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HANS RUESCH

Tradução deRAUL DE POLILLO

7ª EDIÇÃO

EDITORA RECORD

ÍNDICE

Fatos Irredutíveis

PRIMEIRA PARTE1. Os Homens2. Caça à Mulher3. Os Fatos da Vida4. A Barganha5. Homem Branco em Terra Branca

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6. A Estrada Para o Norte

SEGUNDA PARTE7. A Longa Jornada8. Fim de um Homem9. Fim de uma Mulher10. A Semente11. O Fruto12. Tetarartee13. A Proscrita14. O Regresso

FATOS IRREDUTÍVEIS

Todo aparecimento de qualquer das minhas histórias relativasa esquimós, em revista norte-americana ou de outras partesdo mundo, provocou um dilúvio de cartas, perguntando se ostemas de que faço uso possuem base nos fatos. Por isto, desejo,agora, assentar, de antemão, que os hábitos sociais, sexuais ealimentares, bem como as crenças religiosas, as práticasmédicas, além de outros modos e maneiras descritos nestelivro — embora circulem sob a bandeira de ficção —constituem fatos antropológicos concretos. E aplicam-se,principalmente, aos esquimós do setor central. Tais fatos sãocorroborados (com as devidas variações decorrentes decostumes regionais e tribais) por homens da envergadura deFritjof Nansen, Kaj Birket-Smith, Knud Rasmussen, PeterFreuchen, Franz Boas, G. de Poncins, e outras autoridades

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reconhecidas em assuntos do Ártico e dos seus habitantes.Recomendo encarecidamente os relatos dessas autoridades atoda pessoa interessada em evidências documentais sobre oassunto — coisa que fica fora da finalidade desta novela.A felicidade plena e a eufórica alegria dos esquimós são fatostão inegáveis e inegados como inexplicáveis e inexplicados.Há autores que preferem atribuí-las à dieta vivificante. Asescaramuças ocasionais, entre missionários cristãos e apopulação nativa — bem como as presunções de cientistasmodernos, segundo as quais devem existir depósitos deminério de urânio por baixo da calota de gelo do Ártico —não são meras invenções convenientes, concebidas com opropósito de acentuar o aspecto dramático de uma narrativa.O caso dos esquimós que comeram seus próprios péscongelados, a fim de sobreviver — e que assim o conseguiram— é ocorrência que encontrou seu caminho para a imprensacotidiana, que o divulgou.

PRIMEIRA PARTE

CAPÍTULO IOS HOMENS

Quando Ernenek punha sua cabeça para fora do saco dedormir, seus pensamentos corriam imediatamente para omonte de peixe e de carne que apodrecia para amaciar-se, portrás da lâmpada de óleo de foca.

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Não hoje, porém. Agora, vendo Siksik curvada por cima daspeles de urso de seu marido, a um canto do pequeno iglu, eletomou uma resolução súbita, antes de dar atenção àsexigências do seu estômago. Visto que contribuía com mais doque a sua parte para a manutenção do pequeno conjuntodoméstico, sentia-se disposto a solicitar plena co-participaçãotambém nos direitos maritais de Anarvik; por esta forma, nãoprecisaria mais ter de pedir permissão, toda vez em que sesentisse disposto a rir um pouco com Siksik, ou em queprecisasse que lhe fossem costuradas novas luvas, ou lhefossem remendadas as botas. Teria, pelo menos, uma esposaprópria, ao seu redor, para lhe obedecer as ordens e isto eracoisa que ele nunca tinha conhecido, seja porque era moço,seja porque ali, no extremo norte, as mulheres eram tãoescassas como era abundante o urso. Ernenek, todavia,conhecia a importância da posse de uma esposa para o própriouso — para descarnar as peles de animais conseguidas, bemcomo para costurar as vestimentas necessárias e para ficarouvindo as pilhérias do marido, durante a noite.Principalmente quando a noite dura seis meses.Mesmo agora, Ernenek teria gostado de trocar umas poucasrisadas com Siksik, antes de sair para a caçada. Contudo, eledistinguia o que era correto do que era incorreto; distinguia-otão bem como qualquer outro homem; e, assim, sabia queseria extremamente impróprio servir-se da esposa de outrohomem, sem, antes, solicitar permissão ao marido.E Ernenek raramente praticara algo de impróprio.Entretanto, estava cansado de pedir. Não que Anarvik já otivesse recusado: o ato da recusa, em se tratando do

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empréstimo de uma esposa, ou uma faca, constituía sinal deintolerável mesquinhez. Por outro lado, também, o ato depedir favores constantemente acabava sendo indigno de todoindivíduo pertencente a uma raça tão orgulhosa de si; de umaraça cujos membros se denominam a si próprios simplesmenteinuítes, ou homens — deixando com isso implícito que, porvia de comparação, ninguém, dentre todos os indivíduos detodas as outras raças, é homem verdadeiro. Mesmo a despeitode o resto do mundo preferir denominá-los esquimós. Estapalavra procede de um vocábulo algonquiano que significacomedores-de-carne-crua. Se esta derivação ocorreu com opropósito de zombaria, ou devido ao impulso da inveja, écoisa que não ficou estabelecida.Siksik tinha preparado chá, servindo-se para isto da lâmpadade cozinhar, feita de pedra-sabão, ou esteatita. Ela encheuuma tigela; e, bamboleando-se, ou seja, caminhando àmaneira pela qual se locomovem os pombos — devido àsbotas de pele anelada de foca, que lhe chegavam até à partesuperior da coxa — ofereceu a bebida a Ernenek com umsorriso. O homem e a mulher se vestiam desta mesmamaneira. Ambos eram atarracados e musculosos; ambospossuíam o mesmo tipo alegre, largo e achatado, de rosto;pareciam iguais, com exceção dos cabelos; Ernenek usava-oslongos e desencaracolados, ao passo que os de Siksik seerguiam num arranjo nítido, em forma de torre, no cocurutoda cabeça, rebrilhando de unto feito de óleo de baleia, ealfinetados com espinhas de peixes.— Onde é que está Anarvik? — indagou Ernenek.

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— Não é impossível que tenha ido à caça de focas na Baía daMorsa Cega. Acontece que você e ele, no decorrer da dormidapassada, devoraram uma foca inteira — acrescentou ela, comuma risadinha; e Ernenek respondeu-lhe com a risada fácil,espontânea e sempre pronta, que caracteriza a sua raça.O chá estava quente — o que significava excessivamentequente para ele. Não podia beber nada que fosse muitoquente. Soprou contra a infusão, olhando para a mulher porcima do aro da tigela. Depois, bebeu o chá; comeu as suasfolhas, e engatinhou para fora do seu saco de dormir. Porcima da vestimenta feita de aves, com as penas voltadas para olado de dentro, envergou outra vestimenta feita de pele deurso, com os pêlos voltados para o lado de fora, e enfiou aparte inferior das calças por dentro de suas botas de pele defoca. Curvando-se embaixo da parede abobadada de gelo,cortou para seu uso grandes nacos de carne deteriorada, comsua faca circular; e empurrou-os para dentro da própria boca,forçando-os com a palma da mão.Engatinhando para fora do túnel estreito, puxou consigo olíder dos cachorros esquimós ainda sonolentos, e o resto damatilha o acompanhou, bocejando, ganindo e sacudindo ageada branca, formada sobre seu pelame espesso. Logo depois,já os cães estavam emitindo o característico latido agudo comque pedem alimento; punham à mostra os dentes; estestinham sido achatados com o emprego de pedras, a fim de quenão se pusessem a morder os seus donos e a cortar asrespectivas rédeas; todos eles se assemelhavam mais a lobosdo que a cães, devido ao focinho pontudo e ao fulgor amarelodos olhos.

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Ernenek fez massagens com gelo nos corredores, e atrelou otrenó. A seguir, pôs os arneses nos cães; certificou-se de quetodos os animais estavam munidos dos pequenos calçados quelhes protegiam os pés contra a agudeza das arestas do gelo,bem como contra a salinidade do mar; recolheu a âncora dotrenó; e subiu para dentro do veículo. Sob ação do chicote, oscães se espalharam em leque, atrás do seu líder, esticando osarreios, por meio dos quais cada qual era individualmentevinculado ao trenó, e ganindo por trás dos tufos brancos devapor que emanavam de cada focinho.A temperatura era aconchegante; talvez 30 graus Fahrenheit— ou uns 34 graus centígrados — abaixo de zero; assim,Ernenek não precisava correr a pé atrás do trenó, para seaquecer; ao contrário, podia nele ficar sentado, gozando, comalguma opulência, o prazer aa viagem. O céu do lado sul,refletindo um sol ausente, tinha uma leve cor azul, que seesbatia e mudava de matiz, tendendo para o púrpura, aonorte. Sob esta amplidão pálida, a terra afigurava-se plana edessangrada, destituída de sombras e de nuanças — comonormalmente ela aparece aos olhos dos cachorros, os quaisnão fazem distinção entre as cores.O Oceano Glacial, sobre o qual ele viajava, estava coberto poruma camada de gelo duro, mais espessa do que a altura de umhomem; a superfície atapetava-se de neve endurecida,cortante; e ostentava ainda o rasto nítido deixado pelapassagem do trenó de Anarvik. À direita, viam-se cabeços ecolinas, todos baixos, esbranquiçados e sem vida. À esquerda,só a névoa da primavera indicava os limites do oceano.

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Ernenek não se virou sequer uma vez para dar uma olhada aoiglu solitário que estava deixando atrás de si. O iglu nãopassava de pequena bolha de gelo, emergindo por cima dotopo do mundo. Seus pensamentos estavam correndo lá paraadiante, para a grande baía da ilha seguinte, aonde Anarvikfora caçar focas. Ernenek esqueceu-se até de levar consigoóleo de baleia, para lhe servir de combustível e proporcionarluz; e levar esse óleo constituía a primeira regra do viajor.Este estava excessivamente preocupado, concentrado no seupróprio problema.Havia duas respostas para cada interrogativa; e cada umaapresentava seus riscos. Isto, pelo menos, Ernenek sabia. Se aresposta de Anarvik fosse "sim", Ernenek perderiaconsiderável prestígio, e ficaria com a cara no chão, por se lhegarantir a concessão de ainda mais um favor. Anarvik eraorgulhoso; um homem de verdade; e havia todaprobabilidade, à vista de sua índole, de mortificar Ernenekcom a aceitação pronta de sua exigência. Para se colocar par apar com ele, Ernenek teria, então, de redobrar seus esforçosde caçador, a fim de, por sua vez, mortificar o seu parceirocom intermináveis presentes de víveres.Se a resposta fosse "não", Ernenek poderia, com efeito,escarnecer da falta de compostura do seu amigo, que eraquem, nesse caso, ficaria com a cara no chão; isto, porém,constituiria, para Ernenek, pequeno consolo, pois teria dedirigir-se a outro lugar, em busca de companheira; teria entãode viajar desconfortadoramente só, talvez durante todo umano, rumo ao sul, para o ponto de onde o sol e as mulheresprocediam, e no qual a terra era povoada de tribos cujos

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costumes e modos de vida continuavam estranhos aosesquimós polares, e, conseqüentemente, desagradáveis paraele. Fosse qual fosse a maneira pela qual se encarasse oassunto, a vida estaria sempre sobrecarregada de incertezas ede riscos, desde que a questão fosse formulada.Ainda assim, a decisão não poderia mais ser adiada: durantedois anos, Anarvik estivera anunciando a chegada, que diziaiminente, de seu irmão, Ooloolik.— Ele tem duas filhas já crescidinhas, e você poderáproceder à sua escolha — observou-lhe Anarvik, rindo.As estações do ano, porém, tinham chegado e passado;Ernenek tinha esperado em vão; e Anarvik tinhasimplesmente encolhido os ombros, dizendo:— Ele deverá chegar lá pelo fim do próximo inverno.Um inverno a mais ou a menos era coisa que se afiguravadestituída de importância para Anarvik, que tinha vistomuitos e muitos invernos. Mas já não o era para Ernenek, quetinha visto poucos. Que aconteceria se Ooloolik nãoaparecesse nunca? Poderia ter mudado de idéia. Ou termorrido. Ou outros homens talvez lhe houvessem ficado comas filhas.E Ernenek estava cansado de esperar.O trenó de Anarvik apareceu na forma de pequeno ponto —de pequena cabeça de alfinete, na vasta planície; e Ernenekespicaçou a sua matilha, com o chicote e com gritos. Devagar,a cabeça de alfinete foi aumentando; transformou-se emlinha; a seguir, o trenó se tornou discernível; afinal, surgiramAnarvik e seus cães. Os cachorros estavam tumultuados,

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compondo uma barulheira infernal de latidos, e puxandofuriosamente através de seus arreios.Ernenek atirou a âncora do trenó para fora; amarrou amatilha; e caminhou, gingando, por cima do mar gelado. Adespeito de toda a sua impaciência, ele atravessou o gelo compasso leve, por decorrência de hábito; se assim não o fizesseassustaria e afugentaria as focas que se encontrassem porbaixo da espessura de gelo. Anarvik, ajoelhado em cima deuma pele de caribu, para não se enregelar e ficar preso aochão, estava de costas para Ernenek.—Um homem tem alguma coisa para pedir — disse Ernenek,carregando o sobrolho.—Quieto! — disse Anarvik, sem virar a cabeça: — Umhomem ao trabalho não pode dar ouvido a perguntas. Umacoisa por vez.Desinflado, Ernenek deteve-se ao seu lado, curioso para ver oque ele estava fazendo. Anarvik estava ocupado com sua facade pederneira, mas, a despeito disto, concentrava a atenção,de quando em quando, numa forma branca, que seencontrava Já adiante. A forma era um urso enorme.E o urso estava faminto.Meses e meses seguidos de caça insignificante haviamreduzido muito a carne acumulada durante a estação doverão; e os longos pêlos do animal, crescidos no inverno,pendiam, soltos, nos lados de suas ancas descarnadas. O ursopolar não tinha hibernado. Enquanto todos os seres vivosemigravam para o sul, ou se abrigavam em iglus, ou em tocas,para descansar e se aquecer, ele, sozinho, permanecia ao largoo inverno inteiro, caçando e pescando, incansavelmente;

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caçava e pescava para si mesmo e para a sua companheira, quedespejava o filhote numa caverna cavada na camada de geloque recobria o mar.Algum tempo antes, durante uma de suas andanças pela ilha,aquele mesmo urso tinha farejado um arminho-mãe; retirara-o de sua toca; rasgara-o ao meio; e devorara-o, juntamentecom o feto palpitante do filhote que se encontrava em seuventre. Agora, com a fome aguçada, o urso se encontravaobservando os dois homens. Mas não se sentia tranqüilo.Naquela região, toda forma de vida era exclusivamentecarnívora. O urso era a maior presa do homem. Aqui, aindanão estava decidido se era o homem ou se era o urso a coroada Criação.— Não é impossível que alguém abata um urso — disseAnarvik. Trêmulo pela ansiedade de caçar, pela volúpia dacaçada, Ernenek ajoelhou-se ao lado do amigo:— Vamos soltar os cães contra ele, e acabar logo com isto.Anarvik meneou a cabeça:— Ele poderá matar muitos cães; e nós não temos nenhum desobra. Não, Ernenek. Alguém terá de apanhar o urso pelamaneira usual, já comprovada.Descrevendo círculos e farejando, o urso ia aproximando-sedevagar e cada vez mais.Com sua faca de pederneira, Anarvik tinha tirado longa lascade uma costela arqueada de baleia, aguçando-lhe asextremidades. Encurvou-a com uma das mãos, e soltou-a,depois, de súbito, a fim de lhe verificar a resiliência. Depois,tomou um pouco de graxa de óleo de baleia, que estiveraaquecendo no interior de suas roupas, de encontro ao

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estômago. Amassou a graxa, até dar-lhe a forma de uma bola;fê-lo com rapidez, antes que a sua substância pudesseenregelar-se outra vez; e empurrou para dentro dessa bola aTasca de costela de baleia, bem encurvada. A bola de graxafeita de óleo de baleia endureceu imediatamente, ao contatocom o gelo.Anarvik começou a mover-se para a frente, de gatinhas; e ourso recuou, rosnando; o recuo fazia-se pelo processo de oanimal dar pequenos pulos, impelindo para trás as ancas depele caída e mole, cobertas de pêlos compridos, e espiando desoslaio por cima dos próprios ombros. Anarvik deteve-se epôs-se a chamá-lo, por meio de acenos, de movimentos e desinais de arrulho; o urso voltou, às apalpadelas, aproximando-se por um trajeto que descrevia meio círculo. Os bigodes ralosde Anarvik tremeram, quando ele atirou a isca, que era a Dolade graxa com aquela espécie de mola dentro; atirada comforça, rolou por cima do delgado lençol de neve.A bola amarela foi parar a poucos passos de distância do urso.Intrigado, o animal aproximou-se dela, devagar,cautelosamente, esticando o focinho para a frente, e comoque choramingando um pouco, devido à incerteza. A fomeditou-lhe que comesse; outro instinto, mais profundo e maismisterioso, aconselhava a desconfiar de fosse lá o que fosseque procedesse daqueles pequenos seres, de maneira tãoassustadoramente intencional.Anarvik esperou, estendido e imóvel, com as pernas e osbraços espalhados sobre o gelo. Atrás dele, Ernenek, com arespiração contida, contemplou o urso, enquanto este pôspara fora uma longa língua azul; com ela, o animal lambeu a

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isca; recuou; tornou a lamber, e recuou de novo, commovimentos resolutos. Contudo, era-lhe impossível resistir àtentação para sempre. Os ursos são apenas humanos. Com ummovimento encapelado, seu focinho se atirou subitamentepara a frente e engoliu a isca, fazendo com que ela fosse cairnaquela espécie de poço sem fundo que era a sua barriga.Simultaneamente, Anarvik e Ernenek puseram-se de pé, numsalto, com risos e gritos de alegria, porque o urso já era deles.Quase.Ao súbito irromper dos homens que se ergueram, o ursopulou para trás. Mistificado, começou a descrever círculos;depois, sentou-se sobre os próprios quartos traseiros; e ficou aestudar os indivíduos, por algum tempo. Por fim, recomeçoua aproximar-se.Os homens estavam preparando-se para a retirada, quando, deinopinado, o animal pulou para a frente; nesse momento,emitiu um lamento, longo e angustiado, que repercutiu, semencontrar obstáculos, por cima do grande mar, silenciando, deespanto, os cães; a seguir, se enrolou sobre si mesmo, pondo-se a rugir selvagemente.— A bola de graxa derreteu-se em seu estômago — gritouAnarvik, triunfante. — E a lasca de costela abriu-se comomolalDe súbito, o urso virou sobre suas patas traseiras e afastou-se,caminhando desajeitadamente e gemendo a altos uivos.As trevas já se esboçavam, porquanto o dia ainda era curto,nessa época; nessa quadra, a luz iluminava o topo do mundoapenas durante umas poucas horas, a cada giro do Sol. Semproferir palavra, Anarvik e Ernenek agarraram suas lanças e

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saíram atrás de sua presa; foram ambos assim, olhando umpara o outro e rindo; riam apenas devido à alegria da caçada;tudo o mais estava esquecido.Tropeçando e uivando de dor, o urso desviou-se em direção àcosta, ao mesmo tempo em que os homens manobraram paralhe cortar a retirada para os campos marinhos, queconstituíam o seu elemento e o seu refúgio. Depois de atingiros primeiros sopés da terra, o animal começou a deter-sefreqüentemente e a olhar furtivamente por cima dos própriosombros, a rim de observar se a perseguição ainda prosseguia;fios de baba pendiam-lhe do peito. Seu covil deveria ficar alipor perto; mas ele não iria atrair os seus perseguidores paraaquele ponto. Com relutância, continuou para a frente,subindo pelos flancos gelados da colina acima.As plantas de suas patas, recobertas de pêlos cerrados,permitiam-lhe caminhar com firmeza por cima do gelo, aopasso que as botas dos homens dispunham de poucoagarramento sobre os declives escorregadios. E elesprecisavam ter o cuidado de não se esforçar, nem começar atranspirar, porque isto significaria enregelar-se e morrer defrio. Todavia, a trilha do urso era insegura e errática; e oshomens, por isto, conseguiam manter-se no seu encalçopercorrendo apenas metade do chão.A temperatura fez-se mais fria, lá nas alturas, com 50 ou 60graus Fahrenheit, ou 45 ou 51 graus centígrados, abaixo dezero; o querido vento de temporal soprou; e Anarvik eErnenek sentiram-se felizes, porque estavam caçando. Nemsequer por um instante se preocuparam com as provisõesabandonadas; nem com os cães; nem com a mulher. Não

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estavam com fome naquele momento; os cães mostravam-se,em todo caso, sempre famintos, fossem ou não alimentados; ea mulher se arranjaria de alguma forma, como as mulheressempre fizeram. Esta era a Caçada — a pura essência da vida.Os homens não comeram nada, além das dejeções do urso,que se apresentavam estriadas de sangue; e, depois que oanimal se esvaziou de tudo, menos de terror e de sofrimento,bem como depois que a fome começou a bater nas paredes doestômago dos homens, Ernenek disse:— Alguém está com fome.Estas foram as suas primeiras palavras proferidas, desdequando a caçada se iniciara.Anarvik meneou a cabeça, concordando.Ainda assim, nunca, nem sequer por um momento, elespensaram em voltar.Quando se ergueram mais uma vez, às apalpadelas, umarajada de vento, procedendo do Oceano Glacial, sacudiu aneve rasa para o ar; assim, o céu, já pálido, se fez cor de cinzabem escura; e ao longo de alguma distância, os homensperderam de vista a sua presa, em meio a nevasca de cegar; eentão se atiraram para a frente, tomados de alarme súbito.Os dois amigos foram reconduzidos ao rasto do urso por viados lamentos do animal; e quase deram de chofre com ele. Osdois encontraram o jeito de lhe aplicar uma boa pancada nascostelas, com suas lanças de ponta de chifre; fizeram-no comoque apenas para fazer com que o animal ficasse sabendo quenão estava sonhando. Um rugido de fúria se ergueu da grandesombra, espiralou no turbilhão da neve, e foi absorvido elevado para longe pelo vento; daí por diante, os homens se

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mantiveram tão próximos da presa, que podiam até perceber-lhe o cheiro — o cheiro amargo do medo, que emanava doseu pelame.Uma poucas vezes, o urso virou sobre si mesmo, enfurecido; ecarregou contra os homens; estes desviaram-se a toda pressa,gritando de terror, tropeçando e escorregando pela falda dacolina abaixo — até que o urso se sentou nos quartostraseiros, meneando a própria cabeça; no instante em que operigo passou, os homens se puseram a rir.A segunda noite foi a pior. A nevasca fez-se mais violenta emais espessa, obrigando os homens a seguir o urso bem maisde perto, quase que grudados aos seus calcanhares, para maiorsegurança; então, as pancadas da fome se fizeram sentir commais intensidade, enfraquecendo-lhes os joelhos eaumentando-lhes o perigo da transpiração. Entrementes, ourso, que parecia ser dotado de cem vidas, prosseguiu a suatrilha furiosa, para cima e para baixo, pelas faldasintransitáveis.Quando, porém, a fome e a saraivada turbilhonante seimpuseram aos dois homens, estes deixaram que seus espíritosatirassem uma âncora, através do oceano, até ao iglu distante— oig lu que lá estava, tranqüilo, aconchegado e aquecido. Aluz cor de âmbar, que sabia a intimidade; o sinistro monte decarne e de peixe que se deteriorava por trás da lâmpada; orumor tranqüilo da descarnação das peles; o tendão de cariouque ia sendo alinhavado através de botas e de vestimentas. . .De uma feita, eles chegaram à distância de apenas brevemarcha, em relação à localização de um dos montes de carneque mantinham espalhados pela terra e pelo mar.

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— Talvez ele siga por aqueles lados — disse Anarvik. —Então, um de nós poderá ir buscar provisões.Procuraram impelir o uso na direção correta para tal fim; masnão obtiveram sucesso. O urso nada sabia a respeito dosmontes.Quando esta esperança se dissipou, já se haviam passadoquatro dias a partir daquele em que eles tinham tido repouso,dormido e comido; agora, a força de vontade tinha decompensar as energias enfraquecidas do corpo de cada um. Evisto que a idéia de abandonar a caçada nem sequer por uminstante lhes passou pela mente, a sobrevivência se tornouirrevogavelmente vinculada a captura do urso; por isto, aimpetuosidade da caçada foi exaltada pelo terror dacondenação derradeira, acusada pelo animal.Eles perderam a noção do tempo, até quando a saraivadaamainou, revelando que um novo dia tinha raiado. Os dois seencontravam bem lá em cima, no topo dos cabeços,dominando com a vista o mar gelado. Ao sul, o céu estavaluminoso; e a terra silenciosa se afigurou doce e macia, com apromessa da primavera.A este tempo, o urso já estava muito doente. A sua maneiraclaudicante, ele prosseguiu avançando em ziguezague; e iaempurrando, de arrasto, no chão, uma cabeça que já se lhehavia tornado excessivamente pesada. Por vezes a cambalearde sono e a cair de joelhos, os homens continuaramperseguindo o animal; estavam como que petrificados; o risojá havia desaparecido; linhas de fadiga lhes enrugavam asfaces untadas; seus olhos estavam vermelhos, como queinjetados de sangue, emoldurados por um friso de geada. A

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fome tinha desaparecido. Os estômagos se naviam posto adormir. Nem sequer apanhavam mais punhados de neve. Asbocas mantinham-se fechadas; os ventres, esquecidos; e noespírito de ambos todos os pensamentos e todas as memóriasjá tinham perecido. Entre a pele a carne, a gordura tinha sidoqueimada e dissipada incessantemente, sem ser substituída. Omovimento já não aquecia mais aqueles ^^gjdois homens; elestremiam um pouco; e sentiam que o frio lhes cortava o corpo,entrando como faca pela garganta abaixo, a cada movimentode respiração.E, não obstante, poderia haver alguma coisa maior do que isto— dar caça ao urso branco, na superfície do topo do mundo?O fim ocorreu subitamente. Em dado momento, e de uma sóvez, o urso renunciou. Como se houvesse decidido que, setivesse de morrer, seria melhor fazê-lo com dignidade, ele seagachou, apoiando-se em seus quartos traseiros; pôs as patasdianteiras no regaço, e ficou à espera. Ao redor do seupescoço, via-se uma espécie de guardanapo cor-de-rosa, feitode geada. Manteve as orelhas em pé, e os dentes à mostra,como em sinal de escárnio. Já não se lamentava mais. Só asnuvens brancas da sua respiração emanavam, rápidas edissonantes; e seus pequenos olhos, injetados de sangue, semoviam, como que atarantados.Os dois homens aproximaram-se, devagar. Ernenek, pelafrente; Anarvik, por um lado; os dois, prontos para pular, se oanimal se debatesse, ou vibrasse tapas com as patas. O ursoagarrou a lança de Anarvik, e quebrou-a como se fora feita deum fio de palha, no instante em que Ernenek o golpeou comsua lança, num golpe firme e direto, através da parte superior

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da garganta, logo abaixo da mandíbula, onde os pêlos erammais finos.Os dois homens mal comeram, depois do abate do animal;estavam, a essa altura, com o estômago dormindo a bomdormir; ademais, sentiam-se ansiosos em extremo paramostrar a presa intacta, em casa. Ernenek sugou apenas osangue que saía do ferimento, a fim de manter as própriasenergias, embora isso mal lhe aquecesse os lábios; e Anarviksugou o cérebro do urso, através de um pequeno furo feito naparte traseira do pescoço. A seguir, separaram as vísceras,antes que se congelassem; arrastaram a presa nelas encostasabaixo, até ao mar; envolveram-na em neve, junto à linha dacosta; e, felizes, caminharam, embora arrastadamente, devolta.Em linha reta, foi-lhes necessário o tempo de meia volta doSol, para chegar aos trenós; os dois caminharam rindobarulhentamente pela trilha, cada qual vibrando pancadas,com a mão, às costas enormes do outro. O rato de os cãesfamintos não se haverem devorado uns aos outros, àquelaaltura, se deveu exclusivamente ao embotamento dosrespectivos dentes; mas esses mesmos cães se debateramfuriosamente em torno do envoltório de pele que continhapeixes, no trenó de Anarvik; e alguns estavam lambendo osangue gelado que lhes havia escorrido dos ferimentos.O apetite dos homens se havia despertado pelo gosto dosmiolos e do sangue; e, ao longo de todo o caminho para apresa envolta em neve, bem como ao longo de todo ocaminho de regresso à casa, eles se puseram a mastigar

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pedaços de pele de foca, a fim de atenuar as pancadas vibradaspela fome; do contrário, começariam a comer a presa.Durante a ausência dos dois homens, um segundo iglu foraconstruído ao lado do seu; e cachorrinhos desconhecidos seencontravam brincando diante do túnel,Siksik apareceu, seguida pelo irmão de Anarvik, Ooloolik,que, afinal, tinha chegado com a esposa, Powtee, e com suasduas filhas casadouras, Imina e Asiak.Aquela foi uma chegada rumorosa, porque sete já compõemuma multidão. De início, todos trocaram saudações, comgrande quantidade de atos de cerimônia, cada qualprocurando sorrir mais do que os outros, enquanto todosfaziam reverências e trocavam apertos de mãos, bem alto, porcima das respectivas cabeças; a seguir, passaram a esfregar unsnos outros os narizes arreganhados. Feito isto, a família deOoloolik formulou louvores irrestritos à caça realizada; queforam expressos por meio de exclamações como estas: "Elenão é pequeno!" — ao mesmo tempo em que os caçadoresprocuravam, por modéstia, reduzir o valor da presa, comtodos os meios ao seu alcance; e isto para mostrar que seriamcapazes de feitos ainda bem maiores: "Trata-se apenas de umfilhote; ninguém queria abatê-lo; mas ele insistiu em serapanhado."Depois, todos engatinharam para dentro do iglu de Anarvik.Ao baço do urso, dependurado a um poste de madeira, umafaca e uma agulha de costurar foram acrescentadas, na formade presente para o urso morto; dessa maneira, a alma doanimal poderia contar, aos outros animais semelhantes, ò

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tratamento excelente que recebera, a fim de os tornaransiosos de ser mortos por sua vez.Então, o banquete começou.Comeram a noite toda, mordiscando as provisões que seencontravam na despensa, enquanto esperavam que o ursodegelasse. Anarvik retirou a pele do animal, assim que o seupelame se amaciou. Pertencia-lhe, porque fora ele quemprimeiro avistara o urso; visto, porém, que Ernenekmanifestara sua admiração por ele, Anarvik humilhou-o,induzindo-o a ficar com aquilo.O fígado pertencia a Ernenek, porque fora ele que vibrara ogolpe de morte — o que abatera o urso; e assim que o animaldegelou, ele presentou o fígado a Anarvik, a fim de se colocartaco a taco com ele. Anarvik não estava disposto a suportaresta humilhação; por isto, passou o fígado para Powtee, e esta,esposa submissa que era, o entregou a Ooloolik; Ooloolik,porém, com toda a galantaria, ofereceu-o a Siksik, que odevolveu a Ernenek; este, por sua vez, procurou passá-lo àsduas moças; mas estas eram jovens demais, e não poderiamaceitá-lo.Não obstante, todos trataram de liquidar depressa o fígado, apartir do momento em que Ooloolik, sentindo o apetitesuperar a conveniência das boas maneiras, abocanhou umbom pedaço dele; af, todos os outros, quase quesimultaneamente, se atiraram ao fígado, com dentes e facas.Ernenek provocou longos momentos de exclamações e degargalhadas, quando, em sua ansiosa voracidade, cortou, comsua faca, uma das faces de Powtee, no instante em que ela

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arrancava um pedaço do fígado com os poucos dentes que lherestavam na velha boca.Impelidos pela alegria, todos comeram o que quiseram dasentranhas macias, ao passo que os nacos mais duros foramacrescentados ao monte de carne e de peixe, para apodrecer eamolecer; ao mesmo tempo, a língua do urso foi dependurada,para secar, por cima da fumaça da limpada.Eles alternaram a carne adocicada de urso com o tutanoesverdeado e de aspecto de mofo e com sebo rançoso, queajudavam a descer ao estômago por meio de goles de zurrapade chá; e tomaram o cuidado de não tocar em peixe, enquantocomiam carne, a fim de não provocar a ira dos espíritos. E opequeno iglu ficou sendo tudo, e muito mais do que haviamconcebido, em pensamento e em lembrança, no decorrer dacaçada: estava cheio, até ao teto, de gente festiva, enquantoque cachorros e cachorrinhos se movimentavam por entre aspernas dos presentes; a parede circular, manchada de sangue,espelhava a labareda cor de salmão, que subia do pavio eflutuava por cima do óleo de baleia que se derretia; o aromarico da carne fresca de urso, pesado e doce, misturava-se àfragrância sutil da deterioração; o gelo ressoava o barulho damastigação e das engolidas, bem como dos estalidos dos ossos,das narrativas valentonas e das gordas risadas.Quanto mais Anarvik e Ernenek comiam, tanto mais famintosse tornavam. Despidos até à cintura, e radiantes de felicidadee de quentura, os dois continuaram a empanturrar-se, aexpandir o ventre, com as faces a pingar sangue. Quando sesentiram extremamente pesados, a ponto de não poderemsequer erguer uma das mãos, deitaram-se de costas, e

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deixaram que as mulheres lhes fizessem cair, na boca, pedaçosescolhidos, deitando-lhes goles de chá à garganta, entre umaingestão e outra.Aquilo é que era a vida!Com os olhos como que a flutuar em gargalhadas, Ernenekolhava de uma das filhas de Ooloolik para a outra, enquantoas duas se curvavam por cima dele, proporcionando-lhe nacosde carne e sorrisos. Aquelas eram mulheres que sabiam comoum homem devia ser tratado; e deveriam saber, também, comtoda certeza, como se descarnavam peles de animais, como secosturavam botas, e como se faziam outras coisas — de queele viesse a sentir necessidade. Entretanto, quanto àquela queteria de escolher, não foi capaz de decidir-se: Imina era maisbonita; mas Asiak era mais ardorosa.Ernenek sentiu-se de todo contente — e em paz com omundo. Quando se tornou incapaz de engolir, fechou os olhose a boca; e o bulício ao seu redor como que se desvaneceu.Iria dar, ao alimento, o tempo necessário para ser digerido;depois, estaria pronto para mais. Estendeu a mão, para seassegurar de que Anarvik se encontrava ao seu lado.Lá estava ele, já roncando como uma ninhada de morsas.Ocorreu, vagamente, ao espírito de Ernenek, que havia algosobre o que gostaria de fazer-lhe algumas perguntas. Essa foraa razão pela qual ele se pusera a caminho, desde o início,havia já alguns giros do Sol. Entretanto, em vão deu tratos àmemória.O pensamento estava morto, enterrado e esquecido.

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CAPÍTULO IICAÇA A MULHER

Depois de períodos cada vez maiores de luz do dia, o Sol, maisuma vez, deu volta à Terra, durante todas as vinte e quatrohoras; e, embora nunca se haja erguido muito alto, e todas assombras tenham sido longas, em conseqüência dos raiosobliquados, ainda assim o brilho do gelo refletia uma luzfulgurante; simultaneamente, o comprimento do diaexplicava a espécie do tempo, que se tornavaintoleravelmente quente para os esquimós polares, ainda queo seu calor não bastasse sequer para degelar o mar.Qualquer homem teria percebido que a simples chegada deKidok — mercador corpulento, alegre, de andar gingado, eque, sem demora, começara a arrastar a asa ao redor das filhasde Ooloolik — clamava que já era tempo para uma decisãopronta.Qualquer homem, menos Ernenek.Ernenek era caçador obstinado, porém mau amante. Sabiacomo abater o grande urso, e como lancear a grande foca;mulher, todavia, era caça muito pesada para ele. Ernenekapenas meditava, com tristeza, que a vida era assim mesmo.Por vezes, durante anos, ninguém aparecia; depois, de súbito,todos juntos, no transcurso da mesma estação do ano, dois eaté mesmo três grupos chegavam — e um homem passava adefrontar-se com um dilema do tamanho de uma baleia.Ao longo do verão inteiro, Ernenek namorou ociosa eindiscriminadamente tanto a Imina como a Asiak — as quais

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o afastavam de si, com gracejos e brincadeiras, mas tambémcom valentia. Até que, ao regressar de uma incursão solitáriade caçada, quando já o Sol se encontrava na iminência de sedesvanecer, ele viu um pequeno traço, no horizonte branco;aquilo significava matilha e trenó; alguém que vinha, oualguém que ia; um grande acontecimento, fosse qual fosse oprisma pelo qual se preferisse encará-lo.Arrastou para fora do seu trenó a caça ainda a gotejar sangue,e engatinhou para dentro do iglu. Anarvik e Ooloolik estavamtomando chá, com as respectivas esposas e Asiak. Imina,porém, não se encontrava ali.— O que aconteceu foi que Kidok partiu — anunciouOoloolik — levando consigo, na qualidade de esposa, a filhasem valer para alguém. Você não poderia decidir-se; por isto,ele resolveu.Todos riram, menos Ernenek, que se manteve inteiramenteimóvel, com o queixo caído e com uma expressão deestupefação em seus olhos amendoados. Por fim, ao cabo dealgum tempo, ele deixou escapar:—Mas aconteceu que alguém queria Imina; e irá buscá-la devolta, e matar o ladrão que a roubou!—Ele nos deu uma nova serra — disse Anarvik, a entenderque, assim, o casamento era legal; e Powtee acrescentou:—Por que é que você não toma a nossa pequena Asiak? Ela éigualmente sem valor, naturalmente; mas nada há que Iminapossa fazer, por você, que Asiak não o possa também.Asiak ruborizou-se; deu umas risadinhas; e escondeu o rostopor trás do punho; mas Ernenek bateu o pé.—Alguém quer Imina e não Asiak!

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Siksik encolheu os ombros; e disse:—Ela estava aí, para quem a pedisse.Ernenek cuspiu, zangado, e mergulhou no túnel; em seguida,o grupo todo engatinhou atrás dele, contagiado pelaexcitação, mas rindo.— A matilha de alguém está cansada, mas é ainda maisrápida do que a de Kidok. Será fácil alcançá-lo.Ele, porém, não partiu antes de considerável delonga. Tornoua arrear a matilha; inspecionou-lhe os calçados; emitiu ordense pedidos para que lhe pusessem mais provisões no trenó; ehouve grande animação no lugar; todos se moviam, de umlado para outro, com os pés um pouco virados para dentro, àmaneira de pés de pombos; e todos gritavam e riam.Quando o trenó e os cães ficaram prontos, Ernenek achou queestava com sede; e então engatinhou de novo, para dentro doiglu, em busca de uma tigela de chá. De todo indiferente à suapressa, a cocção permaneceu quente longo tempo; provando-lhe a temperatura com o dedo, ele se queimou, pondo-se,depois, a pular para baixo e para cima, e proferindoimprecações. Enquanto esperava que o chá esfriasse, estofouas bochechas com peixe congelado; falava entre um bocado eoutro — principalmente para si mesmo, como era seucostume.— Alguém vai enfiar uma faca gelada no estômago de Kidok,e arrancar-lhe o fígado, cortar-lhe as orelhas e empurrar tudoisso pela garganta dele abaixo. Depois, vai cortar-lhe a cabeça,e a colocará por cima do corpo; cortar-lhe os olhos, e os porápor cima da cabeça. Isso o ensinará a roubar!Anarvik ergueu um dedo admoestador:

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— Se o matar, ninguém mais permitirá, nunca, que vocêentre em seu iglu outra vez.—Nem mesmo você?—Nem mesmo eu.Isto fez com que Ernenek se pusesse a meditar, coisa que nãolhe ficava bem: o ato de pensar punha-lhe uma carrancapesada no semblante por outros aspectos sereno. A expulsãode uma comunidade constituía a única condenação, numaterra em que não existiam leis, nem juízes, nem mesmochefes; e, embora a companhia humana fosse tão apreciadacomo a própria vida, Ernenek ficou surpreso ao verificar queum simples assassínio poderia acarretar uma retribuição tãosevera; não via nada de mal no ato de matar alguém. Era oque qualquer foca ainda jovem faria, ao atacar uma das focasmachas idosas, pela posse de sua fêmea.E o que era bastante bom para a foca era bastante bom paraErnenek.—Se é por esse modo que você encara a coisa — disse ele,finalmente, emburrado — alguém irá apenas buscar de voltaImina e aplicar, em Kidok, uma pancada de porrete, para queele se recorde. Se, entretanto, ele opuser resistência, terá deser morto, como uma focal—Se você hão puder deixar de o matar, não se esqueça decomer um pequeno pedaço de fígado dele, a fim de conciliar oseu fantasma e torná-lo inofensivo — esclareceu Anarvik, queera homem de experiência. — Um fantasma zangado é muitoperigoso.A esta altura, o chá estava frio. Ernenek engoliu-obarulhentamente, acompanhando-o com umas fatias de peixe

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congelado; estalou os lábios, e engatinhou para fora. Emboraos cães de sua matilha proclamassem, alvoroçados, a sua fome,ele evitou dar-lhes de comer — porque cães com fome sãocães velozes. A matilha uivava e latia, zangada; mesmo assim,ele subiu para o trenó, a fim de partir para a maior dasviagens.— Leve Asiak consigo — disse-lhe Ooloolik, empurrandopara a frente a filha que continuava a dar as suas risadinhas.— Isso tornará mais fácil a realização de sua troca com Kidok.Ele pagou por uma das nossas filhas destituídas de valor; eterá de receber uma delas.Ernenek hesitou durante um momento, antes de a admitir,com um aceno da mão, em seu trenó. Mal ela se sentou, eleacionou o chicote contra os cães; estes se abriram em leque,uivando e ladrando.O trenó de Kidok se havia reduzido à aparência de meraponta de alfinete, na imensidão branca, devido à neve querecobria, com uma camada fina e fofa, todo o Oceano Glacial.Esta região era extremamente fria, e não proporcionavaprecipitação excessiva de chuvas, nem mesmo nas fases deverão. Aqui e acolá, em meio ao mar plano, algumatempestade submarina, ou algum sistema poderoso decorrentes, havia erguido as águas petrificadas, formandocabeços de formas esquisitas e de conformações caprichosas,dando ao todo o aspecto de uma lendária cidade-fantasma dearranha-céus derrocados. Longe, na distância, situava-se aterra, também revestida de neve, cortada por espinhaços derocha nua, que se erguiam, rústicos e íngremes, com sua corescura, de encontro ao céu verde-pálido. Fazia calor; apenas

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uns 10 ou 15 graus Fahrenheit, abaixo e zero, correspondendoa uns 23 ou 25 graus centígrados, ou Celsius, abaixo de zero.Emenek despiu-se, ficando nu até à cintura, e ostentou, então,o físico robusto ao vento. Tinha deixado no iglu suavestimenta exterior de pele de urso; estava usando apenas asua vestimenta interna, feita de pele de aves.—Dentro de pouco tempo, alguém terá alcançado Kidok —disse Emenek, jactancioso, depois de se reduzir a excitaçãoinicial da matilha; a esta altura, ele poderia ouvir-se a simesmo, ao falar.—É possível — disse Asiak, sentada plácidamente atrás dele,com os braços cruzados sobre o peito — que, a esse tempo,Kidok já tenha percorrido distância igual.

O tempo era medido pela marcha do Sol; este flutuavapálidamente por cima da fímbria do horizonte, erguendo-seum pouco mais ao meio-dia, e afundando-se um pouco mais àmeia-noite. Ainda assim, a todas as horas, a luz solar, aguada,refletida pelo gelo, era ofuscante; e os viajores faziam uso deóculos. Os óculos eram feitos de tiras de madeira, com umafenda estreita, correspondendo ao lugar de cada um dos olhosdo usuário; e os seres humanos tinham enegrecido suaspálpebras e suas narinas, com fuligem, a fim de quebrar oclarão.Todavia, o Sol afundava-se um pouco mais a cada novo giro;logo desapareceria; e, lá em cima, no topo do mundo, a noitedeveria chegar — e permanecer.— Por que é que você quer alcançar Kidok? — perguntouAsiak, com voz branda, depois de breve tempo.

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— Para arrancar-lhe Imina. Não sabe você disto?— Alguém sabe somente que você se transformará apenas emobjeto de riso de toda gente, durante anos e anos vindouros.Quem é que já ouviu falar de um homem a correr atrás deuma mulher?! E, como você sabe, a foca tem prazer de serapanhada somente por homens que são bem sucedidos com asmulheres. Você verá que, assim que a notícia desta caçada aImina se espalhar no seio dos grupos de focas, estas odesprezarão e evitarão.— Você é apenas uma mulher supersticiosa, difundindohipóteses sem o menor sentidol — retrucou Ernenek,zangado, chicoteando os seus cães, um a um. — Sei muitobem o que me caberá fazer, para que as focas nunca venham àsaber do caso.Depois de o Sol percorrer meio caminho ao seu redor, osviajores e os respectivos cães começaram a dar sinais defadiga; os cães ofegavam mais e puxavam menos, tropeçandofreqüentemente; mas a ponta de alfinete que estavamperseguindo aumentava de tamanho; e aumentavarapidamente.— Ele deve ter parado para descansar a sua matilha — disseErnenek, piscando um dos olhos.— E também a nossa matilha está começando a ficar cansada.Ernenek, porém, dava chicote, em substituição a alimento e arepouso; até que chegou um momento em que os pequenosanimais se puseram a cambalear e a estrebuchar; de quandoem quando, um ia de encontro ao outro, a fim de fugir aosgolpes do chicote; assim, baralhavam as correias dos arreios; eErnenek via-se obrigado a fazer alto e a ir desembaraçá-las.

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Os cães rosnavam e vibravam dentadas às luvas do homem; eo homem punha-os cada qual em seu lugar, com pontapés etapas. Mais tarde, quando Ernenek proporcionou à matilha oindispensável alimento, na forma de escassos nacos de carnecongelada e peixe, os cães engoliram-nos inteiros, com osossos e tudo; enquanto engoliram, debateram-seselvagemente, embaraçando de novo os arreios; e o homemteve de desembaraçá-los outra vez. Depois, Ernenekabocanhou punhados do mesmo peixe, e atirou um poucodaquilo a Asiak.A esta altura, os pequenos animais já se tinham deixado cairsobre os respectivos ventres, escondendo o focinho entre áspatas dianteiras e recusando-se a mover-se dali. Ernenektornou-se aborrecido; e procurou fazer com que a razãopredominasse entre eles, pondo em ação um porrete.— Nós temos de deixar que eles descansem — arriscou-se adizer Asiak.Ernenek pulava para baixo e para cima, com os pés no gelo,tomado pela impaciência; e, a fim de que a parada não fossedesperdiçada, ele resolveu tornar a gelar os cães da matilha.Descarregou o trenó, e virou-o de borco, sempreresmungando de si para si. Dete-ve-se apenas para derreterneve em sua própria boca e esguichá-la em cima de um rabode raposa; a seguir, passou a cauda nevada por cima dos cãesda matilha; passou-a rapidamente, acompanhando-a logo comsuas luvas, a fim de que a coDertura de gelo se formasse, todapor igual. Depois de tornar a carregar o trenó, ele achou, desúbito, que estava cansado.

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Deitou-se ali mesmo, para tirar uma soneca; e pediu para seracordado pouco mais tarde, sem falta.Quando acordou, fê-lo por sua própria conta. Os cães estavamtransformados em montes ouriçados de neve gelada; Asiakcochilava placidamente; o Sol tinha girado para o lado opostodo horizonte; e o trenó de Kidok já se havia traiçoeiramentedissipado do panorama.Ernenek proferiu blasfêmias e cuspiu; pulou por ali, ao léu,alucinadamente; aplicou pontapés à matilha, pondo-a depronto em atividade; e, antes que Asiak pudesse esfregar ospróprios olhos e dissipar os sonhos de sua mente, aperseguição entrou novamente em curso.Viajaram deslizando por cima do oceano, seguindo a trilhadeixada pela matilha de Kidok; comeram, no trenó, eapanharam neve, com a mão em concha, para derretê-la,formar água e beber, como também faziam os cães com a bocaaberta. Quando, depois de longo tempo, o trenó de Kidokreapareceu à vista, Ernenek emitiu gritos e mais gritos, numaalgazarra de alegria.—Por que é que você está dando caça a ele? — perguntouAsiak, languidamente.—Você deve ser mulher estúpida, ou surda — disse Ernenek,irritado. — Alguém já lhe disse antes: para arrebatar IminalA situação não se modificou, exceto quanto à despensa, que sereduziu. A onda de calor já havia passado; o ar tornou-se denovo respirável; a temperatura passou a ser de uns 30 ou 40graus Fahrenheit abaixo de zero, ou uns 34 ou 40 grauscentígrados, ou Celsius, abaixo de zero; por vezes, ocorriauma lufada de vento gelado, recordando, a Ernenek, os seus

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amados temporais de inverno; e ele passou a resmungar, comvolúpia, para si mesmo, como fazia sempre que se encontravade bom humor.Ou de mau humor, quanto a isto.Ernenek ficou exaltado, ao verificar que Kidok tinha parado.Aproximando-se ainda mais, viu a razão daquela parada:Kidok estava pescando. Tinha aberto um buraco, no oceano,e, agora, curvado sobre ele, com a sua lança de pesca posta emposição, pronta para golpear, espiava para dentro daprofundidade; sua parte traseira se empinava no ar, e seunariz tocava na superfície do mar, cuja água havia enchido oburaco, depois da retirada do gelo dali. Kidok virou a cabeça,rápido, quando a sua matilha deu o alarme; mas voltou à suaocupação, nela permanecendo entretido até ao últimomomento; até ao momento em que Ernenek correu contraele. Aí, Kidok pulou, correu para o seu trenó, que Iminaestava conservando de prontidão, e lá se foram todos, comoflocos de neve numa nevasca.Ernenek passou, como que voando, por cima do buraco depesca, emitindo gritos de encorajamento e fazendo estalar ochicote. De súbito, porém, ele se deteve. Havia a cabeça deuma truta enorme, naquele buraco; a carne da trutaapresentava-se vermelha como sangue; e viam-se ossos ecabeças menores espalhados por ali.— De que é que se trata, agora? — perguntou Asiak.Ernenek desceu do trenó, e ficou batendo ora com um pé, oracom outro, tomado de indecisão:—Estas águas contêm peixes que não são pequenos — disseele.

