar, né?

Fecho o parênteses. Veja qlle illteressante: em 1968, 69, 70,ell tinh.a elltre 14 e 16 allOS, saía do Mari11a CintIa à noite,ia para casa caminhando (ou qllancio saía do bar, da igreja,seja de onde fosse) ... Então) qLlando eLl saía caminhal1do eollvia passos de olltra pessoa, sabe o qtle eu sentia? Alegria.

A gente pensava "QLle bom! Ven1 Vi11do outra pessoa'.

Yves - Agora, sente-se lneclo.

Mario Sergio - Sabe do qlle a gente tinha medo, Yves?t

Tinlla medo de defunto. Tinha medo de passar pela RuaSergipe, ao lado do ffiLlro do Cemitério da Consolação. Hoje,

a gente sai do trabalho> da igreja, da escola às onze da noitee está andando, quando ouve passos de outra pessoa, a genre

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"M D · d » E""peIlsa: ell ellS, vem VIIl o outra pessoa. o olltro comoestranho.

Yves - "Tomara qlle seja um defunto.» (Risos)

Mario Sergio - Pois é, "tomara qlle seja olltro qlle nãoesteja vivo». Acho que remos famílias qlle já foram

cOllll1nidades e urna parte delas jêl se tarnOll meroagrllpanlento. Tanto qlle as llão se encontranl. Elassão alhei as lllllas às o l1 tras dentro ela estrlltllra. 1-IácOffillnidades escolares que não são mais cOffiLlnidades, sãoagrllpanlelltOS escolares. Ora) a qllestão celltral da ética é aformação de comllnidacles, e não de agrllpamen"cos .. E isso valepara o COIljllllto da vida no planeta) não é algo só nosso. Assinl,corno ell dizia, acho qlle COlTIllnidade é convivên.cÍa com

objetivos COn11.1nS, relações de reciprocidade e meCaniSlTIOS de

alltopreservação. É claro qlle o conflito é illerente à

COI1\rivência) mas o qlle não pode existir) que é típico doagrllpan1ento) é confronto. Afinal de C011tas, o conflito é

divergência de postllra, lllas visan.do à COl1tillllidade darelação. O cOllfrOll(O é a bllsca da a11l11ação cio olltro, é típicoda relação que pressllpõe "ell de llni laclo e eles de olltro». Já

Io conflito é illere11te.

Yves - Isso. me fez lenlbrar a definição de ética do PaL1IRicoellr) qlle acho ffillito bOllita e se relaciona ao g.lle estamosdisClltiIldo. Ele faz essa d.ifereI1cíação elltre moral e ética.

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Moral são normas, deveres) e ética é uma vida .boa. Veja quebela defin1ção, que é plenamente adequada à vida emcomunidade e, tambénl, ao cosmopolitismo. Ele diz:"Perspectiva ética é a perspectiva de uma vida· boa) para e comoutrem) em instituições justas'). Veja que completo:a perspectiva de uma vida boa, em que o outro comparece·de duas formas - com o outro (seria a ideia do grupo, dacooperação), mas também para o outro (que é a ideia dab.enevolência, da generosidade). E essa definição não esquecea dimensão política: em instituições justas. Acho muito bonitaessa definição porque ela resgata a ideia da vida boa) mas ac<?loca em U?1 contexto coletivo coerente com o que vocêchamou de comunidade. E hoje ocorre a volta dapreocupação ética, preocupação com a vida boa) mas nemcom, nem para o outro - e menos ainda em instituições justas.

Em 2004, fiz uma pesquisa em uma escola pública) comadolescefltes dos três anos do ensino médio. Inicialmente pedipara que eles escrevessem, quanto quisessem, sOQre o quedesejariam ser, como gostariam de viver) imaginando-se daquia dez anos ,de maneira ideal. Portanto, a pergunta se inseria nocampo ético) focalizando a questão do projeto de vida. De possedos textos, eu os dividi em dois grupos: aqueles cujo projetode vida incluía o outro) fosse para o outro ou com o outro (claroque não considerei os casos em que havia apenas umainstrumentalização do outro - eu 'quero ter uma mulher linda,um marido rico etc.) e aqueles em que o outro não aparecia.

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o reslllrado foi que em um terço dos textos haviareferêrlcia ao outro, ll1.aS em dois terços não. Ou seja, doisterços daqlleles adolescentes tinham projetos de vida em queo outro não aparecia nem com, nem para, como talubém nãohavia menção à ideia de jllstiça. Típico da idade? Não. Hojeé frequente Ollvir que adolescente é autocentrado, lllas seformos ler os textos sobre adolescentes da década de 1960,vamos notar qlle, n1.uito pelo contrário, eles eram vistos comojovens preocllpados conl a sociedade, conl o futuro da

Então) penso que é um dado importallte danossa realidade atllal o fato de que se imagine um futllro bomno qllal o olltro não entra.