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—Kidok não é pequeno pescador.— Se Kidok lanceou um peixe como este, alguém podelancear um ainda maior.— Poderá você fazer isso? — indagou Asiak, duvidosa.— Você terá a prova disso, dentro de muito pouco tempo —declarou Ernenek, zangado. — Kidok não irá muito longe.Mas não caminhe no gelo, e conserve também os cãesparados; do contrário, os peixes irão para outro lugar.Ele estendeu uma pele de caribu junto ao buraco de pesca;ajoelhou-se em cima dei a ; e aproximou da água o próprionariz, enquanto que o seu assento ficou apontando para o céu.Na sua mão direita, a lança de pesca ficou pronta para golpear,enquanto que, com a mão esquerda, manobrou um engodo,preso à extremidade de uma linhada feita de tendão: o engodoera um peixe pequeno, esculpido em osso, que batia asbarbatanas quando Ernenek aplicava puxões à linha.Ernenek estava demasiadamente empenhado em sua tarefa,de modo que não notou quanto tempo transcorreu. Grandespeixes, translúcidos, se moviam, folgados, no fundo e no azulpuro do oceano.Depois de muito tempo, um deles abocanhou a isca e foipuxado para a superfície. Ernenek abaixou delicadamente asua lança; depois, vibrou o golpe; e puxou de novo a lança,que agora vibrava devido às contorções de um salmão negro,que ele atirou por cima do gelo do chão. O salmão arfou,respirou pesado, debateu-se de um lado para outro; depois,pôs-se em imobilidade gelada. Rindo, Ernenek sopesou opeixe com as mãos; a seguir, atirou-o a Asiak.Asiak, porém, encolheu os ombros e disse:

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— Não é grande. Você não apanhará nunca um peixe dotamanho daqueles que Kidok apanha; assim, não perca maistempo, se tem o propósito de alcançá-lo.Ernenek olhou por cima da planície de gelo:— Ele não foi para muito longe; e será mais fácil alcançá-loquando os cães estiverem descansados.E abaixou outra vez o nariz até ao nível da água.Sentada no trenó, com os pés balançando, Asiak sorriu, comaquelas suas faces rosadas e agradáveis, que estavam como quea explodir de gordura. Com a ponta de sua faca de neve, elaretirou os ossos do salmão, e passou a mastigar-lhes a carne,devagar, sorrindo, sonhadoramente, para si mesma.O tempo passou; e também os peixes passaram; mas Erneneknão conseguiu apanhá-los. Podia vê-los; estavam flutuando ecruzando-se uns aos outros, aos pares; outros, ainda, emcardumes; mas nenhum chegou bem a distância de poder serlanceado. De uma feita, todo um cardume se aproximou;então, ele vibrou uma lançada selvagem, procurando golpearvários peixes ao mesmo tempo; mas todos se dispersaram,incólumes.— Você fez um buraco na água — disse Asiak. — Alguémouviu que os peixes estavam rindo.Isto fez com que Ernenek se zangasse; e então resolveu partir.A temperatura caiu ainda mais. Os cães da matilha trotaram,de nariz bem abaixado, acompanhando o faro; Ernenek eAsiak puderam tirar algumas sonecas no trenó. Precisavam depouco sono dormido, no verão; poupavam-no para a longanoite de inverno. Por vezes, porém, precisavam dar descansoà matilha. Nessas ocasiões, Ernenek cortava um buraco no

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oceano, com sua faca de gelo, ou, então, com a serra; depois,tratava de lancear algum peixe; certa vez, quando não seencontravam muito longe da orla do mar, ele conseguiuabater uma raposa com uma flecha. Asiak preparou-a, e serviuas tenras entranhas assim que esfriaram; a carne mais dura foipor ele posta de lado, a fim de que se sazonasse; e conservou ocouro, para embrulhá-la.Foi a raposa, com os seus primeiros fios brancos no pêlo, queanunciou a aproximação do inverno — muito mais do que omundo que ia escurecendo, e ao qual os seus olhos já se iamajustando. A primeira brisa glacial punha estremeções dedeleite no corpo exposto de Ernenek. O bom humor voltou aele, e então houve grandeuantidade de jactâncias. Asiak zombou dele, por causa da

matilha e cães, assegurando que aquilo nunca, nem mesmoatravés de centenas de verões, alcançaria o outro trenó;zombou dele, igualmente, por causa da caça de peixes,esclarecendo que os peixes por ele apanhados não poderiamnunca comparar-se aos peixes apanhados por Kidok, cujascabeças e espinhas se achavam como que semeados ao longoda trilha. Ele lhe pagou com igual moeda, dizendo que ela nãosabia como atrelar um trenó, porquanto os arreios que ajus-tara, enquanto ele estivera ocupado na caça do seu almoço, sequebraram freqüentemente, e, de modo especial,precisamente quando o trenó de Kidok aumentava detamanho e se tornava relativamente fácil de alcançar.Uma das cadelas teve cria na trilha. Tinha sido atrelada comas rédeas mais curtas, para que os seus companheiros dematilha não lhe devorassem os filhotes. Asiak curvou-se para

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baixo, em plena corrida, e, um a um, apanhou os pequenosseres fumegantes. Com os dentes, ela abriu as primeiras cincopeles que envolviam os animaizinhos; eram frias, nos pontosem que tinham entrado em contato com a neve, porémbastante quentes do lado de cima; Asiak espalhou cada umadas peles, gelatinosas, pegajosas, e de sabor adocicado porcima do beiral do trenó; depois, enfiou os cachorrinhosúmidos para dentro de sua jaqueta. Uma cadela, em marcha,não poderia criar mais do que cinco; por isto, Asiak não abriuos quatro envoltórios seguintes, que foram caindo na neve;conservou-os, porém, no trenó, para serem utilizados àmaneira de comida para as matilhas. Os quatro logo seendureceram, expostos como foram ao vento da corrida.O Sol tinha dado vários giros; talvez sete ou oito; isso nãoimportava propriamente; o número exato pouco significava,numa região em que o tempo era sempre longo; foi aí queirrompeu uma nevasca, e que Ernenek começou a falarconsigo mesmo, tomado por uma exaltação extrema.A escuridão estreitava o horizonte. Um vendaval, soprando dealturas distantes, varreu a superfície do Oceano Glacial,erguendo do chão, nuvens acinzentadas de poeira de neve, eempurrando-as, horizontalmente, por cima da vasta planície.Ernenek e Asiak acrescentaram mais óleo de baleia àsrespectivas faces; piscavam os olhos, e curvavam-se para afrente, contra as rajadas. O trenó de Kidok foi outra vezperdido de vista; os cães da matilha de Ernenek nãoconcordavam mais com o rumo do faro; e ele teve de parar eapear várias vezes, até conseguir descobrir, com os

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calcanhares, as pegadas que tinham desaparecido por baixo dolençol de neve recente.O trenó e a matilha oscilavam sob a pressão do vento; eErnenek começou a sentir falta da sua jaqueta exterior, comaquele capuz enorme, que deixava a descoberto apenas osolhos. O gelo dependurava-se às suas sobrancelhas, e enchia-lhe as orelhas.Ainda assim, ele não poderia deter-se nunca, a menos queocorresse algum acidente.A fim de dominar o vento e puni-lo por sua insolência,Ernenek começou a surrá-lo com o seu chicote, bem como acortá-lo e a perfurá-lo com sua faca. O vento, entretanto, nãosomente se recusava a mostrar-se intimidado, mas também seirritava; com efeito, com uma lufada de furacão virou deborco o trenó, e varreu-o ao longo de uma distância devintenas e vintenas de metros; nessa virada, fardos e viajantesforam espalhados ao léu, acontecendo o mesmo com os cãesda matilha; tudo se esparramou por cima do mar, numadesordem furiosa, acabando por empilhar-se, afinal, deencontro a uma barreira de gelo. Os cães ladravam. Ernenekproferia blasfêmias. Asiak ria-se. Em vão ele e ela tentaramdesvencilhar e reunir os cachorros; em vão procuraramrecolocar o trenó na devida trilha; o vento virava tudo denovo, antes de o trenó ser outra vez carregado.— Perdoe a uma mulher, por ela falar; mas, assim, o trenópoderá partir-se; e então você não alcançará nunca Kidok —gritou Asiak, para dentro de uma das orelhas de Ernenek, deuma orelha repleta de neve. — Deveríamos fazer alto aqui. Senós não podemos viajar, também ele não deve poder viajar.

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Os dois empurraram o trenó para junto da barreira de gelo;com as facas, cortaram as correias dos arreios,inextricavelmente emaranhadas; e, enquanto os cães sereuniam, formando como que uma trouxa só, choramingandoe vasculhando freneticamente, Ernenek começou a construirum abrigo.Por cima de um monte compacto de neve soprada pelo vento,ele traçou um círculo, com a lança; o círculo tinha diâmetropouco maior do que a sua altura, isto é, do que a altura dopróprio Ernenek. Pondo-se de pé, dentro do círcuJo, cortougrandes cubos de neve por baixo de si mesmo; e foi colocandoos cubos ao seu redor, sobre a linha traçada. Extraiu debaixodos seus próprios pés os cubos destinados aos renques maisaltos, assim cavando e construindo ao mesmo tempo.Recortou o último cubo de cada renque, com sua faca deneve, a fim de ajustá-los a rigor ao espaço restante, parafechá-lo hermeticamente. Cada fila de cubos foi sendoconstruída um pouco mais estreita do que a fila inferior, atéque um único bloco de gelo, ou cubo, foi suficiente paracompletar e fechar a abóbada.Do lado de fora, entrementes, com uma pá feita de pelecongelada de foca, Asiak ia surrando a compacta neve sopradapelo vento, a fim de reduzir a poeira fina; uma vez reduzida apoeira, ela a atirava de encontro ao iglu que estava sendoconstruído; por essa forma, ela vedava as frestas que ficavamnas juntas entre um cubo de gelo e outro. O abrigo completoemergia apenas um metro, ou um metro e meio, acima dasuperfície do oceano; tinha aspecto esférico, compacto, e não

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oferecia aresta alguma ao agarre das intempéries; o restoficava por baixo.Acima de sua cabeça, Ernenek abriu um pequeno orifício,para que a fumaça pudesse evolar-se. Depois, construiu o divãde neve, bem como o túnel de vento; o túnel era concebidopara permitir a entrada do ar, mas não do vento; ademais,tinha capacidade para abrigar a matilha de cães. A seguir,enquanto Asiak carregava as provisões para dentro do iglu,juntamente com os petrechos domésticos e cobria o divã compeles, ele foi para fora, a fim de enterrar o trenó. Feito isto,engatinhou de volta ao interior do iglu, batendo e soltandocuidadosamente o pó de gelo formado à superfície de suasroupas, antes de se acomodar, deitado, em cima do divã.No escuro, ele ouviu Asiak preparar a lâmpada, produzir umafaísca no pavio feito de cogumelos secos, e acender a mechafeita de musgo; logo depois, a graxa de óleo de baleia começoua derreter-se na vasilha rasa; a pequena labareda cresceu,fazendo com que a parede circular do abrigo fulgurasse, aomesmo tempo difundindo calor. Entretanto, visto que aventania e a fina poeira de neve prosseguiram soprandoatravés de alguns pontos das juntas nem sempre bem vedadasda parede construída com material rústico e deteriorável,Ernenek degelou a superfície interna, com auxílio dalâmpada; assim que ele removeu a lâmpada, o que foradegelado volveu a congelar, tornando, pois, a parede à provade penetração de ventania.Asiak, entrementes, preparou um varal de secagem, por cimada lâmpada, com o emprego de duas lanças enfiadas naparede; e atirou, por cima do varai, a sua roupa exterior, toda

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molhada. Puxando com as mãos e com os dentes, eladescalçou as botas empapadas de Ernenek, e inspecionou-as.Estavam descosturadas, como que estouradas, em dois lugares;então ele as secou com aplicação de neve; e consertou-as coma agulha feita de osso de baleia que ela costumava trazersempre metida entre os cabelos e cordão feito de tendão decaribu. Depois juntou as botas às roupas, para que tambémsecassem, lá no varal.O varal, ou, no caso, o cabide de secagem, a lâmpada, adespensa e o bloco de neve de beber, a pederneira de produzirfaísca, a madeira seca, para fazer lume, e todos os outrosimplementos de ordem doméstica — tudo isto foi disposto deacordo com uma determinada ordem mais antiga do que aHistória: cada item ficou ao alcance da mão com o braçoestendido, podendo ser facilmente encontrado no escuro;desta maneira, qualquer atividade caseira poderia ser levada acabo, sem que a pessoa abandonasse o divã. Este iglu eraidêntico àquele que os dois haviam deixado, e também o igluseguinte, que iriam construir, ou em que iriam morar; e seusutensílios tinham sido feitos de modo a se adequarem a ele.Devido ao fato de não haver espaço suficiente paramovimentação de pessoas, a machadinha de pederneira tinhacabo curto; e a faca de uso caseiro, feita de ossos de caribu, erade forma circular, requerendo, para ser manobrada, apenasum movimento do punho.Asiak tinha centenas de coisas a fazer, como têm todas asmulheres, no interior de suas casas. Sempre havia algumacostura para ser efetuada. A mecha tinha de sercontinuamente aparada, para que não se apagasse. As roupas,

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que estavam no varal de secagem, tinham de ser viradas. Aágua, para o chá, precisava ser derretida. O verdadeirotrabalho, porem, ainda se encontrava à sua frente: teria de serfeito quando as peles, depois de secas, devessem serdescarnadas e mastigadas, para que se tornassem macias.O barulho adormecedor da alinhavação, o fulgor da lâmpada,da cor do crepúsculo, projetado de encontro à parede de gelo,e o cheiro da mecha que flutuava em meio ao óleo derretidode baleia fizeram com que Ernenek desejasse dormir. Desúbito, porém, ele se sentiu desconfortadoramente gelado.Tinha despendido muita energia e comido insuficientemente,como fazem sempre os homens, quando perseguem mulheres;e, naturalmente, ele não seria Ernenek, se não se houvesseesquecido de alguma coisa de muita importância, como, porexemplo, das roupas adequadas. Sua vestimenta exteriorestava secando no varal; e ele se enfiou para dentro do saco depele de rena, mantendo, porém, os pés um pouco mais altosdo que o resto do corpo, de maneira que o ar quente pudesseelevar-se até os dedos das suas extremidades inferiores; masnem mesmo este recurso, de eficiência comprovada,conseguiu aquecê-lo; em conseqüência, o sono lhe fugia.Usualmente, Ernenek auferia prazer do ato de cair no sono,estando com o corpo meio gelado. Mas isto não aconteceuagora.Através das pestanas, ele observou Asiak. Depois de algumtempo, ela deixou de alinhavar. Chupou inteiro um peixecongelado. Tapou o orifício feito no teto, com pele deptármiga, espécie de perdiz ártica. Bocejou um pouco. Depois,

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sem pedir permissão, juntou-se a Ernenek, no mesmo saco dedormir em que ele se encontrava.Ernenek fingiu estar dormindo como um tronco de árvore; enão deu mostras de tomar conhecimento da sua intrusão.Após algum tempo, a mecha não aparada começou a fumegar;depois, crepitou; e a seguir se apagou. A fúria da nevascafazia-se ouvir, mas abafada, através da espessa parede de gelo.Tendo Asiak no saco, o calor foi formando-se; e, antes que opercebesse, Ernenek já se encontrava profundamenteadormecido.Ele acordou ao rumor de esfregamento de peles. Atempestade tinha amainado um pouco. Asiak sorriu, vendo-odeslizar para fora do saco de dormir. Ela estava amaciando-lhe as botas com raspadores de osso; e fazia uso dos própriosdentes nos lugares mais duros. As roupas dele estavam secas.Ernenek estava com fome. O chá frio já se encontrava à suaespera. O homem bebeu o chá, acompanhando-o com nacosde peixe e goles de óleo de baleia congelado. Ao tempo emque ficou cansado de ingerir alimentos, pouca coisa restava.—Alguém irá tratar de Kidok, antes dele partir de novo —disse Ernenek, palitando os dentes e lambendo os dedos.—É possível que uma mulher se encontre com ele. Kidok nãopode estar muito longe.Uns poucos cachorros ladraram e ganiram quando forampisados, no túnel; mas a maior parte deles se encontravaexcessivamente cansada; e, por isto, nem tomouconhecimento dos pisões. O temporal continuava ainda forte;o céu, carregado; a temperatura, rigorosa.

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Descobrindo, com os calcanhares, as trilhas deixadas no gelopelo trenó de Kidok, espiando através da poalha de gelo, ecurvando-se contra o vento, Ernenek e Asiak afinaldescobriram um pequeno iglu como que a encolher-se para seproteger contra o vento, e quase que cancelado da existênciapelas rajadas de neve.Os dois foram saudados pelo rosnar dos cachorros, no túnel.Dentro, o iglu de Kidok era exatamente igual ao de Ernenek,com os mesmos implementos, todos dispostos na mesmaordem. Kidok sorriu, num arreganho, para os visitantes,pondo a cabeça para fora do seu saco de dormir; e as duasirmãs deram risadinhas e se farejaram reciprocamente.—Alguém veio para levar de volta a Imina — anunciouErnenek, sem a menor cerimônia.—Nós os vimos enquanto nos perseguiam; mas pensávamosque queriam brincar — disse Kidok sorrindo. — Você,Ernenek, sempre desafiou a minha matilha.—Não. Não se tratava de brincadeira; tratava-se era dealcançar Imina.—Por que é que você não fica com Asiak? Pois então ela nãosabe raspar peles e costurar botas, e fazer todas as demaispequenas coisas que as mulheres fazem?— Sim. Ela raspa e alinhava — concebeu Ernenek — masalguém quer a Imina, porque... — E ele chegou ao limite desua astúcia.Não lhe ocorreu que talvez quisesse Imina meramente devidoao fato de Kidok haver ficado com ela. Ruborizado eembaraçado, Ernenek apanhou um pedaço de carne que jazia

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no chão e cortou dele um naco, para comer. Os outros trêsriram; e Ernenek foi fazendo-se cada vez mais vermelho.— Ninguém pode forçar uma mulher — disse Kidok, porfim, dando provas de ser homem de maior sabedoria. — AImina pode ir com você, se o desejar. Mas, neste caso, Asiakse juntará, talvez, a um caçador destituído de méritos, masque não deseja viajar sozinho. . .Dizendo isto, olhou para Asiak; e Ernenek também olhoupara ela.— Sem dúvida — declarou Asiak, rindo.Ernenek franziu a testa. Sentiu-se tão infeliz, que teve de securvar repetidamente sobre a despensa, a fim de conseguirconsolar-se; e a única manifestação, de sua parte, ocorriaquando cuspia os ossos, ou quando chupava os dedos entreuma posta de carne e outra, ao passo que os outroscavaqueavam; eles cavaquearam e contaram coisas, até que atempestade passou.Quando o trenó de Kidok acabou de ser carregado e atrelado,eles resolveram retornar ao iglu, para tomar uma ultima tigelade chá, bem como para travar uma última conversação e fazeroutra série de brincadeiras; e isto significou mais ou menosoutra semana de tempo.Lá não havia nunca despedidas; somente as chegadas erammotivos de festividades. As separações eram sempre tristes,numa região em que o companheirismo era raro; assim, aspartidas passavam como que não notadas, e mesmo ignoradas.No máximo, eles por vezes diziam Aporniquinati, quandoalguém partia de um iglu:

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— Agora, amigo, tome cuidado para não bater com a cabeçade encontro a abóbada do túnel.Desta maneira, teria ficado bem, da parte de Ernenek, ignorarinteiramente a partida de Kidok e Asiak, e permanecer nointerior do iglu. Entretanto, ao invés disso, ele osacompanhou até ao exterior, e manteve-se de pé junto aotrenó, com os maxilares tensos e os olhos trágicos; assim comoos cães da matilha se desalinhavam, fazendo com que osarreios se distendessem e estalidassem, assim tambémErnenek se atirou, com todo o peso do corpo, contra o líderda matilha; em conseqüência, deteve o trenó com tamanhoímpeto e tamanha subitaneidade, que as cargas e ospassageiros tombaramara a frente, numa completa baralhada, em meio a umtorvelinho e latidos, blasfêmias e gargalhadas.Kidok conseguiu recompor-se e pôr-se de pé, sacudindo asroupas; e caminhou, gingando, na direção de Ernenek.— Alguém, afinal de contas, preferiria ficar mesmo comAsiak — resmungou Ernenek, com aspecto de infeliz. —Tome de volta a IminalKidok riu. Ernenek deveria ter perdido a razão. Como se umamulher não fosse tão boa como outra! Eram todas iguais, paraKidok, contanto que Ernenek tomasse uma resoluçãodefinitiva.Ernenek tomou.Por punição, ele teve de refazer o carregamento do trenó; efê-lo com alacridade, cantarolando alegremente para simesmo enquanto o fazia; pelo menos desta vez, sentiu-sesatisfeito por ver um trenó partir.

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Levou Asiak de novo para o interior do iglu, e começou afarejá-la e acarinhá-la, com esfregamentos das mãos, semperder tempo. Ela, porém, vibrou-lhe uma pancada sonorapor cima de uma das orelhas, com um salmão congelado.— Você esteve perseguindo a Imina, durante muitos giros doSol, antes de tomar a sua resolução final; por isto, terá deperseguir outra mulher, inteiramente destituída de valor, pelomenos por um tempo tão longo como aquele, antes de possuí-la — disse ela, meio zangada, meio divertida. — E bempossível que uma mulher tola não seja tão fácil de caçar comoum urso.Ernenek ficou como que de crista caída, em presença dainesperada virada dos acontecimentos; e sentiu-segrandemente alarmado, ao pensamento relativo à maneira decomo a foca interpretaria esta sua nova derrota. Depois, Asiakdeixou cair a surpreendente interrogativa:— Por que foi que você perseguiu Kidok?E visto que Ernenek não lhe deu resposta, ela mesma acres-centou, com uma pequena risada:— Você deve ser estúpido, homem!

CAPÍTULO IIIOS FATOS DA VIDA

Quando, na melancolia do outono, eles retornaram aoacampamento, Ernenek deu de presente, aos pais de Asiak,uma lâmpada; e os pais permitiram que ele ficasse com Asiak.

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Ernenek sentia-se orgulhoso, porque, na qualidade de homemcasado, se encontrava, agora, na possibilidade de retribuir, aoutros maridos, todos os pequenos favores que havia recebido.Quando ele deixava discretamente o iglu, aludindo ao fato deque talvez Anarvik gostasse de passar uns poucos momentosrindo em companhia de Asiak, ocorria um novo empeno naposição de sua cabeça, juntamente com um novoenquadramento dos seus ombros. Por fim, Ernenek passara aser um homem, na mais plena expressão da palavra. Nãopermitia que Siksik se tornasse uma estraga-festas; ignorava-lhe as insinuações, quando ela lhe sugeria que, desde muitasestações do ano já, Anarvik se vinha revelando incapaz de rir,ou mesmo de ter apenas uma casquinada com uma mulher.O velho Ooloolik morreu no inverno seguinte, sem quehouvesse, para isso, nenhuma razão especial. Ele fora dormir;depois, esquecera-se de acordar. Isto foi uma coisadesafortunada. Se os seus parentes tivessem tido ainda quefosse uma vaga idéia da sua morte iminente, poderiam tê-lovestido com suas roupas de sepultamento; poderiam tê-lotransladado para um simulacro de abrigo, uma vez que asombra do defunto contamina o iglu — de modo que o igluteve de ser abandonado. Assim, na calada da noite, elesmudaram de acampamento, apagando as próprias pegadas, namedida em que caminhavam; foram construir novos iglusbem longe dali, a fim de ficarem livres da vingança dohomem morto; até Ernenek achava que devia ser assim — ele,que não tinha medo de nenhum homem vivo.Porque um esquimó morto é um mau esquimó. O esquimómorto enfurece-se por estar morto, enquanto que os seus

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caros se conservam vivos; por isto, ele lhes faz mal e osincomoda, com todas as suas forças. Visto como o terror paracom o fantasma de Ooloolik era muito grande, os lamentos dapranteação foram muito altos e abundantes, num esforçodestinado a conciliá-lo. Para maior precaução ulterior, cadaum dos sobreviventes construiu ciladas e armadilhas fingidas,ao redor das respectivas moradias, a fim de assustar eafugentar o fantasma, no caso de ele desejar aparecer.Os mortos tornavam as coisas difíceis para os vivos; mas osvivos também faziam a mesma coisa para os mortos.Anarvik e Siksik migraram para o sul, ao romper do dia; mas amãe de Asiak, Powtee, se sentia excessivamente velha, paraviajar; Ernenek e Asiak permaneceram em sua companhia.Eles eram bondosos para com a velha mulher, que já nãotinha mais ninguém neste mundo, depois que Ooloolikmorrera e que Imina partira para junto da tribo de Kidok.Durante um ano inteiro, eles cuidaram dela, proporcionando-lhe atenções e afeto, e dando-lhe roupas e comida, muitoembora os dedos rígidos da anciã fossem incapazes de costurare descarnar couros; ademais, os seus dentes, usados até àsgengivas, eram incapazes, já agora, de amaciar qualquer tipode pele de animal. Eles lhe davam pedaços escolhidos e tenrosde carne; Asiak alimentava-a, boca a boca; retribuía-lhe, poressa forma, o que dela tinha recebido em sua infância — umajusta recompensa. Um fim, porém, teria de ser posto a tudoaquilo; e isto era tão certo como a chegada do inverno.E aconteceu.A velha mulher sabia o que aquilo significava — quando foicomo que empacotada, posta no trenó e conduzida por cima

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do oceano batido pelo vento, e luminoso devido às estrelas.Ninguém falou, durante a excursão, nem quando se fez alto; eErnenek fez com que a velha mulher se sentasse em cima deuma pele de cachorro, que ele estendera em meio do campode gelo marinho, para uso dela — a fim de que pudessemorrer com todo o conforto. Acabrunhado, ele voltougingando de novo para o trenó, murmurando alguma coisacom os seus botões, e fingindo estar muito ocupado com astrelas.Asiak, desejando ocultar o seu desconforto, pusera-se a ralharcom os cães da matilha, com mais intensidade do que teriapretendido; e vibrava pontapés, com grande precisão, nosfocinhos pontudos dos pequenos animais, quando eles seentregavam à sanha de puxar uns aos pêlos dos outros.Nesse ínterim, sentada, toda composta, em cima da pele decachorro, Powtee ficou olhando para a filha, com olharespreocupados.Asiak estava grávida; e, provavelmente, não tinha a menoridéia de como já se achava próxima, para ela, a tarefa de dar àluz. Asiak não tinha assistido nunca ao nascimento de sereshumanos; por outro lado, ninguém que tivesse assistido a taisnascimentos estaria à seu lado agora; e Powtee ficou aimaginar sobre se sua filha já havia ou não aprendido osuficiente a respeito dos fatos da vida, através do queacontecia com os cães das matilhas.— Aproxime-se bastante, pequena. Uma velha mulher inútiltem algo para lhe comunicar.Asiak acedeu e, com todo o respeito, se pôs a ouvir as palavrasda mãe.

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—É possível que você logo deva dar nascimento a umacriança. Agora, você deve saber que a criança se mostraimpaciente para ver o mundo. Esta é a razão pela qual você asente dando pontapés no interior do seu ventre. E é precisoque a ajude, com todas as suas forças, a percorrer o caminhoque ela tem de percorrer. Se lhe acontecer estar no igluquando chegar o momento, remova as peles de animais dochão, a fim de não as sujar; depois, ponha-se de joelhos, que éa melhor posição para dar à luz; e cave um buraco por baixode você mesma, a fim de proporcionar espaço à criança.Acontece, entretanto, que a criança, no último instante, seassusta; fica com medo de sair; e, depois de já haver vindo aomundo, ela ainda se apega a você — ao contrário dos cães quetem visto, que nascem inteiramente livres. Assim, precisarácortar o cordão que prenderá a criança a você, para que aseparação aconteça; faça isso imediatamente; do contrário, acriança morrerá, e você morrerá com ela. Compreendeu o quealguém lhe comunicou?—Quase que tudo. Como você é sábia!—Agora, ouça com cuidado. Assim que a criança nascer, olhepara ver se se trata de menino ou menina. Se se tratar demenino, tudo estará em ordem. Lamba-o com a sua língua atéque ele fique bem limpo; depois, esfregue-o com óleo debaleia. Não tenha medo de esfregar com força; o menino nãose quebrará. Somente depois de um sono ou dois, você deverácomeçar a lavá-lo em urina. Se, entretanto, se tratar demenina, você deverá desvencilhar-se dela imediatamente,antes de se apaixonar; ou, então, sentá-la em cima do gelo,

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enchendo-lhe a boca com punhados de neve — para que elamorra depressa.—Por que é que alguém precisa fazer isso?—Porque, durante o tempo em que der de mamar a umacriança, você ficará estéril; e isto significa que, por estarcriando uma menina, retardará a chegada de um menino; e énecessário que você crie depressa um varão em sua família.Será ele que irá buscar alimento, quando você e seu marido sefizerem idosos; e a velhice acontece muito, mas muitodepressa. Depois de ter um menino, poderá criar tambémuma menina, se assim o quiser. Mas você deverá saber quemuitos pais esclarecidos permitem que sua filha viva somentese houver alguém que, antes mesmo do seu nascimento,prometa casar-se com ela, e que proporcione meios para a suacriação, enquanto ela cresce. Está tudo isto bem claro, paravocê, minha pequena?—Está, minha querida.—Alguém se sente satisfeita por ser assim.E, como que para dar, à filha, a oportunidade de partir, avelha desviou para longe o seu olhar; e ficou como que acontemplar o outro lado da distância branca e solitária; aolhar para as sombras longínquas, que denotavam a existênciade terra firme, tudo confuso e embaçado, na quase escuridãoda noite ártica. A velha era defensora e sustentadora daquelasnormas antigas do saber viver, que mandavam que as partidastinham de ser ignoradas. Desta maneira, teria sido falta depolidez, da parte de Asiak e de Ernenek, apresentardespedidas, como também teria sido falta de cortesia, da parteda velha Powtee, tomar conhecimento da partida.

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Quando, porém, o jovem casal deslizou para fora da cena desua vida, deslizou apenas em sonoridade, em barulho.Mentalmente, os dois moços continuaram perto da velha, detão familiarizada que a velha estava com o padrão de vida —padrão este que não se modificara desde a sua juventude, eque, de resto, era inalterável. A velha sentia-se envergonhadapelo fato de, ao fim da sua longa vida, ainda não se mostrarsatisfeita com o seu quinhão, alimentando, como alimentava,mais um desejo: o de ver, ouvir e sustentar, ainda uma vez,em suas mãos nodosas, um bebê recém-nascido, que teria devir. E, enquanto se conservava ali, sentada, à espera da morte,seus pensamentos rumaram para o pequeno iglu onde,exatamente naquela fase, o milagre do nascimento estavarealizando-se. Ela, a velha, conseguia imaginar, com precisão,tudo o que estava acontecendo em sua ausência.Quase tudo.Mesmo enquanto Powtee se encontrava à espera da morte,em cima da pele de cachorro, a criança ia chegando paraAsiak, como se estivesse sendo apressada, em sua chegada aomundo, pela grande tristeza da velha. Já durante a viagem devolta a sua casa, Asiak se sentiu acometida pelas dores doparto, embora nenhum lamento emanasse dos seus lábios.Cachorrinhos de olhos sonolentos saíram, latindo etropeçando, do túnel; saíram sacudindo a neve acamada sobreseus longos pêlos. Enquanto Ernenek desatrelou a matilha,Asiak não hesitou em proceder ao descarregamento do trenó;mas lhe aconteceu cair de borco sobre a neve; e, então, comalguma dificuldade, esgueirou-se através do estreito túnel de

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entrada do iglu. Ela se desfez de sua vestimenta exterior;acendeu a lâmpada e estendeu-se toda no divã de neve.Ernenek seguiu-a de perto.Sua presença perturbou a moça. Ela teria gostado de estarsozinha, no transcurso do episódio que se encontrava naiminência de se registrar.— Lembra-se você — disse ela, conservando fechados osolhos — do flanco do boi almiscarado que nós empilhamos,no grande golfo, na primavera passada?Ernenek exultou, a essa lembrança:—Não era, de forma nenhuma, um boi almiscarado pequeno!—Claro. Você sempre teve todas as coisas de maior tamanho.Agora, tudo deverá transcorrer linda e suavemente.O rosto enorme de Ernenek assumiu aspecto grave e sério:— Trata-se de uma longa viagem, e alguém está com sono.— Uma mulher amalucada deseja um pouco daquela carne.Ernenek oscilou a sua corpulência achatada e robusta, com acabeça levemente curvada para baixo, sob a abóbada de gelo.—Há foca bem gorda e congelada na despensa — disse ele,tentadoramente — e há também fígado que estádeteriorando-se desde o verão.—Alguém não quer saber de foca bem gorda e congelada —disse Asiak, sem se deixar impressionar — e também não querfígado, pouco importando o seu estado de deterioração; o quealguém quer é lombo de boi almiscarado.Nos últimos tempos, ela tivera muitos daqueles caprichossúbitos; e teria sido fácil, para Ernenek, silenciá-la com umsimples tapa — a qualquer momento em que se sentisse emboa forma para isso. O homem ficou a matutar sobre a razão

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pela qual nunca fizera aquilo; mas não encontrou respostaalguma. Havia muitas outras interrogativas às quais Erneneknão conseguia responder. Ele bateu o pé; cuspiu; resfolegou; eproferiu blasfêmias. Depois de tudo isto, passou a untar opróprio rosto com óleo de baleia; tratou de atrelar de novo otrenó; e lá se foi ele, em busca da carne de flanco de boialmiscarado.Com o pé, Asiak empurrou para o devido lugar o bloco degelo que vedava a entrada do iglu; e isto porque ela sentiatremores, muito embora, até àquele instante, a gravidez ahouvesse conservado aquecida — mais aquecida do que oestaria se se protegesse com duplo jogo de pele de urso. Aseguir, quebrou um pedaço de neve de beber, tirando-o dobloco; derreteu-o por cima da lâmpada, numa vasilha rasa, depedra-sabão; e bebeu avidamente, sem sequer abandonar odivã. A criança impaciente como que vibrava punhaladas nointerior do seu corpo, fazendo com' que Asiak cerrasse osdentes, ao mesmo tempo em que, no interior de suas botas, osdedos dos pés se encurvavam. Os golpes da criança induziam-na a sentir-se mal o estômago; e os seus cabelos úmidos lhecaíam por cima da fronte. Ela mordeu os próprios lábios, atéferi-los e sangrá-los.A mecha de musgo, que flutuava no óleo derretido de baleia,na lâmpada, começou a crepitar, emanando espirais negras defumaça na direção da abertura que havia no teto, e chamandoa atenção da moça para que ela fosse apará-la. Asiak, porém,ignorou o chamado. Pôs-se de pé, removeu as peles que seencontravam espalhadas no chão, e, com um raspador decouro de vestimenta, abriu um buraco na neve. Ajoelhou-se

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por cima do buraco; baixou os calções até aos joelhos; e ficouesperando; enquanto isto, descansou, com um cotovelo emcima do divã e o outro em cima do bloco de neve. A luz corde albricoque atenuou-se; fez-se amarronada; depois, viroucor de púrpura, azul, cinzenta, negra.E, na escuridão, a criança primogênita de Asiak caiu deponta-cabeça no buraco cavado na neve.No ponto em que havia alguma coisa que a puxava, ela securvou e cortou, com uma forte mordida, o cordão que aprendia à criança; e assim que a criança ficou livre, uma forterajada encheu o iglu; então Asiak correu a acender a lâmpada,a fim de ver o que acabava de pôr no mundo.Era um garoto, e o poder de sua voz fez com que ela risse umpouco, porque lhe recordava o vozeirão de Ernenek. Elalambeu aquele monte frouxo de carne, de cor acastanhada epálida, até que se apresentou imaculado, limpo e brilhante,menos quanto àquele ponto mongólico, azul, na base daespinha; depois, secou tudo com um esfregão de pele deraposa; untou a criança com óleo de baleia; e, sem perda detempo, enfiou-a para o lado de dentro do seu saco de dormir,feito de pele de rena, porque as pancadas dolorosas de após oparto estavam começando a acossá-la.Passadas as pancadas, ela sentiu uma vontade ansiosa decomer; e engoliu um pedaço enorme de carne de foca,congelada. Depois disto, uma grande paz e um imensocontentamento lhe invadiram o ser inteiro. Ela se despiu eenfiou-se também dentro do saco de dormir.O pequeno caçador agitava-se e gritava freneticamente. Elalhe tapou a boca com o seio; e ele começou a sugar o leite,

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com todas as suas forças; em sua ansiedade, chegava amachucá-la de leve; e isto lhe dava uma sensação que lhelembrava vagamente, por se assemelhar muito, o prazersexual.E isto marcou também a revivescência dos seus desejossexuais — desejos que, como acontece com os animaissilvestres e selvagens, se haviam adormecido no dia daconcepção. Este adormecimento fizera com que todo o seu serse esforçasse, concentrando-se dentro de si mesmo, para semanter na defensiva contra o mundo exterior.

E o longo período de continamente intrigara Ernenek, quetinha conhecimento do poderio primigenio do sangue deAsiak, que lhe impunha tão poucas exigências, como estavaacontecendo.- Quando Ernenek voltou, com as guloseimas, deteve-se comoque pregado no chão, de gatinhas, na passagem de entrada; ogrande queixo do homem ficou como que a pender-lhe dorosto; e ele se manteve imóvel, como que tomado deencantamento. Uma pequena madeixa de cabelo bem pretoemergia da extremidade do saco de dormir, ao lado do rostode Asiak.— Aconteceu que uma mulher deu à luz uma criança —disse ela, meio envergonhada. — Mas não é bem bonitinho?— acrescentou, erguendo o recém-nascido no ar,triunfalmente.Ernenek meneou a cabeça, duvidando:— Alguém já viu filhotes de ursos que tinham aparência maisagradável.

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Ele se ergueu, pondo-se de pé; e esqueceu-se de sacudir apoalha de gelo de suas vestimentas.—O menino melhorará na medida em que for crescendo —declarou Asiak, com firmeza. — Mas ele já tem tudo de quenecessita. Seu nome é Fapik.—Como é que você sabe que o nome dele é Papik? —indagou Ernenek, estupefato.— Porque acontece que alguém gosta desse nome.Assim, Ernenek esparramou Papik em cima da neve, econtemplou-o, de olhos bem arregalados; contemplou-oestando no divã, sem se sentir ainda preparado para apaternidade.— Ele pode não se sentir aquecido, todo nu como está, emcima da neve — sugeriu Asiak; e Ernenek ergueu o menino,pondo-o em cima dos seus joelhos. . .A seguir, o novo pai começou a inspecionar o bebê, dos pés àcabeça, sacudindo-se todo de riso à vista do pequeno tamanhode cada uma das partes daquele corpinho; e Asiak, por isto, sesentiu um pouco contrafeita e zangada. E isto porque, naverdade, o pequeno caçador se apresentava de compleiçãorobusta, com ombros quadrados, peito grande, braços curtos,porém fortes, e zigomas amplos; ademais, os olhos levementeem oblíqua se mostravam bem negros, bem vivos, no pequenorosto inteiramente untado de óleo de baleia.Ernenek assegurou-se de que tudo se encontrava ali. Asunhas, tenras e miúdas, nas mãos de dedos de pontaembotada. O nariz breve, quase que desaparecendo entre asfaces que pareciam explodir, de tão bojudas que seapresentavam. A boca, rica, redonda, com a pequena língua..?

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— Asiak!Ernenek ergueu-se, pondo-se ereto, de peito empolado, com acabeça a bater na abóbada do iglu; e balançou o filho,agarrando-o por um dos pés; o recém-nascido rompeu numchoro estridente, ao mesmo tempo em que suas faces sefaziam vermelhas, de um vermelho escuro.Os olhos de Asiak arregalaram-se:—De que é que se trata?—Ele não tem dentes!Seguiu-se a consternação. Asiak apalpou as gengivas do filho,sem se incomodar com a sua gritaria. Ernenek tinha razão:nenhum vestígio de dentes. E, pela primeira vez, Ernenekviu, nos olhos dela, algumas lágrimas que não eramproduzidas pelo riso.— Você deve ter violado algum tabu — disse-lhe ele, comseveridade.— Não que eu saiba.— Comeu você algum animal marinho, juntamente comalgum animal terrestre? Ou talvez terá posto produtos do mare produtos da terra na mesma panela?— Naturalmente que não.—Então você deve ter tentado lancear uma foca, ou mataralgum caribu branco, ou costurar fora da estação do ano. Porque é que você não confessa?—Porque não fiz nada disso! E que é que me diz de vocêmesmo haver violado algum tabu? Pense. Pense bem!—Uma estúpida mulher a falar por essa forma ao seu marido!A que ponto está o mundo chegando?

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—A coisa importante é esta: que é que se pode fazer quantoao caso?Ela mordeu firmemente um dos seus próprios dedos,enquanto travava esta discussão ociosa: porque, como eralógico, sabia o que precisava ser feito.E também Ernenek o sabia. Ele se desviou para um lado;tossiu; disse umas blasfêmias; e resmungou para consigomesmo. Depois, riu grosseiramente, fingindo indiferença.Asiak antecipou-se a ele:— Nós vamos sentá-lo lá fora, em cima do gelo. Quanto maiscedo, tanto melhor.Ernenek foi acarinhar-lhe os cabelos e farejá-la:— Nós haveremos de ter outras crianças; e, talvez, teremosdentes nelas.Embora um pouco entorpecida ainda devido ao parto, Asiakquis ir em sua companhia na excursão; e eles percorreram amesma rota pela qual haviam chegado, um giro da Lua antes.Powtee podia estar ainda viva se algum urso ainda nãohouvesse ido buscá-la; e para Asiak, o pensamento de que oseu pequeno Papik não entraria sozinho na Eternidade, e simnos braços de sua avó, constituía algo assim como um motivode consolo.Nenhum urso tinha aparecido para buscar a velha mulher; elase encontrava onde eles a haviam deixado: sentava-se, bemcomposta, em meio à imensidão branca, como a Rainha doMar. A velha apresentava-se um pouco entontecida, devido àexposição do corpo a tamanha quantidade de ar livre; quando,porém, finalmente se sentiu capaz de mover o queixo

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coriáceo, moveu-o para proferir uma comunicaçãosurpreendente:— Uma velha e inútil mulher sabe como fazer para que osdentes do menino nasçam.Aquilo deveria exigir tempo; até ao verão, explicou ela; sóentão as Forças dos Ventos e das Neves, com as quais ela, naqualidade de mulher anciã, se encontrava em excelentestermos de relações pessoais, se curvariam ao seu pedido; nofim, contudo, o pequeno apik receberia os seus dentes. E,embora Asiak e Ernenek não se sentissem muito convencidosde que a velha tivesse consciência do que estava dizendo —porque as mulheres velhas costumam pairar a respeito de todaespécie de coisas tão alheias à realidade como alheio é o geloem relação à Lua — os dois se apegaram àquela possibilidade.Viajaram de volta ao iglu, com a velha e com a criança;Ernenek, por isto, teve de construir outro iglu, de neve fresca,encostado e com comunicação para o seu; nesse novo iglu,Powtee poderia retirar-se, em companhia do neto, uma vezque desejava não ser perturbada em suas conversações com asForças dos Ventos e das Neves. E Asiak permaneceu ansiosa,por trás da entrada bloqueada, à espera de ser chamada paraalimentar a criança.Além do leite materno, Papik recebia óleo de baleia parasugar; sugava-o do dedo de Powtee; recebia também suco defígado; o suco era-lhe espremido dentro da boca. A velhamulher mal tomava algum alimento para si mesma. Foi,assim, tornando-se cada vez mais magra; de modo que o narizpassou a saltar-lhe cada vez mais entre as duas facesencovadas, riscadas por muitas rugas profundas. Seus olhos,

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porém, acusavam muito mais vida do que uma parelha defocas na água.O menino crescia notavelmente; mas, visto como Asiakcontinuava a explorar-lhe as gengivas — e a explorar-lhe emvão — ela se ficou mal-humorada e taciturna; e muitas vezesErnenek, acordando ao rumor contido dos seus soluços,punha a sua mão, pequena para fora do saco de dormir, eacarinhava-lhe o rosto molhado, na escuridão.

Com indiferença, Asiak costurava, empregando agulhatriangular e tendão de caribu, o berço de pele de animal, derodízios, e destinado ao transporte do filho; costurava,igualmente, com os mesmos recursos, as vestimentas para opequerrucho, que se faziam de couro de animais jovens; etambém as pequenas botas brancas, elaboradas com pele defilhote de foca. Com igual indiferença, curtia as peles, comágua humana; e depois as raspava, para que se tornassemmacias. Sempre que o vento norte soprava, ela saía ao ar livre,em plena noite estrelada, e caminhava ao léu, pousando os pésà maneira de pés de pombo; e, por vezes, surpreendia-se a simesma, falando alto, exatamente como acontecia comErnenek.O corpo de Asiak, bem-feito, porém algo robusto e tornadoum pouco pesado em conseqüência da vida ao ar livre vividano verão, começou a adelgaçar-se. Isto seria normal noinverno. O caso é que ela precisava dormir mais, comodormiam mais Ernenek e todas as outras pessoas que elaconhecia, principalmente naquela estação do ano. Ao invés de

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dormir, ela cochilava, desassossegada; e, de quando emquando, nem chegava a cochilar.Aquela pequena cúpula de gelo bem que poderia ser umahabitação feliz. O iglu era pequeno, por motivos de facilidadede aquecimento; mas possuía todo o conforto imaginável: adespensa continha abundância de graxa de óleo de baleia paraser usada como combustível, a fim de se cozinhar e produzirluz; e possuía, além disto, alimento suficiente para durar oinverno todo. Quando, através da espessa parede de gelo, seouvia o vendaval uivando lá fora, aquela cúpula, aquele iglu,era quente e aconchegante, com a sua luz pálida de arrebol,com a sua fragrância do óleo de baleia queimado, e com o seucheiro de carnes postas para se abrandarem. Coroando tudo,havia aquele destemido caçador que era Ernenek, a roncar nosaco de dormir.Asiak, porém, ansiava pela chegada do Sol; quando estetornasse a repontar, poderiam rumar todos juntos para o sul, afim de se encontrar com os bandos de animais; a vida, então,passaria a consistir de ocupações animadas que a ajudariam aesquecer; de caça ao caribu e ao boi almiscarado; depreparação de ciladas e armadilhas; talvez então ocorresse oencontro de grandes grupos de outros homens;possivelmente, umas oito ou dez pessoas; com essas pessoas,seria viável a realização de caçadas e de diversões.No coração de Asiak, a esperança da recuperação de Papikdurara pouco tempo; e ela já começava a lamentar o fato dehaver tomado de volta o menino sem dentes.Agora, a separação seria insuportável.

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A primavera apareceu; a longa madrugada; a aurora lenta; asestrelas pálidas; a atmosfera que se tornava cor de púrpura,que se tomava clara, que se transformava em dia, e, por fim,ao cabo de longa espera — o Sol E Asiak, de acordo com umcostume consagrado pelo tempo, extinguiu o lume; jogou forao combustível de iluminação; reabasteceu a lâmpada comgraxa fresca de óleo de baleia; e aplicou-lhe nova mecha.Acompanhando o sopro de vida que reaparecia, procedendodo fundo do horizonte, a dormência dissipou-se do corpo doshomens; que clamou por alimentação de carne; e o sanguepassou a pulsar através das veias; em conseqüência, eles sefizeram inquietos; e, por isto, se puseram a inspecionar e areinspecionar os arreios dos trenós, bem como as pontasmolhadas de suas lanças e flechas; e entregaram-se também àtarefa de esticar os tendões que serviam de corda aos seusarcos.Com o corpo musculoso a brilhar de graxa, Ernenek ficou depé, em meio às luzentes paredes de gelo.— Na nossa primeira parada, nós abandonaremos os dois.—Entretanto, alguém se tomou de amores para com Papik —esclareceu Asiak, ao sentir que o seu coração se fazia mais friodo que um iglu abandonado. — Mesmo quando se fizermaior, uma mãe tonta poderá mastigar o alimento para ele,em sua própria boca.—E que acontecerá quando você morrer? Os homenszombarão e as mulheres escarnecerão dele, durante toda avida. Não, não! Ele não está capacitado para viver.Dizendo isto, Ernenek deu meia volta e saiu para atrelar oscães da matilha; e fez tudo isso resmungando.

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Quando o trenó recebeu sua carga e os cães se puseram a latir,impacientes, Powtee emergiu do iglu, carregando Papik nosbraços.— Você poderá levá-lo consigo, sem mim. O que acontece éque os dentes dele já começaram a crescer.Lá estavam eles, os dentes, sob o dedo pesquisador de Asiak:eram dois pequenos e agudos pedaços de dentes; Powteeprometeu que mais dentes surgiriam depois; formariam umafila inteira; uma fila completa, com um conjunto sem falhas,todos brancos. Como foi que ela fez aquilo, ou o que foi queela fez, para que aquilo acontecesse, é coisa que ninguémsabe. Mas o caso é verdadeiro; porque Ittimangnerk, ocomerciante, que viu a família de Ernenek no verão seguinte,e que barganhou chá, trocando-o por algumas de suas peles deraposa, contou isso a alguém que nunca o havia colhidodizendo mentira — a não ser por motivos de negócios.Asiak atirou-se ao pescoço da mãe; cheirou o rosto, agora decor de avelã, de Powtee; esfregou o próprio nariz no dela; elavou-o. Ernenek, por sua vez, pulou mais alto do que pulariaa foca jovem, que estivesse fazendo demonstrações para sernotada pelo seu companheiro; e produziu barulhossemelhantes aos produzidos pelas focas.—Você precisa ficar em nossa companhia, querida — disseAsiak a Powtee. — Que acontecerá se os nossos filhosseguintes nascerem também sem dentes?—Não se preocupe. As Forças dos Ventos e das Nevesprometeram que todos os seus filhos serão dotados de dentes— mesmo que, desde logo, não nasçam com eles. Algumavelha mulher já está cansada destas longas jornadas. Ela se

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sente estonteada, desgastada, fraca. A primavera já não lheaçoita o sangue.Como, neste ponto, a despedida seria coisa imprópria, elesabriram uma trouxa e voltaram ao interior do iglu, parapreparar algum chá; queriam, ademais, cavaquear um pouco erir bastante, devido à presença dos dois dentinhos de Papik;queriam puxá-los mais para fora; queriam atirar, na boca dopirralho, alguns pedaços de guloseimas; de uma feita, naverdade, Asiak teve de afundar dois dedos na boca do meninoe retirar, de sua garganta, dois pedaços relativamente grandesde carne, que ali se haviam detido. Ernenek e Asiak beberam,comeram e divertiram-se — até que Asiak, tendo dormidopouco naquele inverno, foi acometida de fadiga súbita; poristo, deitou-se, a fim de descansar. Ernenek continuou aestofar as próprias bochechas com carne, e a quebrar ossos, afim de lhes retirar o tutano; até que também ele se sentiu comsono; e deitou-se no chão, rosnando.Powtee ergueu-se, sem fazer barulho, e deslizou para fora doiglu. A matilha latiu, ao vê-la; mas ela fez sinal aos cães paraque se aquietassem; a fim de silenciar os maisbarulhentamente demonstrativos, ela vibrou-lhes golpes àcabeça, com sua faca de cortar neve. A velha deixou atrás desi sua vestimenta interna, feita de pele de mergulhão; elapoderia ainda ser muito útil a Asiak, ou ao menino; erapreciso muito trabalho de costura, para se ajustarem umas àsoutras todas as peles indispensáveis para a formação de umtraje protetor interno; a anciã vestiu-se apenas com asvestimentas feitas de pele de cachorro; eram vestimentas que,

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de tão usadas, já mal ostentavam um ou outro pêlo à suasuperfície.Um vendaval a saudou, com violência, sob um céu dechumbo. O avanço tornava-se laborioso para o seu velhocorpo encarquilhado, que tinha queimado as melhoresenergias durante todo o inverno, dispondo dereabastecimento muito escasso. Não se ouvia rumor algum,afora as suas próprias passadas, dadas com as botas sobre aneve; ouvia-se, também, distante, por baixo dos pés, o rumorabafado das águas do mar, do mar aquecido, do bom e ricomar, todo cheio de bons e gordos peixes.A velha caminhou para a frente, até que começou a suar; suarera coisa que ela fora treinada para evitar, desde a primeirainfância — a menos que se encontrasse metida em seu saco dedormir. Mas ela continuou a avançar, trôpega, com toda aforça da sua vontade já debilitada; esforçou-se; transpirou. Emcima de um cabeço de gelo, em meio ao mar, ela parou. O iglujá não era visível aos seus olhos cansados.Ela se sentou no gelo; e esperou, placidamente, que o suor,que lhe cobria o corpo, se transformasse em gelo.O tempo passou. Ela não soube quanto tempo; nem ninguémjamais o soube, nem se incomodou por saber; nem issoimportou coisa alguma a ninguém.No começo, a geada, em torno do seu corpo, foi coisa penosa.Ela sentiu a frigidez do gelo esfriar-lhe as carnes, os ossos, ospensamentos. A capacidade de sentir dissipou-se edesapareceu; o espírito fez-se tardo acompanhando a pesadezdo sangue lento; e uma tontura gostosa se manifestou. Dentro

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de pouco tempo a velha não sentiu mais frio; o que aconteceufoi que ela se sentiu aconchegada e satisfeita.Powtee distinguiu a forma de um urso brincando em cima doscampos formados pelo mar gelado; e pensou na alegria queErnenek provaria, se avistasse um animal grande comoaquele. O urso aproximava-se dela, devagar, como querefreando os seus quatrocentos e cinqüenta quilos de fome;mostrava-se desconfiado de tudo quanto apresentasse formade homem, porque este tinha muito do aspecto do urso.Moveu-se, por cima do gelo, com uma cautela tão ponderada,que se fazia evidente: caminhou com as orelhas em pé, com oamplo nariz movendo-se de um lado para outro, e com osolhos, que pareciam pontas de alfinetes, bem atentos. Agrande cabeça, de forma triangular, produzia sons surdos,gorgolejantes; e as narinas expeliam novelos de vapor, devidoà respiração na atmosfera fria.Powtee não pôde deixar de sorrir um pouco, com sua bocadesdentada, em presença do fato segundo o qual uma simplesforma humana era suficiente para manter acuada uma fera tãoenorme. E ela refletiu: o urso tinha razão para ser cauteloso;porque, sem dúvida nenhuma, algum dia Ernenek seencontraria com ele, face a face, por cima do mar branco;nessa oportunidade, Ernenek induziria o urso a engolir umabola de graxa de óleo de baleia, com uma mola, feita de ossode costeleta de baleia, em seu interior; depois, Ernenek oseguiria, enquanto perambulasse, sofrendo; até que, afinal, omataria. Diante de um novo iglu, gritos de alegria seergueriam, quando o caçador retirasse o couro do animalcaçado; e o seu companheiro de aventura removeria as

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entranhas do bicho, antes que se congelassem; depois, opirralho morderia o fígado fumegante da besta, com duas tilasperfeitas de dentes de marfim; até que, daquela presa, brancae enorme, nada mais restasse, afora as manchas de sangue nasparedes do iglu.Powtee sabia o futuro, porque conhecia o passado; a suafamiliaridade com os fatos da vida lhe permitiamcompreender, e por isso aceitar, sem amargura, a tragédiaeterna da Natureza: a carne precisa morrer, para que a carnepossa viver. Ela tinha de morrer, para que o urso pudesseviver, ate que um dia Ernenek o matasse, para alimentarAsiak e Papik.E, assim, ela voltaria aos seus caros.Ao tempo em que o urso fechou o cerco, quase todos ossentidos já a haviam abandonado; e foi com uma vagasensação de dor — se é que o foi — que ela passou paradentro das regiões do sono constante tranqüilo.

CAPÍTULO IVA BARGANHA

Enquanto permaneciam entre as sempre-verdes, os esquimóspolares definhavam e morriam; medravam em cima do geloperene, No inverno, eles erigiam seus iglus, de metro e meiode altura, sobre a crosta petrificada do oceano; esta crosta,devido às águas que lhe ficavam por baixo, era mais quente doque a terra firme. Na rase da primavera, eles emergiam dotorpor da longa noite escura; despiam suas vestimentas;

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raspavam a sujidade encardida, acumulada em seu corpo, ecomiam-na; acasalavam-se promiscuamente, trocando deparceiros; cantavam e dançavam, em homenagem ao dia querepontava; pescavam nos buracos abertos na neve; lanceavama foca anelada; e davam caça ao urso branco, a não ser quandoviajavam para as áreas do sul, a fim de encontrar os bandos deanimais e de recolher preciosos restos de madeira que haviamvogado ao léu no oceano liquefeito.A busca de alimento constituía a sua principal preocupação. Evisto que, onde quer que as pessoas aparecessem, a caça logose tornava escassa, os esquimós se viam forçados a evitar acompanhia humana; mudavam constantemente de zona decaça; e mantinham-se perpetuamente em mudança. Quandoeles amontoavam reservas de carne — carne que por vezeslhes sobrava generosamente — para que, depois, essa carnelhes servisse, em fases de escassez, não o faziam emconseqüência de preocupação relativamente ao dia deamanhã. Faziam-no porque nem podiam consumir aquelacarne, na hora, nem transportá-la, sentindo-se, entretanto,impacientes para mudar-se para outro lugar. Os esquimós nãose preocupavam com o futuro, como também não sepreocupavam com o passado; só pensavam no presente que,para eles, tinha sentido de perenidade.Ao passo que muitas outras tribos de esquimós foramatingidas ou influenciadas pela civilização, a dispersão dosesquimós polares — que confinavam sua existência ao ÁrticoCentral, nas proximidades do Pólo Magnético, que é regiãoexcessivamente remota e proibitiva, de modo que o homembranco não vai até ela — não lhes tinha modificado o modo

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primitivo e rústico de viver; e o seu modo de viver continuavasendo o mesmo desde o tempo em que o mundo era jovem.Eram como crianças: diretas, impiedosas e alegres. Na Idadedos Tanques, eles ainda caçavam com arco e flechas de pontade pedra; partilhavam o fruto de sua caçada; e eram tãoingénuos, tão descomplicados, que não conseguiam mentir.Até este ponto eram eles primários.Ernenek e Asiak poderiam continuar vivendo por esta forma,indefinidamente, se, por acaso, Ittimangnerk, o mercador evendedor viajante, não houvesse plantado a semente dacuriosidade em seus corações.Ittimangnerk era híbrido e mestiço — meio nativo e meioalienígena, meio caçador e meio mercador, meio peixe e meioave. As circunstâncias da vida o haviam atirado, ainda nocomeço da existência, à trilha dos homens brancos; estes oinfeccionaram com suas paixões e com a sua luta perpétuapela vida, mas não destruíram de todo o que nele havia deesquimó. Estava condenado a oscilar para sempre entre ohomem branco e o homem esquimó; a não ser feliz nem como primeiro, nem com o segundo; e a não ser amado porninguém.O outono já havia difundido a aguda luz solar do verão,tingindo o Oceano Glacial de um tom malva acinzentado,quando Ittimangnerk e sua esposa, Hiko, avistaram o iglu deErnenek. O iglu brilhava vagamente, a distância, napenumbra da noite que se aproximava.Ernenek, inteiramente despido, só conservando no corpo asmeias, e apresentando-se todo untado e lustroso de graxa,estava brincando com esse brinquedo inquebrável que era o

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pequeno Papik; puxava-o e empurrava-o, de um lado paraoutro, no chão, em meio a espinhas e a cabeças mastigadas depeixes. Deu as boas-vindas, em altas vozes, aos visitantes;trocou com eles apertos de mãos; cutucou, com um dedo, oestômago de Ittimangnerk, para verificar se ele estava comfome; ao passo que Asiak deixou os seus afazeres domésticos,a fim de preparar um pouco de chá. Ela partiu um pouco deneve de beber; colocou o pedaço em cima da lâmpada, porquetudo, fosse lá o que fosse, que os esquimós polares bebessemprecisava, primeiro, ser derretido. A seguir, Asiak retirouumas vestimentas exteriores de seus hóspedes; retirou-lhestambém as botas; e inspecionou tudo, à cata dedesalinhavamentos para remendar.Nada havia, porém, para remendar: os recém-chegadostinham, por certo, parado a pouca distância dali, e trocadosuas vestimentas de viagem por outras mais novas, antes deentrar no iglu; isto explicava por que elas se encontravamsecas, não apresentando nenhuma das marcas inconfundíveis,reveladoras das longas marchas. Hiko era mulher digna de servista. Enquanto que seu marido estava vestido quase como umhomem normal, regular, ela calçava botas macias, de pele defêmea de rena, ornadas de caudas de arminho; sua jaqueta erade delicada e vaporosa pele de raposa; e havia, em seuscabelos, contas e fitas coloridas, de tal ordem que Asiak nuncatinha visto coisa semelhante; e isto a deixou grandementeintrigada.Ittimangnerk não perdeu tempo; demonstrou logo que, senãoas suas vestimentas, pelo menos as suas maneiras eram alheiasàquela região. Não convidou os seus hospedeiros a revistar e a

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saquear os seus fardos, como mandava o costume do ÁrticoCentral; nem atacou por sua vez a despensa do iglu que ohospedava, como a tradição local permitia. Apresentava-sechocantemente ciumento de suas posses e dos seus bens; erecusou-se a receber presentes, a fim de não se sentirobrigado a coisa alguma. Estava, porém, sempre pronto aefetuar barganhas — processo que tinha aprendido doshomens brancos.Ittimangnerk não tinha lazeres para dedicar a amenidades deordem social; e também não se dava ao gosto ou ao luxo de rire comer durante toda uma quinzena, antes de expor o motivoreal de sua visita. Assim, depois de apenas algumas horas,passadas saboreando chá frio e a comer alguns dos seuspróprios peixes congelados; de algumas horas em que secontaram as mais recentes piadas obscenas, em meio atumultuosas gargalhadas, e em que ele tirou uma longa soneca— apresentou suas mercadorias: folhas de chá preto,empacotadas na bexiga seca de uma fêmea de alce; e um rolode pavio.—Você tem algumas peles de raposa? — perguntou ele,olhando ao redor.—Talvez existam algumas, ali atrás da lâmpada — disseErnenek. — Tome todas as que desejar.Ittimangnerk examinou as peles:— Alguém pode fazer uso apenas destas sete. Em troca, vocêpode ficar com um pacote de chá e com quatro comprimentosde raço, de pavio. Trata-se de nova espécie de pavio, feito dealgodão de tundra; produz uma labareda mais clara; e duramais do que as mechas usuais de musgo. Se você conservasse

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as peles limpas, e não as usasse como esfregões, alguém lhedaria mais chá e mais pavio.A isto, Ernenek quase que se arrebentou de rir. Quandovoltou a estar em condições de falar, disse:—Mas alguém não quer mais chá, nem mais pavio!—Espere. Você verá algo que irá querer — advertiuIttimangnerk.O mestiço mergulhou no túnel; e voltou logo, arrastando umembrulho oblongo. Retirou do embrulho o envoltório de pele;e então apareceu uma arma de fogo. Era um rifle militarMartini, de venerável data de fabricação; mas poderia ser doúltimo modelo, pelo menos do ponto de vista dosconhecimentos de Ernenek, que nunca tinha ouvido falar dearmas de fogo.—Você come isso? — perguntou Asiak.—Isto é uma espingarda; c a arma de fogo do homem branco— explicou Ittimangnerk, com certo ar de importância. —Com isto, até uma criança pode matar um urso grande; e,fazendo uso disto, você não precisará fazer primeiro o ursoficar doente, para dar-lhe caça depois, até quando ele ficarpronto para ser abatido. Você apenas bole nesta alavanca; e ourso vira logo de costas, sem discutir.E visto como a familiaridade de Ittimangnerk com as armasde fogo era apenas um pouco maior do que a de Ernenek, elese apoiou talvez com peso excessivo sobre o gatilho; e a coisadisparou, escurecendo a pequena moradia, devido à fumaça, efazendo estremecer a atmosfera.Durante um momento, todos se olharam uns aos outros, comoque aterrorizados por um trovão; e Papik começou a chorar.

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Depois, Ittimangnerk, tomado pelo súbito frenesi doshomens, disparou mais uma vez, mais outra vez; assim, o iglu,em seu interior, foi ficando cada vez mais escuro; e as balassilvaram ao redor, acompanhando as paredes circulares,lascando o gelo — até que o pente de balas ficou vazio.Quando a fumaça se dissipou bastante, escapando através daabertura que havia no teto em cúpula do iglu, Ernenek,atarantado, mostrou um pequeno orifício que fora feito emsua nádega, onde uma bala, ricocheteando, se havia alojado.Agora, foi Ittimangnerk que teve um instante de diversãoaloucada. Sacudiu-se todo, em cima do divã, segurando opróprio ventre; enquanto isso, sua esposa, Hiko, ecoavaobedientemente o seu divertimento; e Ernenek sorriu, emresposta, um pouco descoroçoado.Asiak, porém, não conseguiu perceber o que havia, naquilo,para rir. Com seu pequeno dedo apalpou o ferimento; extraiua bala com a ponta de sua faca de neve; e fechou o orifício,que tinha começado a sangrar mais livremente, com óleo defígado de peixe; este óleo havia sido endurecido etransformado em algo pastoso.O rosto grande de Ernenek não acusou emoção alguma,durante toda esta operação. Quando a operação ficoucompletada, ele tornou a sorrir; mas Asiak olhou, comexpressão irritada, para Ittimangnerk.— Alguém queria apenas demonstrar como esta coisafunciona — disse Ittimangnerk, pedindo desculpas. — Comoé que se poderia saber que a bala pularia para trás? Isto lhesmostra a força da espingarda. Ela mata qualquer animal, a

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grande distância, desde que você não atinja primeiro umaparede.Ernenek tomou o rifle em suas mãos; e Asiak apressou-se alançar os braços ao redor do pequeno Papik.—Não tenha medo — avisou Ittimangnerk. — As balas já seacabaram; e outras balas só podem ser conseguidas no postode comércio.—Que é que você quer por isto? — perguntou Ernenek,espiando para dentro do cano da arma.—Muitas peles de raposa, a mais do que você agora tem.Entretanto, assim que tiver reunido uma quantidadesuficiente delas, e se dispuser a ir ao posto de comércio, ohomem branco lhe dará uma arma igual a esta.—Quantas peles são necessárias?—Cinco vezes um homem, contado até o fim.Ernenek meditou sobre essa resposta, com a fronte franzida; eestremeceu. Como a contagem dos dedos dos pés e dos dedosdas mãos constituía a única base de enumeração por eleconhecida, aquilo de "cinco vezes um homem, contado até ofim" significava, para cada homem, vinte — que era o númeromais elevado conhecido ali. Cinco homens, contados até aofim, compunham quantidade que ia muito além de tudoquanto Ernenek conseguiria visualizar. Ainda assim, elepercebeu que aquilo significava muita coisa.—Alguém poderia também levar peles de boi almiscarado ede caribu — disse ele, esperançoso.—O homem branco quer somente peles de raposa. O gostodele é um pouco esquisito, mas ele sabe o que deseja. O

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cérebro do homem branco não é muito arguto; mas a cabeçadele é muito dura.Ernenek e Asiak queriam ouvir mais coisas a respeito dohomem branco, bem como das estranhezas dele; enquantoouviam, prestando ouvidos com ar concentrado, os dois iamdistribuindo postas tenras de foca que, agora, uma vezconcluídas as conversações de negócio, passaram a ser aceitas.Todos abocanharam e engoliram, estofando-se de comida e dechá, entre as narrativas, as perguntas e as respostas; de quandoem quando, Asiak colocava seus lábios em cima dos lábios dePapik, e soprava, para dentro da boca do pimpolho, carnemastigada, que o pequerrucho ruminava sujando-se todo, esalpicando o queixo de sangue coagulado.Ernenek deu um mundo de risadas com Hiko; o mesmo foifeito por Asiak com Ittimangnerk. Não admira, assim, que ocasal solitário do norte desejasse que os seus hóspedespermanecessem mais tempo, a fim de animar a monotonia danoite polar. Ittimangnerk, entretanto, era homem ocupado; e,depois de um sono de quarenta e oito horas, partiu dali, emcompanhia de Hiko, mostrando, pelo menos desta vez, quepoderia fazer uso de boas maneiras, desde que o quisesse;mostrou-o através do ato de tudo remexer furtivamente, comgrande cautela, enquanto os seus hospedeiros dormiam, e deapoderar-se da mais curtida e mais saborosa coxa de urso quehavia na casa.Talvez que isso constituísse um esforço no sentido demanifestar a sua admiração para com o maior caçador, que eraErnenek.

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A árvore da curiosidade ganhou raízes, e foi crescendo,crescendo.Embora houvesse, num iglu de inverno, abundância de coisaspara fazer, entre uma dormida e outra, ainda assim, ochamado da sereia da aventura e os mundos a descobrirfaziam com que o casal se tornasse inquieto. O que havia afazer era isto: Ernenek precisava preparar os utensílios,molhar as armas e reparar os arreios; Asiak tinha de costurarvestimentas e alimentar o pequeno Papik, que costumavamamar mesmo dormindo.Ernenek continuava maravilhando-se do magnífico barulhoproduzido pelo rifle; Asiak ficava a matutar, horas e horassem fim, sobre a vida que se deveria viver no posto decomércio; no posto a respeito do qual Hiko e Ittimangnerklhe haviam despertado a curiosidade, sem, entretanto,satisfaze-la.—O homem branco — disse ela, divertidamente — não gostade peixe congelado, nem de carne deteriorada. Estraga toda acomida, mantendo-a em cima do fogo.—Mas ele tem muitas espingardas — disse Ernenek,erguendo-se em defesa do seu irmão branco — e você nãoseria capaz de imitar o estampido de suas armas, ainda que otentasse.—Ele vive numa enorme casa de madeira, anda pegajoso decalor, e sofre o tempo todo devido ao frio.— Mas ele tem mais balas do que você tem juízo; cada balapode abater um urso, assim, batata. Ele deve comer fígado elíngua e urso a vida toda.

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Quando o dia e a primavera, juntamente com a vida, voltaramao topo do mundo, Ernenek não viu buracos de peixes nogelo; não ficou a ouvir junto aos orifícios respiradouros dasfocas; nem viajou para o sul, a fim de se encontrar com osbandos de animais que pastavam comendo o líquen que haviapor baixo da neve; e nem mesmo a visão distante de um ursoa retirar-se furtivamente por cima dos gelados camposmarinhos, ou a dançar por um iceberg abaixo, o estimulavamais. Se ele abandonava o Oceano Glacial e ia viver numatenda de peles, fazia-o apenas para realizar o que até entãotinha considerado trabalho de mulher: preparar ciladas ecavar armadilhas, por entre a vegetação anã onde com grandeesforço conseguia rastejar, depois de repontar à superfície,procedendo da parte inferior da crosta invernal. As ciladaseram preparadas com tendões, ramos e ossos; as armadilhas,com molas e alçapões, bem como com nós, à maneira deforca. Fazia, igualmente, profundas bocas-de-lobo, ondecolocava iscas formadas de bolas de graxa de óleo de baleia,ou de carne; e quando avistava uma raposa andando à solta,corria desajeitadamente atrás dela, atirando-lhe as flechas deponta de pedra.Nesse entretempo, Asiak viajava para os montes longínquosde carne em conservação, a fim de retirar, das provisõesreservadas, aquilo de que precisava; retirava as folhas quepodia cozer para fazer o seu chá; punha-se à procura depintas; ou colhia fungos que, secados ao sol, proporcionavammadeira apodrecida para o lume.No verão, enquanto caçava, ou enquanto cuidava dasarmadilhas, tanto Ernenek como Asiak dispensavam quase

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que inteiramente o sono; todavia, alimentavam-seprodigiosamente; naquele ano, alimentaram-se mais do quenunca: Ernenek, porque corria atrás de raposas, sem pouparenergias; Asiak, porque se encontrava grávida; Papik, porqueestava em fase de crescimento; e os cachorros, por nenhumarazão especial. E, embora eles comessem toda migalha dasraposas abatidas e esfoladas, as provisões de reserva foramreduzindo-se rapidamente; em conseqüência, Asiak começoua preocupar-se.— Quando chegar o inverno, não haverá muita coisa parabuscar.— Então a gente terá de comer um pouco menos —respondeu Ernenek, com amargura, como se fosse ele o únicoque teria de apertar o cinto. — Entretanto, assim quetivermos uma espingarda, será tão fácil caçar animais, quevocê se tornará duas vezes mais gorda do que o é agora.Dar caça a tão grande número de raposas não era assunto pararir. Havia abundância de caça mais fácil, como, por exemplo,focas, morsas e, a apenas um ano de distância, para o sul, boisalmiscarados e caribus. Contudo, nenhum animal era maisastuto, mais raposa, do que a própria raposa, na tarefa deevitar captura — exceto, naturalmente, o carcaju.Por vezes, a raposa apanhada fugia, deixando atrás de si umaperna. Por vezes, uma fila inteira de armadilhas era acionada,apenas por pura diabrura, por obra dos carcajus amalucados eenlouquecedores — carcajus estes que se evadiam, ilesos, masnão sem retirar a isca. Acontecia que, quando uma raposa eraapanhada pela armadilha, o carcaju, agindo como que porbrincadeira, destruía essa armadilha, reduzindo-a a pedaços;

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ou, então, levava consigo a raposa., arrastando a armadilhaatrás.Se Ernenek conseguisse, ainda que fosse uma única vez, pôr asmãos num carcaju vivo! Considere-se que ele raramentetivera a visão de uma dessas feras, pequenas, impudentes esanguinárias, que se tornavam invisíveis, a não ser quando emmovimento; eram excessivamente espertas, e não se moviam,quando havia gente ao redor; e conservavam-se, pelos modos,em atividade o dia todo, fazendo coisas pelas quais nãorecebiam recompensa alguma, além do fato de impor vexamesao homem.Contudo, pelo processo de mudar constantemente de área depreparação de armadilhas, bem como pelo de fazer alçapõesde ação mais rápida do que os movimentos de fuga do carcaju— e de percorrer e visitar todas as armadilhas antes que asraposas pudessem mastigar suas próprias pernas, ou antes queos carcajus destruíssem as mesmas armadilhas — Ernenekacabou caçando o número requerido. Por essa época, ele játinha formado a sua reserva de carne doce e adstringente deraposa; já tinha reduzido bastante os montes de carne emconservação; e quase que já tinha também liquidado com oque havia na despensa. Apesar de tudo, porém, Ernenek podiasacudir as peles diante do nariz de Asiak, toda vez que ela,com o seu alarmismo bem feminino, predizia morte pela fomee extinção completa inevitável do pequeno Papik; a extinçãode Papik seria seguida pela extinção dela mesma, e,finalmente, pela de Ernenek; este último morreria sozinho,abandonado e devorado pelo remorso.

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A esse tempo, o Sol já havia espiralado para baixo dohorizonte, nas suas férias de seis meses; e as primeiras estrelasjá estavam começando a irromper através do véuimpenetrável da noite. Ernenek desejava partir a caminho doposto de comércio, sem mais tardança. Aqui, porém, Asiak seopôs a isso, resolutamente.—Primeiro, teremos de dormir uns poucos meses, porquealguém está tornando-se meio tonta da cabeça, depois de umverão muito cansativo — disse ela.—Se partirmos dentro de uns poucos meses, não chegaremosao posto de comércio antes do começo do grande degelo. Lá, omar se degela e se derrete todos os anos. A época de se viajarpara o sul é agora.—Se o mar se derrete, esperaremos em terra firme, até que elese congele de novo. O mar sempre torna a congelar-se, vocêbem o sabe.—Sei. Mas nós perderemos tempo.—Nós temos tempo para perder.— Mas alguém não gosta de perder tempo! — disse Ernenek,com firmeza.Asiak, todavia, permaneceu inamovível; e Ernenek não sabiade recurso algum pelo qual lhe fosse possível modificar adecisão daquela mulher, fora do saco de dormir. Por isto, elefoi pescar peixes e caçar focas, na penumbra do outono; foiindiferente, olhando a toda hora, com escárnio e mau humor,para o seu arco e sua flecha.Quando o inverno se tornou escuro, impelindo parte da caçapara o sul, e forçando outra parte a enfurnar-se ou hibernar— e obrigando o próprio Ernenek a envergar sua segunda

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vestimenta exterior, feita de pele de urso, bem como a passaruma dupla camada de gordura de peixe na face, a fim de seproteger contra a mordida das frieiras — os doisabandonaram a terra inóspita e proibida; rumaram para omar, onde construíram seu pequeno iglu em cima do caloraconchegante da água. Estava-se na quadra do repouso, bemcomo das tranqüilas tarefas domésticas; e Asiak teve aesperança de que Ernenek acabaria dissipando, no sono, a suaenergia.Entretanto, ele prosseguiu resmungando nervosamente arespeito da espingarda, num cochilo espasmódico.Na calada da noite, Asiak disse, de súbito:— Prosseguir desta maneira significa perder tempo. Umamulher mal pode dormir; e, por outro lado, não consegueconcentrar o espírito em seu trabalho. Talvez que as coisas seresolvam se viajarmos para o posto de comércio. Ittimangnerkdisse que o posto fica a apenas um par de luas de distância,desde que se viaje depressa.Rápido como um acidente, Ernenek se pôs de pé; verificourédeas e arreios; apressou a desenterrar da neve o trenó, e apreparar os cães corredores; enquanto isso, Asiak se pôs areunir os utensílios domésticos e as provisões, tudo enroladoem peles de animais; não deixou nada atrás, a não ser os restosde comida no chão.Os cachorros, uma vez dissipada a tontura do sonointerrompido, começaram a combater-se uns aos outros; e oseu líder teve de agir contra eles, a fim de colocá-los em linhade formação. Ernenek matou os quatro cachorrinhos

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menores; e picou-os em pedaços bem pequenos, a fim depoder levá-los consigo, à guisa de alimento para a matilha.Ittimangnerk não poderia ter descrito mais claramente a rotaa percorrer:— Cruze a Baía da Foca de Um Olho Só; passe por entre asduas ilhas pontudas, conhecidas pela denominação deColmilhos do Diabo; acompanhe a terra à esquerda; percorraa estreita passagem denominada Canal da Língua de Urso;depois, siga a baixa unha costeira à direita. Afaste-se desselitoral, porque o povo da Hinterlândia, com todaprobabilidade, os matará e comerá, se vocês ali se detiverem;ao contrário, continue viajando por cima do oceano, atéchegar a uma longa fila de elevações. Ali, conserve os olhosabertos, à procura de aberturas de rios. O posto de comérciofica no rumo do quarto rio acima, na segunda curva, bem namargem. Não poderá deixar de encontrá-lo.Asiak e Ernenek não poderiam deixar de encontrá-lo; nemnada lhes poderia acontecer durante a jornada, porque seachavam generosamente assegurados contra as cacetadas dasorte: levavam consigo um tufo de pêlos de coelho branco,contra o aparecimento de frieiras; um rabo de arminho,contra saraivadas; uma garra de urso, contra o relâmpago; umdente de caribu, contra a fome; uma pele de lemingue, dopequeno roedor das regiões árticas, contra doenças; uma patade carcaju, contra a loucura; uma cabeça de raposa, contraartimanhas traiçoeiras; uma alca ressecada, para dar sorte napescaria; uma orelha de rena, para dar bom ouvido; umpiolho, para dar invisibilidade em presença de inimigos, vistocomo os piolhos são mestres na ocultação; um punhado de

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fuligem, para dar resistência, uma vez que a fuligem sobreviveao fogo; e um olho de foca, contra o mau-olhado e váriosespíritos hostis. Até os cães da matilha usavam amuletos. Nãoadmira, pois, que o conjunto prosseguisse suavemente em suaviagem, sem obstáculo algum, à frente de um vento favorável— o vento norte, que, durante o inverno inteiro, só de raroem raro, se tanto, abrandava.

Na medida em que a matilha se animava, sua velocidadecrescia. O frio, a despeito da sua agudeza, não conseguiaatravessar a lupla vestimenta dos viajores, nem a duplacamada de pêlos que os es tinham começado a deixar crescerno outono; mas esse mesmo frio endurecia a graxa de óleo debaleia que havia nas faces dos viajores, transformando-a emcrosta; sua respiração punha-lhes geada nas narinas e naspestanas; quando eles cuspiam, a saliva se congelava em plenoar; e, quando a saliva congelada caía no chão, tilintava. Papik,amarrado às costas da mãe, dentro do seu berço de rodízio, eprotegido pelo capuz materno, nada experimentava, afora ocalor aconchegante do corpo dela.Sempre que os viajores notavam que a geada lhes penetravano corpo, pulavam para fora do trenó, e corriam ao lado dele,até se aquecerem. Tiravam suas sonecas, durante a viagem;mas, quando a matilha acusava sinais de fadiga, Ernenekatirava a âncora ao chão; e mandava que se fizesse alto.Aproveitava as paradas para tornar a esfregar com neve oscães da matilha — ou para pescar. Como era impossíveltransportar provisões suficientes para tantas bocas, numaviagem tão demorada, fazia-se indispensável pescar alimento

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do oceano. Isto não era coisa fácil no inverno. Somente pertodos promontórios e ao redor de icebergs é que se podiamencontrar trechos em que a camada de gelo não eraexcessivamente espessa, podendo, portanto, ser perfurada;depois da perfuração, porem, requeria-se longo tempo deespera, a espiar por cima do buraco aberto; e muitos luares sepassaram, antes que Ernenek apanhasse alguns salmões da cordo Sol, ou, então, algumas trutas vermelhas como sangue.Assim que um alto foi determinado, os cães caíram em suastrilhas. Visto que não havia neve suficiente, no chão, para quenela se enterrassem e se aquecessem, os pequenos animais sereuniram num só grupo, como que enrolados, formando algoassim como uma bola bem redonda de pêlos; por essa forma,os cães ficaram com o focinho atrás das patas e com as costasvoltadas para o vento. Logo depois, já nada mais eram do queum monte imóvel; e foram necessários muitos pontapés emuitos golpes de rédeas, para os pôr de novo de pé e cheios deanimação. Perpetuamente esfomeados, os cachorros poderiamdevorar, todos os dias, uma quantidade de alimentoequivalente ao seu próprio peso, espalhando-se, comopequenos balões inflados, pelo chão. Entretanto, eramtreinados para passar sem alimentação durante três ou quatrodias, quando se achavam em viagem, e durante dez dias,quando não trabalhavam. Uma vez que nunca recebiamalimento bastante para saciar-se, nunca se tornavampreguiçosos; e trotavam ao longo da trilha inteira, com acauda erguida ao ar.Em viagem, os cães mostravam-se sempre cheios de vida eprontos para travessuras. Quando o seu dono se afastava,

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deixando o trenó sem o recurso de fixação representado pelaâncora, o cachorro-chefe era capaz de ladrar o sinal para apartida; então, a matilha inteira arrancava para a frente, atoda velocidade; e Ernene, e Asiak quase que se matavam, noesforço de alcançá-los.Durante a maior parte do tempo, o céu apresentava-se semnuvens; e eles viajavam sob um dossel rutilante, em cujacúpula se via a Estrela Norte, fulgurando, central e suprema;nessas ocasiões, o vento era fragrante, impregnado do aromada ozona. Quando a Lua se erguia, permanecia acima dohorizonte durante mais de uma semana de cada vez. A linhacosteira, de aspecto fantasmático, que os viajores tomavam ocuidado de nunca perder de vista, ficava, então, nitidamenterecortada de encontro ao céu brilhante; e os icebergs, oscabeços e as ilhas projetavam sombras de um azul profundopor cima da paisagem cor de pérola.Por vezes, os viajores conseguiam ouvir o estalidar das massasde gelo, acomodando-se no seu movimento intranquilo eperpétuo; então eles passavam a prestar o máximo de atençãoa barulhos e a obstáculos, mantendo-se prontos para deter amatilha. Muitas fendas de gelo podiam ser puladas pelos cãese transpostas pelo trenó; de uma feita, porém, encontraramuma brecha, no chão de gelo, que era excessivamente larga, enão podia ser pulada. A brecha era de formação recente,porquanto ainda se podia ouvir a água batendo de encontro àsparedes lisas de gelo, três ou quatro metros abaixo do nível dasuperfície, e fazendo pressão para subir à tona; dessa vez,tiveram de descrever um giro amplo, para contornar a brecha,antes de retomar o curso normal. Em alguns lugares, a crosta

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de gelo se havia encurvado para cima, como bolha, sob apressão de correntes submarinas; assim, formavam-se grandeselevações, através das quais era preciso encontrar as trilhas depassagem; e o avanço, então, se fazia tão difícil como sobreterra firme.Quando uma das raras saraivadas de inverno se declarou,ululando, enchendo o ar de uma poeira de gelo capaz de cegara gente, e varrendo o teto do mundo, para nele não deixarnada, nada do que se movia, e quase nada do que não semovia, os viajores detiveram-se; construíram, a toda pressa,um abrigo. Ernenek cortou os blocos de gelo, pondo-osimediatamente nos devidos lugares; Asiak ficou acertando osblocos do lado de fora, até que o pequeno abrigo ficou bemfortemente colado ao gelo do chão, com a cúpula malapontando por cima da superfície do oceano: aquilo constituíaum escudo contra as intempéries — um aconchego destinadoa conservar o calor do corpo humano.No interior do abrigo, eles comeram algum peixe congelado;mastigaram um pouco de neve; rastejaram para dentro dosseus sacos de dormir; e foram convidados a dormir, pelobarulho distante da tempestade que rugia, nas alturas, e daságuas do oceano que tumultuavam nas profundidades. Asiakera sempre a primeira a acordar, na atmosfera cinzenta que seformava depois que a lâmpada se extinguia. Em primeirolugar, ela raspava a crosta de hálito gelado que lhe recobria orosto. Depois, sem abandonar o divã de gelo, preparava o chá;tomava as roupas secas e as botas enxutas, do cabide desecagem; e começava a amaciá-las, fazendo uso de raspadorese dos próprios dentes.

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Antes que o chá se congelasse, ela acordava Ernenek.A neye, no chão, aumentava de espessura, na medida em queos viajores avançavam para o sul; a neve incomodava os cães,que não tinham recurso algum para proteger a cara contra ela;um pouco antes de chegar ao posto de comércio, os viajorespassaram a sentir tamanho calor que Ernenek se despiu até àcintura, e viajou de peito nu, ao léu daquele insuportávelcalor de cerca de uns 45 graus Fahrenheit, abaixo de zero,equivalentes a uns 25 graus centígrados, ou Celsius, tambémabaixo de zero.Pararam, pasmados, para avistar o posto do homem branco,de longe, antes de entrar na sua área. Ittimangnerk não haviaexagerado. O seu tamanho! Que beleza! Que luxo!Tratava-se da cabina de uma sala, toda feita de troncosenegrecidos pela fumaça, com duas janelas esbatidas defuligem, das quais pendiam pequenos pingentes de neve. Aolongo das paredes se viam duas linhas duplas de beliches denavio, uma por cima da outra; havia também um balcão,várias caixas e várias prateleiras, um biombo, um fogareiro e,como se tudo isso não fosse bastante, uma mesa com váriascadeiras. Tudo era feito de madeira — do mais raro e do maisvalioso dos materiais; e tudo rutilava, iluminado por umalâmpada a querosene.E a quantidade de gente que se aglomerava e se apinhava nolugar! Exatamente, um homem, contado até ao fim — onúmero redondo de vinte, como Asiak verificou, depois deuma contagem lenta e laboriosa. A contagem, porém, nãocompreendia as crianças existentes por baixo dos capuzes dasmulheres. E a fala daquela gente! Coisa fascinante, porque era

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freqüentemente impossível entendê-la; o que se falava sesalpicava de palavras estrangeiras, de modo quê, até certoponto, se fazia ininteligível para ela. Muitos homens lhesorriram, com expressão de admiração; e ela dera risadinhas,em resposta, embaraçada em face daquela novidade.Depois, o homem branco apareceu, procedendo da parte detrás do biombo.O homem branco era estranho, por muitas razões: pelo seuporte, pelo seu modo de andar, por suas mãos enormes, porsuas roupas nada práticas, e, mais do que por qualquer outracoisa, pela barba vermelha que lhe pendia do rosto magro esem sorriso. Os nativos tinham o costume de arrancar, pormeio de puxões, todos os raros pêlos que lhes cresciam noqueixo, a fim de evitar que neles se acumulasse a geada;apenas uns poucos indivíduos deixavam crescer um bigoderelutante.—Alguém esperava que ele fosse branco como a neve —murmurou Asiak, desapontada — depois de toda aquelaconversa a respeito de o homem branco ser branco.Entretanto, ele é mais escuro do que nós, desde que raspemosa crosta de graxa do nosso rosto.—Aconteceu — disse Ernenek, dirigindo-se ao homembranco, não tomando conhecimento da tagarelice de suaesposa, e passando logo a tratar de negócios — que alguém,enviado por Ittimangnerk, trouxe consigo umas poucas pelesde raposa.E ficou à espera, cheio de esperança.O homem branco, porém, não deu sinal algum decompreender. E chamou:

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— Undik!E um esquimó, já de cabelos grisalhos e rosto tão enrugadocomo uma geleira, ostentando bigode que lhe dava aspecto demorsa, e que lhe pendia perpendicularmente pelo queixoabaixo, aproximou-se, bamboleando como um urso sobre suaspernas curvas. Calçava botas nativas e vestia calças que faziamparte dos costumes locais; mas envergava jaqueta estrangeira,de couro, por cima de uma camisa de lã, xadrezada.— Que é que o traz aqui? — indagou ele. — O homembranco não fala a língua dos homens.Ernenek e Asiak trocaram um olhar e romperam numatorrente de risadas. Depois de algum tempo passado assim, ohomem branco bateu o pé no chão; e Undik indagou,impaciente:— Que é que você quer? Parece que citou o nome deIttimangnerk.Ernenek reprimiu a gargalhada e esclareceu a razão de suavisita.— Traga suas peles — disse Undik. — Ele dará uma olhadanelas.Toda a gente se aglomerou, quando Ernenek abriu seus fardose espalhou as peles ensangüentadas no chão. O homembranco inspecionou-as, uma por uma, com um enrugamentoda fronte e rosto sério. Por fim, disse, dirigindo-se a Undik,com ar grave:— Ele diz que essas peles não são bem as que desejava —traduziu Undik — mas deixará que você, mesmo assim, leveuma espingarda.

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Undik foi para o lado de trás do biombo, e de lá voltou comuma espingarda antiga, a avó daquela que Ittimangnerk lhehavia tão eficazmente demonstrado no iglu; e entregou-a aErnenek.— Se você quiser balas, terá que trazer mais peles. Há umabala na espingarda, para mostrar que ela funciona. Mas vocêprecisa levá-la para fora daqui, se quiser prová-la.Da porta de entrada do estabelecimento, Ernenek deflagrouum tiro para dentro da noite; e voltou-se, radiante:—Esta faz ainda mais barulho do que a outra — disse ele aAsiak, enquanto o vento soprava para o interior do posto decomércio a fumaça da pólvora queimada. Depois, Ernenekvoltou-se para Undik:—Diga ao homem branco que, se ele quiser rir com a esposade alguém, será bem-vindo da parte dela.Ele olhou para Asiak, que ruborizou e deu algumasrisadinhas.— Não, não — disse Undik — ele não gosta de rir com asmulheres dos homens; e também não permite que nenhumaoutra pessoa ria em sua presença. Desta forma, trate de tomarcuidado.Ernenek e Asiak mostraram-se perturbados, confusos emortificados; e Undik acrescentou, para suavizar:— Vocês poderão descansar aqui, se estiverem cansados.Eles estavam cansados, mas não com disposição para repousar.Naquela casa, fabulosa para eles, aconteciam coisasexcessivamente numerosas; e não queriam perder nada do queali se passasse. O pequeno Papik também era todo olhos eouvidos; mas era tímido, e apegava-se as calças de sua mãe.

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O povo, naquele lugar, comia comidas estranhas, retiradas delatas de folha de zinco, e aquecidas em cima de fogões; essemesmo povo bebia chá extremamente quente — fumegante.Não somente os seus costumes relacionados com o comer ebeber, mas também tudo o mais que aqueles indivíduostinham, ou faziam, ou diziam, era de deixar a gente intrigada.Possuíam facas de metal reluzente, que cortavam carne comose cortassem graxa; a vantagem disto era obvia; mas os jogosde cartas que eles jogavam, bem como todos os outros itens ehábitos que tinham adquirido do homem branco,permaneceram constituindo mistérios para os dois esquimóspolares.Todos os homens, ali, se revezavam uns aos outros, no esforçode iluminar o casal acaipirado que procedera do norte;procediam a longas e complexas explicações, para lhes ensinarquais eram os princípios do comércio, bem como para lhesesclarecer o que era uma venda, uma compra e uma barganha.Alguns dos indivíduos que se achavam no posto de comércioestavam bebendo um líquido marrom, retirado de garrafas devidro; e como era aquela a primeira vez que Ernenek viavidro, ele apalpou a garrafa; em conseqüência, o seu donosorriu e perguntou:— Quer você prová-la?Se Ernenek houvesse tomado apenas um golezinho, e nãouma valente talagada de imediato, aquilo o teria golpeadomenos duramente; nesse caso, porém, ele não seria Ernenek.Sabido era que conseguia engolir espinhas de peixe, semsofrer dano algum; mas o gole procedente daquela garrafa oatingiu fundamente, como se se tratasse de uma lança atirada

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contra a sua garganta. Sentiu-se sufocado; tossiu; cuspiu; suaface se fez de cor carmesim; e seus olhos se encheram de água;enquanto isso, o posto de comércio, a cabina em que o postose achava instalado, estremecia de gargalhadas. Quando asrisadas cessaram, Ernenek presumiu que uma brincadeirahavia sido feita com ele; por isto, também tentou rir, muitoembora considerasse aquilo uma brincadeira de mau gosto.—Você ainda se acostumará a isto — disse o dono da garrafa.— Isto se chama água-de-fogo. Não tem gosto agradável; masconserva a gente aquecida.—Alguém já está excessivamente aquecido — escarneceuErnenek, começando a livrar-se das próprias vestimentas.Aqui, porém, Undik pôs uma mão comedidora sobre seuombro.— O homem branco não aprova gente despida.Ernenek olhou ao redor, atônito. Aquilo não lhe haviaocorrido antes; a verdade, contudo, é que toda gente seencontrava completamente vestida, embora o ambienteestivesse a explodir de calor.No sul, o inverno era a estação do ano preferida para viajar evisitar amigos; e isto porque, ali, o grande degelo restringia arealização de grandes jornadas; os caçadores e osarmadilheiros, juntamente com as respectivas esposas,desejavam tirar o maior proveito possível da própria presençano posto de comércio. Cavaqueando, comendo e bebendo,todos os presentes prosseguiram ali, durante algum tempo, atéque o homem branco se retirou por trás do biombo, e Undikanunciou que era tempo de se apagarem as luzes.

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Ernenek e Asiak foram convidados a experimentar osbeliches. Asiak aceitou o convite; Ernenek, porém,desconfiado de novas brincadeiras, achou mais seguro deitar-se no chão, ao lado de outros homens deixados sem beliches.As faíscas do fogão esbraseado eram as únicas coisas visíveisna escuridão. Alguns dos homens continuaram falando denegócios e de compras, durante algum tempo, antes de sejuntar ao coro dos roncadores.Lá fora, o vento norte ululava, e a cabina estralejava em suaestrutura.