Mario Sergio - Yves, os ad.olescentes de hoje são filhosdos adolescentes dos anos 60 - nós) portanto. Como se sabe,ninguém nasce pronto. Se ninguém nasce pronto, talvez essacrise, ou decepção', ou fragmentação de valores que se temno cotidiano se deva, em parte, no Ocidente, a tlffi projetonão realizado da nossa geração, ClljO movime11tü mais forte(que precisaria ser revigorado) foi o movimento não só dacontracll1tura nos anos 60, como o próprio movimento hippie

7com o seu ideal de amor, de amorosidade. Hoje, ele pareceria.piegas, mas não deveria. A grande questão é como ummovimentó com lIma perspectiva intencional, como foi o danossa geração nos anos 60, produziu um resultadoinintencional. (Uso essas palavras de propósito. Quem

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trabalha muito bem isso é o Adolfo Sanches Vásquez no livro'Filosofia da práxis. Ele explica como propó.sitos intencionaisgeram resultados inintencionais.) Nos anos 60, a sociedadebllscava fazer cóm que a música, a sexualidade, a religião e aciência estivessem a serviço da vida e do amor. O lema de1968 na França) "Sejamos realistas, queiramos o impossível'),é algo fortíssimo. Estou vendo sobre a sua mesa o livro daMafalda...*

Yves - Que é bem dessa época...

Mario Sergio - Isso, que é dessa época. Lembro deuma frase em que ela dizia: "El problema no es romper lasestructuras pera lo que hacer con los escombros). Então)retomando) acho qlLe na década de 1960 nós "renovamos ogllarda-roupa") demolimos uma série de valores, entramosnllma rata de normalidade e acabamos perdendo o impulso.Acho que foram utopias complacentes que feneceram. Do

I

ponto de vista da nossa conversa, acho que ,nos faltaramvirtudes, sobretudo a da coragem. Desenvolvemos a amizade,a benevolência apareceu como um valor de natureza maisreligiosa, mas nos faltou a coragem. O que você pensa disso?

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* Personagem criada por Quino> cartunista argentino> que ficou famosa em todoo mundo por suas tiradas irônicas> sempre relativas ao modo de vida, à políticae aos costumes. (N.E.)

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Yves - Olha, eu também me questiono sobre a nossageração - e talvez se possa falar até em ren1orso - como paisde filhos que não parecem estar de benl com a vida. Quesejam diferentes de nós até que é bom, mas o fato de que nãoestejam de bem com a vida faz com que a gente se pergunteo que deu errado. No fLIndo, a sua pergunta é essa: O que

deu errado? Tenho dllvidas em relação a isso. Faltou coragem?Sim, talvez. Acho que faltou discernimento. Não estava claraa fronteira entre o aperfeiçoamento coletivo e o aperfei-çoamento pessoal. Havia a ideia de que para a melhoria doser humano era necessária e sllficiente a melhoria do grupo.Historicamente, até o século XVIII, acreditava-se que paramelhorar a sociedade era preciso melhorar os indivíduos, daío estímulo às virtLldes. No SéClllo XV1II, e ainda mais forteno século XIX., a eqtlação se inverte: acredita-se que paratransformar. os indivíduos, é preciso transformar a sociedade.O movimento hippie, embora generoso em seu propósito,ainda guardava essa ideia de que não era necessário realizarum trabalho de aperfeiçoamento individllal, um esforço devirtude, portanto. Pensava-se que bastava fazer parte do grllpoe o grupo ter a ideologia do bem. Então, voltando à suapergunta) parece que nos precipitamos em nos considerarmoral e eticamente perfeitos porque pertencíamos ao grupodo bem. A gente era legal porque era hippie, porque gostavade Beatles, porque concordava que era preciso fazer amor enão a gllerra, porque o lema daquela geração era "paz e

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amor», porque falava "É proibido proibir» - sem pensarmuito, aliás, o que significa "proibido proibir»). Creio queexistia essa ideia de que éramos do lado do bem. Participeido movimento estudantil aqui no Brasil, na década de 1970,e até hoje existe essa ideia de que o fato de termos sido contraa ditadura - que) claro, é muito positivo - bastava para nos. uma perfeição individual. Como o indivíduo nãoestava em foco naquele momento, talvez nós tenhamos sido(não todos, evidentemente) desleixados na educação dos filhos)porque, na verdade, ser pai é cuidar de indivíduos. Acho quefalhamos na articulação entre o coletivo e o individuaL Masnaturalmente não é só isso) há vários outros fatores quecontribuíram para que chegássemos à realidade atuaL

Mario Sergio - Você acha que fomos emrelação à superestrutura? O que mais se ouve em ·conversascom educadores e edllcadoras é que o professor) hoje) nãotem consciência do trabalho. Ou seja, existe a suposição deque se ele for bem intencionado) então teremos um resultadoadequado. Concordo com você de que tivemos certainocência, até na própria militância. Não por má intenção,mas uma inocência provocada pela subestimação' dascondições objetivas. Portanto, o movimento também foiromântico. Bonito, mas ainda assim romântico. E esseromantismo foi sendo perdido com o passar dos anos.

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