Asiak estava perfeitamente acordada. O ar mantinha-se sufo-cante, devido ao calor, bem como aos cheiros, para ela nãofamiliares, do querosene, do carvão, do tabaco e dos alimentoscozidos; ademais, ela encontrava-se entontecida pelavertiginosa variedade das experiências. Apertou Papik aopeito, e cheirou-o, sentindo-se completamente alheia, nummundo alheio.—Ernenek — chamou ela — você está acordado?—Estou — respondeu Ernenek, lá do chão.—Há algo que não está certo.—O que é?—Alguma coisa está errada, em relação ao homem branco.Por que é que ele não sabe que um iglu pequeno é mais rápidode ser construído e mais fácil de se manter aquecido, do queuma casa enorme? Ele é obrigado a caminhar até onde estãoas coisas de que precisa, ao invés de lhe bastar apenas, para teressas coisas, o ato de estender a mão; outras vezes, ele nemsequer encontra o que procura, a despeito da luz fulgurante.

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Pode ele ter grande quantidade de espingardas; mas alguémduvida que as espingardas valham alguma coisa para matar acaça; se assim não fosse, por que motivo deveria ele comeraquelas coisas malcheirosas que retira de latas de ferro? E porque é que ele bebe água-de-fogo, que queima a garganta dagente? E por que é que ele não permite que a gente tire asroupas, quando faz excesso de calor? E por que é que nuncasorri? E por que é que ele não ri com as mulheres dos homens,e se opõe até contra o fato de os outros rirem?—Que é que você quer significar com toda essa conversa? —disse Ernenek, irritado, a fim de pôr em evidência a suaautoridade. — Uma mulher fazendo barulho!—Sim. Desculpe a uma tola mulher o fato de falar diante detantos homens; mas ela pensa que, se o homem branco éestúpido, a gente não deveria aceitar tantos presentes da partedele; e, se ele é maluco, a gente não deveria ter nada que vercom ele, porque a loucura é contagiosa. Parece aconselhávelabandonar este lugar, e nunca mais voltar.—Mas será necessário voltar, para trazer as peles e obter asbalas.A esta altura, todos os roncos tinham cessado; e todos oshomens estavam ouvindo, com grande deleite._ Bem, então — disse Asiak, tomando una resolução súbita epulando fora do beliche — você pode obter as suas balas, euma mulher tratará de obter novo marido.Ela tropeçou na mobília, no escuro, e pisou no nariz de algumindivíduo. Isto não poderia acontecer num iglu, pensou ela,procurando localizar sua vestimenta exterior. Encontrou-a,

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não sem dificuldade; envergou-a; e abriu a porta, deixandoentrar uma lufada gélida.— Uma mulher sem valor está procurando um novo marido— anunciou ela, à sala toda. — Uma mulher estúpida, feia evelha, mas, por vezes, com muita sorte na tarefa de descarnare de curtir couros; uma mulher que sabe trabalhar na costura,com pequenos pontos, e que faz finos trabalhos de agulha;uma mulher que faz todas as outras pequenas coisas queproporcionam conforto a um homem. Entretanto, o novomarido devera ser bom fornecedor de provisões; porque amulher em questão tem um filho às suas costas, mais outroem seu ventre.Dito isto, ela deu uma volta, e caminhou desajeitadamentepara dentro da noite.Uma lâmpada de pedra-sabão, dada por Ernenek aos pais deAsiak, fora suficiente para chancelar o seu casamento; e umalâmpada de pedra-sabão, na cabeça do seu marido, deveria sersuficiente para quebrar aquilo — sendo que "aquilo" poderiasignificar a cabeça, a lâmpada ou o casamento.O céu estava encoberto, e ela teve dificuldade em encontrar amatilha, entre as muitas matilhas que se achavam como queenoveladas em cima da neve. Curvando-se contra a ventania,e oscilando ao sabor das lufadas, Asiak começou a preparar otrenó.Partindo da cabina do posto de comércio, um homem aalcançou na escuridão.— Alguém pode ficar em companhia de uma mulher —gritou ele, emitindo a voz contra o vento. — Desde que aminha esposa desapareceu numa fenda do chão de gelo,

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descobri que uma mulher é tão necessária como uma matilhade cães. Não me importo de nunca mais voltar ao posto decomércio.- Você é bom caçador? — perguntou Asiak, procurando atra-vessar a noite com o olhar; ele não era lá um vulto muito bemdelineado nas trevas. — Você tem ainda todos os seus dentes?O estranho riu de boca fechada e bochechas um tanto cheias:— Eu sou um caçador tão bom, que não somente possuo umaespingarda — e a exibiu diante do nariz de Asiak — mastambém possuo balas que bastam para uma vida inteira. E,ademais, tenho todos os meus dentes, menos dois.Algum outro indivíduo estava aproximando-se. Asiakreconheceu Ernenek, seja pelo andar gingado, seja pelacorpulência volumosa; e respondeu, erguendo bastante a voz:— Eu irei com você, se se apressar. Ernenek, a essa altura, jáos havia alcançado:— Vá embora — regougou ele, para o estranho, queregougou em resposta:— Você ouviu a mulher falar. Saia do meu caminho, homem!Ernenek fora incapaz de encontrar sua faca de cortar neve, naescuridão da cabina do posto de comércio; estava, por isto,desarmado; em conseqüência, aproximou-se de punhoscerrados.O estranho sorriu de boca fechada. Pôs a espingarda como sefosse para fazer uso dela à maneira de lança; colocou o canoda arma contra o peito de Ernenek; e deflagrou o tiro.A maior parte do valor daquela arma residia na cortina defumaça que fazia. Depois que a ventania dissipou a cortina defumaça assim formada, Asiak viu Ernenek esparramado no

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chão de neve; por sua vez, o estranho estava como quedobrado sobre si mesmo, devido ao soco para trás dado pelaespingarda; e apertava o próprio estômago.O impulso da fúria apoderou-se da mulher. Ela agarrou aespingarda que o homem tinha deixado cair ao chão; com ela,vibrou valente pancada em sua cabeça vezes e vezes seguidas.A espingarda quebrou primeiro, a coronha voou pelos ares,em pedaços; e o estranho trotejou dali para longe,choramingando.Depois, ela se ajoelhou junto de Ernenek.Um feixe de luz bateu, procedendo da cabina do posto decomércio; e todas as matilhas, acordadas pelo tiro, latiram,ulularam, uivaram e ganiram. O homem branco, seguidopelos esquimós, correu, blasfemando, para a cena; apareceuportando uma lâmpada de furacão, que se sacudia toda,enquanto ele corria. O tiro tinha queimado um furo najaqueta de couro de Ernenek; e a bala detivera-se, depois depenetrar fundo na clavícula. Desta vez ele se contorceu eresmungou, quando Asiak lhe apalpou o ferimento com aponta de sua faca de cortar neve.— Uma vez que você ainda é capaz de mover o braço,podemos deixar a bala onde ela está. Pelo menos —acrescentou ela — daqui por diante, você poderá dizersempre que possui uma bala.Ernenek pôs-se de pé, um pouco estonteado, a sorriracarneiradamente.— Vamo-nos embora — disse Asiak. — Por favor, apanhe avestimenta exterior dele.

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— Este é Ernenek — disse Ernenek — e não o homem comquem você deseja ir-se embora.Asiak encolheu os ombros, dizendo:— O outro fugiu; e um é tão mau como o outro.Houve gritos de alegria, sorrisos e gargalhadas, que partiramdo círculo dos espectadores, à vista da pequena famíliaempoleirada no topo dos fardos. Nem mesmo o homembranco pôde deixar de rir; e Undik bateu uma palmadinha noombro de Ernenek, dizendo:— Volte para a terra a que você pertence, homem, e fiquepor lá. Depois, Undik e os outros se voltaram, afastando-sedali.Os cães da matilha puxaram; o trenó pôs-se em movimento,com um solavanco que fez com que os viajores cambaleassem.Mas o trenó ainda não havia percorrido uma distância muitogrande, quando Ernenek ordenou alto.—Está acontecendo que alguém esqueceu a sua espingarda —disse ele, coçando a cabeça.—Uma mulher desgraciosa quebrou a espingarda do estranhobatendo na cabeça dele; então, ela disse a Undik que lhe dessea sua. Se, entretanto, tivermos de comer carne de raposa,outra vez, durante todo um verão, a fim de comprar outraespingarda, então será melhor você ir buscá-la de volta agoramesmo.Ernenek ponderou sobre o caso; a seguir, sacudiu a cabeça:—A espingarda não presta. Não se pode matar nada com ela.—Uma mulher estúpida vinha sabendo disso o tempo todo.Agora, tratemos de pôr alguma distância entre nós e o posto

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de comercio; depois, pararemos e construiremos um iglu. Nãodormimos sequer uma semana durante o inverno todo.—Nós nos livramos das nossas peles de raposa, mas nãoconseguimos possuir uma espingarda. . . Que grande negóciofoi este! — chasqueou Ernenek.— Aquilo foi uma barganha — disse Asiak, pensativa.Ernenek gritou e fez estalar o chicote; os cachorros latiram epuxaram, abrindo as fileiras em leque, ofegando, ganindo esoprando golfadas nervosas de vapor pelas narinas.

CAPÍTULO VHOMEM BRANCO EM TERRA BRANCA

O contato que tinham tido com o homem branco fora tãofugaz, que, por vezes, Ernenek e Asiak duvidavam de que talcontato houvesse ocorrido em algum lugar, a não ser em suaimaginação. Mas eles não se preocuparam indevidamente a talpropósito. Não por enquanto. Ernenek andava ocupado com acaça, e Asiak com os assuntos de família.Recordando-se de que a amamentação ao seio, inibindo amenstruação, pode conservar a mulher infecunda por muitotempo depois do parto, Asiak estava disposta a dar de mamarao seu filho, por muitos anos vindouros, como, aliás, faziamtodas as mulheres com as quais ela se havia encontrado; e istoporque a vida que elas viviam tornava extremamenteincômoda a gravidez, e, assim, impedia a formação de grandesfamílias. Contudo, antes de Papik completar três anos deidade, Asiak se viu compelida a desmamá-lo. A razão foi a de

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que, na sua ânsia de comer carne, o pirralho passou a ferir-lheo seio com os seus dentes pequenos e agudos.Pouco tempo depois da visita ao posto de comércio, Asiak pôsno mundo uma menina, a quem deu o nome de Ivaloo. A essetempo, Papik já se havia desenvolvido consideravelmente;fizera-se corpulento e robusto. Um verdadeiro pequenohomem, que dava sinais de vir a ser, algum dia, um valentecaçador. E como poderia ser de outro modo, com ummeninote que andava com o seu ressecado cordão umbilicalpor dentro das roupas? Com tal meninote que, com os seusprimeiros dentinhos, fora induzido a comer uma cabeça decachorro, a fim de que a sua própria cabeça pudesse cresceresclarecida e bem forte? Com um meninote que, em seupunho, carregava o pênis de uma foca selvagem, que lheassegurava a futura habilidade como caçador de focas, aopasso que os pedaços de pele de urso, que havia em suascalças, garantiam a sua formação na qualidade de valorosocaçador de ursos?E Papik estava destinado a precisar de todos os amuletos etalismãs de que pudesse lançar mão, agora que um novoperigo estava aumentando os perigos do norte.O novo perigo tinha a denominação de homem branco.Quando Ivaloo fez dois anos, um grupo de exploradorespenetrou tão longe, para o norte, bem além do Círculo Ártico,que chegou a tocar na unha de caça que mais ao sul ficavapara os esquimós polares. Ernenek e Asiak avistaram oacampamento do homem branco na primavera; e nãopuderam resistir à tentação de visitá-lo.

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A expedição dos exploradores compunha-se de oito homensbrancos, com a companhia de mais esquimós do que umhomem contado até ao fim. Também desconcertante era onúmero dos seus trenós, bem como das suas matilhas de cães:dezenove trenós e inúmeros cachorros — muito mais do queErnenek e Asiak poderiam contar.Os esquimós procediam de tribos sulinas distantes, quetambém se denominavam homens, embora Ernenek não osdenominasse assim Tais esquimós pareciam tão amalucadoscomo carcajus: comiam as comidas do homem branco;macaqueavam os hábitos dos homens brancos. Os homensbrancos acreditavam que aqueles esquimós os poderiam guiarao longo de vastas distâncias, por cima da terra gelada; masErnenek sabia muito mais do que isso. Ao que se lheafigurava, os esquimós do sul não sabiam muita coisa mais doque o homem branco — e o que o homem branco sabia nãoera grande coisa; por vezes, os esquimós do sul sabiam aindamenos do que o pouco sabido pelo homem branco.Quando Ernenek começou a esgaravatar no interior das caixasdos exploradores, um daqueles homens lhe bateu nos dedoscom um bastão; e isto fez com que Ernenek se acolhesse,resmungando, a um canto. Quando, mais tarde, osexploradores lhe ofereceram um pouco de aguardente —água-de-fogo — ele ficou sabendo que aquela gente toda eradecididamente hostil; e então resolveu abandonar o lugar.Teria sido melhor se houvesse abandonado o lugar. Todavia,Asiak sentia-se cansada; o tempo estava proibitivo; e então osdois decidiram construir um iglu, e ali deitar-se para umasoneca.

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Asiak acordou Ernenek, com uma notícia jubilosa:— Temos um hóspede!Um dos homens brancos, rapaz mal nutrido, com cara delemingue e ombros caídos, acabava de engatinhar para dentrodo iglu, e estava sacudindo a neve de suas roupas. O frio tinhafeito com que seu rosto se tornasse azul, o nariz vermelho, eas orelhas todas tomadas por frieiras. Ernenek, sentindo-sehonrado com o fato, mostrou-se satisfeito e sorriu para ele.O visitante agachou-se no beliche, e pôs-se a olhar ao redor,com evidente curiosidade. Quando, porém, descobriu quetinha sentado nas dejeções dos filhotes de cachorros,mostrou-se bastante aborrecido. Asiak limpou-o com umapele de raposa; fez isso rindo; e disse:— Trata-se apenas de sujidade.Não obstante, o homem branco procurou, caprichosamente,um pequeno lugar limpo, antes de se sentar de novo; depois,puxou para fora uma tabuinha e um lápis; e começou arabiscar, enquanto as crianças o contemplavam, de boca semi-aberta e olhos arregalados. De tempos a tempos, o homembranco apanhava o lápis e a seguir traçava algumas linhas nasua tabuinha. Ernenek e Asiak ficaram-se a espiar, por cimado ombro daquele visitante, o que ele ia rabiscando. Eleriscava desenhos, bastante acurados, tanto do iglu como doque ele continha. Contudo, a expressão de sofrimento nuncalhe saía do semblante.Quando Ernenek empurrou por baixo do seu nariz um pedaçodeteriorado de fígado, ele não estalou — como qualquerhomem bem educado teria estalado — a língua; nem lambeuos lábios; ao contrário: sacudiu a cabeça para longe daquilo,

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como se fosse para recusar a iguaria oferecida; e seu rosto searreganhou numa careta de desgosto, em presença dooferecimento seguinte, que Ernenek lhe fez: um lindo pedaçode miolo, de mais de um ano de envelhecimento, a formigarde bichinhos.O bom humor de Ernenek ia dissipando-se.— Será que o homem branco deseja insultar-nos? —perguntou ele a Asiak.—Talvez ele esteja habituado a comidas diferentes.—Talvez ele tenha deixado longe, atrás de si, as boasmaneiras.— Agora, lembre-se de que ele é nosso hóspede; por isto, nãose transforme em urso, nem lhe quebre alguns dos ossos —advertiu Asiak. — Ficaríamos desmoralizados se você fizesseisso.Ernenek fez uma última tentativa, utilizando-se de umasaborosa iguaria que tinha reservado para si próprio: umamistura totalmente mastigada de olhos de caribus, de dejeçãode ptármiga, lodo de mergulhão e cérebro fermentado deurso; mas também isto de nada valeu.—Mas então, por que é que ele entrou no nosso iglu, se nãoaprecia as nossas comidas? — gritou Ernenek, enquanto osangue lhe afluía às faces.—Talvez ele não esteja com fome. Talvez queira apenas rirem companhia de uma mulher sem valor.—Lembra-se do homem branco, no posto de comércio?Ele não quis rir.—Alguns querem, alguns não querem. Andei perguntando,em meio a outras mulheres; e parece que alguns homens

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brancos gostam muito de rir em companhia das mulheres doshomens. Eles até lhes dão belos presentes, depois. Dão ospresentes também aos maridos delas.— Talvez seja isso o que ele quer — disse Ernenek, como queiluminando outra vez o próprio rosto. — Faça-se entãobonita.Dando risadinhas à socapa, Asiak desatou os cabelos,deixando-os cair pelos ombros abaixo; arregaçou as mangas; emergulhou os braços na lata de urina; depois, passou os dedospor entre os cabelos, até que estes ficaram íisos e brilhantes.Espelhando-se na lata, ela, com o emprego de uma espinha depeixe, penteou os cabelos, rearranjando-os por uma formadiversa da anterior. A seguir, apanhou uma mancheia degraxa de óleo de baleia, daquela que se encontrava nalâmpada, onde se apresentava já quase derretida, devido aocalor da labareda; esfregou-a no rosto, e sentou-se no beliche,ao lado do homem branco; este, aliás, lhe havia acompanhadoos movimentos esquisitos, com olhar bastante curioso.Quando ela se sentou ali, ele recuou, com expressão deespanto no rosto; e ela avançou para ele, oferecendo-se,sorridente e ruborizada.— Não faça cerimônias — disse Ernenek, sorrindo, aohomem branco. — Um marido está levando as crianças, a fimde que elas dêem um breve passeio.Depois, lembrando-se de que o hóspede não conhecia alinguagem dos homens, fez um sinal, com as mãos,significando que iria sair dali.A isto, o homem branco atirou-se ao chão, procurando fugir àinvestida. Ernenek, porém, com os olhos em brasa, agarrou-o

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pela parte do assento das calças, no momento em que eletentava esgueirar-se pelo túnel de saída do iglu; e atirou-o denovo ao beliche, onde Asiak, extremamente mortificada,rompeu em lágrimas.— Filho de uma cadela sem cauda, e de uma morsa semdentes! — trovejou Ernenek, dirigindo-se ao hóspederenitente. — Como é que você ousa insultar um homem?Agarrou-o e ergueu-o outra vez; depois, bateu-orepetidamente de encontro à parede de gelo do iglu, ate que acabeça do explorador ficou bamba, e que o seu crânioproduziu um barulho lúgubre, ao dar naquela parede; naúltima pancada, a cabeça produziu uma grande mancha desangue no gelo; somente então é que Ernenek o largou,deixando-o cair ao chão; e disse:— Que isto lhe sirva de lição!O homem branco não iria nunca mais insultar a esposa deninguém. O homem branco estava morto. Sangue esubstância cerebral escorriam do seu crânio fraturado,manchando as peles.— Agora, veja o que foi que você fez — disse Asiak, aindachoramingando, ao mesmo tempo em que as crianças,chorando e gritando, se agarravam às suas calças.—Alguém não teve a intenção de matá-lo — disse Ernenek,abrindo os braços desconsoladamente.—Agora, porém, os companheiros dele ficarão zangadosconosco. Talvez eles nos expulsem daqui.Ernenek ficou meditando durante algum tempo:—Se nós formos embora, eles não nos poderão expulsar.

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—Então, tratemos de ir embora imediatamente. E, visto queninguém sabe que espécie de devastação o espírito de umhomem branco é capaz de infligir, não se esqueça de comerum pedaço de fígado dele; corte-lhe, ademais, um dedo do pée um da mão; e ponha-os na boca, para aplacar-lhe a sombra.—Você pensa que eu não sei como devo comportar-me? —gritou Ernenek, zangado.E, enquanto ele começou a pôr em prática o cerimonial doassassino, de acordo com o costume venerado, Asiakapressou-se a cobrir todos os recipientes que continhamlíquidos, ou alimentos — antes que o fantasma do mortopudesse contaminá-los.Depois de atrelada a matilha e de carregado o trenó, um doshomens brancos apareceu por ali, a fim de observar; eErnenek sorriu para ele, nervoso; mas os esquimós nãotomaram conhecimento da sua partida. Assim, Asiak eErnenek levantaram a âncora e partiram de volta às suasregiões, onde estariam a salvo de insultos da parte dos homensbrancos.Ou foi isso o que eles pensaram.Os homens brancos alcançaram Emenek em meados do verão.Com a mandíbula de um tubarão, ele serrara um quadrado nochão de gelo, que dava para a superfície das águas do mar enão degelava nunca; e, ajoelhando-se por trás de um pára-vento formado por blocos de neve, ficara espiando comtamanha concentração para dentro das águas verde-escuras, àespera de peixes, que deixara de notar os dois homens que sehaviam aproximado dele com armas de fogo apontadas; os

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dois aproximaram-se até que acusaram a sua presençaralando:— Ernenek, ponha-se de pé! — gritou-lhe o homem maisvelho. Este era alto, com olhos de um azul aguado, e rostoamarelado. O outro, mais moço, era mais robusto, decompleição sadia e faces brilhantes. Os dois recém-chegadostinham barba.Ernenek pulou, pondo-se de pé. Não se mostrava, de formanenhuma, visivelmente preocupado por causa dos fuzis; e oseu rosto enorme se derramou num sorriso que lhe reduziu osolhos a duas estreitas frestas trêmulas.— Quem é que jamais ouviu falar de homens a viajar poruma área situada tão ao norte como esta?—Nós percorremos a distância toda, por sua causa, somentepor sua causa — disse, com severidade, o homem alto; falouem língua esquimó, de certo modo.—Verdade? — exclamou Ernenek; e o seu rosto sangüíneocomo que se iluminou de alegria. — Nunca vi você, antesdeste momento; mas bem me lembro de ter visto esse outro,no grupo dos homens brancos exploradores, há coisa de umaspoucas luas.—Exato — concordou, com solenidade, o homem mais moço.—Eu os guiarei até onde quiserem que guie; primeiro, porém,preciso ir buscar meus amuletos de viagem lá na minha tenda,que ica no interior, bem perto daqui, e onde vocês serão meushóspedes. Depois, nós poderemos também fazer uso do meutrenó, que está com minha mulher; ela está tratando dasarmadilhas.

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— Você virá conosco imediatamente — disse-lhe o homemalto.— Nós temos o nosso próprio trenó, que deixamos atrás dailha, quando o avistamos; se assim não fizéssemos, vocêpoderia desaparecer subitamente, ao certificar-se da nossaaproximação.—Mas por que razão desejaria alguém desaparecer?—Você matou um homem branco, Ernenek; e mutilou-lhe ocadáver, horrivelmente; agora, pois, você terá de responderpor isso— sublinhou o homem mais moço, à sua maneira grave eponderosa.Ernenek riu.—Posso responder-lhe agora mesmo. Não somente eu estavacom a razão, como também ele estava errado!—Você explicará isso àqueles que irão julgá-lo — disse ohomem alto.Ernenek franziu a testa:—São eles parentes do homem morto?—Não. O que há é que qualquer indivíduo que mata umhomem branco recebe julgamento justo; depois disto, eamarrado ao topo de uma árvore, com uma corda ao redor dopescoço, até que morra.Os dois homens brancos falavam execravelmente a língua doshomens; e esta deveria ser a razão, pensou Ernenek, pela qualnão percebiam o que ele tencionava dizer.—Eu estava certo, quando o matei — repetiu Ernenek, compaciência. — Ele insultou abominavelmente a minha mulher.

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—Poupe suas falas. Nós temos boa matilha de cães, que noslevará ao lugar do seu julgamento; o julgamento deverá dar-seem qualquer dia, lá pelo fim do próximo inverno. Então, vocêpoderá falar durante algum tempo, antes de ser enforcado.—Alguém não acredita que vocês queiram matá-lo —declarou krnenek, tomando a sorrir. — Seria tolice levar umhomem para uma viagem tão longa, durante a qual ele poderácausar-lhes aborrecimentos, ao invés de matá-lo agoramesmo; e vocês não são bobos; ou será que são?— Estas são as nossas normas de ação — disse o homem alto,com o propósito de pôr ponto final à discussão.Ele tinha ouvido isso antes; Ernenek tinha ouvido que sepresumia que todos eram obrigados a obedecer às normas doshomens brancos, sendo que estes não reconheciam as normasde ação de ninguém. Ernenek não refletiu se isto estava certoou errado. Apenas ficou a meditar sobre se eles, aqueleshomens que ali se encontravam, poderiam retirar-se dali,levando-o. Levando a ele, Ernenek.Enquanto os homens brancos fossem dois, e enquantotivessem espingardas, poderiam.O homem mais moço apanhou a faca de cortar neve, queErnenek havia preparado laboriosamente, fazendo-a de osso;apanhou também a serra, a machadinha de sílex, a talhadeirade gelo e a lança; e atirou aquilo tudo no buraco de pesca.Destruir ferramentas que proporcionavam alimentos e abrigo,e que eram tão difíceis de fazer, constituía pecado; e isto erauma das coisas em torno das quais Ernenek tinha absolutacerteza. Ernenek, por isto, começou a dar voltas ao cérebro,num esforço enorme; mas não conseguia pensar em coisa

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nenhuma que fosse maior, nem mais importante, do que asduas espingardas que o ladeavam.A neve fresca formava uma camada de cerca de quinzecentímetros de espessura no Oceano Glacial; e, emconseqüência, o progresso da viagem era lento. A Unha dacosta, o horizonte e as ilhas cônicas, bem como os icebergsque emergiam dos campos marinhos, estavam parcialmenteapagados pela névoa de verão — névoa esta que se erguia emmeio a uma luz solar de tom aguado. Nem um fio devegetação se tornava visível, fosse lá onde fosse.O trenó dos homens brancos, pesadamente carregado, todoconstruído de madeira, com guarnições de metal reluzente,que não precisava de congelamento, nem de esfregação comneve, estava ancorado atrás da ilha. O homem alto era quemguiava o trenó. Ernenek, sentado em cima de uma caixa, entreos dois homens brancos, procedeu a uma consideração críticada matilha em ação: dezessete cães, enrijecidos por durotrabalho na trilha, e respondendo a ordens de comando dadasna língua dos esquimós. Os cães não estavam atrelados aotrenó por meio de arreios individuais para cada animal; osarreios individuais permitem que os cães se espalhem emleque; atrelados, por meio de um arreio só para todos, os cãesse mantêm em linha, disciplinadamente. Isto era convenientepara se viajar através de regiões dotadas de vegetação; mas umúnico cachorro que falhasse afetaria a matilha toda. Como eranatural, os homens brancos não sabiam como é que se viajano Oceano Glacial.Não obstante, de início o conjunto viajou rapidamente, sob oSol que nunca se põe. De uma feita, uma família de focas,

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aquecendo-se à superfície do gelo, à luz cálida do dia, olhou,surpresa e ingênua, para a procissão que passava; e, antes queos membros daquela família pudessem mergulhar nos seusburacos, para garantia de suas vidas, um par deles foiprostrado, silvando e espadanando no próprio sangue, àdeflagração de tiros de espingarda.A boca de Ernenek fez água, à vista de toda aquela carnefresca abandonada à beira da trilha, só porque os homensbrancos repudiavam o que era melhor. Quando o trenó sedeteve e os viajores fincaram sua tenda de pano, foi oalimento que os homens brancos lhe deram — feijõesretirados de latas, aquecidos à labareda de um fogareiroPrimus — que deprimiu Ernenek; deprimiu-o muito mais doque qualquer outra coisa; os únicos vegetais que ele toleravaeram os encontrados no estômago do boi almiscarado.Ernenek pediu um pouco de carne congelada de peixe, comoque orvalhada de neve, que estava sendo proporcionada aoscães da matilha; mastigou peixes, com cabeça e espinhas,enquanto a neve ia estalidando, esmagada entre os seusdentes; só então é que se sentiu de todo contente.Até que os homens brancos prepararam os próprios sacos dedormir.Foi aqui que eles cometeram o seu mais grave abuso:acorrentaram Ernenek, como se fora um cão. Puseram-lheuma corrente ao redor das mãos, e uma corda ao redor dospés; depois, beatifica-mente, caíram no sono.

Quando eles acordaram, Ernenek estava furioso. O fato de eleser desacorrentado logo após não lhe melhorou o humor. Não

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se incomodava de não ter dormido, porque, no verão, podiapassar semanas a fio sem dormir; mas o insulto, a injustiçarepresentada por tudo aquilo, era demasiado grande, aos seusolhos; e ele achou que alguma coisa precisava ser feita a talpropósito.Enquanto o homem mais moço estava amarrando as caixaspor meio de correias, e o homem mais velho, depois de pôr àscostas a espingarda, passando a correia pelo próprio ombro, sepreparava para entrar no trenó, Ernenek virou como umtorvelinho; e desceu, com o máximo de força, o seu punhocerrado em cima da cabeça deste. Houve um som surdo; ohomem cambaleou; Ernenek arrancou-lhe dos ombros aespingarda; apontou-a contra o outro homem; e puxou ogatilho. Mas a espingarda negou fogo. Ernenek tinhadeflagrado apenas um tiro, em toda a sua vida; e havia, emcirculação, uma grande quantidade de armas de fogo, arespeito das quais ele não sabia um mundo de coisas. Aotempo em que ele resolveu fazer uso da espingarda comoporrete, já era tarde: o homem mais moço tinha agarrado asua própria arma, que se achava encostada de encontro a umacaixa; apontou e atirou. Ernenek sentiu uma pancada e umador pungente num dos braços. Depois, seus dedos se fizeramrijos de dor; e a arma escorregou-lhe para fora da mão, caindoao solo.A esta altura, o homem mais velho, que havia sido prostradopelo soco sofrido à cabeça, recuperou-se do abalo. Vibrou umpontapé ao tornozelo de Ernenek, por trás, fazendo-o cair; aseguir, golpeou-lhe o rosto, também a pontapés, até que o

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verão se tornou inverno. Quando a luz do dia voltou paraErnenek, o homem mais moço lhe disse:— Tente fazer isso mais uma vez, e você será baleado atravésda garganta.O homem moço rasgou e puxou para baixo a manga deErnenek; havia sangue inundando-lhe o braço e escorrendo-lhe para baixo, até às calças; mas Ernenek nem sequerpestanejou sob o efeito da dor lancinante que sentiu quando oferimento foi pensado e vedado com tiras de pano branco.Antes de a viagem ser retomada, Ernenek foi de novoacorrentado; e, dali por diante, suas mãos passaram a ser soltassomente nas horas das refeições.O Sol deu vários giros — nove, ou dez, ou onze. Ernenekperdeu-lhe a conta. No seu braço, a dor ardia, alfinetava,latejava, irradiando para o ombro e para o peito; emconseqüência, ele mal tocava no peixe que lhe era atiradocomo alimento. O tempo estivera quente, até então:ligeiramente abaixo do ponto de congelamento; e isto lheaumentava o desconforto. Ademais, houvera nevadaacompanhada de vento. A seguir, a temperatura caiu. Abruma ergueu-se, dissipando-se; os tufos de vapor, darespiração, fizeram-se mais brancos; Ernenek podia ouvir obaque, no chão, quando cuspia; a dor atenuou-se; e, namedida em que ele foi tornando-se mais alegre, foi revertendoaos antigos hábitos de murmurar ou de resmungar consigomesmo, durante o dia todo — e aquele foi um longo dia.Um vendaval, que piorou o clima, como que pisoteou a nevedo chão; e, nos remoinhos leitosos, os viajores malconseguiam, com a vista, alcançar a cabeça dos cachorros que

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se encontravam na extremidade dianteira da compridamatilha atrelada. De quando em quando, pensava Ernenek,ele teria parado e construído um abrigo. Aqueles homensbrancos, porém, escolhiam sempre a maneira mais difícil defazer as coisas, abrindo caminho para não se sabia onde.Ernenek notou que o homem que guiava o trenó traçava o seucurso acompanhando a linha da costa, provavelmentedesejando procurar abrigo por baixo de algum cabeço, ou dealguma caverna no rochedo; então ele começou a sentir-sealarmado, porque os homens brancos estavam rumandodiretamente para um promontório onde, devido às fortescorrentes subterrâneas e submarinas, havia o perigo de seencontrarem fendas, com água a céu aberto, durante umatempestade.— Vocês têm, pelo menos, todos os seus amuletos consigo?— perguntou Ernenek, ao homem que se encontrava atrásdele.O homem meneou a cabeça, em sinal negativo. Viajar semamuletos — esta era a últimas das loucuras!O homem que guiava o trenó virou-se, e, dando palmadinhasem sua espingarda, disse:—Estes e que são os nossos amuletos.—Para viajar com segurança, sobre o oceano, vocês precisamde pelo menos um rabo de arminho e um olho de foca. Setirarem as correntes de alguém, esse alguém construirá, paravocês, um iglu.Os homens brancos, porém, mostravam-se surdos à voz darazão; e Ernenek começou a proferir frases mágicas, a toda

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pressa; enquanto as proferia, tocava nos próprios órgãosgenitais, a fim de evitar desastres.Foi, porém, muito tarde.O cão-líder da matilha oscilava, ziguezagueava e imprimiaarrancos com tamanha brutalidade súbita, que o segundo e oterceiro cães da linha passaram para a frente, tambémziguezagueando e arrancando abruptamente; desta maneira,as correias dos arreios se entrelaçaram; e os outros cães, que sesituavam atrás, tropeçaram nos tirantes de couro, originando-se confusão total. Em meio ao bolo formado pelas pernas ebarrigas dos cães, foi de roldão o pesado trenó, indo parar denariz numa fenda profunda do solo, inundada de água até àorla.Ernenek, com os olhos esbugalhados de espanto e de medo,foi o primeiro a pular para fora do trenó; e o homem maismoço, colocado atrás dele, seguiu-lhe o exemplo. Mas o queguiava o trenó, sentado em cima da caixa, foi para o fundo,com o veículo.Seis cachorros da matilha se arrancaram, separando-se dosarreios; e ficaram de pé, à beira da fenda profunda, latindoinutilmente para dentro da água que ondulava. Na fenda, quemedia uns três metros de largura, e que se alongava até ondeos olhos podiam ver, cães e arreios se puseram a flutuar aoredor do rosto azulado e ofegante do homem branco alto, queagitava os braços, na mais completa impotência.— Ajude-me a puxá-lo para fora — gritou ele.Ernenek sorriu para aquela nova maluquice.— Aquele é um homem morto. Além do mais, o mar ficariazangado conosco, se nós o retirássemos de onde se encontra.

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Um golpe, vibrado com a coronha da espingarda, lembrou aErnenek que os homens brancos não obedecem; mandam.Desta forma, ele se deitou no chão, com a barriga para baixo,e estendeu os braços, por cima da fenda, enquanto o homembranco mais moço lhe segurava as pernas. O homem que sedebatia na água conseguiu agarrar-se à corrente das mãos deErnenek; contudo, as roupas encharcadas de água tinhamaumentado prodigiosamente de peso; e o homem só pôde serpuxado para fora depois de grandes dificuldades.O homem salvo foi posto de pé; mas não disse palavra.Enquanto ele se manteve exposto ao vento frio e cortante, asroupas encharcadas se enrijeceram quase queinstantaneamente; a água dos pêlos dos couros que ele usavase congelou em miríades de gotículas de gelo; e o seu rostoficou como que enluvado por uma crosta de geada, através daqual os olhos cintilavam, vidrados e como que engrandecidos.O seu companheiro começou então a retalhar-lhe as roupascongeladas com sua faca de caça; a roupa retalhada ia sendono mesmo instante atirada fora do corpo do homem; cadapedaço era aberto, separado do resto, e jogado no chão.Aconteceu, porém, que também o corpo do homem estavacomo que embutido em gelo. Dos seus joelhos machucadoscomeçou a jorrar sangue; que, com o seu calor, degelava acrosta de gelo, começando pelo lado de dentro, e colorindo ogelo de uma cor vermelha brilhante.Depois, também o sangue se congelou.Ernenek meneou a cabeça. Seria que também para morrer oshomens brancos costumavam escolher a maneira mais difícil?Pelo menos, porém, aquele homem branco morreu de pé.

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Quando ele caiu no gelo, o seu corpo produziu um barulhosemelhante ao tilintar de um objeto de cristal.O companheiro sobrevivente ali ficou, de pé, completamenteatordoado.Ernenek sorriu, numa careta, com ar triunfal:— A nossa posição não é boa — anunciou ele, com expressãoparecida com a de regozijo; e acrescentou: — Quando alguémvai a terras estranhas, deve levar consigo a própria esposa,mas não as próprias leis.Sem proferir palavra, o homem branco rolou o seucompanheiro, devolvendo-o à água. Depois, passou a procederao inventário.— Temos seis cães e uma faca de caça — disse ele, com umsúbito sorriso amargo, como que gritando contra o vento. —Nós comeremos os cachorros, e continuaremos a viagem a pé.Ernenek respondeu com uma enorme gargalhada; porque ohomem branco falava como se estivesse ainda em posição decomandar. E ele, Ernenek, gargalhou, porque estava livre.Na distância, até onde a vista podia alcançar, e ainda maispara além, não havia coisa nenhuma, a não ser o oceanopavimentado de gelo, as ilhas capeadas de gelo, e uma terrasafara, nua, em estado de congelamento profundo.

CAPÍTULO VIA ESTRADA PARA O NORTE

— Alguém vai tomar o seu próprio rumo — disse Ernenek.— Você pode seguir o seu caminho, ou vir comigo, como

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preferir. Mas a minha tenda fica muito mais perto do que oseu posto.O vendaval empurrava-os de um lado para outro; e a poalhabranca apegava-se-lhes às sobrancelhas e às narinas,formando pequenas goticulas de gelo que causavam dor aoserem removidas.—Minhas mãos são dois pedaços de gelo — disse o homembranco. — As luvas devem ter tocado na água.—Foi coisa estúpida deixar que isso acontecesse. Tão estúpidacomo o ato de atirar o seu amigo de novo ao mar, sem lhetirar a faca e as roupas.—Por quê?—Você poderia comer-lhe as roupas; pelo menos o que delasfosse feito de lã ou de pele de animal. E se vocês, indivíduosdo povo branco, tivessem roupas como as dos homens, quesão à prova de água e costuradas com tendões, que se inflamquando ensopadas, de modo a tornar as costurasimpenetráveis à água, o seu amigo estaria vivo ainda. Daquipor diante, será melhor você tomar cuidado com os passosque der; porque o seu próximo erro poderá ser o último desua parte. E recorde-se: um rasgão, em suas roupas ou em suasbotas, significará o fim, uma vez que não temos petrechos decostura.—Que é que é preciso fazer?—Em primeiro lugar, tire-me estas algemas. Depois, alguémlhe mostrará como é que se faz amizade com a geada,induzindo-a a ajudar-nos, ao invés de molestar-nos.

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Depois que as algemas foram removidas, Ernenek atirou-as aomar. A seguir, puxou para fora as luvas do homem branco;virou-as pelo avesso, expondo uma crosta fina de gelo.— Dê-me a sua faca, e fique com suas mãos dentro dosbolsos, onde elas ficarão mais aquecidas.Ernenek raspou a parte interna, virada, das luvas; fê-lo commeticuloso cuidado; secou-as, em seguida, com neve; ecertificou-se, com o seu lábio superior, de que elas estavamlivres de geada.—Minhas mãos já não têm mais tato nenhum — disse ohomem branco; já agora, toda a sua petulância se haviadissipado. - Elas estão como se fossem mortas!—Não ainda. Não completamente.Ernenek chamou os cachorros. Os animais recusaram-se aaproximar-se. Quando ele procurou apanhá-los, fugiram. Elese sentou e pôs-se a falar-lhes, com ares de brincar, sempremastigando um pouco de neve. No momento que um doscachorros se aventurou a aproximar-se ao alcance de sua mão,ele o agarrou pelos pêlos do congote; abriu-lhecompletamente o ventre; e, enquanto isto, os outros cachorrosficaram latindo e uivando.Obedecendo às ordens de Ernenek, o homem brancomergulhou as mãos no ventre fumegante do animaldesventrado, e manteve-as ali.— Meus dedos estão doendo terrivelmente — disse o homembranco, depois de alguns momentos — como se inúmerasagulhas os estivessem picando.O homem branco sentia-se envergonhado porque, a despeitodos esforços no sentido de se controlar, percebeu que navia

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lágrimas em seus olhos. Aquela era a dor mais aguda quejamais provara.— Esse é o aviso de que a vida está voltando às suas mãos —explicou Ernenek — e, com a vida, a dor volta. Só a morte ésem dor.Nesse entretempo, por baixo da pele do ventre do cachorro,ele encontrou um pouco de gordura, com que untou as suasfaces como as do homem branco. A seguir, extraiu o fígadofumegante do animal desventrado; mordeu-ovoluptuosamente; e passou o resto para o seu companheiro.— Coma isso antes que ele se congele — disse Ernenek,sorrindo, com a boca tornada cor de púrpura por causa donaco de fígado abocanhado; e o homem branco mordeutambém o fígado, com decisão.A seguir, Ernenek puxou para fora as entranhas do animal.Por certo, também ele já havia saboreado coisa melhor, como,por exemplo, as entranhas da rena, sempre estofadas deliquens; todavia, seria loucura, da parte do homem branco,recusar fosse lá o que fosse, num momento como aquele.— Nós precisaremos da carne para a construção de um trenó— explicou Ernenek, dando as tripas para a matilha.Ele retirou o couro do cachorro, fazendo correr a faca entre acarne e a pele, e puxando pelo pelame. Correndo contra adireção da geada, que estava invadindo os tecidos, eledesossou a carcaça; cortou a carne em tiras finas; separoucuidadosamente os tendões, pondo-os por dentro de suascalças, a fim de mantê-los aquecidos e flexíveis. Depois,sentando-se em cima da pele, começou a descarnar o ossoesterno com sua faca.

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O tempo passava. O Sol, pálida bola de fogo, continuavadescrevendo círculos por cima do horizonte. O homembranco trotejava ao léu, a fim de se manter aquecido. Ernenektrabalhava, cantarolando para si mesmo. A faca de açotornava a descarnagem mais fácil do que a lasca aguçada depederneira, com que estava acostumado a trabalhar; maspercebeu que precisava tomar cuidado ao lidar com ela; docontrário, poderia quebrá-la; de resto, já havia feito um denteem seu gume.Com o osso, ele fez uma ponta de lança, primitiva e cheia derebarbas. Depois molhou a pele do cachorro em água;estendeu-a sobre o gelo; e enrolou-a, a seguir, bem apertada,premendo-a bem, enquanto ela se congelava; ao mesmotempo, ia enfiando a ponta de lança numa extremidade, eligando-a com os tendões. A pele molhada congelou-serapidamente. Ele soldou a haste da lança na ponta, com outrorápido mergulho na água; e ficou com mais uma lança, feitade pele e de osso de cachorro.— No nosso caminho por aí abaixo, não muito longe daqui,acontece que alguém ouviu o bramido de uma foca — disseele, atirando a carne do cachorro ao ombro, e caminhandopara a frente, por cima do mar. — O vendaval apagou astrilhas deixadas pelo treno, mas os cães nos guiarão.Embora os cachorros tivessem tido, antes, medo dos homens,agora estavam com medo de ser deixados entregues à suasorte; e seguiram os homens; logo após, seguindo o própriofaro, que ficara da passagem anterior por ali, os cães passarama preceder os homens.

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As focas de que Ernenek ouvira o bramido se encontravam apouca distância dele; mas a grande distância do seu bando.Encontravam-se em território descampado, onde poderiamvigiar a aproximação de algum urso. Quando os cães pararame começaram a latir e a cavar o chão, Ernenek pousou suacarga; orientou os cães para trás, a favor do vento; e deu-lhesordem de ficar calados. Os pequenos animais choramingaram,ganiram um pouco antes de ficar quietos; e acalmaram-se.Com a mão, Ernenek removeu, cuidadosamente, a neve dasuperfície, até descobrir um buraco algo maior do que otamanho de sua mão.— Este é um respiradouro.— Tão pequeno? Como é que uma foca pode subir,atravessando o gelo espesso?— O buraco alarga-se por baixo, até ficar mais largo do que aaltura que você tem. Agora, alguém vai ficar à espera de queuma foca venha à superfície, enquanto você vai caminhar aoredor, em círculo. Isso impelirá a foca para o centro, e,portanto, para longe dos outros buracos.Obediente, o homem branco se pôs a caminhar por ali, eErnenek ficou à espera, imóvel, com a lança em posição deataque, olhos fitos na abertura. Contemplou o buraco, que sefechava; o gelo ia enchendo-lhe o centro. Na última água,uma tira de película trêmula apareceu; depois, viu-se a peleopaca da geada.De súbito, Ernenek sentiu-se cansado e com frio; e isto oassustou. Nunca se sentira daquele jeito. Mas tinha comidomuito pouco, durante muito tempo. Ele, que poderia devorarum filhote inteiro de foca, de uma assentada, nada mais havia

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comido além de um poucochinho de comida de cachorro,durante muitos giros do Sol, depois de ter sido maltratado,surrado, manietado e ferido. E tudo isto porque algumaspessoas não portavam amuletos, nem talismãs, não queriamcuidar dos seus próprios assuntos, e mostravam-se incapazesde cuidar de si próprios.Os pensamentos de Ernenek encontravam-se no nível maisbaixo de sua maré, quando se ouviu um rumor estilhaçante,acompanhado de um silvo; logo após, um pequeno jorro deágua, ar e fragmentos de gelo foi-lhe atirado ao rosto. Por uminstante, uma cabeça lustrosa, negra, lisa e sem pêlos, apontoupara fora; e um par de olhos enormes olhou para ele,estupefato. A surpresa foi recíproca. A cabeça desapareceu depronto; desapareceu tão depressa, que Ernenek poderia pensarque aquilo houvesse sido sonho — se não fosse pela agua queainda ondulava no buraco recém-aberto.Ernenek como se congelou naquela imobilidade. Quase queparou de respirar, esforçando por varar, com os olhares,aquelas águas escuras, uma vez que não tinha consigo o seuflutuador, para lhe assinalar quando a foca se aproximava dasuperfície de gelo. Ela não tinha necessidade alguma de voltarà tona por aquele mesmo caminho, porquanto mantinhaabertos vários buracos ao mesmo tempo, a fim de conseguirar. A foca é sábia. Mas é também curiosa. Ademais, ésimplesmente humana; e Ernenek estava convencido de que acuriosidade acabaria levando a palma no fim das contas.Ele estava certo, absolutamente certo, de que aquelas duasmanchas, que vira como que luzindo por baixo da superfícieda água, eram os olhos enormes da foca — e não uma

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excrescência da sua própria imaginação excitada. Ernenekproferiu uma prece rápida, nesse sentido, ao espírito que era oseu guarda pessoal; a esse espírito, todo homem reverte,quando fica como que suspenso entre a vida e a morte; vibrouo golpe.A lança acertou o alvo; apanhou a foca no ponto em queErnenek havia visado; e também no ponto em que maisresultado poderia produzir: para dentro do lábio superior.Tratava-se de uma foca macho, pesada, abundantementeembigodada; e Ernenek gritou, pedindo auxílio; enquantogritava, segurava firmemente a haste da lança com as duasmãos, ao mesmo tempo em que a presa se debatia. O homembranco apressou-se, trotejando rigidamente em seu auxílio;ajudou-o a matar a foca; e a alargar o buraco, com emprego dafaca; em seguida, os dois, juntos, puxaram para cima a caça.Em primeiro lugar, Ernenek retirou um dos olhos da cabeçado animal; e enfiou-o pelo lado de dentro de sua jaqueta.— Agora estamos a salvo! — exultou ele. — Este olho nosprotegerá contra futuros contratempos.Dali por diante, nada poderia abater-lhe o ânimoconsideravelmente elevado.— Por que é que você derrete neve na boca e a cospe depoispara dentro da boca da foca? — perguntou-lhe o homembranco, que conservava a curiosidade perpétua de sua raça, adespeito do frio e do desconforto.Ernenek meneou a cabeça, em face de tão abismal ignorância.Até uma criança sabia por quê.— A alma deste animal vai agora dizer, à dos outros, querecebeu um gole de água doce; assim, os outros animais

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também virão à tona e procurarão ser apanhados por nós, naesperança de também receber o seu gole. As focas andamsempre com muita sede, uma vez que vivem na água salgada.Ernenek sugou o sangue, negro e oleoso, da ferida fumegante;espostejou a caça; deu aos cães, para que os comessem, unspoucos pedaços de pele; e retirou o estômago da foca, do qualrecolheu alimento marinho vivo; um alimento que até mesmoo homem branco apreciou, temperado como estava com ossucos avinagrados do estômago. O homem branco apreciouum pouco menos o fígado e o coração da foca; e recusou,terminantemente, as tripas, grossas e gordas — a despeitodas afirmativas de Ernenek, que comeu vários metros delas,no sentido de que aquilo era um prato que sabia a mexilhões.— Agora, vá para a linha do mar e consiga um pouco de turfa— disse Ernenek. — Remova a neve com as botas; depois,use uma pedra para raspar a turfa, retirando-a do chãocongelado. Não será fácil.— Por que é que você vai precisar de turfa?— Faça o que lhe é dito, sem discutir. A discussão consomegrande quantidade de energia.—Quando percebo a razão, é-me fácil obedecer. Sinto-memuito cansado.—Alguém está fazendo um trenó; mas a neve que há no chãose colará aos rodízios, a menos que os rodízios sejam calçadoscom gelo. O gelo não pega nos rodízios; a turfa pega. Assim,os rodízios são primeiro revestidos de turfa; a seguir, a turfapode ser revestida de gelo; e os rodízios deslizarão semfricção. Agora você está percebendo a razão.

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Enquanto o homem branco foi dar conta do seu recado,mantendo-se sempre rígido, Ernenek cortou a carne e agordura em tiras, como já havia feito com o cachorro; durantetodo esse tempo, ficou vibrando golpes de faca contra os cãesda matilha, famintos e vorazes, que não lhe davam paz.Depois, cortou a pele da foca em duas partes, ao comprido;mergulhou as duas metades no buraco do respiradouro;enrolou-as e comprimiu-as, enquanto elas se congelavam; eassim preparou os rodízios para o seu trenó.Ele precisava, porém, de outra foca, para fazer as rédeas e as,correias destinadas a atrelagem da matilha; e, depois de umaespera que poderia ter parecido excessivamente longa aos quemedem o tempo com base na unidade da hora, ao invés daunidade da estação do ano, ele caçou outra; era uma focamenor do que a primeira; sua pele foi por ele retalhada emfitas; as fitas foram amarradas umas as outras, enquanto aindase encontravam quentes e flexíveis. Estendeu as tiras de carnede través, entre os rodízios, à maneira de travessões; amarrou-as umas às outras, com as fitas de pele de foca; e como quesoldou as juntas borrifando água por cima oleias, por meio dacauda do cão morto.Ossos de baleia serviam para se fazerem rodízios mais finos; amadeira atirada às praias pelo mar servia para se fazeremtravessões mais leves; mas não muito mais leves.A esta altura, já o homem branco se encontrava de volta, comdois bolsos cheios de turfa como que reduzida a pó. Ernenekmisturou a turfa com urina quente, e aplicou a pasta assimpreparada, em camada espessa, ao lado inferior dos rodízios;enquanto a aplicou, foi alisando-a com a sua luva. Depois,

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tendo esgotado a sua urina, derreteu neve na boca, borrifou-apor cima da cauda de cachorro, e como que vidrou os rodízioscom uma camada toda igual de gelo. Ernenek trabalhou,durante todo este tempo, com grande concentração deespírito, e também com a testa franzida. A camada de lamadeveria ser espessa, porém muito lisa. A água precisava nãoser muito quente, porque, do contrário, derreteria a lama;precisava também não ser muito fria, porque, se assim fosse,se congelaria antes de acabar de ser estendida. A camada degelo precisava não ser excessivamente grossa, porque, se ofosse, não pegaria; e também não podia ser extremamentefina, porque, então, se racharia.Quando Ernenek ficou satisfeito com o próprio trabalho,atrelou os cachorros à sua maneira peculiar, atirando ascorreias, ao léu, ao Tedor do peito dos animais, e amarrandocada um dos animais, individualmente, ao trenó. O cachorrodo centro foi atrelado com a correia mais longa; os cachorroslaterais, com os arreios mais curtos. Mas ele não entrou notrenó antes de devolver à água do mar os ossos da foca;fazendo isto, mostrou estar cônscio de um entendimentohavido entre os homens e o mundo das focas, desde temposimemoriais; por esse entendimento, os matadores de focas seobrigavam a devolver ao mar os esqueletos das focas matadas;do contrário, as focas não se deixariam nunca mais apanhar.Ernenek espicaçou, com a ponta da lança, o cachorro maispróximo; o animal ganiu alto, eletrizando os seuscompanheiros de matilha e pondo-os em ação, além deinduzi-los a perceber que era melhor começar a puxar otrenó, com o máximo da energia que possuíam, ainda que

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arrastando o ventre pela neve, se é que ainda tinham amoraos próprios ossos. Assim, o trenó começou a deslizar em cimado oceano.Rumo ao norte.

Os dois homens viajaram para a frente, durante longo tempo.No começo, sentiram-se fortes e aquecidos, com a carne e agordura da segunda foca, e com a ventania a deslizar para oslados de suas faces recentemente untadas de gordura.Entretanto, com o início de uma sensação de fome, o friocomeçou a dar as suas mordidas através de suas carnes; isto osobrigou a pular para fora do trenó, com alguma freqüência, ea trotejar atrás da matilha, a fim de ganhar calor. Quando oscachorros começaram a tropeçar, Ernenek mandou que sefizesse alto.— Precisamos deixar que descansem. Não podemos dar-nosao luxo de perder nenhum desses cachorros.— Eu gostaria de tirar uma soneca — disse o homem branco.—Não durma sem abrigo. Se o fizer, não acordará mais.Agora, de resto, já não estamos longe.—Não chegarei nunca à sua tenda. O meu cansaço é tãoenorme como o oceano.— Alguém vai lancear outra foca; e bastará que você seempanturre de sangue, de gordura e de fígado, para se sentiroutra vez com forças e bem aquecido. O alimento substitui osono.O Sol, todavia, já tinha dado dois giros completos; e elestinham parado várias vezes, para dar descanso à matilha; sódepois disto é que os cachorros farejaram outro campo de

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respiradouros de focas. Enquanto Ernenek se conservava àespera, o homem branco conduziu o trenó ao léu,descrevendo círculos ao seu redor. Mas nenhuma foca aflorouno buraco respiradouro. As focas podiam ser ouvidas;porque silvavam e tossiam, em todos os buracos; menosnaquele em que Ernenek se encontrava de atalaia.— Pronto! — gritou ele, alarmado, desistindo da caça, depoisde longa espera. — Já deve ter sido espalhada a notícia de quehouve gente que matou foca, sem lhe devolver os ossos aomar; foi isso o que você fez, estando no seu trenó; e, agora, asoutras focas se recusam a ser apanhadas!Entretanto, o homem branco não ouviu a acusação; tinhacochilado; e os cachorros não comandados estavam, agora,mordendo selvagemente os travessões do trenó.Ernenek pulou, zangado, e blasfemou à loucura daqueleindivíduo que havia deixado que os cachorros conservassem aagudeza dos próprios dentes. Sacudiu o homem branco,pondo-o de novo em estado de acordado; depois passou a agircontra a matilha, quebrando os dentes dos cachorros com ocabo da faca, enquanto o seu companheiro lhes conservava asmandíbulas abertas por meio de uma pequena haste de lança.

Os viajores deslizaram por ali, sem alimento e sem sonodormido, através do dia sem fim, expostos aos grandes ventosque varriam o teto da Terra. Ernenek acabou comendo o seuolho de foca, que lhe servia de talismã; comeu também os seusamuletos de pesca; presumiu que isso não faria diferençaalguma, pouco importando ue os usasse por dentro ou porfora do seu próprio corpo. Depois isto, mastigou um pedaço

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de pele de foca, e induziu o homem branco a fazer o mesmo,porquanto sabia, devido à longa experiência ue adquirira, quenada navia que fosse tão vivificante como a pele os animaismarinhos. Nesse entretempo, Ernenek ia maldizendo Asiak,sua mulher, pela inteireza dos seus atos; se não fosse ela umaconfeccionadora tão meticulosa de vestimentas, ele agoraencontraria pedaços de carne ressecada, do lado de dentro daindumentária de couro; entretanto, por obra dameticulosidade de Asiak, a parte interna do couro de suasvestimentas estava lisa, brilhante; Asiak havia amaciado,curtido, raspado e mastigado demais todas as peças de couro.Ernenek precisava da vista da linha costeira, a rim deestabelecer os pontos de referência por meio dos quais teriade definir o seu curso; e, por isto, nunca perdeu de vista areferida linha. Por vezes, uma nevasca forçava os viajores afazer alto, bem como a improvisar um iglu, não dispondo,para isso, de nada mais além de uma pequena faca de aço;outras vezes, eram induzidos a abrigar-se numa caverna dascolinas.O homem branco seguia obstinadamente o que Ernenek man-dava. Tinha emagrecido; as linhas do esforço e do desgaste jáse viam, bem fundas, em seu rosto abobalhado. Suas costeletasestavam tomadas pelo gelo; as orelhas, intumescidas; os lábios,crestados; os membros, endurecidos; mas o homem ainda sesentia bastante forte, a ponto de se recusar a morrer.O homem branco costumava admitir que nada mais tinha aaprender, a respeito da terra branca — não somente porquetinha tido notícia de que temperaturas baixas, de até 98 grausFahrenheit, abaixo de zero, equivalentes a uns 72 graus

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centígrados, ou Celsius, abaixo de zero, se haviam registradonaquela região — mas também porque soubera que a altitudedo Sol era de 27 graus, ao meio-dia, e de 11 graus à meia-noite. Soubera, igualmente, que uma família de quatropessoas, como a de Ernenek, possuía, estatisticamente, 1.600milhas quadradas — equivalentes a uns 4.160 quilômetros —de território. Soubera, ainda, de outros fatos e de outrosnúmeros, relacionados com aquela região. Aprendera,ademais, a fazer distinção entre o gelo doce das precipitaçõese os rios; os rios eram brilhantes e sempre cheios de bolhas dear; a crosta do oceano, congelada, era sempre de uma cor feia,cinzenta, suja e opaca. Contudo, os seus conhecimentospráticos não iam muito longe. Em conseqüência, o homembranco não sabia que a neve velha, de granulação grosseira,contém mais água, e possui sabor mais doce do que a nevefresca. Como também não sabia que a água do mar perdia oseu conteúdo de sal, transformando-se em água própria parase beber, depois de estar congelada por determinado períodode tempo.Muito menos ainda reconheceria ele as focas mortas, noscômoros nevados, junto das quais Ernenek se deteve, dizendo:— Estas são as focas que você abateu, na sua viagem de ida.Ernenek pôs à mostra, com a faca, um couro marrom, cheiode cicatrizes; e acrescentou:— Precisaríamos dispor de uma machadinha.Vibrou violentos pontapés contra a carcaça; mas nãoconseguiu soltá-la do gelo, nem soerguê-la do chão ao qual seencontrava colada pelo congelamento. Ele apenas obteveêxito na tarefa de cortar a ponta de uma nadadeira, que se

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degelou em sua boca, depois de lhe retirar as barbatanas.Aquilo continha boa quantidade de gordura; a boca deErnenek encheu-se de água; e, na ânsia de conseguir mais,quebrou a faca e acabou fazendo um corte na mão. Enquantoos cachorros lambiam o seu sangue caído no chão, e lançavamolhares cobiçosos à sua luva ensopada de sangue, ele arrancouum punhado de pêlos de sua jaqueta, e aplicou-o aoferimento, a fim de estancar a hemorragia. Depois, tornou acolocar a luva; e juntou-se aos cachorros, em cima do gelo,raspando e mordendo a carcaça.Era como estar sugando uma pedra; e ele logo desistiudaquilo; mas teve de atarefar-se muito para persuadir os cãesaloucados a recolocarem-se nos respectivos postos; ospequenos animais arreganhavam o focinho, mostrando osdentes, e imprimiam safanões aos arreios, toda vez que eleprocurava pôr alguma ordem naquele atropelo.Os cachorros encontravam-se em mau estado. Um estavamancando; outro apresentava um olho fechado, devido a umgolpe recebido; um outro, ainda, tinha ulcerações na boca; oquarto choramingava incessantemente; e todos possuíamfrieiras, ou tinham cortes nos pés desprotegidos, uma vez quejá tinham desgastado totalmente as sapatilhas protetoras;ademais, o sal do gelo do mar penetrava-lhes nas chagas.Depois de algum tempo, o quinto animal, que estava sendo omenos afetado até ali, estendeu-se no chão, de flanco, erecusou-se a mover-se mais; ficou inteiramente insensível aosestímulos da parte de Ernenek.Sentados em seus traseiros, e com a boca babando, os outrosquatro cachorros ficaram a olhar para longe, com os seus

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olhos amarelos, enquanto Ernenek se pôs como que araciocinar com o cão deitado, e a reforçar o raciocínio com oconcurso da lança. Um pouco de sangue apareceu no pontoem que a lança golpeou. Como que a um sinal combinado, oscompanheiros da matilha se lançaram sobre o cachorroferido. E não houve mais o problema de pará-los — nemErnenek tentou detê-los. Pacientemente, o cachorromoribundo olhou para o dia que ia escurecendo.Quando os cães da matilha passaram a comer maislentamente, Ernenek cortou-lhe a língua, com o pedaço quelhe restava da faca. Os ventres dos cães estavam estofando-se,devido ao fato de eles arrancarem pedaços do corpo do cãomorto, e de os engolirem sem mastigação prévia; os famintosabocanhavam a carne, com o couro, partindo os ossos, com osdentes despontados; e continuaram assim, até que naJa maisrestou: nem uma migalha, nem sequer dos arreios do cãomorto. Então, os cães aconchegaram-se e dormiram. Ernenekdeixou-os dormir.Por um pouco de tempo.

O Sol deu vários giros, antes de eles abandonarem o OceanoGlacial e subirem para a terra firme. Ali, as rampas e o chãoirregular impediram que o trenó fosse puxado por um grupode cães tão reduzido e tão fatigado. Então, Ernenekarrebentou o trenó contra uma rocha; poupou a carne; edeixou que os cães comessem os rodízios.Os travessões, rígidos, devido ao congelamento, não podiamser mastigados; só podiam ser sugados devagar. E Ernenekdesejou matar um dos cães; como, entretanto, os animais se

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mantinham em guarda outra vez, tornou-se-lhe impossívelaproximar-se deles; e então amaldiçoou a sua própria loucura,que consistira no fato de os livrar cedo demais dos arreios queos prendiam.De súbito, porém, o rosto de Ernenek como se iluminou, e eleolhou, animado, para o seu companheiro, para o homembranco.—Alguém acaba de se lembrar de que, não muito longe daqui,formou uma pilha de carne, há já alguns anos!—Mas a carne deverá estar congelada e dura, como aquela dafoca; e não conseguiremos fazer uso dela — comentou ohomem branco, desanimado.—Alguém sempre corta a carne, antes de a enterrar no gelo; ecoloca pedras por baixo da carne, a fim de impedir que ela,pelo congelamento, se solde ao chão.Ernenek foi para diante; o homem branco caminhou, comdificuldade, atrás dele, sombrio e taciturno.Uma torrente de invectivas anunciou que Ernenek encontrouo lugar que estava procurando — mas que o monte de carnetinha desaparecido. Uma família de carcajus estivera lá antesdeles; cavara o chão, forçando as pedras pesadas a rolar pelaencosta da colina abaixo, uma a uma; e tinha feito umbanquete com o achado, nada mais deixando, ali, além de umpunhado de ossos roídos e mastigados, mais as pegadas de suasgarras.

Quando Ernenek se cansou de dizer coisas nada lisonjeiras arespeito de carcajus, e desejou retomar a marcha, percebeu aexistência de uma raposa ali pelas proximidades. Andou à

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procura do seu rasto, até que o encontrou; e seguiu-o, naesperança de que assim seria guiado à furna onde deveriamencontrar-se os seus filhotes ainda incapazes de atos deastúcia. Ao invés disto, ele foi guiado para um monte defilhotes de torda mergulheira, que a raposa havia formado nosrochedos de pássaros, para o seu próprio inverno; e aquelacarne cor de púrpura, bem deteriorada, constituiu grandeconforto para o seu estômago; a refeição encheu-o outra vezde energias e de bom humor. O homem branco, porém, nãopôde ser persuadido a tocar naquele alimento; ademais, suasbotas cheias de pregos lhe proporcionavam pobreagarramento nas encostas. Ele escorregava com muitafreqüência; e recusou-se a ir até lá em cima.— Você costuma desistir com muita facilidade — comentouErnenek, zombando do homem branco. — Certa noite, umhomem que alguém conhece se perdeu na nevasca; comeuseus próprios pés, que, em todo caso, já se haviam tornadoinúteis, por se haverem congelado; e comeu-os a fim deconseguir a energia necessária para voltar ao lar. Nós aindanos rimos bastante, toda vez que ele conta o caso.

Ernenek carregou o homem branco aos ombros; mas logo tevede pousá-lo outra vez no chão; o cansaço estava começando afazer-se sentir em seu corpo.— Alguém irá à frente; guiará os cães até lá, com um pedaçoda carne do trenó; deste modo, os animais não o atacarão.Sugue este travessão, enquanto isto; e não caia no sonoenquanto alguém não voltar, trazendo comida e cachorrosdescansados.

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E Ernenek caminhou, com dificuldade, afastando-se dali.Ele encontrou a sua tenda de peles, no lugar em que a haviadeixado, no sopé de um outeiro enorme; e a sua matilhadoméstica lhe deu rumorosamente as boas-vindas; depois,farejou, desconfiada, os quatro cachorros, magros, com ares demendigos, que o acompanhavam.Em primeiro lugar, o pequeno Papik saiu para fora da tenda,mais largo do que alto, metido em suas vestimentas de pele eem suas botas brancas, pulando e gritando de alegria. Aseguir, apareceu Asiak. Ela aumentara de corpo e de espírito,durante os poucos anos passados; mas os seus olhos ardentes,amendoados, sorriram, agradáveis, em meio à gordura de suasfaces. Por cima do seu ombro, Ivaloo, seguramente amarradaàs costas maternas, olhava para a frente, tomada de mudoespanto, contemplando a grande figura humana, corpulenta epesadona, que se dizia ser seu pai.—Você esteve longe daqui muitas e muitas dormidas — disseAsiak, assim como que por acaso. — Você deve ter apanhadogrande quantidade de peixes grandes. Uma mulher vaipreparar o trenó, de modo que poderemos trazer para cá a suapescaria.—Alguém não fez mais do que uma pescaria miserável —confessou Ernenek, pela primeira vez em sua vida.

O homem branco não estava adormecido quando Ernenek eAsiak foram buscá-lo. Nem caiu no sono, em cima da cama demusgo e de peles que havia na tenda. Nem tampouco depoisde Asiak lhe servir tigelas de chá da tundra, além de carneassada por cima da labareda da lâmpada. O homem branco

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tinha passado sem dormir um tempo muito maior do queaquele que considerara possível; em conseqüência, algumaengrenagem, algum fio, dentro dele, se tornara defeituoso; e,assim, a despeito de toda a sua fadiga — apesar do imensocansaço do seu corpo — o que havia era uma flóridavivacidade em seu cérebro; o sono lhe tinha desaparecido, demaneira completa.Não aconteceu isso, porém, com Ernenek, cujo corpo ememória se haviam endurecido, apressando-se a descartar asárduas experiências passadas. Ele não perdeu tempo. Pôs-se,de imediato, a fartar-se com toda a carne que se encontrava àmão, estivesse ela em que estado estivesse; e à carneacrescentou sebo para ajudar a digestão. Quando se sentiupesado demais, a ponto de não conseguir ficar de pé,estendeu-se, de costas, e mandou que Asiak lhe pusesse à bocamais algum alimento ainda. Quando se sentiu incapaz eengolir mais, caiu no sono roncando.Não o perturbou, de maneira alguma, o fato de Asiak,debatendo-se com mãos e dentes, lhe descalçar as botas; comotambém não lhe alterou sequer a clave do ronco, no sono, ofato de ela lhe raspar os pés, limpando-os de crostas geladas,com uma faca.De sua cama de peles, o homem branco olhava para Asiak,enquanto esta prosseguia em suas atividades. Durante otempo em que ela agia, a pequena Ivaloo, quase queconstantemente amarrada às suas costas, ou dormiaplacidamente, ou se esforçava por alongar o seu pescoçogordinho, a fim de olhar para o homem estranho. O pequenoPapik ficava freqüentemente de pé, junto do hóspede

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forasteiro, todo tomado pela curiosidade; tocava-lhe no rostobarbudo, e ria o riso alto, cordial, freqüentemente semmotivo, peculiar ao seu povo.Depois de dormir todo um longo giro do Sol, Ernenekdespertou, disposto a reencher o próprio estômago e apreparar-se para a caçada.—Vocês não são como os nativos com os quais nós fazemosnegócios — disse, pensativamente, o homem branco.—É como você diz. De uma feita, nós tentamos dormir numposto de comércio; e quase que ficamos sufocados. Estava tãoquente, que o gelo do balde quase que se derreteu. — Porcerto — disse Asiak, recordando-se — a vida deve ser maisagradável e divertida no sul, que é mais quente. No verão, agente pode remar num caiaque; encontram-se grandesmultidões de gente; e uma enorme variedade de alimentos. Asmulheres vivem vida de luxo e de folga; usam roupas leves depeles de raposas, meias finas de foca pintalgada, e botasmacias de couro de rena, que mal lhes chegam aos joelhos, aoinvés das nossas pesadas vestimentas feitas de peles de ursos, edas nossas botas feitas de foca selvagem.—E os homens, armados de arpões, flutuam no oceano, emgrandes umiaques; dão caça à baleia branca e ao narval! —gritou Ernenek, entusiasmando-se a esse pensamento.—E o ar está cheio de pequenos mosquitos maldosos,enquanto que o piolho, de sabor doce, rasteja pelo corpo tododa gente, de modo que o marido e a mulher podem divertir-seimensamente catando-os uns aos outros, e comendo-os.—Entretanto, a caça ao grande urso e a arpoagem da grandefoca do norte são mais excitantes — comentou Ernenek —

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apesar de, por aqui, o frio ser excessivo e não permitir oaparecimento de piolhos. Agora, ademais, é perigoso para nóso ato de ir para os lugares onde o homem branco comercia.— Você gostaria de ir para lá? — indagou o homem branco.—Sem dúvida. Especialmente agora, que é proibido.—Você me salvou a vida, Ernenek — disse o homem branco— e eu desejo pôr as coisas em pratos limpos, de modo quevocê não tenha mais medo nenhum dos meus companheiros.Todavia, você precisará comparecer perante um juiz. Eu oajudarei a explicar as coisas.—Você é muito atencioso — disse Ernenek, feliz.—Você me disse que o sujeito que matou o provocou, não éverdade?—Foi exatamente assim.—Ele insultou Asiak?—Terrivelmente.—Presumivelmente, ele foi morto quando você procuroudefender sua esposa contra os atrevimentos dele?...Ernenek e Asiak olharam-se reciprocamente; e romperam emgargalhadas.—Não foi assim, de jeito nenhum — declarou Asiak, por fim.—Aqui está como a coisa aconteceu — disse Ernenek. — Elecontinuou a desprezar todos os nossos oferecimentos, emborafosse nosso hóspede. Rejeitou até a carne mais velha que nóstínhamos em nossa despensa.—Você percebe, Ernenek: muitos de nós, homens brancos,não gostamos de carne velha.—Mas os vermes eram frescos! — exclamou Asiak.

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—Acontece, Asiak, que nós, os homens brancos, estamosacostumados a comidas de espécie inteiramente diversa.—Foi o que percebemos — prosseguiu Ernenek — e esta é arazão pela qual, na esperança de lhe oferecer finalmente umacoisa que ele pudesse aceitar e saborear, alguém lhe propôsque risse em companhia de Asiak.—Deixe que uma mulher explique — interrompeu Asiak. —Uma mulher lavou seus cabelos, para torná-los macios;esfregou sebo neles; untou o próprio rosto com gordura debaleia; e raspou-se com a faca, para ser delicada.—É isso mesmo — gritou Ernenek, erguendo-se — ela se en-feitou toda, para esse fim! E que foi que fez o homem branco?Deu-lhe as costas! Isto foi demais! Poderia um maridopermitir que sua mulher fosse insultada dessa maneira? Emconseqüência, alguém agarrou o canalha pelos ombros; unsombros pequenos e miseráveis; e sacudiu-o várias vezescontra a parede do iglu. . . não para matá-lo; o que alguémqueria era apenas quebrar-lhe um pouco a cabeça. Foi umainfelicidade o fato da cabeça quebrar-se um pouco demais.— Ernenek já havia feito o mesmo a outros homens —acrescentou Asiak, com a idéia de ajudar e ser útil àexplicação — mas foi sempre a parede que se quebrouprimeiro.O homem branco recuou:_ Os nossos juízes não demonstrariam compreensão algumapara com semelhante explicação. Oferecer a própria esposa aoutros homens!

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—E por que não? Os homens gostam disso; e Asiak diz queisso é bom para ela. Faz com que os olhos dela brilhem, e comque suas faces ruborizem.—Vocês, brancos, não pedem em empréstimo as esposas deoutros homens? — inquiriu Asiak.— Não pensemos nisso! É coisa que não está bem; e isto étudo.— Recusar não é coisa que um homem deva fazer! — disseErnenek, indignado. — Qualquer homem prefeririaemprestar sua esposa a emprestar qualquer outra coisa.Empreste-se o trenó, e recebe-se o trenó de volta quebrado; agente empresta uma serra, e, na volta, alguns de seus dentesestarão faltando; quando se emprestam cachorros, eles sãodevolvidos quase que a rastejar, de tão cansados. Entretanto,por mais que a gente empresta a esposa, ela se conservasempre como nova.O verão já se havia passado. O Sol tinha ampliado o seu curso,escondendo-se por baixo do horizonte, e dando uma ameaçade anoitecer; a ameaça foi durando um pouquinho mais detempo a cada novo giro, até ele desaparecer; a longa noite sefez, trazendo consigo imensa fadiga para todos os seres vivos;uma fadiga tão grande, que até os seres perpetuamentefamintos, como Ernenek, perderam o interesse para com acomida.Nestas condições, a pequena família dobrou sua tenda,empilhou o seu hóspede as suas trouxas no trenó, e foiconstruir o seu iglu de inverno em cima da água congelada.Quando Ernenek e Asiak adormeceram, embalados pelobarulho do oceano, a lâmpada deixada ao léu se apagou; e ali,

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na grande escuridão, o grande sono colheu, afinal, o homembranco. O sono foi ter com ele gradativamente, em ondascada vez mais espessas, como neblina — como a noite. Porvezes, no lusco-fusco da consciência, ele percebia que Asiakestava acendendo fogo e comunicando a labareda à lâmpada;que ela estava costurando ou raspando; que estava removendoo bloco de gelo que tapava a entrada; que ia dar de comer aoscachorros da matilha, cachorros estes que iam engordando notúnel. Por vezes, via também Ernenek a ocupar-seindolentemente com seus petrechos de caça. Quando lhe eraoferecido algum peixe, ou algum pedaço de gordura de baleia,ele, o homem branco, engolia-o obedientemente, porqueverificara que aquilo lhe proporcionava mais quentura do queum fogareiro cheio de carvões; e até quando foi presenteadocom uma tigela feita de pedra, a transbordar de sangue negrode foca, laivado de óleo, engoliu tudo, cortesmente.Ao fim do inverno, quando o dia rompeu e Ernenek começoua umedecer suas lâmpadas, Asiak passou a engatinhar de novopara fora, para o descampado, a fim de contemplar a luz doSol erguer-se, bem devagar, até ao teto do mundo. A essaaltura, o homem branco se sentia em boas condições paraviajar.— Nós o levaremos de volta — disse Ernenek. — Isso serácoisa tão fácil como o ato de alguém tornar-se pai.E eles partiram, no dilúculo da madrugada.Já era tarde bem adiantada quando o homem branco avistou acabina de madeira que constituía o seu ponto de destino; epediu a Ernenek que se detivesse um pouco longe dela.

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— Não quero ser visto aqui por ninguém, Ernenek — disseele, apeando do trenó.— Por que não?— Porque eles estão à sua procura, Ernenek. Porque semprepoderá haver ali algum mercador que o conheça, e que lhesrevele o seu nome.— Já agora, eles devem ter esquecido tudo a respeito dealguém.—Os homens brancos não se esquecem; e há mais homensbrancos do que caribus.—Talvez que aqueles que conheceram este alguém já tenhammorrido. Os homens brancos morrem facilmente.—Eles escrevem o seu nome em grandes livros. Os homensmorrem, mas os livros ficam.—Entretanto — disse Ernenek, paciente — nós, depois deviajar toda esta enorme distância, queremos ver outra vez.Tempo houve em que resolvemos não ter mais nada que vercom os homens brancos; agora, porém, desde queconhecemos você, mudamos de idéia.O rosto do homem branco assumiu expressão de sofrimento:— Você tem de ir de volta à sua região, Ernenek; e eu direi aeles, que vi você morto. Esta é a única maneira pela qual elespoderão, não perdoar, mas esquecer-se de você.Ernenek meneou a cabeça, sorrindo:—Eles compreenderão, quando ouvirem a explicação de umhomem, exatamente como você compreendeu.—Ainda que alguns deles o compreendessem, não poderiaevitar de puni-lo, Ernenek, porque as leis deles são mais fortes

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do que eles mesmos. As leis deles se fizeram maiores do queaqueles que as redigiram. Está compreendendo?—Não.—Então, vou explicar-lhe de outra maneira.O homem branco respirou fundo; e disse:— Olhe: não quero que você siga comigo, porque estoucansado de sua companhia, e também das risadas de Asiak.Meterei uma bala através do seu vasto estômago, no momentoem que chegarmos ao posto; e daremos Asiak, juntamentecom os pequenos pirralhos, que são por certo filhos deErnenek, aos ursos, porque eu odeio até esse ponto os ursos.E enquanto o maxilar inferior de Ernenek começou a cair, desurpresa, o homem branco vibrou-lhe um pontapé no baixo-ventre, e atirou o seu próprio punho fechado, nu, contra orosto pesaroso do esquimó. Depois, o homem branco voltou-se, e tomou o rumo que ia dar à cabina de madeira; foicaminhando à maneira dos pombos, porque, a esse tempo, jáestava fazendo uso das altas botas esquimós que Asiak lhehavia confeccionado durante o inverno.Ernenek ficou-se a olhar para o homem branco que seretirava, completamente estupefato, coçando-se no ponto emque havia sido machucado mais. Depois de tudo quanto fizerapor ele! Depois de lhe permitir ficar com a melhor parte desua caça, e de boa parte de sua esposa!Ernenek voltou-se para Asiak, que também se sentiaextremamente atarantada e não conseguia proferir palavra. Eos dois ficaram, mudos, como que a indagar, mentalmente,mais uma vez, como eram estranhos os homens brancos.

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Depois, Ernenek retomou o seu lugar, no trenó; virou oscachorros para a posição contrária; e tomou o rumo dohorizonte.

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO VIIA LONGA JORNADA

Logo depois que o casal de esquimos se separou do homembranco, Asiak se viu, mais uma vez, portadora de bebê.Visto que o casal já estava com suas mãos mais do quetomadas com dois filhos para criar, Ernenek e Asiak ficaramna dúvida sobre se seria aconselhável permitir que o novorebento vivesse. Assim, resolveram conservá-lo, se viesse a sermenino; se, porém, acabasse sendo menina, deveria serdevolvida ao gelo.Asiak deu à luz uma menina.Quando, porém, os pais viram que a pequerrucha tinhacabelos de cor semelhante à do Sol, e olhos da cor do céu demeados de verão, mais uma pele que se afigurava feita deneve nova, os dois se apaixonaram por ela. Não havia dúvida:fora o hóspede de inverno, o homem branco, que lhe deraorigem; e Ernenek sentiu-se imensamente orgulhoso pelo fatode sua mulher lhe dar de presente a criança de um homembranco.Deram-lhe o nome de Hidjoodjook.

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Embora todos os esquimós mimassem os seus filhos,habituándoos mal em medida extrema — e embora os castigose as surras fossem praticamente coisas desconhecidas no seiodo seu povo — ainda assim é duvidoso que mesmo umacriança esquimó tenha jamais sido alvo de tamanhaquantidade de carinhos como o foi o pequeno embrulho docéu, de luz do Sol e de neve.Todavia, num dia feio, tempestuoso, Hidjoodjook, sendoainda muito pequena e não podendo saber o que estavafazendo, caminhou, a passos curtos e vacilantes, afastando-sedo seu iglú e avançando pela intempérie afora. Asiak, queandava cochilando muito porque se estava no inverno, etambém porque se encontrava novamente grávida, nãopercebeu a ausência da garotinha, a não ser depois que atempestade lhe havia apagado as pegadas. Ernenek estavafora, pescando. Em conseqüência, Asiak saiu, sozinha e a seuarbítrio, à procura da pequena; ela caminhou, tropeçando egritando na nevasca; e a nevasca era tão violenta, que até oseu cão doméstico deixou de conseguir alcançá-la, por não lheperceber o faro.O mesmo cachorro conduziu Ernenek até onde se encontravaAsiak, muitas horas depois.Ele a encontrou, perdendo sangue sob a nevasca. Asiak tinhaabortado, e estava delirando. Da pequena Hidjoodjook, nemvestígio se pôde encontrar; como se Sila, o homem mau docéu, a houvesse erguido da face da Terra. Desta forma, elanem sequer pôde ser enterrada, como o eram as outrascrianças, juntamente com a cabeça de um cachorro; e assim

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não houve ninguém para lhe escoltar a pequena alma à terradistante, rumo à qual todos os esquimós estão viajando.Asiak nunca se restabeleceu completamente. Tornava-segrávida todos os anos, e, de cada vez, abortava. Isto lhe tolhiaas forças, a juventude e a capacidade de rir. Suas mãosnodosas começaram a doer nas juntas; e ela deixou de sercapaz de preparar aquelas agulhas finas, feitas de osso, quetinham sido o seu orgulho. Seus dentes, desgastados até àsgengivas, devido ao ato de mascar peles de animais, estavam,com efeito, adequados ao preparo de finas peles de tordasmergulheiras — porque os dentes jovens, agudos, poderiamdanificá-las; mas já não conseguiam mais amaciar peles deursos, nem de focas.Ela, devagar, ia tornando-se mulher inútil, fardoembaraçante; e tinha consciência disso.Começou a ansiar pelos calores do sul, bem como peloconforto corporal que deles poderia decorrer. Visto, porém,que os homens brancos andavam em perseguição de Ernenek,ela acabou prevalecendo contra a vontade dele: e resolveramos dois confinar a própria existência ao norte silencioso;resolveram colocar-se à maior distância possível dos lugaresem que corriam o risco de encontrar homens brancos, ouindivíduos esquimós que negociassem ou tivessem contatoscom homens brancos.Desta maneira, o luxo do uso da madeira atirada à praia pelasondas foi inteiramente suplantado pelo uso do osso, do chifree do marfim da morsa; os arcos passaram a ser feitos degalhadas de alces, ao invés de o serem de costelas de baleias;os óculos de proteger os olhos contra os efeitos da neve

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passaram a ser feitos de presa de morsa, ao invés de o seremde madeira. Emenek e Asiak passaram a encontrar-se apenascom esquimós polares, como eles mesmos; e aqueles comquem se encontravam eram poucos, porque a sua quantidadeera pequena — tão pequena quão grande era o território quehabitavam; lá de vez em quando, muito de raro em raro,travavam contato com uma família nômade de Netchiliks.Ainda assim, os poucos contatos eram suficientes para queErnenek e Asiak ficassem sabendo que o mundo estavamodificando-se.O número dos postos de comércio dos homens brancos estavaaumentando. Como cogumelos, tais postos apareciam aqui,acolá, por toda parte. A cada reunião dos dois esquimós comoutros indivíduos de sua raça, a conversa rumavainevitavelmente para o homem branco, para as maneiras deagir do homem branco, e para as mercadorias com que ohomem branco negociava. O homem branco ia expandindo-sepela terra branca, projetando para a frente a sua fama,carregando consigo as suas armas de fogo, a sua aguardente, assuas comidas, os seus linguajares, as suas mercadorias e os seusdeuses, os seus hábitos caseiros e os seus costumes morais. Ohomem branco dava presentes não pedidos; tomava coisassem as pedir; implantava leis e infringia leis; e deixava, na suaesteira, um torvelinho amalucado — por vezes feito de alegriae de riquezas; mas, por vezes, também, feito de desolação, deaprisionamentos e de mortes.O braço das regulamentações do homem branco era muitocomprido; estendia-se longamente; e era inteligente oesquimó que aprendesse depressa a obedecer-lhe as normas.

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Os homens brancos tinham enforcado um nativo somenteporque este matara um canalha que lhe havia roubado aesposa — coisa que muitos homens teriam feito no seu caso,porque uma esposa pode ser negociada, alugada ouemprestada, mas nunca roubada. E era sabido que, emalgumas daquelas regiões, nas quais, os homens brancostinham acabado de se instalar, nenhum nativo tinhapermissão para matar mais de três focas por ano, apesar de asua existência estar baseada na gordura e no óleo de foca, bemcomo na carne de foca e na pele de foca. Em contraposição, oshomens brancos caçadores dizimavam inteiras nações defocas, apenas pela posse das respectivas peles bem como doóleo que havia nos seus fígados; tanto era assim que oshomens brancos caçadores abandonavam a carne às gaivotas;e nunca se preocupavam, naturalmente, com a necessidade dedevolver os esqueletos das focas ao mar. (Não admirava, pois,que as focas fossem tornando-se cada vez mais raras.)Não. Não havia pé nem cabeça naquilo que os homensbrancos faziam.Além das suas leis e das suas mercadorias, o homem brancotambém tinha introduzido as suas múltiplas enfermidades. Asinfecções venéreas, a influenza, a tuberculose, e, acima detudo, o sarampo, passaram a efetuar devastações entre osorganismos não afeitos a germes; os homens que estavamacostumados a levar à melhor na caça ao urso polar, e asuportar viagens extremamente lonas, enfrentando nevascasde cegar, passaram a sucumbir facilmente ação do inimigoinvisível, que lhes penetrara no sangue. Em algumaspovoações, onde a existência de uma quantidade maior de

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homens brancos explicava a expansão mais ampla dasdoenças, já se sabia que várias epidemias tinham destruídooito esquimós, de cada grupo de dez, em poucas semanas.Contudo, embora nem tudo o que se referisse ao homembranco fosse bom, nem bem compreendido, tudo o que comele se referia fascinava os esquimós — com a atração dosabismos. E mesmo quando os esquimós se encontravam longedo homem branco, no tempo ou na distância, não conseguiamexpulsá-lo de seus pensamentos. Por vezes, aqueles que não sehaviam rendido de todo às seduções das novas modas e dasnovas maneiras se sentiam ainda mais perturbados, em seuespírito, do que aqueles que a elas haviam cedido de imediato.Até os Angmagssaliks, até os Netilingmiuts, até os Itas, até osAtkas, até os Unalaskas, até os Palugvirmiuts, até osNookalits, até os Wootelits, até os Igloolingmiuts, até osesquimós-cobre, até os esquimós-caribu, até os Netchilikstinham sucumbido ao fascínio do homem branco; econservavam-se humildes, indefesos, sob o seu fascínio. Elesjá não podiam mais fazer coisa alguma sem as facas, sem as,espingardas, sem os fogões Primus, sem a aguardente, sem osdoces, sem as fitas, sem os espelhos, sem as miçangas — tudocoisa que requeria substituição ou reabastecimento constante,e que tinha de ser paga com peles, com óleo de peixes e comtrabalho.Somente o grupo esparso dos esquimós polares prosseguiuvivendo à maneira dos seus ancestrais; eram aindaexcessivamente destituídos de manhas, de modo que nãosabiam mentir; e eram também excessivamente francos, demodo que não serviam muito para grande coisa. Ainda assim,

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o câncer branco já havia começado a pestear também ocoração deles; Asiak percebia, com freqüência, que o silênciodos que lhe eram queridos se tornava como que clamorosodevido aos seus anseios e às suas noites estéreis, todas elaspovoadas de maravilhas que lhes eram proibidas.Quando, já com a idade de sete anos, Papik abateu a suaprimeira foca — apenas um filhote, que ainda não tinhaaprendido a nadar — Ernenek fê-lo deitar-se, bem estendido,no chão, de borco; depois, arrastou a foca abatida por cima desuas costas, a fim de que o animal não ficasse com medo dele,nem fosse avisar as outras focas, para que estas se precavessemcontra o menino. Foram, porém, necessários vários anos maispara que Papik se fizesse caçador na correta acepção dotermo, capaz de caçar provisões para uma família.E a família logo passaria a precisar dele.Ernenek sofreu um acidente do qual nunca se restabeleceu detodo. Escorregara, durante uma caça ao urso, e rolara por umaencosta abaixo, quebrando boa quantidade de gelo e tambémfraturando as próprias costas. Estivera quase que imóvel, e,em todo caso, inativo e impotente, durante muitas luas;quando, por fim, se sentiu capaz de levantar-se, já não podiacurvar-se, nem agachar-se, nem sentar-se. Sua espinha estavamais rígida do que o gelo. Ernenek precisava, ou deitar-secompletamente, ou ficar de pé, empenado; e era semprecômico vê-lo virar-se no beliche, para se acomodar, ouagarrar-se ao longo da parede, quando queria pôr-se de pé.Tudo isso 8ie proporcionava, e também à sua família, ummundo de motivos para risadas. Ernenek podia caminhar ecorrer; mas não por longo tempo; o ato de erguer pesos lhe

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dava dores nas costas e nas viruñas; e estas o remetiamdiretamente para o beliche, a gemer.De vez em quando, as dores eram de tal ordem que ele malconseguia dissipá-las por meio de risos.Na casa dos quarenta, já era um homem velho; era, comefeito, o comedor, e não mais o caçador que tinha sido; eostentava as marcas deixadas pela sua longa jornada atravésdo tempo. Profundas eram as rugas em seu rosto; encovadas ecoriáceas as faces; abundante a neve no bigode, que pendia,em fios ralos, até ao queixo todo pregueado. E havia expressãode maravilha em seus olhos, quando ele tomava Papik e osegurava — a flecha que ele havia disparado, fazendo uso doarco de Asiak — porquanto o rapazola estava sendoexatamente como ele, Ernenek, fora, em sua juventude.De conformidade com os cômputos de sua mãe, Papik tinhadezesseis ou dezessete anos, quando começou a assemelhar-segrandemente ao pai, fazendo-se corpulento e musculoso, namedida em que ia crescendo. Ademais, ia fazendo-sejactancioso como o pai, embora não tanto; bastante atrevido,mas não na mesma medida; sem-cerimônia e parlapatão, masnão em escala igual.E não o poderia ser nunca, sendo, como era, filho também deAsiak.Ivaloo era mais baixinha do que seu irmão; não estava aindacompletamente crescida, mas já se apresentava atarracada,com peito amplo. Seus lábios eram, como os de Asiak, grandese cheios, sem serem túrgidos; mas a inclinação dos seus olhosvivazes era de Ernenek. A menina era curiosa, mas sempresença de espírito; ansiosa, mas ignorante; e não tocada pela

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civilização, pela educação, pela arregimentação, pelascomunicações, pelos transportes. Era como solo não arado;como flor não colhida. A cera virgem do seu espírito erasusceptível à influência das pessoas, pois ela se haviaencontrado com muito poucas pessoas, e as suas decisões eramtão mutáveis como o vento. Contudo, a gargalhada semprelevava a palma a tudo.Até que ela se encontrou com um moço chamado Milak.Foi durante uma caçada de verão, na Hinterlândia, que elatravara conhecimento com ele. Os dois trocaram apenas umaspoucas palavras; e nenhuma de tais palavras tinha sidoamistosa.— Alguém não precisa de um homem — disse Ivaloo.— Se você não precisa de homem, você não é mulher —disse Milak.— Então, o que é que alguém é?—Uma criança, com cérebro de pássaro marinho e coração decarcaju. Somente uma criança tem a esperança de viver semhomem.—Uma criança gosta da sua presunção, porque a conservaaquecida, devido à diversão que lhe proporciona — explicouIvaloo; e a risada dela irrompeu franca.Como são grosseiros estes esquimós do norte — refletiuMilak, que era do sul. A diferença estava em que Asiakostentava traços de delicadeza: ela devia ser de descendênciade gente do sul. Mas Ivaloo e Papik eram rústicos como o pai.Quase. Ninguém poderia ser tão primitivo e rústico comoErnenek. Mais ou menos uma dormida antes, Milak dissera aErnenek, depois de uma caçada:

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—A minha é uma caçada miserável, se comparada com a sua.Ao que Ernenek tivera a desfaçatez de comentar:—Com efeito!E isto porque a demonstração de modéstia, por pequena quetenha sido, e que ele havia adquirido laboriosamente, nopassado, se perdera de todo nos anos em que estivera longe decontatos humanos.Seria, pois, de causar surpresa o fato de a filha de semelhantepai, em vez de se chamar a si mesma "a mulher mais semvalor que jamais pôs os olhos em tão poderoso caçador", agorase pôs a rir em presença de Milak. Esta, porém, foi a formapela qual as coisas se passaram. Milak poderia aceitá-las ourejeitá-las.E ele as aceitou.—Você percebe — procurou ele raciocinar, enquanto as suasfaces, jovens e pálidas, se esforçavam no sentido de secontrolar — seu pai já não é um caçador tão grande,principalmente depois que quebrou a espinha; quanto ao seuirmão, ele não tardará a encontrar uma esposa, que serápropriamente dele, e para a qual terá de proporcionaralimento e conforto.—Uma moça é capaz de caçar e pescar tão bem comoqualquer homem — disse Ivaloo.—Mas quem é que tratará da costura? Você não poderá fazertudo. E, na qualidade de mulher, você não terá permissão paramatar focas; por outro lado, também não poderá correr atrásde ursos, nem se curvar por cima de buracos de peixes,quando estiver inchada por trazer criança em seu ventre, nem

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carregar uma criança às costas. Assim que você tenha umacriança ou duas, terá de ir em busca de um marido.—Por quê?—Porque seu irmão não poderá proporcionar provisões paratanta gentel—Talvez você não possa, mas Papik pode! Nós somos donorte; e a única coisa em que vocês, forasteiros, nos superam,é na fanfarronice!Milak ruborizou por baixo da sua camada protetora de sebo eóleo de baleia. Levantou-se, andou de um lado para outro,batendo os pés, e cuspiu; enquanto isto, ela o contemplavacom interesse. Ele a intrigava. Milak procedia da terra dassombras curtas; do sul, quente, alegre, fascinante, de ondeprocedem o Sol, o boi almiscarado e o alce.— Nestas condições, um homem vai voltar sozinho — disseele, finalmente, fazendo-se casmurro; e retirou-se, em boaordem, na direção do Sol.Ivaloo sonhava com homens corpulentos e forçudos, decompleição poderosa, blasonadores e alegres, como seu pai; eMilak nem sequer se aproximava disto. Milak era caçadorbem sucedido, por ser rápido e perito, mas não erasuficientemente musculoso para satisfazer ou corresponder aimaginação da moça; tinha aspecto quase que frágil, secomparado com o dos esquimós em geral, e particularmentecom os esquimós polares. Ria muito raramente, e seu rostonervoso, de expressão mutável, traía-lhe a constante batalhade pensamentos.Sim. Quanto mais ela se demorava a matutar sobre o caso,depois de Milak partir, tanto mais ela se desgostava dele. E

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este desgosto ficava constantemente em seu espírito;permanecia-lhe tanto nos sonhos como nas meditações dashoras solitárias de acordada. Até que, certo dia, ela disse àmãe:—Parece que lá no sul existem xamãs capazes de exercerinfluência sobre o tempo e a estação de caça; e também decurar gente. Pode-se até ver por lá algum desses homensbrancos, que possuem poderes misteriosos; é possível que elespossam reparar as costas do pai.—O pai está muito melhor com as costas rígidas do que comelas saudáveis, entre os homens brancos.—Nesse caso, nós não iremos para os lugares onde os homensbrancos ocorrem; iremos apenas até à distância necessáriapara encontrar um bom curandeiro.Asiak ficou contemplando-a, preocupada e carinhosa:— Talvez você tenha razão — disse ela, com um suspiro —alguém está cansada de ter marido que se deita de costas,quando volta da caçada, e que geme, devido às suas dores,como se fosse mulher na hora do parto. Milak disse que, emsua aldeia, existe um xamã poderoso. Tratemos de procurá-lo,e de verificar se ele pode expulsar os maus espíritos das costasde seu pai.Ivaloo correu para abraçar a mãe e farejá-la; correu com asmangas a esvoaçar; Ernenek e Papik juntaram-se a elanaquela alegria, e começaram imediatamente a preparar osfardos para a viagem.Todavia, o rosto de Asiak permaneceu sombrio e atribulado.Enquanto eles viajavam rumo ao sul, no dilúculo damadrugada, foi Papik quem se sentou alto, na frente,

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brandindo o longo chicote contra o vento; Ernenekpermaneceu na parte traseira, de pé, rígido, em cima dotravessão.A Terra estava ainda dormindo; a vegetação anã ainda nãohavia atravessado a crosta invernal, de baixo para cima; enada, de toda a vida animal que respirava por baixo dacamada de gelo, se apresentava por cima, nem sequer nasimples forma de um pelo; ou, se se manifestava, conservava-se da mesma cor do gelo, de modo que não poderia serassinalada na penumbra da manhã; com exceção dos ursos,que eram demasiadamente orgulhosos e, por isto, não seescondiam.Neste mundo expectante, por baixo das estrelas queempalidecem, o pisotear lépido, metálico, da matilha dotrenó, pontilhando o silêncio, era suplantado, de quando emquando, pelo barulho surdo do vendaval que perpassava pelasgrandes planícies; o sopro do vendaval fazia com que os cãesda matilha cambaleassem; e encurvava os viajores, com a suaviolência; não encurvava, naturalmente, Ernenek, cujo corponão podia dobrar-se ainda que fosse uns poucos centímetros.Quando as intempéries os forçaram a lançar âncora e a erigirum abrigo, foram Papik e Ivaloo que levaram a cabo todo otrabalho; Ernenek realizou todas as observações críticas.— Não se incomodem — dizia Asiak aos filhos. — Erneneksempre soube fazer todas as coisas melhor do que todos osoutros.A esta observação, os filhos riam de face para a nevasca;enquanto riam, iam pondo os blocos de gelo nos devidoslugares, e enchendo as juntas com neve, enquanto Ernenek se

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conservava andando de um lado para outro, batendo os pés nochão, resfolegando e escarnecendo.Todos gargalhavam, com episódios dessa ordem — excetoErnenek, cujo enorme sentido do humor tinha um modoespecial de dissipar-se misteriosamente, toda vez que era ele oobjeto de qualquer brincadeira alheia.— Asiak costumava falar de modo muito diverso quando euvoltava das caçadas — disse ele, ressentido. — Como ostempos mudaram! . . .— Não foram os tempos que mudaram. Foi você quemmudou.Isto foi motivo para mais gargalhadas; até que a sonolência e adigestão apareceram, para lhes absorver a alegria.Havia momentos, porém, em que todos se mostravaminquietos, como que pressentindo algo — como se soubessemque a jornada produziria uma determinada mudança, não"somente no cenário natural, mas também em suas vidas. Éhouve também momentos em que os dois filhos, insones,faziam perguntas à mãe; as eternas perguntas; e nada haviaque ela não pudesse responder.—De onde é que toda esta neve nos vem?—A neve, meus pequenos, é o sangue dos mortos.—E o trovão? Alguém fica sempre a indagar, de si para si, emtorno do que é a causa do trovão.—São os espíritos, que esfregam seus corpos revestidos decouro; os espíritos costumam esfregar-se uns aos outros,quando discutem. Em geral, são espíritos femininos.—E o relâmpago?

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—Ocorre quando os espíritos que discutem batem na lâmpadae a apagam. Essa é a razão pela qual o relâmpago e o trovãoaparecem juntos.—E as estrelas cadentes?—Dejeções de estrelas é o que elas são. Que mais poderiamser, as pobrezinhas?—Naturalmente. Mas, por qualquer circunstância, isso nuncame ocorreu. E quem foi que fez as primeiras pessoas?—O Corvo Preto.—E quem foi que fez o Corvo Preto?—A crosta de gelo partiu-se e abriu-se; e, nascendo dobarulho assim produzido, o corvo começou a existir. Ficousendo preto porque o fato aconteceu de noite. Logo se sentiuabandonado, por se ver sentado, sozinho, no mundo; por isto,ele fez pessoas pequenas, servindo-se de bolas de terra.Depois, os homens, fazendo-se poderosos, ficaram entediados,porque não tinham ninguém em quem bater; e, por isto,fizeram as mulheres, servindo-se de pequenas bolas de neve.—E onde é que está agora o Corvo Preto?—Está morto. Os pequenos homens cresceram e mataram-no.—Por quê?—Para comê-lo... antes de ter tempo de verificar que somenteele, o corvo, poderia impedir que eles, os homens, morressem.—Isto me lembra algo que há muito tempo venho querendoperguntar: para onde é que vão as almas, quando as pessoasmorrem?—As almas têm três paraísos para onde ir: um, no ar; outro,na Terra; o terceiro, por baixo da água.—Que jeito tem uma alma?

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—Tem o jeito e a forma da pessoa que é sua dona; apenasmuito menor, quanto ao tamanho.—Menor, mas em que medida?—Do tamanho de um mergulhão pequeno.—E que jeito têm os nomes das pessoas?—O mesmo jeito das almas, com a diferença de serem aindamenores.—Já viu almas e nomes?—Ainda não. Mas minha mãe os viu.—Terá ela visto, mesmo?—Por qual motivo deveria ela dizer que viu, se não tivessevisto?—E para onde é que vão os nomes, depois que as pessoasmorrem?—Os nomes flutuam tristemente no ar, até que encontramnovos corpos nos quais possam entrar. Esta é a razão pela quala gente deve dar, aos recém-nascidos, sejam eles bebês oucachorrinhos, os nomes dos mortos.—Mas de onde é que vêm todos esses novos bebês e todosesses novos cachorrinhos?—Em regra, vêm do Espírito da Lua, que se parece com umhomem e tem o poder de fazer todas as mulheres, estéreis oufecundas. É ele também que vê todas as quebras de tabus, eque pune os infratores por isso.—Será esse espírito tão perverso como dizem?—Ele é até muito pior; é extremamente caprichoso. Só há umser pior do que ele. É Sila, o homem que está no céu, e que fazcom que o Sol vá para baixo; por vezes, ele carrega tambémum ser humano.

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—Por que é que os espíritos são tão maus?—E porque são como as pessoas: alguns, bons; alguns, maus.Sedna, por exemplo, é a mulher com cauda de foca; ela émuito bondosa; é ela que nos manda todos os peixes bons. Ehá igualmente o Espírito do Ar, que não é nem bom, nemmau; é ele que efetua as mudanças do tempo. Há alguma coisamais que vocês, meus pequenos, querem saber?—Há alguma coisa mais pára saber?Asiak refletiu durante um momento, antes de responder:— Vocês têm razão. Que mais pode lá haver para saber?Enquanto eles viajavam na direção do Sol, este espiralou paracima, a fim de encontrá-los a meio caminho. Os viajorescontemplaram o horizonte cor de fígado, na hora em que eleia tornando-se cor de sangue, cor de púrpura, carmesim,vermelho, vermelho listrado de ouro, vermelho listrado deamarelo, e vermelho da cor do dia. A seguir, o triunfo do Sol aescorrer de sangue, a avermelhar o gelo, a derramar-se,manchando os campos marinhos, as colinas e as ilhas, com oseu líquido vital, até que ele, o próprio Sol, ficou branco detanto sangrar; e então ficou, pálido e anêmico, pairando sobreuma Terra monótona.A neblina ergueu-se. A neve caiu. Fez meio-dia — verão.Durante todo o dia, eles viajaram por cima do mar sólido,atravessando grandes planícies por baixo das quais a águaturbilhonava, deslizando por entre ilhas cónicas e altosicebergs, projetando-se do oceano, acompanhando faixas deterra denteadas por geleiras, bem como por montanhas demuitas brechas, que se erguiam, alcantiladas, por cima domar. Eles viram os primeiros mosquitos pequenos; o número

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dos pássaros ia aumentando acentuadamente, na medida emque eles se aproximavam das áreas mais amplas deacasalamento e de criação de aves; as sombras iam tornando-se mais curtas, a cada novo giro do Sol; e os ventostransportavam a fragrância distante do mar aberto, o cheiroda bruma, das ervas e das flores.O fulgor do Sol estava violento e ferino; o gelo tremeluzia porbaixo dos rodízios; e a gente podia ouvir o roncar e oturbilhonar nas águas que se agitavam por baixo, bem pertodos pés. Os viajores foram encontrando cada vez maiscalhaus, no mar, que os forçavam a desviar-se do rumoescolhido; e quando viram o trecho inóspito de geloamontoado, que lhe ficava à frente, tiveram de abandonar ooceano e continuar a jornada por terra firme.Ali, o avanço era tortuoso e árduo; o caminho passava atravésde vales hiantes e por baixo de alturas assustadoras. O trenósacolejava e pulava por cima do chão irregular; e os seusocupantes se viam obrigados a segurar-se nos estais e nascorreias. Os pedaços de gelo, projetados pela velocidade damarcha, embaraçavam sempre os arreios. Quando elesdesceram por uma geleira abaixo, a âncora teve de ser atirada;além disto, os cachorros tiveram de ser amarrados atrás dotrenó, com o propósito de servirem de freio. Nas subidas, todagente tinha de descer e empurrar o veículo para cima.— O xamã não terá mais apenas uma, e sim duas costas paraconsertar — dizia Asiak, depois de cada esforço dessa ordem;e os seus filhos se dobravam de rir.Os viajores contemplaram o Sol, que não conseguia nuncaelevar-se ao nível do horizonte, no centro do céu; parecia

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estar cansado de suas andanças, e que começava a oscilar.Fazia-se maior e mais ricamente colorido, na medida em quese aproximava do horizonte, adquirindo cor opulentamentedourada; depois, essa cor se transformava em açafrão, em cor-de-rosa, em vermelho, em púrpura, em cor de malva, e,finalmente, o Sol inteiro mergulhava por trás e para baixo dalinha do céu, deixando um rasto de sangue. O dia desaparecia.O outono estava em andamento. A luz esmoreceu, enquantoas cores se dissipavam; e a Terra estremeceu, em presença daameaça da noite.E, na quietude do mundo que se encontrava à espera daescuridão, na luminosidade sem luz do anoitecer, os viajoreschegaram apenas a tempo de contemplar o espetáculo dooceano liquefeito, pontilhado de icebergs e de blocosflutuantes, que iam deslizando ao léu, lentamente; tanto osicebergs como os blocos constituíam novidade — e novidadequase que inacreditável — para Papik e Ivaloo.— Isso se parece com o céu — gritou Papik.— Parece mesmo — disse Ivaloo, contendo a respiração. —Parece-se com o céu, com água dentro.

CAPÍTULO VIIIFIM DE UM HOMEM

A aldeia, plantada numa enseada e como que encolhida numaponta de terra, era limitada por grandes aclives nevados, bemcomo por grandes geleiras; aclives e geleiras iam, depois,descendo para dentro do mar, do outro lado. Mais além,

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erguiam-se montanhas cobertas de neve, com sopés de cornegra e marrom. Papik e Ivaloo nunca tinham visto umacomunidade tão numerosa: ali havia três casas comunais, emforma de quadrado; havia, igualmente, moradiassemipermanentes, construídas de neve e de terra, bem comode ossos de baleias; e havia também um punhado de outrasresidências, em forma de lança, destinadas a abrigar uma sófamília.E havia até, ali, uma casa inteiramente construída de madeira.A curiosidade era recíproca. Em sua maior parte, os aldeõesnão tinham posto nunca os olhos em habitantes do nortemisterioso. Por isto, eles se agruparam ao redor do rústicotrenó forasteiro, todo ele feito de carne e de ossos. Cautelososde início, depois com familiaridade crescente, os aldeõesabriram os fardos e os revistaram todos. Encontraram váriascoxas de ursos, de que se apoderaram com gritos de alegria.Ernenek sentiu-se encantado; mas não por muito tempo.Para sua grande mágoa, um acontecimento estavadesenrolando-se; e suplantou a novidade da sua chegada.Durante o verão, escolhendo o seu caminho por entre osblocos quebrados de gelo, um bote enorme, dispersando rolosde fumaça, tinha entrado, por seus próprios meios acionados avapor; ah, desembarcou seis homens brancos, e descarregoupilhas de caixas de carvão e madeira. O bote zarparaimediatamente, de medo que o mar se fechasse de gelo e oprendesse ali durante todo o tempo, até ao verão seguinte.(Que é que havia naquilo? Por que é que os homens brancoshaviam procedido com semelhante pressa malsã?). As caixascontinham utensílios e instrumentos misteriosos. Havia, por

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outro lado, madeira suficiente para construir, como seconstruiu, uma casa toda de tábuas, desde a base até ao teto;nessa casa, os homens brancos tinham passado as últimassemanas, aquecidos por um fogareiro alimentado a carvão, enutrindo-se de víveres enlatados, bem como de bebidasengarrafadas.Asiak sentiu-se aliviada ao verificar que aqueles indivíduosnão eram aplicadores das leis dos homens brancos; eram, sim,exploradores, interessados na situação da terra e não nosnomes dos homens.Estavam esperando que o oceano se congelasse, a fim derumar para a frente e para cima, através e além da terra dosesquimós polares. Planejavam viajar à maneira dos nativos,em forma de unidade auto-suficiente — levando pequenacarga, com poucas provisões, construindo abrigos commaterial retirado do chão, e extraindo combustível e alimentodo oceano, na medida em que avançassem.Tudo isto Ernenek veio a saber da parte de Siorakidsok, oxamã local, em cuja moradia, feita de neve, toda acomunidade se havia reunido para tomar conhecimento dasnotícias que o vento do norte havia trazido.Papik e Ivaloo comportaram-se como tímidos em presençadas novas fisionomias, bem como à vista do meio-ambienteque não lhes era familiar; e sentiram-se atordoados com amultidão daquela gente. Contudo, apesar de toda a tontura,Ivaloo viu Milak muito claramente, embora ele estivessesentado tão longe dela quanto lhe permitia a grandeza dosalão. Milak também estava olhando para ela — com olhos

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como que famintos, e com um franzido na testa, que seformava e tornava a dissipar-se.Siorakidsok era homem pequeno e vivaz, com olhos queardiam como brasas em órbitas afundadas por baixo de umafronte que pulava para a frente. Gostava de dizer que tinha aidade de vinte gerações, o que significava, no caso, apenas"muito velho"; e ele assim se expressava porque, entre oshomens, nem sequer um mestre da Matemática era capaz decontar até tão grande quantidade. Siorakidsok era paralíticoda cintura para baixo, e tinha ouvidos duros. Fora somentedevido à sua grande reputação, na qualidade de xamã, emíntima aliança com os espíritos bons e maus, que ele deixarade ser abandonado em cima do gelo. Não tinha dentes; e suasnetas — ou talvez fossem bisnetas — Torngek e Neghepreparavam os seus alimentos; preparavam-nos com seuspróprios dentes, e alimentavam-no boca a boca.Torngek, a mais velha, tinha dois maridos; sendo caçadores desegunda categoria, os dois decidiram dividir os deveres e asalegrias da vida conjugal. Mas o marido de Neghe era grandecaçador; era o verdadeiro provedor da família e o hder nãonomeado da comunidade. Seu nome era Argo; e ele segloriava de possuir tantos dependentes, que toda a gente ocontemplava com inveja e admiração.Não somente Argo possuía uma espingarda, que funcionariase tivesse munição para ela, mas também o seu lar seorgulhava de ser dotado do único fogareiro Primus, quefuncionava sempre que houvesse querosene disponível. Afamília só havia usado esse fogareiro para preparar chá a todapressa; todavia, a contar da chegada dos homens brancos,

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tinham também cozinhado nele as suas comidas, umas poucasvezes, apenas para descobrir o que era que os homens brancosviam naquilo. Carne fervida era coisa que os esquimós podiamtolerar; se, porém, a carne fosse assada em cima do fogo, eles,os esquimós, não podiam comê-la, e menos ainda suportar-lheo cheiro. Porquanto aqueles aldeões eram sulinos apenas emrelação aos esquimós polares; e para estes, toda gente erasulista. De acordo com o conhecimento adquirido peloshomens brancos, a aldeia mencionada constituía o ponto maisnorte da existência humana; e seus habitantes nunca tinhamvisto, e mal haviam tido notícias dos homens brancos.Exceto o caso de Milak, que era viajor inquieto, e deSiorakidsok, que era homem que tinha visto tudo, inclusive oHomem na Lua.

Neste mesmo momento, uma enorme chaleira, cheia de nevee de postas das coxas de urso de Ernenek, tinha sido colocadaem cima do Primus, para ferver, porquanto os homensbrancos haviam cedido algum do seu querosene, e prometidoaparecer.A um canto, via-se uma grande calha de pedra, pela qual,todos passavam as suas águas servidas, valiosa para curtimentode couro e para lavagem de roupa. Algumas mulheres ealguns homens fumavam cachimbos feitos de pedra-sabão; eas fumaças do seu fumo — fumo este feito de folhas secas deniviarsiak e de mirtilo — misturando-se aos cheiros das coisascozidas e do querosene, se tornavam ofensivas às narinas dosesquimós do norte.

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Enquanto, porém, Asiak arreganhava o nariz, e seus filhosficavam a contemplar, com estupefação muda, os costumesforasteiros, Ernenek se pôs radiante de alegria, devido àmudança de ambiente e à novidade da companhia.—Por que é que os homens' brancos vão para o norte? —gritou Ernenek, pela terceira vez, para dentro da orelhagrande, porém insensível, de Sioralddsok; ao gritar, ele seconservava de pé, por baixo do teto alto, feito de neve,suportado por traves de osso de baleia.—Eles querem ver o que é que há por lá — respondeuSioralddsok, depois de longo tempo, arreganhando numsorriso a boca negra e sem dentes.—Um homem pode dizer-lhes o que é que há lá pelo norte!Há gelo; há grandes planícies de gelo. E há terra, também; etudo é coberto de gelo e de neve endurecida. Por cima degelo, há vento.Em cima, e, às vezes, por baixo dele, há ursos. Sob o gelo, hápeixes e focas.Ernenek ia falando por entre explosões de gargalhadas, eprosseguiu:—Diga-lhes que não percam tempo. Não há coisa alguma,além disso.—Eles querem ver com os próprios olhos. Não acreditam noque os homens lhes dizem.— Por quê?— É possível que eles não compreendam a língua doshomens; que não a compreendam suficientemente bem. Elesdizem que querem fazer desenhos e imagens daquilo quevêem. Eles dizem — e aqui Siorakidsok se inclinou para a

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frente, com um sorriso que lhe arreganhou o rosto inteiro,fazendo com que sua pele se transformasse numa rede derugas — que desejam medir o frio e pesar os ventos.Todos se contorceram de tanto rir — até mesmo os que jáhaviam ouvido essa comunicação antes.— Eles prometeram uma espingarda e duas facas de aço,além de grande quantidade de munição, para cada homemque for em sua companhia; de modo que toda a gente está sedispondo a ir; até mesmo os meninos e os anciãos.E Siorakidsok prosseguiu:— Mas não foi fácil convencer os homens brancos a levar asmulheres também. Pensavam eles que poderiam viajar semmulheres.Também isto provocou risadas gerais.—Como é que se pode ser tão estúpido? — continuouSiorakidsok, que, graças à sua surdez, não sofria interrupções;desta maneira, seus discursos eram freqüentes e longos. —Quem é que acende a lâmpada, enquanto os homens enterramo trenó? Quem é que prepara o chá, enquanto os homens vãoà caça?—E então? Que é que ficou resolvido? — indagou Ernenek,impaciente.—Quem é que lhes seca as roupas, enquanto eles comem?Quem é que lhes conserta as roupas, e lhes amacia asvestimentas de couro, enquanto eles dormem?Siorakidsok foi para diante, sem ser perturbado:—Assim, alguém sugeriu que pelo menos as mulheres que nãoestiverem grávidas poderão ser levadas por eles; e, depois demuito tempo, os homens brancos acabaram concordando.

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—Perdoem a uma mulher, por falar — disse Asiak — masalguém pensa que essa sugestão denota grande sabedoria.Esta observação entrou pela orelha boa de Siorakidsok; e elemeneou a cabeça, manifestando plena concordância com oque foi dito. Ali estava, com efeito, uma mulher sábia,esclarecida, e que sabia discernir as coisas!— Alguém irá na viagem com os homens brancos — disseErnenek.Asiak atirou para trás a própria cabeça, mas não disse palavra.Foi Ivaloo quem, superando a própria timidez, falou:— Os homens brancos não podem usar um homem quetenha as costas duras. Você fez esta viagem para ver se lheconsertam e não para começar uma nova aventura.Ernenek bateu o pé no chão:— Uma jovem estúpida, que nem sequer ainda riu comhomens, a falar dessa maneira ao seu pai! O mundo estámesmo indo a caminho dos cães!A seguir, Ernenek virou-se para Sioralddsok:— Você sabe como curar. Quer você curar as costas de umhomem, para que ele possa partir com os homens brancos?A surdez de Sioralddsok atingiu o máximo jamais registrado.Ernenek teve de aproximar-se bem; e Argo também seaproximou do ancião; e os dois repetiram, por várias vezes,gritando-lhe para dentro das duas orelhas ao mesmo tempo, oque é que se estava esperando dele.Depois de longo tempo, Sioralddsok meneou a cabeça, emsinal de haver compreendido.—Os homens brancos — disse ele — têm um xamã em seugrupo; um xamã que pode fazer coisas notáveis. Ele enfia

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agulhas tinas no braço da gente, e, logo após, todasensibilidade desaparece; então ele corta fundo, na carne, semderramar sangue. Procure o xamã branco; e somente se elefracassar é que alguém perturbará os espíritos dos homens.—Vamos ver se os homens brancos estão prontos para noshonrar, compartilhando da nossa comida — disse Argo. —Foi para eles que nós pusemos a cozinhar a carne de urso. Elesnunca provaram carne de urso.Quando os seis homens brancos entraram, espalharam osilêncio ao seu redor. Papik e Ivaloo sentiram-se aterrorizadose estupefatos. Na época em que um homem branco passou oinverno com eles, Papik e Ivaloo eram muito pequenos, e,portanto, já não se lembravam dele agora; todavia, tinhamouvido dizer que os homens brancos possuíam pés de caribu.Aqueles dois estavam usando botas, de modo que a gente nãopodia averiguar nada; podia-se ver, porém, que possuíammãos desproporcionadamente grandes. Os homens brancoseram todos bastante jovens, de aparência atlética, com barbadensa. Dois deles falavam a língua esquimó; e a falavam muitobem, para homens brancos. Eles explicaram que a expediçãopoderia utilizar-se dos serviços de Ernenek, desde que suaespinha estivesse em bom estado.O exame médico foi breve. Ernenek deixou que suas calçasdescessem; e o xamã branco, um dos homens mais moços dogrupo de homens brancos, depois de abrir espaço ao seuredor, de encontro ao apertado círculo de espectadores, bateu,comprimiu e apalpou as costas robustas de Ernenek; por vezesfez-lhe cócegas, obrigando-o a dar umas risadinhas mal

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contidas. A seguir, o xamã branco endi-reitou-se esentenciou:— Não há nada que se possa fazer.Todos olharam, ansiosos, expectantes, para Siorakidsok; era avez dele.— Um xamã precisa primeiro aconselhar-se com o Espíritoda Lua. Ao contrário do homem branco, o xamã nativo émuito estúpido, e deseja pedir conselho — disse ele.Entretanto, visto como a consulta ao Espírito da Lua exigiriatempo equivalente a vários giros do Sol — e nem Ernenek,nem Siorakidsok, nem ninguém mais desejava adiar por maistempo o banquete — Siorakidsok foi facilmente persuadido adeixar de lado, pelo menos dessa vez, a consulta ao Espírito daLua, e a confiar exclusivamente em sua própria experiência.— Alguém — anunciou ele — vai extrair sangue das costasdesse homem; e, com o sangue, o espírito mau, que lhe entrouno corpo, fluirá para fora. Torngek: vá buscar os meusinstrumentos!E, enquanto a sua neta favorita correu para satisfazê-lo,Siorakidsok começou a vibrar pequenos golpes às costas deErnenek, fazendo uso dos próprios punhos fechados.Quando Siorakidsok pensou que as costas já davam sinal deestar maduras para a sua intervenção, tomou, das mãos deTorngek, uma lanceta de sílex; enfiou-a no intervalo daquinta vértebra; golpeou-a com um pedaço pesado de rocha;e, depois, puxou-a para ora. Um jorro de sangue se seguiu. Oxamã nativo curvou-se para a frente; colou seus lábios àferida; e sugou, com toda a força de que dispunha.

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— Agora, traga-me uma lâmpada — disse ele, lambendo ospróprios lábios.Tomou um pouco do musgo flamejante, que se encontrava nalâmpada, e atirou-o ao ferimento; soprou tudo com seu fôlego.Quando o musgo se consumiu, o xamã gritou:— Cubram todos os presentes a própria cabeça, e abram oteto, para que o espírito possa voar para longe!O tampão foi puxado para fora do ferimento fumegante, etodos os espectadores cobriram a própria cabeça com osrespectivos paletós; os espíritos detestam ser vistos quandovoam e se vão embora. As costas de Ernenek foram golpeadasde novo, e um coro de lamentos e de gritos marcou o ritmodos golpes — tudo destinado a apressar a partida do mauespírito.Quando as vozes começaram a ficar roucas, Siorakidsok deupermissão para que os presentes se descobrissem. Ernenekpuxou as calças para cima, com um suspiro de alívio.—Você pode curvar-se?—Não — disse Emenek, acarneiradamente.— Isso quer dizer que há mais demônios, que ficaram dentrodo seu corpo — declarou Siorakidsok, em tom como que decensura, enxugando o suor do próprio rosto — e isto porque oxamã viu distintamente um espírito voar para longe. Teremosde fazer esta operação outra vez, dentro de pouco tempo; dapróxima vez, porém, não sem consultar, primeiro, o Espíritoda Lua.Feito isto, todos retomaram, felizes, aos respectivos lugares: oshomens, no círculo interior; as mulheres, no fundo, prontaspara ecoar o divertimento dos seus maridos.

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À essa altura, todos estavam com bastante fome; e as iguariaslongamente esperadas foram sendo passadas de mão em mão:estômagos de boi almiscarado, cheios de musgo e líquen;patinhos não depenados, que tinham estado a apodrecer emtripas de foca, estofados com óleo endurecido de baleia, e queapresentavam a carne sedutoramente cor de púrpura, devidoà química da decomposição; intestinos crus de pássaros; limoraspado de mergulheiras, e amaciado com urina humana,usada no curtimento de couro; larvas bichadas de moscas decaribu; excrementos de homens brancos, tornados maisinteressantes com mistura de sebo e de dejeções de rena.A panela, em cima do Primus, estava começando a ferver; evozes e risadas altas encheram o salão com um ar deamenidade social.—Qualquer homem se consideraria afortunado, se fossedeixado a sós com tantas mulheres — Siorakidsok procurouconsolar Ernenek, que estava com aspecto mais negro do queo inverno.—Mas de nada lhe valerá isso, uma vez que suas costas sãoduras — disse Argo, provocando tempestades de gargalhadas.—Ele pode ou não ser perigoso para as mulheres? — indagouum dos maridos de Torngek, dirigindo-se a Asiak; esta,porém, fugiu de dar a resposta, explodindo em risos.—Assegura-se que um homem que não pode ser perigoso aum urso também não pode ser perigoso a uma mulher —explicou Argo. — Ou será que se trata precisamente docontrário?Em outras circunstâncias, Ernenek ter-se-ia sentidoencantado por se encontrar em semelhante companhia,

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brilhante e espirituosa, esta vez, porém, sentia-se aborrecido.Antes daquele dia, nunca lhe acontecera deixar de serconsiderado capaz de participar de uma grande aventura; asiguarias do sul dissipavam, na verdade, os enrugamentos doseu estômago, mas não eram suficientes para apagar aamargura do seu coração.Conservando-se de pé, de pernas abertas e braçosesparramados com as mãos à cintura, à luz mormacenta dodia, que se filtrava através de lâminas claras de gelo e dejanelas feitas de bexiga de foca e caribu, Ernenek constituíafigura impressionante, em suas roupas frouxas de pele de urso.Ele não era o indivíduo mais alto; mas era, sem dúvida,visivelmente, o de peito mais largo do grupo. Seu maxilarinferior era coisa de se contemplar com temor, mesmo agora,quando alguns poucos dentes lhe faltavam; os músculos, porcima das orelhas, subiam-lhe até à parte de cima do crânio; e,quando ele falava, um diafragma poderoso entrava em ação,para lhe dar apoio às convicções.Ele roncou, pigarreou, cuspiu uma cuspida que chegou aooutro lado da sala, e irrompeu em voz alta, de modo que atéSiorakidsok pôde ouvi-lo pela primeira vez:— É vergonhoso que um grupo de sulistas fraquinhos, queprecisam de um número infinito de cachorros para caçarursos, e que preferem caçar focas por se tratar de caça menosperigosa, venha alar desta maneira a um homem que já abateuursos em número maior do que o das tordas mergulheiras quevoam pelo espaço; e que fez isso sem usar outra coisa além dasua lança e da sua astúcia. Será que algum, dentre vocês, játeve de lutar com um urso, depois de partir-lhe a lança, e de

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lhe abrir o ventre, na luta, com uma faca? Ou será que algumde vocês já puxou uma morsa para fora da água, pelo nariz,esmagando-lhe o crânio com os punhos nus?A barulheira das risadas que saudaram cada uma das suassentenças fez com que o sangue subisse às faces do esquimó.Ele não percebeu que as risadas se deviam exclusivamente aoseu jactancioso auto-elogio, bem como à sua rusticidade semprecedentes.Asiak tinha consciência de que o comportamento de Ernenekem sociedade deixava muito a desejar. Ela se sentiagrandemente embaraçada; e ficava o tempo todo a enrugarpara ele as próprias sobrancelhas, em sinal de reprovação;fazia isto em rápida sucessão, procurando atrair-lhe a atenção;mas ele não achou que deveria dar mostras de estarcompreendendo os sinais. Os seus filhos, ao contrário, semostravam zangados para com a multidão. Para Papik eIvaloo, afigurava-se que, em qualquer acontecimentomundano, a presença de Ernenek deveria ser considerada umornamento e uma honra. Papik pôs-se de pé, como se foraacionado por uma mola, e gritou:— É como o pai está dizendo!E Ivaloo acrescentou, enfurecida:— O fato de vocês não saberem que espécie de homem ele ésó revela a ilimitada ignorância de vocês, os do sul!E Emenek — para que todos os ali presentes começassem asaber que espécie de homem ele era — ergueu a enormechaleira; a seguir, atirou-a, com toda a força, ao chão,partindo-a, demonstrativamente.

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O rústico lençol de neve era velho e batido; nele, as passadasde Ernenek produziam sons de esmagamento, enquanto ele seesforçava por marchar por entre as colinas, rumo ao vale dageleira. O esquimó sentia-se cansado da viagem; estava fraco emeio tonto, devido à perda de sangue; e suas costas lhe doíam,irradiando flechadas de dor para as pernas. Contudo, uma doré sempre mais fácil de ser suportada do que uma ânsia; e eleansiava por mostrar, àqueles desprezíveis sulinos, aquilo deque um homem de verdade era capaz.Esta era a razão pela qual ele deixara a companhia alegre daspessoas que se encontravam na casa de Siorakidsok.Os rumores da aldeia chegavam facilmente aos seus ouvidos,através do ar tenso e revigorante. Quando fazia calor, ou seestava em vésperas de cair neve, os rumores não seprojetavam para muito longe; entretanto, com a atmosferabem fria, a voz de um homem poderia ser ouvida à distânciade um dia inteiro de viagem. Houve o barulho de uma brigade cachorros; o da litania de uma mulher; o rascar áspero deuma serra feita de osso maxilar; e a algazarra alegre decrianças que desciam, como se fora de tobogã, por umaencosta abaixo, sentados numa pele de foca.E, bem à frente do seu nariz havia o zunir persistente demiríades de pequenos mosquitos, que ele aspirava, na medidaem que avançava, e que ia esmagando entre a língua e aabóbada palatina, a fim de lhes saborear a doçura amargosa.Quando ele chegou à periferia inferior da geleira, passou amanter fixos os olhos no chão, até descobrir pegadas de urso;e acompanhou-as até à base da geleira. Aquelas pegadasdeveriam ser de um urso acossado por grande fome, porque se

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apresentavam muito juntas umas às outras, com os dedosapontando para dentro; isto denota sempre um animal magro.Todavia, Ernenek perdeu de vista as pegadas no chão rochoso.Depois, percebendo dejeções de urso na distância, foiconduzido a novas pegadas.As novas pegadas o guiaram através de uma pequenapassagem, entre cabeços rochosos. Os sopés íngremes e ochão, que tinham sido expostos aos raios do Sol, durante overão, estavam secos; mas os pontos batidos pela sombraapresentavam neve e gelo velhos. A dor, as costas de Ernenek,aumentou com o esforço da subida, e se espalhou pelasvirilhas; e então ele se inclinou, apoiando-se pesadamente emsua lança. Para se mover com desembaraço, ele havia deixadoo arco lá atrás; mas, em sua bota, conduzia a sua faca maisafiada e mais aguda.Numa faixa de neve, por trás de um cabeço, um filhote deurso estava brincando com sua própria perna traseira. Seupelame era curto e lanoso; seus olhos, muito pequenos,olhavam, com vivo interesse, para um mundo cujos perigosainda não havia provado, nem conhecido. Ernenek atirou-seao chão, e começou a jeremiar, emitindo sons queixosos,suaves e prolongados. O ursinho olhou para cima, e estudou aforma estranha do homem na neve. Depois de uns momentos,aproximou-se, farejando o ar; seu pequeno focinho, pontudo,movia-se como se fosse um dedo.O cheiro por ele ainda não provado, de um homem, nada lhesignificava.Todavia, o primeiro encontro, do ursinho com o homem, foisúbito e penoso. A mão de Ernenek se esticou para a frente;

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apanhou o ursinho pela garganta macia e quente; depois,gemendo de dor, o homem se pôs de pé, pelo recurso de sepuxar a si mesmo, agarrando-se a um muro de pedra. Oursinho emitiu gritos roucos, pondo à mostra a língua azul eos dentes limpos, ao mesmo tempo em que se contorciamalucamente, para se desvencilhar do agarramento deErnenek. Quando o ursinho se cansou de gritar, Ernenekcutucou-lhe o ventre com a lança; e ele tornou a gritar, aguinchar, a ganir, de maneira que a Ernenek se afiguroudeliciosa.Por fim, a mãe do ursinho apareceu.Ernenek ouviu-lhe o arquejar, no topo do cabeço por baixo doqual ele se encontrava; e recuou, à espera do assalto. A ursadesceu, com um rumor surdo, de coisa rolada, na garganta; edesviou-se na sua direção. Ernenek atirou-lhe o ursinho aonariz, ganhando tempo, dessa maneira, para agarrar a lança.Assim que a ursa se ergueu, apoiando-se em seus quartostraseiros, ele a golpeou dentro da boca.A ursa agarrou a lança com as duas patas dianteiras, como quenum esforço para arrancá-la; em vez disto, porém, quebrou-a,porque a lança fora concebida de forma a deixar a pontafarpada dentro do corpo em que penetrasse; e só um pedaçoda haste continuou nas mãos de Ernenek. O animal malemitiu um suspiro: um jorro de sangue esquichou doferimento, fumegando no ar frio; ouviu-se um rumorgorgolejante; e lá se extinguiu a ursa, tombando de um lado,enquanto o ursinho dali fugia, espavorido, a gemer. Erneneklançou olhares ao redor, para ver se o macho daquela fêmeaestava aproximando-se.

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Estava.Contudo, o urso ainda não tinha localizado o inimigo, nemavistado a companheira agonizante; ouvira apenas osguinchos do filhote, que anunciavam situação de emergência.Sua visão ficava em terceiro lugar, quanto à agudeza, vindodepois do seu faro e da sua capacidade de audição; e então ourso se pôs a farejar o ar.Em sua juventude, Ernenek costumava molhar o seu própriolábio superior, com a língua, para assegurar-se da direção dovento; mas a sensibilidade já o havia abandonado; por isto, elearrancou um punhado de pêlos do couro de suas calças, eatirou-os ao espaço. Estava salvo; o urso encontrava-se quaseque exatamente em direção oposta à do vento.O ato de retomar a ponta da lança que estivera embebida nagarganta da ursa — que rolara para longe dele, a fim demorrer — não era coisa que se afigurasse brincadeira;principalmente para um homem que não podia curvar opróprio corpo, e que não desejava ser ouvido. Ernenek estavaescondido, à vista do urso-pai, apenas pela muralha de rocha.Em conseqüência, manteve-se imóvel; e esperou.Encontrando-se do lado de onde vinha o vento, podia ouvir arespiração da fera; por vezes, continha a própria respiração,para ouvir a do animal. O urso estava movendo-se em direçãocontrária. Logo Ernenek estaria em condições de recuperar opedaço de sua lança, e assim de convidar o urso a dançar. Elecomo que sorriu consigo mesmo, de língua encostada a umadas bochechas, ao imaginar a fisionomia atônita dos aldeões,quando vissem a sua presa. Sim. Ele ainda era capaz de dardor de barriga a uma aldeia inteira!

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O número dos mosquitos tinha aumentado; os insetosestavam sendo atraídos pelo cheiro do sangue. Ernenekaspirou profundamente, enchendo a boca com um enxame demosquitos. Antes que ele o percebesse, um dos mosquitos foraarremetido contra uma das suas tonsilas, induzindo-o a tossir.Daí por diante, as coisas aconteceram com grande rapidez,umas depois de outras. Depois de acusar a sua presença,Ernenek atirou às favas toda a precaução, correu para a ursamorta, atirando-se ao chão e começando a desembaraçardesesperadamente a sua arma. Todavia, enquanto os vermesdo medo faziam cabriolas em suas tripas, e ele atirava olharesangustiados à rocha que ficava por cima, algum recanto doseu próprio cérebro se pôs a gozar amalucadamente aqueleespetáculo, pensando na ótima narrativa que aquilo daria,para ser contada lá em casa.A esta altura, já o urso-pai surgia à vista, como que valsandopela encosta abaixo; a encosta era uma laje de ardósia; o ursodesceu mais devagar, mais cauteloso, com mais decisão do queaquela com que a fêmea descera. Era desusadamentecomprido e fino; suas garras esmagavam detritos e raspavam arocha.Ernenek mal acabava de retomar sua lança; e estava puxando-se a si mesmo, ao longo do muro de rocha, quando a besta-fera, percorrendo o último trecho de chão, num troteacelerado e gingado, correu para ele, erguendo-se nas patastraseiras e abrindo as dianteiras. Ernenek mirou vagamente— mais por instinto do que por intenção, para a qual já nãohavia tempo algum; e vibrou um golpe contra a cavidadeaberta, que torreava por cima dele. A ponta de lança, já

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ensangüentada, entrou na boca do urso, e apontou para afora,através de um dos flancos de sua cara. Isto desviou o ataquena medida de uns dois centímetros e meio — e atrasou omomento decisivo na medida de uma batida de coração. Estefoi o momento que Ernenek aproveitou para atirar-se aochão, de costas, rolar para um pouco longe do urso, e agarrar asua faca.Ernenek pôs-se de costas, deitado, muito bem — e lá se ficou.Quatrocentos quilos de regougante fúria vingativa tombaramsobre ele, comprimindo-o de encontro ao chão e fixando-oah. Ele atirou seu antebraço exatamente a tempo por entre asmandíbulas hiantes do animal, no momento em que arespiração fumegante da fera já lhe ia esquentando as faces.Percebeu que sua própria coxa estava esmagando a faca,estando esta, já agora, inacessível.O urso já estava mastigando-lhe a manga; as presas da fera jálhe atingiam a carne do braço; mas ele continuava a manter obraço de traves, dentro das mandíbulas. Ernenek tinhaaprendido a auferir prazer da dor física, a fim de suportá-lapor mais tempo. Com um movimento do punho, livrou-se daluva do braço direito; e apalpou o baixo ventre do animal, embusca de seus órgãos genitais.Conseguiu agarrá-los, com segurança; e puxou-os.Nem uma bala, através do coração, poderia ter produzidoefeito mais instantâneo. A fera afrouxou a mordida, ofegando,e cambaleou, apoiando-se nas pernas traseiras, como que seencolhendo para conter a dor de seus órgãos genitais. Osangue esguichou, escorrendo por entre suas patas dianteiras.

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Depois, o urso tombou de flanco, dobrou-se, e começou agirar no chão, colorindo de vermelho a neve ao seu redor.Ernenek debateu-se para se pôr de pé. Seu braço lhe doíamuito, agora, quando a fúria da batalha já se havia dissipado;suas pernas, fortemente machucadas, puxavam-no para ochão; mas, pondo em ação toda a sua força de vontade, eleconseguiu erguer-se. Gotas de suor, em sua fronte,proclamavam o esforço feito e a dor sofrida.Se, porém, ele tivesse que morrer, morreria de pé.Partindo da artéria rota de seu braço, o sangue jorrava emjatos que esguichavam a três metros, de distância, ao ritmo dapulsação do coração. O homem podia observar a diminuiçãoprogressiva de suas energias. Com as forças que ainda lherestavam, tudo o que ele pôde fazer foi premer o cotoveloesquerdo, para conter a dor; e contemplar a vida que seesvaía.Os mosquitos dançavam diante do seu nariz. Uma ptármigacacarejou. Da aldeia, chegou um chamado de mulher. Umafuinha estava à espreita de uma presa invisível. Um bando demergulheiras, de canto suave, estava como que provando suasasas contra o ar parado, antes de partir para o sul.Poderia aquilo ser a morte? Tão clara? Tão simples? E assim,sem aviso.

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CAPÍTULO IXFIM DE UMA MULHER

Papik e Ivaloo choraram, lamentaram e bateram a cabeçacontra a parede; mas Asiak, deixando de lado as boasmaneiras, não acusou pesar algum. Ela, apenas tomou seusfilhos nos braços, como quando eles eram crianças — epequenos eram eles, agora, em seus braços, enquanto ela osfarejava e banhava as próprias faces nas suas lágrimas.O corpo fora encontrado por Papik, que havia seguido a trilhado pai, e lhe carregara o corpo de volta, para a casa deSiorakidsok, na esperança de que o xamá ou os homensbrancos pudessem devolvê-lo à vida. Papik nada sabia arespeito da morte; do contrário, teria deixado o cadáver ondeo havia encontrado, poupando a todos grande quantidade deincômodos.Somente as mocinhas, que ainda não haviam atingido apuberdade, e as mulheres anciãs, que houvessem passado aidade fértil, tinham permissão para tocar no corpo morto,usando luvas até aos cotovelos. Elas lavaram o cadáver emurina, amarraram-no em posição como que dobrada sobre simesmo; amarraram-lhe as mãos e os pés a fim de estropiar ofantasma; e taparam as narinas com musgo.— Por que é que nós não podemos levar simplesmente ocorpo de volta às colinas, como sempre fazemos com os nossosmortos? — perguntou Asiak a Siorakidsok, que estavaatuando como mestre e cerimônias. — Os animais disporãodele, e ninguém será incomodado.

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— Visto que alguma pessoa amalucada achou que ficava bemcontaminar esta casa com o cadáver, nós agora temos de fazertudo o que estiver ao nosso alcance para nos proteger contra ofantasma que possa estar flutuando na sala — disse, muitopreocupado, o xamã Siorakidsok.Por cima do cadáver nu, dobrado sobre si mesmo e amarrado,um buraco foi aberto no telhado da casa, à guisa de lugar depassagem para a alma. Todas as mulheres choravamassustadoramente; entre os repentes de choro, todas louvavamirrestritamente o morto, com o propósito de dispor bem a suaalma para com elas; ao mesmo tempo, os homens batiam noscachorros das matilhas, com bastões pesados, a fim de quetambém os cães contribuíssem para a manifestação geral depesar.Também os homens brancos foram ver o morto; mas nãochoraram, nem surraram os cachorros.Entre eles figurava um pregador, que se havia juntado àexpedição a fim de levar a Tocha até aquelas paragensnórdicas ainda não iluminadas pela fé cristã. Fez-se silêncio,quando ele entrou na casa. Era homem de corpo robusto, deestatura média, de compleição flórida e cabelos louros, coisaque lhe havia valido o cognome de Kohartok, ou Cabelo-Sem-Cor. Sua barba, que fluía lisa e macia, tendia para o vermelho;e seus olhos eram de cor azul aguada, muito pura.O sacerdote aproximou-se do homem morto, e proferiu umdiscurso. Devia ter passado um tempo considerávelaprendendo a língua esquimó, porquanto parecia ter poucadificuldade em expressar seus pensamentos nesse idioma.

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—Outro pecador está a caminho do seu último lugar derepouso — disse ele, olhando para o círculo dos ouvintes. —Mas encontrará ele o repouso? Eu duvido disso; porque estehomem está indo sem ter feito as pazes com o seu criador.Quando algo se faz muito tarde, é muito tarde. Assim, possaesta morte servir de advertência para aqueles que ainda não seentregaram ao Pai Eterno. Que isto sirva de chamado, paracada um e para todos, para que um e todos se arrependam dosseus pecados, porquanto o Reino dos Céus está à mão. Eutenho estado a dizer-lhes isto, sempre, desde a minhachegada, pois esta é a finalidade da minha vinda: difundir asemente entre vocês. Vim à saber que este homem era umgrande caçador. Mas que boa vontade poderão proporcionar-lhe, agora, os muitos ursos que ele matou? Por certo que elenão precisará das peles dos ursos que abateu, lá no fogo eternoem que está queimando-se agora. Não teria sido preferívelque ele tivesse passado menos tempo caçando ursos e maistempo curvado, a dizer preces, pedindo a Deus que lherelevasse os pecados? O Reino dos Céus, ao invés dasLabaredas do Inferno, seria agora dele; e ele poderia serenterrado no cemitério cristão, ao lado de Alinaluk, com umacruz por cima, em vez de ser escondido, como será, em terrapagã. Agora, nós só podemos rezar para que Deus tenhapiedade da arma do pobre pecador. Amém.—Que foi que ele disse? — indagou Ivaloo, dirigindo-se à suamãe, Asiak. — Você sabe o que os homens brancos queremdizer com as palavras que proferem.—Fique calada, agora — sussurrou Asiak. — Alguém não tema menor idéia do que ele quis dizer, exceto que chamou

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Ernenek de grande caçador. Cada tribo tem seus próprioshábitos, e os hábitos dos homens brancos são muito estranhos.Deve ser esse o modo deles aplacarem os espíritos e osfantasmas.Durante cinco dias, todas as mulheres ajudaram a lamentar amorte de Ernenek, chorando alto, batendo no peito epuxando os cabelos. Nem Asiak, nem seus filhos, tiverampermissão para descansar, e menos ainda para sentar, duranteesse longo período; e ninguém, nem mesmo os cachorros,recebeu alimentos, a não ser às escondidas.No sexto dia, o cadáver foi costurado dentro de peles; e osepultamento se realizou.Argo atravessou a parede, abrindo um buraco na casa de neve;por esse buraco, o cortejo fúnebre desfilou. A abertura foireparada imediatamente, a fim de impedir que a sombra deErnenek reencontrasse o seu caminho para aquela casa e alipraticasse suas manhas, como as almas dos mortos costumamfazer.O volumoso ataúde de peles foi posto no trenó de Ernenek,este conduzido por Papik, que vibrou porretadas, com ânimo,nos cães; as mulheres continuaram a chorar, a gemer e agesticular. Atrás de Asiak e de Ivaloo, seguiram Siorakidsok edois dos seus genros, os quais carregaram o tapete em que elese sentava.Fora das vistas da aldeia, a procissão parou; então, os homenscomeçaram a cavar uma sepultura. O verão tinha degelado osolo, até uns trinta centímetros de espessura; e nele avegetação já havia repontado; por baixo dessa vegetação,porém, o solo estava congelado, e não podia ser escavado; em

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conseqüência, fez-se um compartimento de pedras dentro doqual o ataúde foi depositado.Papik estrangulou o cachorro favorito de Ernenek, e deitou-oao lado do dono, juntamente com os petrechos de caça deErnenek e com uma lâmpada abastecida de grande quantidadede pavio e de óleo de baleia; a lâmpada, assim abastecida,destinava-se a iluminar a grande noite e a aquecer a terracongelada. Depois, todos os escavadores atiraram suas luvas àsepultura, e erigiram um monte íngreme de pedras pesadas,para proteger a sepultura contra lobos predadores e carcajusmetediços.Então Siorakidsok proferiu a sua oração de beira de túmulo:— Agora que vocês cobriram o homem morto com pedras,devem cancelar o nome dele de suas conversas, e também asua imagem da memória, e para sempre.O ar era varrido por golpes de vento, e os ouvintes nãoapanharam mais do que farrapos dispersos da elegia, deconformidade com o modo pelo qual o vento soprava.— Vocês tiveram cinco dias para chorar todas as lágrimasque valessem a pena ser choradas por qualquer homem, bemcomo para louvar quaisquer feitos que um homem pudesserealizar. Daqui por diante, não haverá mais pranto, nemlamentos. Este homem deveria ser invejado, pela vida queviveu, e não ser transformado em objeto de comiseração, peloseu fim. Todas as vidas têm de chegar ao seu término; e queimporta que se acabem mais cedo ou mais tarde, uma vez quese acabam? Tudo o que se acaba é breve. E será mesmo ummal o fato da vida ser breve? Não. Porque é a consciência de

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sua brevidade que a torna valiosa. E este homem tirou omaior proveito da sua vida.Ivaloo escondeu o rosto no capuz de sua mãe. Soluços elamentos poderiam ser assinalados até mesmo pelos ouvidosmais surdos. Siorakidsok estava radiante. Aquela foi, comefeito, uma cerimônia fúnebre brilhante.— Ele viu seus filhos já crescidos. Deu caça ao grande urso.Comeu consideráveis quantidades de comida, e,normalmente, da melhor. Parece até que matou um homembrancol Possam vocês, crianças, crescer e ser indivíduos tãorobustos e tão bem vistos pela sorte como ele. Agora,lembrem-se de apagar suas pegadas, com muito cuidado, nocaminho de volta: ninguém deseja ser seguido pelo espírito domorto. Esse homem está destinado a ter um espíritoparticularmente malfazejo.Todos menearam a cabeça, e murmuraram algo, concordando.— Assim que vocês voltarem às suas moradias, não percamtempo: lavem-se da cabeça aos pés, para o caso em que asombra do morto os haja conspurcado. Não se esqueçam deborrifar água no chão, a fim de que o morto tenha o seu gole;e, quando comerem, não se esqueçam de deixar cair pedaçosde carne no chão, para que o morto também possa comer.Depois, construam numerosas armadilhas simuladas, ao redorda aldeia, para dar, ao fantasma do morto, o maior susto desua vida, no caso dele um dia tentar voltar a nós!Dito isto, a reunião dissolveu-se. E Siorakidsok assegurou-se,pessoalmente, de que a sua retaguarda fosse apagando aspegadas.

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—Por que foi que você pôs fuligem nas suas sobrancelhas enas de sua filha? — perguntou o xamã a Asiak, quandochegou de volta à casa e lá a encontrou sentada, a um canto,com as calças de Ernenek à cabeça; estava ocupada com osseus petrechos de costura.—Nós não temos permissão para costurar durante um longotempo, porque o uso de instrumentos pontiagudos podemachucar o espírito. Mas os homens que deixaram suas luvasna sepultura dele precisam urgentemente de outras, porque seencontram na iminência e partir. O escurecimento dassobrancelhas constitui boa proteção contra a vingança dofantasma. Assim foi dito por minha mãe, que ficou sabendodisto por via de comunicação de sua mãe.— Mulheres, mulheres! — escarneceu Siorakidsok: —Sempre estúpidas e supersticiosas! Você está bem com a razão,pondo as calças de seu marido à cabeça, para lhe aplacar oespírito; mas a única salvaguarda eficaz, contra o tabu dacostura, consiste em traçar, com sua agulha, um círculo, nochão, e permanecer dentro dele até acabar de realizar acostura.— É maravilhoso verificar como você é sábio!E Asiak apressou-se a obedecer.A faixa de gelo cor de cinza, que tinha orlado a costa durantevários dias, mudou, nesse meio tempo, para a cor branca; istosignificava que o gelo já estava suficientemente grosso parasuportar o peso de nomens e de trenós; e que o espírito dageada perpassava ao ongo da superfície das águas,conquistando cada vez mais oceano, a cada nova hora que sepassava.

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Papik também estava partindo com a expedição.—Alguém vai conseguir, para seu próprio uso, espingarda efacas de aço; vai também aprender os modos de vida doshomens brancos, minha querida — disse ele à sua mãe quechorava, quando o seu trenó ficou pronto. — Então, alguémpoderá conseguir toda a carne e todas as peles que vocêdesejar.—Alguém gostaria mais que você não partisse, meu querido.Mas, se tem de partir, não se preocupe a respeito de umavelha mãe estúpida; pense, ao contrário, em Ivaloo; procurefazer com que ela venha a ser boa esposa de um bom homem,quando você voltar.Aqui, Mila, que se encontrava de pé atrás de Papik, interferiu.— Não há necessidade de esperar até lá. Alguém precisa deuma mulher que cuide de suas vestimentas, ao longo de umapequena viagem que está na iminência de empreender; e épossível que esse alguém deseje levar Ivaloo consigo.—É possível, mas não provável — disse Asiak.—Por quê?—Ivaloo é a filha inútil de uma mãe sem valor algum; e aindanão aprendeu bem como se raspam peles, nem sabe costurarcom alinhavo pequeno. Ela é ainda muito nova, e, por isso,não está pronta para ser digna de um homem de verdade.—Entretanto, alguém faria com que você recebesse umalâmpada destituída de valor, se a deixasse partir; com alâmpada, iriam umas poucas fitas coloridas, sem importânciaalguma, recebidas dos homens brancos; e iriam tambémpedaços desprezíveis de carne.

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—Uma certa mulher anciã já possui uma lâmpada; não temvalor bastante para usar fitas coloridas; e não se encontra commuita fome. Não, não, Milak. Fique com os seus tesouros; euma velha mulher ficará com a sua própria filha.Enquanto isso, Milak estava como que devorando Ivaloo comos olhos.—Se, porém, alguém voltar de sua viagem, como deverávoltar, poderá, então, ficar com Ivaloo, ou, pelo menos, rir umpouco com ela?—Não é possível.—Quando alguém voltar — disse Papik, dirigindo-se à suamãe — é bem possível que tome uma mulher para seu própriouso. Alguém já viu uma jovem adequada; mas ela lhe fugiu,toda vez que ele procurou falar-lhe.—Isso é bom sinal. O nome dela?—Vivi.Os homens brancos estavam acampados na ponta. Mas comtamanha freqüência precisaram os esquimós descarregar ostrenós e refazer os pacotes, para se recordar daquilo de que sehaviam esquecido, e com tamanha freqüência regressaram àssuas moradias, para tomar uma última chávena de chá, oupara uma última risada com aquelas mulheres que tinhamdeixado atrás de si — e tantas rédeas e tantas correias, bemcomo tantas peças de arreios se encontraram com necessidadede reparos, na undécima hora, ou foram quebrados na hora dapartida — que, antes de a expedição se pôr finalmente acaminho, o mundo já se havia escurecido consideravelmente.Esquecendo-se das convenções, Asiak e Ivalooacompanharam a expedição até determinada distância,

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juntamente com umas poucas crianças que eram novas demaise, portanto, não podiam conhecer as boas maneiras. Os ventosglaciais varriam a linha da costa, sob um céu carregado etorvo.Trinta e cinco esquimós, com igual número de trenós, dezmulheres e cinco homens brancos se encontravam a caminho,ao longo da faixa de gelo; e as matilhas como que apostavamcorrida umas com as outras. Papik estava na frente. Seuscachorros eram magros e fortes, devido à viagem aindarecente que tinham feito; ao passo que os cachorros da aldeiaainda se achavam gordos, pesados e lentos.—Por que é que você não deixou uma filha ir em companhiade Milak? — perguntou Ivaloo, procurando manter-se a pardos pensamentos de sua mãe, Asiak.—Porque não é prudente viajar com os homens brancos. Elessão perigosos e malucos. Uma mulher não poderá deter Papik,mas ainda poderá deter você.—Agora, alguém não conseguirá nunca um marido — gritouIvaloo, emburrada. — Milak era o único homem que jamaisdesejou uma moça.—Milak foi o único homem que viu você. Não se preocupe,minha pequena. Os homens gostam de mulheres bonitas; eassim que você se fizer um pouco mais forte, capaz decarregar boa carga às costas, encontrará facilmente até mesmotrês maridos que se sentirão felizes por tomar você por esposa.—Você está certa disso?

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— Muito certa. Você deve recordar-se de que uma jovem,ainda muito jovem, vale tão pouco, que, na maior parte dasvezes, é matada; mas, pela mesma razão, vale muita coisa,assim que se faz crescida, porque há muito poucas mulheres.Somente quando uma mulher chega à minha idade é quedeixa de valer alguma coisa; é que volta a não valer nada.Depois que Asiak e Ivaloo perderam de vista Papik, nocrepúsculo enevoado, voltaram para a casa de Siorakidsok,onde encontraram Neghe e Torngek, que estavam preparandoo chá, antes de se retirarem.O marido de Neghe, Argo, não sofreria escassez de mulheres;todos os homens, que tinham as esposas em sua companhia,teriam orgulho em emprestá-las a ele; nestas condições,Neghe não se mostrava preocupada com o seu próprio bem-estar. Torngek, porém, sua velha irmã gorda, estava emprantos, porque os seus dois maridos eram sempre tratadoscomo enteados, e ela queria acompanhá-los. Siorakidsok,todavia, gostava extremamente dela, e apreciava muito oconforto que ela lhe proporcionava; e, por isto, não semostrou disposto a deixá-la partir.—Uma velha mulher inútil e a sua filha ignorante vãoconstruir um iglu para seu próprio uso — comunicou Asiak.—Ninguém poderá censurar você por desejar afastar-se de umvelho homem paralítico e suas ridículas netas — disse o velhoSiorakidsok, depois de perceber o fio da conversa dela. —Entretanto, haverá uma tranqüilidade inusitada, por aqui; nãohaverá, nesta casa, homem algum; somente um punhado demulheres tolas, bem como de crianças idiotas, é quepermanecerá na aldeia. No último verão, aconteceu que um

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bando de bois almiscarados se arremeteu contra as flechas deArgo, inútil genro-neto de alguém; a caça de focas também foiboa; uma grande baleia foi arrastada à praia; e as reservas dealimentos são abundantes. Você gostaria de nos honrar,compartilhando de nossas desprezíveis provisões, eabrilhantando a casa de um velho homem com a suapresença?Asiak se viu como que erguida no ar; e respondeu no devidoestilo:—É, com efeito, grande honra a que você nos faz; mas nãoserá por acaso uma pena desperdiçar uma comida tão fina eacomodações tão confortáveis com duas mulheresamalucadas? Não, não. Estas duas mulheres devem construirseu próprio iglu!—Um velho homem se sente lisonjeado pelo fato de você lheaceitar a magra hospitalidade.Todos beberam chá; envolveram-se em peles; e cada qual sepôs de seu lado, para dormir.Asiak, porém, logo acordou.—Ivaloo, minha pequena — murmurou ela, sacudindodelicadamente a filha — uma mãe sabe que você precisa deorientação durante mais algum tempo; e sabe também quevocê não deverá ser deixada sozinha. Mas ninguém teráprazer em cuidar de uma velha mãe que já não tem valoralgum.—Que é que você está procurando dizer? — indagou Ivaloo,olhando para cima, através de uma cortina de sonolência.

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—Para uma mulher que a vida toda teve o privilégio deoferecer presentes aos outros, não é coisa digna aceitarhospitalidade de pessoas estranhas.Ivaloo ainda estava tonta de sono:—Que é que você pretende fazer, mamãe?—Partir, minha pequena. Mas nunca pense que uma mãeesteja amando-a menos, somente porque vai retirar-se. Vocêestá em boas mãos, aqui; abrigada e alimentada.Ivaloo ia acordando devagar.—Para onde é que você quer ir, pequena mãe? — gritou ela,alarmada, e atirando os braços ao redor do pescoço materno.— Você não vai abandonar-me também, não é mesmo?—Fique tranqüila, Ivaloo. Assim você acordará os outros.Torne a adormecer. Você tem ar de estar muito cansada. Umamulher se juntará ao seu marido, na terra distante, para ondetodos os homens vão; e lá ela ficará à espera de você.Ivaloo quis dizer mais palavras; mas a fadiga fez pressão sobresuas pálpebras; ela deixou que sua mãe a envolvesse eacomodasse melhor. Asiak farejou um pouco o rosto da filha;depois, sem fazer barulho, deslizou para fora da casa.O tempo tinha mudado para melhor; o céu apresentava-secom uma cor pura e pálida de noite. Uma mulher chamou porela, quando se encaminhou em direção ao mar. Asiak sorriu,como que distraída, fazendo uma saudação com a cabeça. Osrestos de morsas, narvais e de uma baleia branca seespalhavam pela praia, ao lado de duas grandes umiaques e deuma flotilha de caiaques, tudo cuidadosamente coberto porpeles; e longas fileiras de salmões estavam a secar nos varais.

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Asiak avançou para a faixa congelada do oceano, e caminhouna direção da água.Ela se interessou por dois meninos que estavam remando comdecisão os seus frágeis caiaques feitos de pele de foca e decalhaus dados à praia, através dos córregos de água queficavam entre massas flutuantes de gelo; por vezes, osmeninos atiravam flechas contra mergulheiras e alças, avesestas que, voando em formação cerrada, e estendendo-se emfilas infinitas, afloravam a água, à procura de peixes.Os meninos apresentavam-se abotoados até ao pescoço,metidos em jaquetas impermeáveis de tripa; as jaquetas, demangas bem apertadas à cintura e ao pescoço, e fixadas aoredor da escotilha, transformavam-nos em parte integrantedos respectivos caiaques; isto permitia que eles emborcassemas suas embarcações e depois as endireitassem de novo, semreceber nem deixar que a água entrasse a bordo. Dandoespetáculo de si, aos olhos de Asiak, os meninos seuseram a imprimir solavancos rápidos, na água; a virar os

caiaques, e quilha para cima, pelo processo de deslocar o pesodo próprio corpo; e a emergir logo depois, do outro lado,rindo para ela, com as faces engorduradas e a escorrer água.Asiak sorriu à memória de Ernenek; este, muitos e muitosanos antes, tinha tentado fazer uso de um caiaque; masdesprezou, com escárnio, o conselho sobre a maneira de ligara jaqueta à escotilha, de modo a tornar o todo impenetrável àágua; e, depois do segundo solavanco, o seu caiaque ficoucheio de água — o mesmo acontecendo ao próprio Ernenek.Mas a razão principal daquele naufrágio, como se percebeubem mais tarde, foi a de que, entre as vintenas de amuletos

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variados que ele estava usando na ocasião, em sua pessoa nãohavia um pé de mergulhão; e somente o amuleto feito de péde mergulhão pode proporcionar a habilidade necessária paraalguém lidar com um caiaque. Felizmente, havia umaumiaque nas vizinhanças; um dos baleeiros arpoou Ernenekexatamente a tempo, de modo que ele foi salvo deafogamento; Ernenek nada perdeu, a não ser a cara, e certaquantidade de sangue. Foi salvo para o urso.Ela ficou a olhar para os remadores de caiaques, até que eles,remando vigorosamente, desapareceram de sua vista. Entãoela avançou para a beira da faixa de gelo, onde este seapresentava acinzentado e quebradiço. Sob o peso de seucorpo, um pedaço de gelo se quebrou, separando-se do grossoda faixa; e deslizou para a correnteza. Asiak notou o fato, semprecisar olhar para trás, porque o pedaço de gelo foi girandodevagar, de modo que ela não tardou a ficar de face para aaldeia, vendo-se separada dela por um canal que cada vezmais se ampliava. Ela puxou a jaqueta por cima do peito,apertando-a bem — como se estivesse com frio.Entretanto, não estava com medo. A morte não poderia sermais árdua do que a vida.Duas mulheres a avistaram, enquanto Asiak flutuava em cimado bloco de gelo.—Asiak está indo a caminho da morte — disse uma delas àoutra.—Estará ela procurando afogar-se, ou se trata de acidente?—Quem sabe?Contudo, nenhuma das duas mulheres fez movimento algum,nem chamou ninguém para salvá-la. Sedna, a boa Rainha do

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Mar, que proporcionava todos os bons peixes e todas as boasfocas, estava perfeitamente habilitada a, de vez em quando,proceder à sua própria caça; tinha direito a isso; e, se ela sevisse roubada de sua caça, poderia vingar-se dos intrusos; e avingança consistiria em evitar que tais intrusos e suas famíliasconseguissem produtos procedentes do mar.Asiak olhou para dentro da água que a circundava, e ficoudesejando saber como ela era. Seu corpo nunca tinha estadoem contato com a água do mar. A superfície reluzia sob o céucor de aço; e ela percebeu peixes flutuando e arremetendo-se— arremetendo-se e flutuando, nas profundidades escuras.A boa água aquecida! Os bons peixes gordos!Um cachorrinho, que Papik deixara atrás de si, tinha seguidoAsiak, sem que esta o notasse. Sua cauda felpuda se encurvoupara cima; sua fronte se franziu por cima dos seus olhosoblíquos. O animalzinho olhava alternadamente, ora paraAsiak, ora para as águas que não lhe eram familiares; einclinava para um lado a cabeça peluda.Asiak notou a presença do cachorrinho somente quandopulou para dentro da água, voltando depois, à superfície,ofegante. Suas roupas começaram a se tornar pesadas comopedras; suas orelhas e narinas se encheram de água; e o gosto,para ela estranho, do sal começou a apunhalar-lhe a garganta.O cachorrinho mergulhou na água, atrás dela, e debateu-sedesesperadamente, nadando em sua direção; aproximou-se deAsiak. Arranhou-lhe o rosto, com suas unhas novas e nãoembotadas; e, por um instante, a mulher agarrou o animal,instintivamente. Depois o soltou, gorgolejando:— Vá embora. . . vá embora. . .

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O cachorrinho, porém, não sabia para onde ir, mesmo quetivesse compreendido aquelas palavras.

CAPÍTULO XA SEMENTE

Kohartok, o sacerdote branco, tinha um sino, que repicavacom toda a força, quando via, no seu livro, que era domingo.Era ele a única pessoa que tinha ficado em terra firme, depoisque a escuridão e a geada haviam fechado a enseada. Todas asdemais pessoas tinham construído iglus por cima da águacongelada, porque a terra ficara excessivamente fria, e seriapreciso mais combustível, do que o disponível, para oaquecimento das choupanas de pedra e de blocos de terra;tinham, porém, construído suas novas moradias perto da praiae da cabina de madeira onde Kohartok vivia.Assim que os exploradores partiram, o sacerdote pregou, àporta da sua moradia, uma tabuleta ostentando a palavra"MISSÃO" — muito embora fosse ele o único que podia leraquilo. Os exploradores o haviam deixado ali, ao lado dealgumas de suas provisões que eram embaraçantes demais epor isso não ofereciam conveniência quanto ao transporte;deixaram, igualmente, várias caixas cheias de instrumentos ede livros; estes continham as observações dos membros daexpedição; e deviam ser conduzidos de volta, pelo barco avapor. Os exploradores não se destinavam a regressar à aldeia;deveriam despedir seus guias depois de atravessar a enormecapa de gelo, além da qual se encontravam outros homens

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brancos, juntamente com outros navios; e estes navios é queos conduziriam de volta ao seu povo.Kohartok possuía também um abastecimento apreciável, desua ropriedade; fora-lhe proporcionado por homens emulheres brancos, e boa vontade, lá adiante, muito longe,abaixo do horizonte, do lar de onde o Sol vem, a fim de ajudara espalhar a semente em meio aos pagãos. O sacerdoteconseguira frenar e conter o seu zelo missionário enquantocompartilhara a cabina com os outros homens brancos.Quando eles partiram, entrou em ação; passou a realizarsessões diárias, para as quais chamava toda a gente. Figurascoloridas davam apoio e reforçavam-lhe as leituras, que eramfeitas com base numa versão simplificada da Santa Escritura,preparada pela Missão que o amparava.Sabendo que, para tornar cristãs as pessoas, era preciso,primeiro, convencê-las de que eram pecadoras, empregou ocomeço do inverno procurando instilar, em seus ouvintes, aconsciência do pecado e da fraqueza da natureza humana —coisas estas de que aqueles nativos se afiguravam de todoignaros. Foi preciso, pois, que o sacerdote insistisse nanecessidade de que aquela gente fosse salva; até que, um dia,aquela mesma gente começou a suspeitar de que estavacondenada.Todavia, tendo em mente que os bons pregadores dão frutos,mais do que flores, Kohartok concluía sempre as suas sessõescom oferecimentos de chá açucarado e doces enlatados.Naterk, mulher já com idade suficiente para ser sentada eabandonada no geío, servia de hospedeira; e mantinha a casaem ordem para o sacerdote.

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Com provisões em reserva bastante para uso prolongado, esem razão alguma para se preocupar — sem oportunidadealguma para conversações, devido à ausência de homens —qualquer diversão, para ele, constituía coisa rara, digna de seraproveitada; ninguém era capaz de faltar ainda que fosse auma única das sessões de Kohartok; eram sessões tãointeressantes quão aproveitáveis.Entre o sacerdote e o xamã, chegou-se a um acordo decavalheiros. Siorakidsok podia continuar a curar doenças, àsua maneira particular, bem como a exercer influência sobreo tempo e a estação do ano apropriada para a caça, contantoque não interferisse na atividade missionária de Kohartok. Ovelho xamã chegou mesmo a declarar que daria apoio à novaFé, desde que o pregador conseguisse inculcar, no espírito doseu rebanho, a convicção de que o abandono de homens e demulheres sem dentes, em plena vastidão de gelo, constituíagrave pecado. Kohartok não teve dificuldade alguma emaceitar esta condição; por esta forma, ele convenceuSiorakidsok de que a cristã era uma religião às direitas e, naverdade, recomendável.Rematado guloso que era, o velho xamã era sempre oprimeiro a chegar às sessões, carregado por suas netas,Torngek e Neghe; quando as sessões se concluíam, elas odespertavam; e, depois de haver colhido a derradeira migalha,e de haver limpado a tigela de açúcar, ele se demorava aconversar com o sacerdote branco sobre vários assuntos quese aproximavam da profundidade.Em algumas comunidades, os missionários superzelososentravam em choque com os xamãs locais. Kohartok, porém,

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era suave como a Lua; e, de resto, Siorakidsok erasuficientemente astuto, de modo que deixava em paz os que odeixassem em paz. Para ambos, era absolutamente a mesmacoisa, se um ferimento de corte fosse tratado com iodo oucom excremento de coelho, visto que os dois tratamentosacabam dando resultado. E, em presença de complicaçõesmais graves, os dois homens eram igualmente impotentes.Assim, o barco branco da fé cristã navegava suavemente pelapequena enseada, sem ser perturbado por preocupações, nempor distrações.No começo.

Uma mulher tinha aturdido um carcaju, com um lance felizde pedra, durante o ato de acasalamento a que ele seentregava; amarrou as patas e as mandíbulas do animal, edepois convocou a aldeia toda para um banquete. Asconvidadas arrancaram as unhas do carcaju-fêmea, uma porvez; puxaram-lhe a língua para fora; enfiaram agulhas decosturar na bexiga do animal; depois, cortaram-lhe o ventregrávido, de onde extraíram um filhote já formado; e passarama devorar o filhote, esquecendo-se da mãe.Kohartok, atraído pelo clamor, ficou muito zangado.Isto, porém, não foi nada, se comparado à zanga que elesentiu ao ter notícia de que uma mãe humana havia levado asua filhinha de nascimento mais recente ao cemitério,deixando-a lá, inteiramente nua, para que se congelasserapidamente.Não era fácil a tarefa de Kohartok. O vocabulário esquimóparecia enriquecido de várias palavras para designar o diabo;

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mas acusava a falta de uma palavra para designar Deus. Nestascondições, a Missão teve de inventar um vocábulo que, maisou menos, significava Espírito Superior; e Kohartok suou paraexplicar o conceito de Deus. Suas dificuldades, entretanto,não se concluíram aí. Apesar de — sob a promessa de canoduplo, constituída pelas recompensas no Céu e pelos castigosno Inferno — os esquimós poderem ser facilmente con-vertidos ao cristianismo, havia muitas tradições que seencontravam muito profundamente enraizadas. De um lado,quem eram eles para duvidar de um membro da poderosa raçabranca que produzia facas de aço, fogões Primus, armas defogo e aguardente? De outro lado, as tradições não podiam serdesfeitas da noite para o dia, ainda em se tratando de umanoite tão longa como a noite ártica. Assim, a nova doutrinatinha de compartilhar freqüentemente as honras, juntamentecom os antigos hábitos locais.Desta maneira, os esquimós ficaram surpresos ao verificar queKohartok não comungava com eles em seu ódio ao carcaju;que ele condenava a prática de se matar a criança recém-nascida, se do sexo feminino, e também a pessoa idosa,somente pela circunstância de a capacidade de proporcionaralimento, por parte da região, era limitada; que não via combons olhos a nudez, pouco importando o calor que fizesse; eque não aprovava o costume de se comer demais quando acarne era abundante, apenas com o propósito de compensar asfases renovadas de escassez de alimentos.O que, porém, provou especial alarme, desde o começo, foi aatitude do sacerdote Dranco em relação ao sexo.

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Depois da primeira distribuição de refrescos, que o sacerdotefizera, em seguida à sua chegada, uma delegação de maridosfoi oferecer-lhe a melhor das esposas dos seus membros, a fimde manifestar-lhe a sua gratidão. Por certo, um homem quehavia chegado de tão longe, sem dispor do conforto demulheres, deveria estar com ânimo para gozar uma pequenarisada com as esposas nativas. Afigurou-se, porém, aosnativos, que, se jamais o pregador havia estado com disposiçãopara rir, ele devia rir sozinho; e isto porque, ao tomarconhecimento do que lhe ofereciam, Kohartok se exasperou,ficando com as faces vermelhas e expulsando de sua casa,indignado, a delegação de maridos, em meio à tumultuariahilaridade dos exploradores. O incidente proporcionoumotivo bem apropriado para a sua campanha contra oadultério, contra a promiscuidade, contra a troca de esposas, etambém contra outras formas de pecado que as atividades dosaldeões costumavam adquirir.Até àquele momento, os esquimós tinham sido ensinados aconsiderar como sendo pecado: a matança de um caribubranco; o fato de as mulheres caçarem focas e baleias; o ato deelas costurarem fora da estação do ano apropriado para isso, eoutros fatos incontáveis. Nenhum de tais atos, entretanto, serelacionava com o sexo; e os novos tabus, introduzidos pelosacerdote branco, contrariavam alguns dos mais enraizadoshábitos esquimós; além disto, foi aquela a primeira vez que opensamento relacionado com os referidos novos tabus passoua ocupar e preocupar o espírito dos nativos.O objeto favorito da fúria de Kohartok era Torngek. Emborainformada quanto à pecaminosidade da bigamia, ela não

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prometeu, de forma alguma, largar de um dos seus doismaridos e casar-se devidamente com o outro, quando elesvoltassem da expedição. As mulheres, alegava ela, eramescassas; ela gostava dos seus dois esposos; e os doisprecisavam dela. Conseqüentemente, ela, Torngek, não seencontrava em condições corretas para ser batizada.Sua irmã Neghe, entretanto, recebeu muito bem a idéia damonogamia; a monogamia garantiria, para ela, e somente paraela, a totalidade das atenções de Argo.Kohartok era homem consciencioso; punha em prática muitacautela, em questões de batismo; sabia que muitos esquimósaceitavam a nova Fé como sendo apenas uma nova moda —ou, então, para serem gentis para com um estrangeiro amigo;e sabia, igualmente, que, em algumas comunidades maisprogredidas, os nativos aceitavam a nova Fé tão-somenteporque esperavam que ela lhes proporcionasse preçosmelhores no posto de comércio — e era isso que, de fato, comfreqüência, acontecia.O sacerdote efetuara apenas um batismo, antes da partida, daexpedição: o de Alinaluk, uma velha mulher — e isto,principalmente, porque ela se encontrava na hora da morte. Amulher morreu de gangrena, a despeito dos exorcismos deSiorakidsok e dos tratamentos com dejeções. No inverno,Kohartok batizou a primeira fantasia de Papik, a menina Vivi,bem como a mãe dela, Padlock; depois, foi a vez de outrasmulheres e outras crianças, inclusive a governanta de suacasa, Naterk; a respeito desta, ele não tinha segurança alguma,exceto quanto ao fato de ela se encontrar fora do escopo daatividade sexual, devido à idade já bem avançada; foi,

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portanto, a vez de toda a gente, menos de Torngek eSiorakidsok.Siorakidsok pedira para ser convertido; mas isto,declaradamente, apenas a título de amizade para comKohartok — coisa que, para o sacerdote, não constituía razãobastante, nem satisfatória; e o xamã recebeu esta informação— que lhe foi gritada aos ouvidos — com alívio nãodisfarçado.As crianças de colo podiam ser batizadas sem hesitação; equando, na escuridão da noite, uma menina nasceu de Neghe,tornou-se a primeira criança cristã da comunidade. Naescolha do nome da pequerrucha, o costume nativo foiobservado: deu-se-lhe o nome de uma pessoa já falecida.Como o nome de Asiak já havia sido dado a uma adorávelcachorrinha, que poderia conservar a recém-nascida aquecidae aconchegada, a pequena foi batizada com o nome deErnenek; e Ivaloo sentiu-se feliz por ver que o nome de seupai deixara, afinal, de vagar, solitário, pelas noites frias, umavez que encontrara um corpo para nele se abrigar.A água foi borrifada; o sal foi espargido; os sermões foramproferidos; as preces foram oferecidas; os hinos foramcantados; e a aldeia toda recebeu chá e bolos.Outras crianças nasceram, depois do nascimento da filhinhade Neghe. Antes de partir, os homens haviam plantado suassementes na boa terra representada pelo ventre da mulher; e,durante sua ausência, as sementes brotaram, cresceram,deram fruto. Torngek, a última das mães em perspectiva, foifinalmente aliviada de dois gêmeos; e então a aldeia inteirariu a valer, dizendo que ela ganhara gêmeos porque tinha dois

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maridos. Kohartok não viu com bons olhos a piada; mas semostrou radiante, na hora do batismo, porque assimconseguiu salvar mais duas almas, de uma só vez, do fogoeterno.Nenhum bebê novo poderia ser esperado durante um longotempo.

Entre os rostos achatados, de boca larga e olhos amendoados,que se alinhavam ao longo dos bancos de madeira, parareceber, com reverência, o Bom Verbo, Kohartok notou um,acima de todos os outros. Era o rosto atento, como queextasiado, de uma mocinha; ela estava sentada, com as pernasespalhadas; usava botas de pele anelada de foca; e as botassubiam-lhe até às virilhas.Nada havia de decadente em sua maneira de vestir. Ao ladode Vivi, que era alta é esbelta, que parecia ser sua coetânea, eem cuia companhia parecia estar, a mocinha tinha aspectogorducho, metida em suas vestimentas feitas de pele de ursonovo; estas vestimentas se afiguravam extremamente rústicas,se comparadas às feitas de peles de caribu, ou de raposabranca e prateada, cuidadosamente padronadas e debruadasde arminho e pequenas conchas do mar, usadas elas outrasmulheres. Contudo, a mocinha era erecta, bem construí-a; oato de carregar criança ainda não lhe havia alargado osombros. E, enquanto as outras mulheres usavam o cabeloalisado no topo da cabeça, repartido no meio, em duas longastranças, aquela mocinha usava o cabelo reunido num monte,bem alto, no cocuruto da cabeça, sendo tudo ali fixado pormeio de espinhas de peixe; isto formava um nó, semelhante a

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torre, que oscilava quando ela andava, à maneira dasmulheres polares. A cor negra azulada do cabelo e as pupilasnegras dos seus olhos tornavam ainda mais conspícua a corclara da sua compleição de marfim velho, bem comoacentuava ainda mais a cor de marfim novo dos seus dentes.Ela deveria sorrir com mais freqüência.A certa altura, depois que todas as outras mulheres seretiraram, Kohartok sentou-se num banco, em companhiadela, e tomou-lhe as mãos nas suas. Os olhos da mocinhaarregalaram-se àquele contato. As mãos dos homens brancoseram, para ela, desproporcionadamente grandes; mas aquelaera a primeira vez que entrava em contato com a mão degente branca; e ficou surpresa por encontrá-la muito flexívele fraca — tão macia como a mão de um recém-nascido. Erammãos que nunca tinham agarrado uma lança, nem brandidoum chicote.—Qual é o seu nome, irmã? — perguntou ele, cordial.—Ivaloo.— Que lindo nome. . . é o nome da primeira mulher queDeus fez com a costela do primeiro homem!— É mesmo. E alguém se sente muito feliz por ouvir isso!— Você tem estado a ouvir todas as lições tão atentamentecomo a primeira delas, irmã?Ivaloo fez sinal afirmativo com a cabeça; um sinal enérgico,vivaz.—Você está consciente do fato de que a sua alma viverá parasempre, daqui por diante, por todo o tempo futuro?

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—Uma mocinha sempre esteve perfeitamente cônscia disso,Kohartok, porque a mãe dela costumava dizer-lhe que assimera.— E você está pronta para ser salva?— Salva do quê? Ninguém deseja fazer mal algum contraalguém. Toda a gente é muito bondosa para com umamocinha.—Salva de você mesma! É dentro de você que o verdadeiroperigo se encontra oculto.—Que é que você quer significar, Kohartok? Alguém é apenasuma mocinha estúpida.—Deus ama os espíritos simples, Iváloo. Lembre-se:"Abençoados são os puros de coração, porque eles verãoDeus."— Será que alguém vai realmente ver Deus?— Naturalmente que verá. . . se você estiver pronta aentregar sua vida a Ele. Você está pronta, Ivaloo?— Pois então não estão todas as vidas nas mãos Dele?—Em verdade, estão, sim! Mas você está disposta a abrir o seucoração a Ele?—Pois então Ele não pode espiar até nos nossos recantos maisescuros?—Você está pronta ou não — gritou Kohartok, com um toquede impaciência — para fazer as pazes com o nosso Criador?Ivaloo ruborizou; e seus olhos se abaixaram.— Será que estivemos brigando?Kohartok, que era de fato homem de fé, sabia como fazerdiscriminação entre ovelhas e cabras; assim, reconheceuaquilo que rutilava nas profundezas do coração de Ivaloo,

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iluminando-lhe o semblante, como sendo fé verdadeira; e nãohavia dúvida alguma a tal respeito.E existiam muitas outras crentes verdadeiras, ali, além deIvaloo.Seria aquele gênero inusitado de vida, destituído deelementos masculinos, que tornava as mulheresparticularmente sensíveis e receptivas em relação à Semente?Fosse como fosse, a Semente estava dando frutos. E asmulheres rezavam e acreditavam no candor das crianças, bemcomo no fervor das noviças.As mulheres adoravam o seu pregador. Kohartok era homemdelicado, sempre atarefado na realização de boas ações.Quando a sua velha Naterk caiu enferma, com dores noabdômen, ele cuidou dela mais do que teria cuidado de simesmo, recuando apenas de leve em presença dos piolhos queabundavam nos cabelos ralos da velha, e em presença das suasvestes ensebadas; ao mesmo tempo, ficava a pensar em quemtomaria o lugar que ficaria vago com a morte da suagovernanta.Kohartok consultou Siorakidsok.Siorakidsok apresentou duas sugestões. A primeiras delas:embora fosse apropriado amparar os homens velhos, eparticularmente os xamãs inutilizados, o ato de fazer o mesmocom uma velha megera equivaleria a levar as coisas longedemais; assim, a melhor coisa a fazer seria despir a velhaNaterk de todas as suas roupas, encher-lhe a boca desdentadacom neve, e expor-lhe o corpo nu, em plena noite, para o seusono final. Por esta forma, pôr-se-ia a pobre anciã fora dossofrimentos, poupando-se, ao mesmo tempo, à comunidade,

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considerável incômodo. A segunda: confiar a Ivaloo osdeveres domésticos até ali confiados a Naterk. Ivaloo eramoça robusta, expedita, cheia de iniciativa, desejosa derealizar coisas; seria capaz de trabalhar três vezes mais do queNaterk jamais pudesse haver trabalhado.Kohartok descartou desde logo a primeira sugestão — tãoprontamente como aceitou a segunda. Ivaloo sentiu-sesuperlativamente alegre. Não somente era, para ela, umahonra servir um homem branco, mas também o fato de quepoderia prestar-lhe assistência, em suas atividadesmissionárias, fez com que seu coração transbordasse defelicidade. Aquilo também estabeleceu sua autoridade noscírculos das mulheres nativas, embora ela não tivessepropriamente consciência desta circunstância. Ser objeto deconfiança, a ponto de lhe ser dada a guarda da chave dadespensa da Missão, constituía algo que ficava além do sonhode qualquer mulher esquimó. De qualquer mulher, menos,infelizmente, de Ivaloo, que ainda não tinha desenvolvido ogosto para com as coisas doces.Na medida em que os sofrimentos da velha Naterk foramaumentando, o pregador foi dizendo, repetidamente, aSiorakidsok:—Talvez você possa fazer alguma coisa, para lhe aliviar ospadecimentos.—Que é que um impotente xamã pode fazer? Sem dúvida,porém, um homem branco deve saber como se expulsam osmaus espíritos que entraram no corpo dela.—Eu talvez possa expulsar o diabo do coração dela, mas nãoas dores do corpo — declarou Kohartok, com franqueza. —

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Os seus remédios, entretanto, dão, por vezes, resultadossurpreendentes.Siorakidsok pigarreou e virou o rosto de um lado para outro,durante longos momentos, procurando diminuir a grandezadas suas habilidades, antes de se declarar pronto a tentar.— Todavia, para saber exatamente o tratamento de que avelha megera precisa, um xamã se vê obrigado; "primeiro, aconsultar o Espírito da Lua.— Faça o que quiser, contanto que consiga ajudá-la.Siorakidsok pediu para ser levado às colinas; dali, ele partiriapara uma das arriscadas viagens à Lua; era viagem que todosos xamãs empreendiam, quando as circunstâncias lhesditavam essa necessidade. Visto, porém, que o Espírito da Lua,de temperamento terrível, tem a probabilidade de ser difícilde lidar, por aqueles que lhe vão solicitar favores, Siorakidsokse recusou a partir sem levar consigo uma determinada cargafeita de comidas fantasiosas, carga esta destinada a ser dada depresente ao mencionado espírito.Uma pequena casa de neve, cheia de peles, foi erigida numlugar afastado e meio oculto: uma confortável casa de neveconstituía indispensável ponto de partida para uma jornada àLua. E Siorakidsok foi deixado ali, sozinho, com baldes cheiosde iguarias tais como carne de baleia cozida e pele de morsas,intestinos crus de peixes, mais uma mistura adoçada desalmão mastigado, ovos de sável e óleo de foca; e ninguémteve permissão para se aproximar do lugar enquanto o xamãse encontrava em viagem; quem se aproximasse incorreria napenalidade de morte horrível e imediata.

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Três sonos dormidos, depois disto, a aldeia, inclusiveKohartok, foi buscar o xamã de volta. O xamã foi encontradocochilando, sem dúvida exausto devido à perigosa viagemempreendida. Os baldes de alimento estavam vazios — o queconstituía bom sinal.Siorakidsok ficara sabendo, por comunicação direta doEspírito da Lua, que o demônio que causava a doença deNaterk estava escondido no seio direito da velha; e, nesse seio,ele fez uma incisão. Como, entretanto, ela não melhorou, adespeito deste tratamento, Siorakidsok abriu um orifício noventre da mulher, a fim de proporcionar uma abertura poronde a dor pudesse escapar; a seguir, matou uma ninhada depequenos roedores chamados lemingues; e aplicou as pelesquentes dos animais ao ferimento que abrira.Naterk foi a segunda moradora da aldeia a ser enterrada nocemitério cristão, pouco tempo depois disto; e tudo decorreucom impressionante cerimônia, seguida de sonoro sermão.Ivaloo passou a fazer o trabalho doméstico de Naterk; e fê-lotão bem, que Kohartok se pôs a meditar sobre como lhe forapossível ter vivido até ali, naquela aldeia, sem o seu serviço.Ela gostava dos deveres que lhe eram atribuídos; mas sofriadevido ao calor excessivo da casa feita de madeira, que,ademais, era aquecida por um fogão a carvão; e ela sofriamais, de calor, em seus períodos de repouso do que quandoandava de um lado para outro, com o espírito posto naperfeição de cada tarefa realizada. Ivaloo dormia numadependência ao lado da casa principal, no mesmo quarto queNaterk tinha ocupado; e isto lhe parecia um lugar muitoluxuoso, embora não fosse nada mais do que um cubículo,

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separado do salão principal, onde o pregador dormia ao ladodo seu fogareiro. O sacerdote fugia do frio como do diabo; nãopermitia nunca que as janelas fossem abertas; e, quando, aolevantar-se da cama, punha o balde de água em cima do fogo,para derreter-lhe o gelo, Ivaloo via-o a tremer todo.Kohartok era atencioso para com Ivaloo. Os exploradores lhehaviam deixado umas poucas garrafas de aguardente, que eleconservava para serem utilizadas em caso de doença súbita;quando via que a moça esquimó chorava, por sentir-sesozinha, fazia com que ela bebesse um pouco, de mistura coma neve — depois de ele mesmo tomar também o seu gole, afim de lhe mostrar que aquilo não causava mal algum.Ivaloo podia cair no sono meio gelada, e gostar disso; mas nãoconseguia nunca aprender a dormir quando o calor era muito;assim, quando ia dormir, costumava tirar toda a roupa. Ao serperguntado sobre se isto constituía pecado, o atarantadosacerdote respondeu: "Não". Não era pecado dormir semroupas — quando a gente se encontrasse só, e em totalescuridão. Entretanto, o ato de se andar pela casa, com ocorpo nu, em pleno dia, era coisa que devia ser evitada.Assim, deitada no escuro, no quarto quente, Ivalooexperimentou, pela primeira vez, a sensação da sua própriacarne; as pequenas palmas de suas mãos, avançando,cautelosas, pelo território antes inexplorado do seu própriocorpo, ficaram impressionadas com a suavidade da pele que seestendia por toda a sua pessoa.Depois de explorar o próprio corpo, ela, por vezes, seaventurava a pensar um pouco no futuro; porém, incapaz deromper o véu que o ocultava, voltava a pensar no passado que

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se encontrava ainda claro em sua memória. O passado forauma fase alegre, estimulante, que agora se embelezava atravésdo tempo transcorrido. Fora uma fase tão linda, que agora lheestofava o coração de tristeza, e lhe enchia os olhos delágrimas. Como ela tinha saudades da trilha dos ursos, bemcomo da longa permanência, encurvada, por cima dos buracosde peixes! Como se recordava das corridas por cima doscampos marítimos varridos pelo vento, e da apressadaconstrução de abrigos, quando a saraivada começava a ulular!Como se sentia sozinha, sonhando com a estranha atmosferados iglus, com o aroma vitalizante do óleo de baleia aqueimar-se, com o cheiro doce das carnes que sedeterioravam na neve! Como se recordava do fulgorcrepuscular da parede circular do iglu, do barulho que Asiakfazia quando raspava peles e costurava vestimentas, dasobservações tranqüilas que a mãe formulava — e do roncoque Ernenek roncava, quando dormia, bem como de suasrisadas, quando estava acordado!Pensando no paraíso perdido, ela se enchia de tamanhatristeza, que acabava procurando conforto no paraíso quedeveria vir; e então falava com Deus, a este respeito. E,enquanto falava com Deus, tinha a sensação de que Ele lheprestava ouvidos muito atentos. Ela, porém, não tinha provanenhuma disto. Mas isto decorria de sua própria culpa — aoque lhe dizia Kohartok. De noite, o barulho da respiração dosacerdote lhe chegava aos ouvidos, procedendo da salacontígua; era uma respiração profunda, regular, que provavaque o pregador não se sentia perturbado por pensamentosnem por dúvidas semelhantes aos dela.

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—Será que Deus um dia virá ver esta moça estúpida? —indagou ela, de uma feita, a Kohartok.—Ele a visitará, se você tiver fé bastante. Continue rezando eacreditando. Ou será que você já se esqueceu do que diz oBom Livro? "E todas as coisas, sejam lá quais forem, que vocêpedir em suas preces, acreditando, você receberá".— Mas como é que uma moça pode saber quando Ele vem?— Você o saberá quando Ele chegar. Enquanto você nãotiver a certeza, é porque Ele ainda não veio.Logo, era óbvio que Deus ainda não tinha chegado a Ivaloo; eela ficou preocupada com isso. O fato fazia com que ficasseacordada muito tempo, com muita freqüência. Pedia para queDeus se manifestasse ao seu espírito. Talvez mesmo em algumdos seus sonhos. Ou, então, que lhe tocasse numa das mãos.Apenas uma vez. Ela se daria por muito contente com isso.Ivaloo visualizava Deus sob forma humana, uma vez que Elehavia feito o homem à Sua imagem; contudo, possuía sensobastante para perceber que Ele não se encontrava à disposiçãoimediata de qualquer mocinna que desejasse vê-Lo; estavaconvencida de que Deus andava muito ocupado, sem dúvidapor causa dos pecadores que deveriam ser muito maiores doque ela era.Nestas condições, Ivaloo armava-se de paciência, rezava; eesperava que, um dia, ou uma noite, Deus encontrasse tempopara ela.Ocasionalmente, Ivaloo pensava perceber uma Voz, em meioaos vendavais; presumia perceber a existência de um Dedo, nacorrente de ar que passava pelos seus ombros, quando seencontrava deitada, inteiramente nua, na escuridão. Os sinais,

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porém, não eram suficientemente positivos; logo, aquilo nãopodia ser manifestação de Deus. E ela tinha razão.Porque, quando Ele finalmente se dirigiu a ela, nenhumadúvida restou a ninguém.

CAPÍTULO XIO FRUTO

Foi Torngek, a quem se reconhecia considerável experiência,devido ao seu censurável estado de bigamia, a primeiracriatura que se arriscou a comprometer-se com a declaraçãodecisiva, a respeito das condições em que Ivaloo seencontrava. Isso não se devia, como a mocinha ignoranteestava pensando, a coisa nenhuma que ela houvesse comido,muito embora o seu apetite, nos últimos tempos, tivesseaumentado notavelmente.A verdadeira razão do aumento da corpulência de Ivaloo era agravidez.E a sua gravidez constituía um milagre, tudo era bemevidente, devido ao crescimento que se ia formando nasplanícies alvas do seu ventre; e todas as mulheres da aldeia sereuniam para ver, com seus próprios olhos, bem como paratocar naquilo com suas próprias mãos.As estrelas tinham empalidecido; uma luminosidade cor depúrpura rodeava o horizonte — e meio ano se passou, desdequando a expedição partira, levando todos os homens capazesde semelhante feito. O menino mais velho da aldeia contavacerca de oito anos; depois dele, vinha Siorakidsok; e de que

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ele se encontrava fora de competição havia boas provas,recolhidas e confirmadas pelas mulheres, desde um tempomuito mais longo do que aquele de que conseguia lembrar-se.Nem procurava mais lembrar. Somente Kohartok se achavana idade da masculinidade; mas, sendo pregador, estava,naturalmente, excluído de semelhantes atividades.Ademais, Ivaloo teria sabido, se houvesse estado a rir comalgum homem; e nenhuma jovem jamais fora mais positiva doque ela, ao declarar que se mantivera séria.Ivaloo ficou a meditar sobre se o simples fato de pensar emhomens, ou de ser contemplada pela maneira pela qual Milaka contemplava, seria suficiente para pôr uma jovem naquelascondições, mas as mulheres de maior experiência punhamdefinitivamente de lado esta hipótese.—Entretanto — disse Torngek — a lua cheia pode tornargrávida qualquer moça.—É verdade — confirmou Neghe. — Vocês nunca estiveramao ar livre, olhando para a lua cheia? Ou, então, nuncabeberam água quando a lua cheia estivesse brilhando?—Não, nuncal Mamãe nunca me permitiu isso. Ela disse quesomente as mulheres casadas podiam contemplar a lua cheia,ao ar livre.—Nesse caso, esse só pode ser filho de Deus — disse a mãe deVivi, que se chamava Padlock; e disse-o como quem encerra oassunto; ela era muito religiosa; recusara-se a acompanhar omarido na expedição, a fim de não faltar aos serviçosreligiosos dos domingos.—Deve ser — murmurou Torngek, batendo palmas esorrindo, extasiada.

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—Ivaloo tinha, no semblante, uma expressão de beatitude, detranqüila felicidade, que não era deste mundo.—Alguém pensa que sabe quando isto aconteceu — disse ela:E, embora falasse apenas com um fio de voz, o círculofascinado das mulheres que a ouviam não perdeu sequer umapalavra.—Uma moça estava muito triste, certa vez, enquanto sepreparava para ir à cama, a fim de dormir; sentia-se maissolitária do que nunca, com saudade de todos os que haviampartido. O sacerdote, vendo-me chorar, leu a sentença queestá escrita no Bom Livro, e que diz: "Abençoados são os quelamentam, porque eles serão confortados". E deu, a alguém,um pouco da sua preciosa aguardente, que, como a prece, éum remédio poderoso, e também fonte infalível de conforto.Na cama, porém, uma moça muito moça se sentiu maissolitária do que nunca, mas bastante aquecida, devido àaguardente; e então chorou muito alto; até que a fraqueza e atontura se manifestaram, devido às muitas lágrimas. Foi entãoque ela recebeu a visita.—Quem era? — perguntaram em coro as mulheres, poisIvaloo parara de falar, ficando como que a recordar-se,extasiada.—Durante um tempo muito longo, alguém estiveraimplorando a Deus para que Ele a visitasse; e para que avisitasse durante o seu repouso. E, daquela vez, Elefinalmente lhe viera.—Você O viu, de fato?—Não com os meus olhos, porque estava escuro. Mas alguémO sentiu.

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—Você tocou Nele?—Não. Ele tocou em alguém. De súbito, mãos grandes,macias, lhe enxugaram as lágrimas; deslizaram-lhe por cimado corpo; e ela se sentiu com vontade de chorar ainda mais,não de medo, e sim por causa do grande calor, e da infinitaternura que se apoderaram dela; como se todas as coisas epessoas que ela amava se encontrassem naquelas mãos.—Mas aquilo era real, ou você estava sonhando? —perguntou Neghe.—Alguém não sabe. Ao tempo em que pensou que se tratavaapenas de sonho, alguém se sentiu satisfeita pelo fato de. Deusfinalmente se manifestar. Agora, porém, uma moça pensa quese tratava de algo real; e tudo apenas deu a impressão de sersonho porque ela estava tonta, devido a ter chorado emexcesso, e muito animada em conseqüência de haver tomadomuita aguardente. A cabeça de alguém estava doendo umpouco, quando acordou; e o mesmo lhe aconteceu às virilhas.—Oh, Ivalo, minha pequena — disse Padlock, com ternura ecom expressão de êxtase no rosto — esta é, com efeito, umagrande hora. Vamos contar o caso a Kohartok!E elas correram para fora, incorporadas, rumo à Missão.O pregador, porém, não recebeu a boa notícia com oentusiasmo que as mulheres haviam antecipado. Ele seafigurou realmente impressionado, efetivamente emocionado,porque ficou pálido, e também porque os seus olhos azuispiscaram como os de uma ptármiga atingida por algum mal;mas a sua fisionomia não acusou sinal nenhum de êxtase; nemele emitiu grito algum de alegria irreprimível, da gargantapara fora; nenhuma expressão de agradecimento se evolou

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para os Céus, partindo das profundidades do seu coração;nenhum sermão, nenhum hino, nenhuma prece, nada fezpara glorificar a miraculosa anunciação. Kohartok apenasficou ali, imóvel, como que atingido por um raio, enraizadono chão.— Acontece que você estava certo — disse-lhe Ivaloo,inclinando a cabeça, em sinal de humildade. — A fé de umamoça originou seu fruto.Por esta forma, as torrentes roqueiras de dúvida e de tristeza,que tinham tumultuado Ivaloo, cessaram, transformando-senum lago profundo e tranqüilo. Os olhos vivazes da moça sefizeram lentos e serenos; e uma sensação de doçura econtentamento envolveu-a de calor profundo e fulgurante —um calor que já não a conservava acordada, mas, ao contrário,lhe proporcionava bálsamo e relaxamento às cordas maisíntimas do ser.Ela começou a ansiar por solidão, ao passo que o seu corpo e asua alma pareciam convergir para o volume que iaaumentando e originando-se da escuridão; esse volumeacabou sendo o centro, o começo e o fim do seu universo.Despia tudo o mais de importância. A morte de seus paistinha perdido a pungência. O regresso de Papik e de Milak jánão era mais acontecimento urgente. Fosse inverno ou verão,estivesse ela no norte ou no sul, surgisse a foca à superfície,ou tivesse cria a fêmea do boi almiscarado — que importavaisso? Tudo o que importava era a nova vida que se agitava eesperneava, com tamanha energia, dentro do seu corpo; comtamanha energia que, por vezes, as mulheres admitiam quepodiam ver-lhe o ventre mover-se; e Ivaloo se via obrigada a

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contê-la, para que aquela vida se aquietasse; e continha-a comambas as mãos, em meio a diversão geral das mulherescircunstantes.Kohartok chamou Tippo, uma mulher muito mais idosa, paraa sua casa, a fim de ajudar nos afazeres domésticos; e fez issocom o fundamento de que Ivaloo precisava poupar as própriasforças, uma vez que estava com bebê para nascer — ainda quea moça não considerasse que os seus trabalhos constituíssemesforço, ou incômodo. Tippo mostrou-se feliz por assumir asnovas funções; e Ivaloo não se aborreceu muito por ter dedividir com ela o seu cubículo. Na verdade, não se preocupavacom coisa nenhuma.Kohartok deu sinais, lentos, porém, inequívocos, seguros, deser afetado pelo acontecimento. Rugas, que cada vez mais seaprofundavam, apareceram em sua fronte. Ele passou aparecer cansado, e, não obstante, inquieto; e também umpouco mais envelhecido. Seus sermões se tornaram maisgraves; as preces, mais longas; a sua assistência aos anciãos eaos doentes, mais extensa.Uma seriedade profunda, uma paixão arrebatadoraperpassavam pelo rebanho inteiro. Com o seu pastor nachefia, todas as ovelhas mergulhavam em atos de auto-acusação. Até mesmo Ivaloo, que não queria que ninguém seadiantasse a ela, reconhecia, com satisfação, que seencontrava na condição de espantosa pecadora. Ainda assim,todas olhavam para ela com inveja e admiração. Sem ser doce,sua voz, ao cantar, se fazia clara e ressonante, erguendo-sebem alto, por cima das vozes do coro, na execução dos belos

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hinos cristãos que tinham suplantado as desprezíveis baladasnativas."Falso e cheio de pecado eu sou" — ia dizendo a vozlamentosa, bem grave, de Kohartok; e a congregação ecoava,feliz numa variedade de tons:"Falso e cheio de pecado eu sou"...O tempo fez uma montanha, daquele volume que iacrescendo no ventre da moça. A primavera chegou; e, devidoà contínua luz do dia, a pouca neve se derretia. Assim, avegetação anã, ou tornada anã, irrompia sem perda de tempo.Em umas poucas semanas, a terra morena, enriquecida peloesterco de milhões de pássaros, se cobriu toda de papoulasamarelas, de saxífragas multicoloridas, de salgueiros árticos,de frágeis vidoeiros que se curvavam inteiramente até aochão; ao mesmo tempo, os niviarsiak, vermelhos e cor demalva, se apegavam às rochas; e delicadas samambaiasatapetavam as úmidas ravinas. Mais uma vez, os enormesicebergs, desprendidos das geleiras, deslizaram à toa rumo aosul, ao sabor da corrente; os rápidos caiaques cortaramcamadas superficiais de gelo na água, fulgurando de luz do solpor entre as banquisas; as mulheres cavavam armadilhas ealçapões; os meninos pescavam, andavam à cata de ninhos demergulheiras pelos rochedos, e punham-lhes os ovosirregularmente manchados para se apodrecerem ao sol; ou,então, apanhavam as ptármigas, de passo lento e difícil, comsuas próprias mãos nuas, ao passo que as meninas colhiam osmuitos frutos em baga que cresciam nas matas; todos os frutoseram muito saborosos quando misturados com óleo; e

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tornava-se fácil preservá-los para a fase do inverno, quandocongelados em graxa de óleo de baleia.As focas e as morsas, os narvais e as baleias brancas flutuavamno oceano líquido; e, se houvesse alguém disponível, paratripular as umiaques, haveria orgias de sangue fresco, demexilhões e de ostras, a sair dos estômagos desse animais; ehaveria também mattak retirado de suas peles. Entretanto,mulher nenhuma podia arpoar uma foca, nem uma Daleia,sob pena de todo o reino das focas e das baleias se sentiremmortalmente ofendidas por semelhante insulto, e, assim, sedecidirem a retirar-se para o fundo do oceano, para nuncamais permitir que os seres humanos as caçassem. E osmeninos eram pequenos demais, ainda, para pegar qualquercoisa que não fosse excessivamente pequena; quando muito,poderiam apanhar um filhote ocasional de foca, que ainda nãohouvesse aprendido a nadar; um filhote sem sangue, de pelebranca e de estômago vazio.No rigor do verão, um barco, lançando um rolo de fumaça,navegou, a vapor, para dentro da pequena enseada.Aquele foi um grande dia. Novos rostos, novas vozes, novosalimentos. Além disto, os marinheiros brancos para lálevaram boas notícias; uma delas era a de que a expediçãotinha chegado ao seu destino — o que significava que todos oshomens estariam de volta aos seus lares.Aquele barco não transportava mercadorias regulares; maslodos os homens, do capitão ao foguista, eram negociantesamadores, ansiosos por fazer negócios. Tinham levado para aliespelhos, tesouras, miçangas, garrafas, facas, fitas — sendoque todas estas mercadorias eles trocavam por óleo e peles. Os

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marinheiros eram homenzarrões: todos muito grandes,grosseiros, hirsutos, que sorriam muito pouco, mas faziamuma barulheira enorme. Eles organizaram danças amalucadas,ao som de suas caixas de música; e, depois de beber muitaaguardente, comportavam-se como dementes, tornando-sedescontroladamente gritadores, ofensivamente rudes; além domais, punham-se a perseguir as mulheres, até mesmo asdesdentadas, como se nunca tivessem ouvido falar de pecado,nem de bancos de fogo, no Inferno. Alguns marinheiros setornavam tão desordeiros, tão incomodativos, depois de seentregar a excessos de bebida, que os seus próprioscompanheiros tinham de arrastá-los, de costas ao chão, para obarco — e não sem dificuldade, nem sem brigas. Os nativosnão tinham visto nunca tamanha rudeza, nem tamanhaviolência.Contudo, poucas, dentre as mulheres nativas, teriam gostadode deixar de tomar parte em qualquer daquelasdemonstrações arruaceiras — seja por causa da própriaesquisitice do que acontecia, seja devido à mudança queintroduzia na monótona vida local.O pregador olhava para aquilo com o cenho franzido; mas nãodizia nada. Não disse nada nem mesmo quando, pela primeiravez, viu espaços vazios nos bancos de sua capela; e haviamulheres, ali, naqueles bancos, que já não podiam mais olhardiretamente para os seus olhos, depois de terem dado umpasseio, pelos arredores da aldeia, em companhia demarinheiros.O barco lançador de fumaça tinha chegado propositadamente,para encher as caixas deixadas atrás pelos exploradores. O

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capitão, um dos poucos que haviam escolhido as águas ricas,porém perigosas, do Ártico, infestadas de icebergs,manifestava pressa; tinha pressa de partir de novo, porque overão, ali, era curto; as águas não ficavam abertas à navegaçãomais do que um mês; e aquela era a fase culminante daestação do ano apropriada para a caça à baleia. O seu bote eragrande apenas aos olhos dos nativos. Na verdade, era apenasum pequeno barco baleeiro, tratando de efetuar tarefaspeculiares à margem de suas missões, com uma tripulaçãocujo número nem sequer subia a doze.Um sono antes de o barco ter de levantar a âncora, Kohartoksentou-se de novo com Ivaloo, num dos rústicos bancos daMissão, e tomou-lhe as mãos nas suas. O pregador estava comaspecto pálido e desorientado, com grandes sombras roxas pordebaixo dos olhos.—Eu resolvi ir-me embora daqui, minha pequena — disseele.—Toda a gente sempre se vai embora! — disse ela, comdesconforto. — Por quê? Você está cansado de semear aSemente entre nós?Ele se apoio nervosamente ora num lado, ora noutro:—Há momentos em que até mesmo um pregador começa aduvidar. Não da Verdade, mas de si mesmo. E, para ir adiante,preciso de você, Ivaloo.—Precisa da ajuda de uma moça estúpida?—O que você vai agora ouvir talvez lhe cause surpresa,minha pequena. É certo, porém, que eu gostarei que você setorne minha esposa. Tratemos de nos casar perante Deus;depois, carregaremos, juntos, a Tocha, através das trevas!

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Ele teve de repetir duas vezes aquilo, antes de ela confiar nospróprios ouvidos. Depois, ela ruborizou profundamente; eabaixou os olhos.— Se, ao menos, os pais de uma moça tivessem vivido até aodia em que um homem branco, e ainda mais da suaimportância, lhe pedisse para ser sua esposa! Você pensa queeles estão vendo isto?—É possível.—Alguém se sente honrada, Kohartok.Ele, pensativo, afagou a própria barba avermelhada, e disse,com um suspiro:—Não fale nisso, minha pequena.—E causaria uma dor profunda, a alguém, o fato de ter derecusar o. . .—Mas então você recusa? Por quê? — gritou ele, como quealiviado.—Porque você não é propriamente um grande caçador; nemsabe como se lida com uma matilha de cães de trenó; nemconhece nada a respeito das coisas de que uma moça gosta, anão ser quanto a Deus. Esta é a razão pela qual me recuso.Agora, porém, há uma tristeza, na alma de alguém: quem éque irá batizar a criança da moça, se você for embora? E quemé que conduzirá os serviços religiosos e nos mostrará ocaminho de Deus?—Eu não posso ensinar-lhe nada mais, quanto aos caminhosde Deus, Ivaloo. Eu sou apenas outro pecador. Vocêprosseguirá na tarefa, em meu nome — com o auxílio destelivro. As gravuras a ajudarão a ensinar e a lembrar a Históriade Deus.

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Ele abriu o livro; tirou de seu interior uma flor que estiverasecando entre as páginas — uma flor com quatro grandespétalas cor de púrpura — e ofereceu-a Ivaloo.—Fique com isto, para você. É uma flor do meu país.—Deliciosa! — exclamou Ivaloo, comendo a flor.

A partida de Kohartok entristeceu a todos. Ele era homemfino, bondoso. Possuía uns olhos tão delicados! Arrotava tãodelicadamente! Não obstante, despediu-se da maneira maisestranha; anunciou em altas vozes que ia partir; e foi procurartodos os membros da comunidade, a fim de trocar um apertode mão com cada qual. Desta maneira, todas as mulheres oescoltaram até ao barco; todas lhe fizeram acenos, com a mão,dizendo adeus e desejando-lhe boa viagem; e todas, as fazeristo, estavam com lágrimas nos olhos — até mesmo aquelasque haviam fracassado infelizmente no teste, abandonando aescola e a capela desde a chegada dos marinheiros.Afigurou-se, a todas e a cada qual, que o pregador perderamuito da sua primitiva aspereza, principalmente no fim desua permanência ali. Já não sacudia os pecadores com suasarengas; nem fez isso a ninguém, no seu sermão de despedida.Disse apenas:— Como o livro de Deus o diz: "Contempla e reza, para quenão caias em tentação: o espírito, com efeito, deseja; mas acarne é fraca".Um bando de caiaques comboiou o barco até determinadadistância, na esteira líquida que ele foi cortando através dogelo flutuante; e o resto da comunidade, inclusive

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Siorakidsok, permaneceu na praia, até que a fumaça dachaminé do barco se misturou com a bruma.A notícia da chegada do barco que lançava fumaça, naenseada, se espalhara logo, por uma forma qualquer, como ofazem todas as notícias; e, dentro de muito pouco tempo, umpunhado de Netchiliks apareceu por ali, a fim de plantar suastendas ao redor do acampamento dos forasteiros, embora aquadra do rigor do verão fosse a pior das do ano para se viajar.Contudo, retiraram-se dali, assim que o navio ergueu âncora;e, ao tempo em que a noite desceu outra vez, e em que osaldeões se acomodaram no interior dos seus iglus de inverno,em cima da água congelada, a comunidade já havia voltado aonormal.A luz irradiada pelas lâmpadas de óleo de baleia brilhavapálidamente através das paredes; assim, a enseada mergulhadaem trevas ficou pontilhada de auras luminosas,aconchegadoras, que se irradiavam das pequenas casas deneve, com forma de sino.Os serviços religiosos prosseguiram, levados a termo porIvaloo, que para isso se valia das figuras que havia no livrodeixado por Kohartok. Ela não sabia ler; mas conhecia muitobem as ilustrações. Ela não dispunha de meio algum, parasaber quando era domingo; e os serviços se tornaramirregulares. Sempre que Ivaloo presumia que os aldeõesestivessem precisando de religião — coisa que acontecia quaseque ao fim de todos os sonos dormidos, e, por vezes, em meioa um sono que estivesse sendo dormido — ela tocava o sino;convocava a comunidade para uma chávena de chá e parauma sessão de "minhas irmãs, vamos tratar de rezar". Ela

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contava a Boa Narrativa, tão bem cdmo sabia; e respondia àsperguntas da mesma forma.A velha Tippo acabou dando provas de ser pessoa ríspida eimpertinente, cuja companhia Ivaloo evitava, permitindo queela fosse dormir na grande sala, junto ao fogão. A gulosa velhapassava noites sem dormir, concebendo modos e meios deabocanhar os doces que Ivaloo tratava de manter fora do seualcance; Kohartok fora bastante explícito, ao esclarecer, aIvaloo, como as mercadorias e os mantimentos da Missãodeviam ser administrados. Amaldiçoados seriam aquelesnativos que, fiéis à pura maneira pagã, presumissem que oespírito de comunhão das mercadorias, que o povo localpraticava, pudesse ser aplicado às reservas da Missão! Ivaloodistribuía os mencionados bens com a maior parcimôniapossível.A fim de conservar Tippo longe da tigela do açúcar, Ivalootinha pedido a Vivi que a ajudasse na distribuição do chá; eisto aumentava a fúria glutona da velha. Vivi era boa amiga;era pessoa fácil de se brincar; e visto que Papik manifestarainteresse para com ela, antes da partida, Ivaloo falava-lhefreqüentemente do irmão; e Vivi não parecia aborrecer-secom isso.Ela provara pancadas, dentro de si, antes daquele dia; de umafeita, porém, acordou estando em pleno sono; e ficou sabendoque tinha chegado a hora. Vestiu-se a toda pressa por entrepancadas dentro de tremores de frio; fez tudo em silêncio, afim de não despertar a velha Tippo; e correu para a casa deSiorakidsok.

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— Vocês disseram que desejavam estar presentes quando ofato acontecesse — disse Ivaloo, às mulheres que lá seencontravam.Uma das pequenas meninas de Torngek foi enviada com aincumbência de avisar as outras mulheres; e logo começarama convergir para ali.— Não falem tão alto, do contrário vocês acordarãoSiorakidsok; uma jovem mulher tola não quer que ele veja —esclareceu Ivaloo.Vivi chegou, já sem fôlego e muito excitada; e, sem maisaquela, começou a puxar para baixo as calças de Ivaloo; mas asmulheres riam.— Mantenha-se a distância, você, moça estúpida — disseTorngek, aplicando-lhe um empurrão. — Ainda não está nomomento.Siorakidsok, que possuía ouvidos sutis para tudo quanto sepresumia que ele não devesse ouvir, acordou aquele barulho.— Por favor, saia da casa por um momento — pediu-lheIvaloo. Siorakidsok ficou furioso quando, por fim,compreendeu do que se tratava.— Alguém já viu crianças nascerem em muito maior númerodo que serão os homens que você terá em sua vida!— Está certo; mas, do mesmo modo, saia da casa.Chegou-se a um acordo, levando-se o velho xamã para ocanto mais afastado da sala. E lá ficou ele, com a cara voltadapara a parede, a bufar de raiva; e as mulheres se aglomeraramao redor de Ivaloo. Esta se encontrava deitada no catre, comos olhos arregalados e o rosto muito sério, à espera das dores.Quando elas chegaram, seus lábios se contorceram; e ela

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começou a gemer baixinho. Ivaloo sentiu-se terrivelmentecom sede, mas não tinha ânimo algum para falar; e esforçou-se por se conservar sem fazer barulho, para que Siorakidsok,que a esta hora já estava roncando de novo, lá no canto maisafastado, não fosse despertado.As dores apressaram-se; e quando chegaram, todas de umavez, sem lhe dar pausa, ela disse:— Agora!Exatamente como se ela tivesse dado à luz cem vezes antesdaquela.Vários braços a ajudaram a erguer-se do catre e a descer aochão; e puseram-na ali de joelhos. Várias mãos puxaram parabaixo, mais um pouco, as suas calças e as suas altas botas.Alguém cavou um buraco na neve que ficava por baixo daparturiente; Torngek abraçou-a por trás, e comprimiu-lhe ocorpo.— Empurre!Ivaloo percebeu que estava suando à raiz dos cabelos; e gotasde suor lhe caíram pela ponta do nariz. A sala pareceu nadardiante de seus olhos. Ela ouviu as mulheres que gritavam:— Agora está vindo a cabeça! Empurre com força! Vocêprecisa ajudar, você, moça tola. Assim que a cabeça se puserpara fora, o pior terá passado.Houve, dentro dela, algo assim como um vastoestraçalhamento; e, na profunda perturbação da dor —quando tudo se escureceu diante dos seus olhos — ela viu, desúbito, o topo úmido da cabeça da criança, com uma crista decabelos molhados, a luzir por baixo do seu corpo. Torngekcontinuou a fazer pressão sobre o corpo da moça, quase que

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lhe cortando a respiração; e as mulheres emitiramexclamações de alegria. A cadela da casa, como queestimulada pela agitação coletiva, esticou o focinho para afrente, choramingando e farejando, até ser posta longe dali apontapés. Antes que Ivaloo formasse consciência clara docaso, a criança caiu, e o peso de Torngek se afastou de suascostas.Padlock recebeu o bebê em suas mãos; e assim que Neghe olibertou, cortando-lhe o cordão umbilical, o bebê começou achorar com toda a sua energia. As mulheres introduziramuma pele de raposa por entre as pernas de Ivaloo, ergueram-lhe as calças, e deram-lhe um gole de água, feito de nevederretida.—Talvez você queira descansar um pouco, antes de ir paracasa. . .—Quero, se vocês desculpam uma jovem estúpida, portamanho incômodo — respondeu Ivaloo, estendendo-se nocatre. — Onde é que está o bebê?Neghe, depois de limpar e untar a criança, envolveu-a empele fresca; em seguida, entregou-a a Ivaloo, dizendo:—É menino.—Por favor, traga bastante luz.Padlock e Torngek acenderam dois brandões de sebo, eaproximaram-nos da nova mãe. Ivaloo deixou cair a pele queenvolvia o filho, e ergueu o menino diante da luz. O choro dopequerrucho parou; e então só se ouviu o estalar daslabaredas, além do ruído da cadela lambendo o chão. A seguir,a voz de Siorakidsok, que tornava a acordar, se fez ouvir:— Ivaloo está na iminência de ter bebê?

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Ninguém respondeu. As mulheres ajoelharam-se, em mudaadoração, com as mãos dobradas; e a cadela aproximou-se,sempre farejando, pondo as patas dianteiras no catre,esticando o focinho para a frente, e choramingando, comoque maravilhada. Embora fosse uma cadela idosa e muitoviajada, tendo visto muitas crianças recém-nascidas, ela nuncatinha contemplado nada como aquilo.E era, de fato, um menino extremamente bonito, com olhosda cor do céu e cabelos da cor do Inferno.

CAPÍTULO XIITETARARTEE

Ivaloo efetuou o batismo de seu filho com toda a pompa deque pôde dar mostras; batizou-o com o nome de Poopooliluk.Ela não sabia o que o nome queria dizer; mas conhecera, deuma feita, um membro de uma tribo forasteira, que tinha essenome; e achou que esse fosse o mais lindo que jamais lhehouvesse acariciado os ouvidos. Desde então, sempre desejarasecretamente que lhe nascesse um filho, a fim de lhe poderdar aquele nome: Poopooliluk.Ivaloo nunca suspeitara de que um ser humano pudesse sertão feliz como ela era agora. Levando a cabo os ofíciosreligiosos — e sendo capaz de batizar o seu próprio filho! Queteria feito, para merecer tanto?A disciplina era frouxa, porém, sob o regime de Ivaloo. Amoça descuidosa esquecia-se de denunciar as mulheres e oshomens que costumavam andar pela casa, nus, ou que

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comiam além daquilo que o apetite reclamava; e também épreciso assinalar que ela própria, por vezes, fazia tudo aquilo,não se excluindo de todo da condenação.Nesse entretempo, homens e mulheres reuniam-se ao redorde Ivaloo, a fim de lhe adorar o filho; e não eram somente oshomens e as mulheres de sua aldeia; eram também viajores eperegrinos que procediam de muito longe. A afluência denômades, depois da última visita do bote que emitia fumaça,na enseada, fizera com que a notícia da gravidez de umavirgem se difundisse. Aquela era uma boa meada ara desfiar,quando chegava, por fim, a vez de a gente contar a suahistória, no interior de um iglu cheio de ouvintes atentos.Assim, a notícia viajara; fora objeto de risos, de maravilha, deincredulidade ou de fé. Ainda assim, a novidade espalhara-sepor todas as direções, principalmente para o sul, como os raiosdo Sol. Havia trenós que iam à procura da enseada, em plenaescuridão do inverno; matilhas de cães forasteiros se juntavamem seus uivos à Lua; eram uivos que procediam do sangue delobo que lhes corria nas veias; e que se uniam aos dos cãeslocais, da aldeia, enquanto os homens e as mulheres recém-chegados erigiam seus iglus a uma conveniente proximidadeda Missão.E quando aquela gente toda recebia permissão para entrar nacasa, via o menino e Ivaloo, sua mãe; e então a multidão caíade joelhos, adorando a criança. Quando os visitantes abriamos seus tesouros, ofereciam ricos presentes ao menino:bonecas esculpidas em madeira e em osso, ou feitas de pano ede peles; facas com cabos de chifre entalhado; presas demorsas, habilmente trabalhadas, bexigas de vacas, estofadas

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de chá e de tabaco; tecidos fantasiosos, adquiridos demercadores estrangeiros; comidas extravagantes, contidas emlustrosas latas de ferro estanhado; e uma ou outra garrafaocasional de aguardente.Alguns visitantes eram pagãos, e alguns eram cristãosconvertidos por missionários, em outras localidades; mastodos ouviam com igual reverência a Palavra, quandoproferida por Ivaloo; e todos se uniam a Ivaloo, nas suaspreces e nos seus hinos.Alguns pagãos, depois de ver e ouvir, pediram para serconvertidos; foram Dorrifados com água e tocados com sal —exatamente como Ivaloo vira Kohartok fazer; e todos de lá seretiraram com a fisionomia radiante. Outros permaneceramali — mas não para adorar e rezar. Alguns ficaram porque aaldeia estava crescendo e transformando-se numa grandecomunidade; muitos gostavam da azáfama representada pelostrenós que chegavam e que partiam.Também alguns mercadores apareceram. Eles entravam nacasa da Missão, para ver a virgem e o filho; sorriam;retiravam-se de novo; e começavam a fazer negócios.A aldeia expandiu-se; e as casas feitas de neve pulularamcomo cogumelos. Ivaloo achava difícil acomodar todos osvisitantes na Missão; novos bancos tiveram de ser construídoscom neve, e recobertos de peles; e, ao redor do altar, sobre oqual permanecia Poopooliluk, para ser adorado, as oferendasse amontoavam.

Um homem, chamado Gaba, pediu para ser convertidojuntamente com as suas três esposas. Ivaloo já tinha visto

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mulheres que possuíam dois maridos; ate mesmo três equatro, principalmente no norte, onde as mulheres sãoescassas; aquela, porém, era a primeira vez em que tomavaconhecimento de um homem com mais de uma esposa.Nunca entendera o motivo pelo qual deveria ser errado estarcom mais de uma pessoa de cada vez, no acasalamento; mas ocerto era que os tabus haviam sido feitos para seremrespeitados, e não para serem compreendidos. Emconseqüência, ela conseguiu incutir no espírito de Gaba queele devia mandar embora pelo menos um par das suas esposas,se é que desejava ser convertido.Nem Gaba tinha o costume de discutir a respeito de tabus; poristo, ele se mostrou bastante razoável.— Um homem mandará embora, de muito bom grado, umpar de esposas — declarou ele. — Entretanto, ele as adquiriuainda recentemente, matando-lhes os respectivos maridos; demodo que requer algum tempo decidir sobre qual delas édigna de ser conservada.Ivaloo censurou-o mas lhe concedeu tempo para se decidir, enesse período converteu-o; a ele e à sua comitiva de esposas,como se tudo estivesse em ordem. Gaba mostrou-se muitoagradecido, e permaneceu na aldeia, dando provas deconstituir grande vantagem para a comunidade, como há deser sempre o caso de qualquer homem capaz de manter trêsesposas.A caça estava longe de ser abundante, naquela estação do ano;nem se fazia fácil identificá-la e localizá-la no escuro. Gaba,contudo, era caçador emérito, e logo se tornou líder dacomunidade. Isto não quer significar que ele tenha passado a

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constituir autoridade; mas dispunha de bastante influência.Era ele quem planejava as sortidas de caçadores; e era elequem dirigia os homens. Sua recompensa chegou quando viuos outros a comer o que ele tinha conseguido. Ainda querecebesse mais do que a sua parte, quanto a esposas, estavaagora pagando muito bem por isso, uma vez que mantinhanumerosas outras bem nutridas; nesta altura, expedi-lo dacomunidade só poderia constituir perda para a própriacomunidade, sem que isso passasse a representar puniçãoalguma para ele. Aquele homem não ficaria nunca sozinho,com três esposas em que se apoiar a qualquer momento.O fruto da caçada era sempre dividido em partes iguais; masos caçadores que haviam contribuído em menor porção sesentiam mortificados, e comiam sem alegria alguma — aopasso que aqueles que mais haviam concorrido para o êxito dacaçada ficavam com o semblante como que iluminado e riamà larga; ademais, só a estes últimos é que as mulheres dirigiamolhares.

Todavia, a despeito da presença de Gaba, a ameaça da fome sedelineou na aldeia, depois de raiar o Sol. As reservas e osmontes de alimentos foram, afinai, reduzidos a quase nada; opovoado estava com excesso de habitantes; a caça iatornando-se cada vez mais rara, como sempre acontece noslugares em que o homem aparece; e melhora nenhumapoderia ser esperada da parte da primavera seguinte; porque aprimavera era sempre a estação do ano de maior escassez.Quando os pássaros se encontravam ainda fora da região, ou acaminho, e quando a vegetação ainda não havia repontado do

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solo, o grande degelo impedia que se pescasse, que se dessecaça às focas, que se perfurasse a crosta da superfície dooceano; e o recuo do gelo implicava o recuo, o afastamentodos ursos.Visto como os víveres eram escassos e as perspectivas muitopiores, muitos homens começaram a arrumar suas trouxas e acarregar os seus trenós; depois, trataram de retirar-se,enquanto a superfície congelada do oceano permitia viajar.Gaba também partiu; e deu provas de que tinha o propósitode manter a promessa de reduzir o número de suas esposas;iria efetuar a redução pelo processo de deixar atrás, lá naaldeia, com fome e de coração partido, além de quase que semvestimentas, a mais velha das esposas, do trio de quedispunha.O punhado de homens que permaneceu no povoado não secompunha dos melhores elementos; na maior parte, tratava-sede homens que não possuíam sequer cães, nem trenós, de suaverdadeira propriedade. Nem as mulheres desse grupo eramdessas de se cantarem as virtudes. Com exceção de Vivi eIvaloo, as referidas mulheres eram todas velhas ou feias;algumas eram as duas coisas ao mesmo tempo, uma vez que asde melhor aparência haviam resolvido ir embora emcompanhia dos peregrinos, a caminho de campos de caça maisricos, sem esperar pelo regresso dos respectivos homens.Todos os elementos velhos se mostravam seriamentepreocupados; e, para que os outros compartilhassem os seusreceios, começaram a escavar, dos montes de lembrançasacumulados em sua memória, narrativas de horror, dostempos de escassez. Dos tempos em que os peixes e as focas

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resolveram conservar-se no fundo do oceano, os ursospartiram para incursões longínquas, os bois almiscarados e oscaribus, além da pequena caça, desapareceram tão misteriosa-mente como haviam aparecido; dos tempos em que oshomens e as mulheres comeram seus cães, comeram até osseus barcos feitos de peles, os seus trenós de carne congelada,e os seus sacos de dormir; comeram, depois disso, os seusmortos; e, finalmente, aqueles que nem sequer ainda estavammortos.Foi, porém, Siorakidsok quem mais se preocupou com asituação; preocupou-se bem mais do que todos os outros. Erao responsável pelo bem-estar da comunidade; e, se nãotomasse providências para sanar a situação, os outrospoderiam pechá-lo de impostor, e, assim, tratá-lo como sefora um velho inútil — agora que Kohartok não se achavamais presente para protegê-lo.Quando os primeiros raios de sol feriram a baía, dando inícioao período mais crítico do ano, e ele, Siorakidsok, observouque era cada vez maior o número das pessoas quemurmuravam em sua presença, reuniu a comunidade, a fimde lhe dirigir uma mensagem urgente.— Há um pecador, em meio a vocês — anunciou Siorakidsok,ameaçadoramente, lançando olhares acusadores por todas asdireções; e até pareceu que não houvesse ninguém quedeixasse de estremecer, de se encolher de medo, de procurarocultar-se. — Com toda probabilidade, alguma mulher tentoumatar uma foca; ou, então, cozinhou peixe e carne numamesma panela; ou, talvez, tenha chegado a fazer coisa pior do

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que isto. São sempre as mulheres que cometem infrações; esão sempre os homens que têm de suportá-las!Seguiu-se um silêncio absoluto; e Sioralddsok continuou,petulante:— Vocês bem sabem que, exatamente como a simplesinfração de um tabu acarreta contratempos para todos, assimtambém a confissão pública da infração suspende ossofrimentos. À vista disto, por que e que vocês se mostramsempre tão relutantes, negando-se a confessar? Vocês,horrendo feixe de pecadores?Ainda assim, ninguém respondeu; Sioralddsok fez gestos dedesespero; e emitiu vários suspiros profundos, antes deprosseguir:— Um xamã permitirá, mais uma vez, que ele próprio sejaincomodado com outra viagem à Lua, com a finalidade deficar sabendo o nome do culpado. Ai da mulher culpada, aoregresso de alguém! Ela terá de ser expulsa da aldeia; terá demorrer de fome, abandonada a si mesma, sem arrastarninguém mais na sua muito bem merecida ruína! Portanto,comecem imediatamente a preparar os presentes destinadosao Espírito da Lua; todos! Preparem os pratos, as iguarias, comamor e carinho; e façam uso de todas as carnes doces queestiveram presentes em suas despensas. Esta não é aoportunidade para mesquinharias!— Esperem! — exclamou Ivaloo. — Se uma jovemimpertinente de contraditar um homem tão inteligente comoo que acaba de falar, não há a menor das razões para nospreocuparmos. Ninguém vai morrer de fome.—Por que não?

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—Porque Deus tomará providências para nós todos, desdeque acreditemos Nele, e desde que nos ponhamos a rezar. Ouserá que vocês não prestaram ouvidos a Boa Palavra? Épossível que uma jovem preguiçosa não a tenha gritado combastante força, nem as vezes suficientes, para que Elapenetrasse nos seus sábios ouvidos?Sioralddsok não tinha assumido compromisso algum quantoao milagre. Agora, porém, que Ivaloo interferia contra os seusplanos de viagem, ele ruborizou de zanga; e achou que deviafalar com ela, a sós.— Um homem não sabe se o seu Deus tomará ou nãoprovidências — esclareceu ele, com tom baixo de voz, assimque os dois se viram juntos e sós; — mas este homem sabe,com absoluta certeza, que o Espírito da Lua, que é de mausbofes, e que já se encontra à espera dos nossos presentes, sevingará violentamente, contra você e seu filho, se insistir eminterferir contra a viagem do xamã.Esta possibilidade nunca havia ocorrido a Ivaloo. Opensamento de que o pequeno Poopooliluk, seu filho, pudesseentrar em perigo, deteve, de pronto, as objeções da moça; eentão ela ajudou a preparar os presentes destinados aoEspírito da Lua, introduzindo entre eles todas as iguarias quehaviam restado nas despensas da comunidade; ainda assim,nenhuma das iguarias deixou de ser inteiramente mastigadapelas mulheres, e reduzida a pratos bastante macios — porqueo Espírito da Lua é um velho muito velho, e não possui entes.Ainda no momento em que Siorakidsok se encontrava acaminho, apareceu uma invasão de caribus — acontecimentonada comum para aquela aldeia, que ficava situada além do

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ponto mais norte da migração dos caribus, mas ainda assimpossível, em fase de primavera, antes de o dia se erguer detodo, e antes de as trevas e a luz se alternarem a cada giro doSol; nessas oportunidades, a superfície de neve, que recobre osliquens e os musgos, depois de derreter sob a ação dos raiossolares, pode endurecer de novo, com o retorno da geada. Eisto impede que as manadas de renas e caribus escarvem eperfurem a crosta; em conseqüência, essas manadas sedispersam desabaladamente por todas as direções, em buscade forragem.Uma de tais manadas se derramou na direção da enseada, emcuja linha costeira Ivaloo era rainha — e Poopooliluk rei.Os caribus, animais bons e dóceis, gostam muito de criaturashumanas. Por isto, morrem de muito bom grado, de acordocom grande variedade de modos: ora deixando-se abater pormeio de lanças e flechas; ora deixando-se perfurar por meiode facas; ora deixando-se apanhar por meio de bocas-de-lobo,com iscas feitas de urina, cujo conteúdo de sal muito lhesapetece. E enquanto, no decorrer de vários giros do Sol,homens, mulheres e crianças comeram, até romperem-se porassim dizer pelas costuras, o prestígio de Ivaloo subiu a alturassem precedentes. Contudo, ela ficou triste, porque o seurebanho chegara a duvidar.Quando Siorakidsok regressou de sua viagem, anunciou quefora ele que persuadira o Espírito da Lua a perdoar aos aldeõesos respectivos pecados, à guisa de rara exceção, e a remeter oscaribus procedentes do sul. Assim, os aldeões nunca ficaramsabendo se era o Deus cristão ou o Espírito da Lua que

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merecia louvor; e então se permitiu que ambos os partidostirassem benefício dessa dúvida.Logo depois de a comunidade haver retomado as suasmoradias de verão, na praia, outro barco emitindo fumaça,abrindo uma senda através do gelo quebradiço, lançou âncorana enseada, desembarcando os habituais marinheiros — maisum novo sacerdote.O novo pregador era mais velho do que Kohartok, e muitomagro. A magreza fez com que os nativos se afastassem umpouco dele, até ficarem sabendo que era devida a jejumvoluntário — coisa que se tornava saudável para o corpocristão, além de meritória para a alma cristã. Depois disto, osnativos passaram a respeitar a magreza do padre. Este erahomem alto, com ossos pontudos no comprido rosto sombrio;nariz estreito e em bico; fronte alta, por baixo da qualbrilhavam dois olhos pequenos, mas esbraseados. Os cabelospretos, com listras brancas, iam rareando; mas elecompensava o caso por meio de longa barba lisa, que lhechegava à cintura.Embora ele não conhecesse mais palavras esquimós do queKohartok, fazia uso delas com tamanha tonitruância eautoridade, que nem o mais obtuso dos ouvintes precisava demuito tempo para compreender o que ele queria e o que nãoqueria.E a primeira coisa que ele não quis foi Ivaloo.Ela estivera, com as outras mulheres, na praia, sorrindo para onavio, tendo sempre o seu filho amarrado às suas costas.— Quem é que está a cargo da casa da Missão? — perguntarao homem branco, ao descer pelo portaló.

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Ivaloo adiantara-se.— Mostre-me o caminho — dissera o sacerdote, ríspido.Ivaloo foi à frente, enquanto Poopooliluk, no berço das costasmaternas, esticava o pescoço, curioso, a olhar para oestrangeiro. Ela abriu a porta da casa da Missão, e deixou queo homem branco entrasse. O sacerdote acenou, com a mão,para que se retirassem as pessoas que, em atropelo, o haviamseguido; quis que também Tippo se retirasse; e bateu a portana cara do povo.Ivaloo acompanhou-o pela casa toda, fazendo-o notar o altartodo coberto por uma pilha de presentes ali depositados pelosdevotos, e mostrando-lhe o cubículo com as estampascoloridas pregadas na parede, por cima da cabeceira do catreem que ela dormia.O homem branco sentou-se na cadeira. Seus lábios eramapenas uma linha fina, quando ele fitou a moça esquimó, deolhos abaixados.— É você a moça chamada Ivaloo?— Sim — sorriu ela, agradada e satisfeita pela circunstânciade o sacerdote lhe saber o nome.Em silêncio, o homem branco ficou cofiando suas suíças; emanteve os olhos esbraseados fixos na figura de Ivaloo.— Você terá de entregar-me a chave e sair deste lugar —disse ele.— Ela olhou para o pregador, atarantada. Depois,encaminhou-se para a mesa, e, devagar, apanhou o seu livro.— Que é que você tem aí? — indagou ele.—O nosso pregador, Kohartok, deu este livro a alguém, antesde ir-se embora.

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—Eu sou o pregador, agora. Para que foi que ele lhe deu esselivro?—Ele disse que o livro ajudaria uma moça a difundir a BoaPalavra.— Você tem estado a fazer... o quê?Ivaloo sorriu:— Uma moça sem valor tem estado a ensinar por aqui Deus eesus; tem estado a contar a Boa História, e a mostrar asgravuras. Depois que eu ensino e conto, todos nós rezamos ecantamos.O pregador fitava-a, sem proferir palavra. Ela interpretou issocomo sinal de encorajamento:— Há muita gente que ouviu a Boa História nesta sala, e,como conseqüência, se fez cristã.— E, provavelmente, foi você que a converteu?— Não é impossível — disse Ivaloo, com um sorriso. Ele deuuma risada breve; e ela acrescentou, depressa:— Não foi difícil, de forma nenhuma. Isso não se deveumuito às palavras de uma moça ignorante, e sim à presençadele.E Ivaloo apontou, com o polegar, para o menino que trazia àscostas, e que, naquele momento, estava espiando para afrente, por cima do seu ombro.—Já ouvi falar dessa criança, de que você é mãe — disse opregador, com severidade — e esta é a razão pela qual vimpara cá.—Verdade?Ivaloo mostrou-se radiante de gratidão e de contentamento; edisse:

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—Muita gente tem vindo de muito longe, para adorá-lo; masvocê veio de mais longe ainda. É uma grande honra — comoos Homens Sábios, do oriente, viajando em busca do InfanteJesus — declarou a moça, com fervor, abaixando os olhos.—Já é tempo para que você pare com essa ilusão perversa —exclamou o homem branco, como se, até então, houvessefeito uso de grande esforço para se conter, desabafando-se,afinal, de súbito e tudo de uma só vez. — Você estáproferindo uma blasfêmia!O coração de Ivaloo mergulhou. Afigurou-se-lhe que aquelehomem não tinha aparecido por ali para adorar, afinal decontas, o pequeno Poopooliluk.— Queira desculpar uma moça estúpida por deixar deentendê-lo. Que é que você tem em seu pensamento?— O alegado nascimento virginal de seu filho!Ela olhou para ele, desconcertada.—Por que é que você não investiga, homem branco? Todagente sabe disso.—A minha idéia — disse ele, em tom conciliatório,retomando o autocontrole — é a de que esse assunto todocomeçou quando você se viu grávida e se recusou a admitirque teve qualquer relação com um homem.—Por que é que uma moça se recusaria a admitir isso?—De medo de que os seus pais a censurassem pelo que fez.— Alguém não tem pais para censurá-la, infelizmente. Se,porém, os pais dela estivessem vivos, não a censurariam; aocontrário; ficariam contentes por ela ter um filho. E, porcerto, a mãe de uma moça não iria atirar-se à água e se afogar,se viesse à saber do caso.

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— Então a sua mãe cometeu suicídio?O pregador ergueu-se, com os olhos a esbugalharem-se, comoos de alguém que acabasse de fazer uma grande descoberta;depois, continuou:—E seu pai era assassino, provavelmente?—Ele matou apenas um homem — declarou Ivaloo.O pregador bateu as mãos:— Seu pai, um assassino; sua mãe, uma suicida! Comopoderiam eles deixar de criar uma perversa mentirosa? Umaárvore corrompida não pode dar bons frutos, diz o Bom Livro.Você, pobre moça! Você não e a única culpada da suaperversidade.Ali estava, com efeito, uma alma que merecia ser salva. Entãoo sacerdote começou a dar passadas, de um lado para outro:— Então, é daí que procede a sua pecaminosidade; você érebento de um casal tomado pelo diabo! Para eles, nós nãopoderemos fazer nada. Para você, porém, ainda estamos emtempo.Ele enfrentou a moça, cara a cara:—Posso mostrar-lhe o caminho correto; mas é você que devemover seus pés.—Com muito gosto! Mas você pensa realmente que os pais deuma moça estão condenados para sempre? — perguntouIvaloo, preocupada. — Kohartok parece que não pensavaassim.—Vamos deixar de falar a respeito do meu antecessor! Que éque você pensa?A madrugada de uma nova vitória parecia estar à vista.

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—Você pode duvidar de que os seus pais estejam torrando-sepor causa dos pecados que cometeram? Pode duvidar de queserá melhor que você se arrependa dos seus, e bem depressa, amenos que queira juntar-se a eles?—Mas alguém quer, e quer mesmo, juntar-se a eles! —declarou Ivaloo, com firmeza. — Uma moça não consentiráem ir para nenhum lugar, a não ser para aquele em que eles seencontram. . . seja lá onde for que se encontrem.O sacerdote sentiu-se extasiado; mas emendou, depressa:— Se você fizer as pazes com Deus, Ele poderá ainda ouvirsuas preces e receber a alma dos seus pais, como tambémreceberá a sua, se você contar a verdade. Será que você armoutoda essa história de medo de que nenhum homem se casassecom você, por saber que estava grávida? Responda!Ivaloo franziu a fronte. Não conseguia, de jeito nenhum,compreender o ponto para o qual o padre desejava rumar.— Muitos homens me tomariam por sua esposa, porque asmulheres são escassas por aqui; e eles se sentiriamparticularmente felizes por encontrar mulher que já teve filhohomem, poupando-lhes assim muito trabalho e muitoaborrecimento.—Olhe, mocinha. Toda a gente comete muitos erros. Os errosse tornam pecados de verdade somente se a gente procuraencobri-los por meio da ilusão aos olhos dos outros. Todacriança é filha de Deus. Mas você não pode andar por aídizendo que Deus, em pessoa, é que fez o seu filho. Não épossível! Uma criança é ò resultado do fato de um homem euma mulher se juntarem. Não há outro modo!—Você quer dizer... Você então não acredita?

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Ela o fitou, com os olhos arregalados, cheia de terror:—Você não acredita na Historia de Deus?—Essa é a sua história; e é nessa história que não acredito! —gritou ele, com o rosto todo avermelhado: — Você descobriuque as mentiras podem ser muito convenientes, sendo que ospresentes se empilham no altar e que o povo vem adorar avocê. Mas você cometeu pecados muito graves, e a puniçãoserá correspondente a essa gravidade. Toda vez que você davauma lição, cometia uma blasfêmia; toda vez que vocêproporcionava um batismo, perpetrava um sacrilégio!—Você fala como um homem muito sábio — disse Ivaloo,reverente, embora alarmada — porque alguém não estáentendendo sequer uma palavra do que está dizendo.—Estou dizendo que você não tinha direito algum de ensinara Boa História, nem direito nenhum de celebrar ofíciosreligiosos!—Mas Kohartok disse que uma moça poderia fazer tudo isso.—E eu digo que você não pode! As conversões que você levoua cabo não têm valor! Os batismos foram apenasmacaqueação!—Isto é muito confuso. Então Poopooliluk não está batizado?— perguntou ela, de alma no chão.—Claro que não está! Ouça, Ivaloo — disse o sacerdote, commudança de tom da voz, e esforçando-se por se controlar —uma grande organização me mandou, de muito longe, para cá,a fim de persuadir você a dizer a verdade. Nenhum mal lheacontecerá, se contar a verdade. Mas você precisa dizer onome do pai da criança; e, se puder apanhá-lo, nós faremos

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com que ele se case com você; assim, logo se esquecerá todoesse episódio maluco.—Como pode alguém se esquecer disto?—Você é moça, e passará por cima do caso. E, se teme que asoutras mulheres zombem de você e da sua desgraça, eu alevarei para um lugar onde ninguém sabe do que se passou.—Por que razão deveriam as mulheres escarnecer de umamoça? E por qual razão deveria ser uma desgraça ter umfilho? Você disse que essa é a vontade de Deus.—Não pela forma através da qual você o concebeu!—Pois não há uma só maneira de se conceber uma criança?Isto é — e ela procurou a toda pressa corrigir-se, sorrindo — amenos que Deus ponha o Seu dedo na gente?— Ele não pôs o Seu dedo em você! — trovejou o pregador.O homem branco deu uns passos rápidos para a frente, comose fosse para lhe pousar uma das mãos; e ela se encolheu,enérgica.— Agora, ouça-me bem, e com atenção, Ivaloo. É possívelque você não tenha percebido, em sua estupidez juvenil, agravidade da sua mentira. Mas agora eu quero uma respostafirme.Os olhos do homem eram como facas e flechas, perfurandosulcos em seu cenho:— Com quem foi que você cometeu o seu pecado?Os olhos de Ivaloo incharam-se de lágrimas. Ela sentiu medodaquele homem, que lhe falava por meio de enigmas, e queparecia possesso. O homem branco estava, provavelmente,insano. Com muita probabilidade, sua mãe deveria ter sidomordida por um carcaju, ao tempo da gravidez de que ele

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nasceu. Ivaloo quis ter o filho nos braços. Soltou as tiras porbaixo do peito; levou as mãos por cima dos ombros; puxou opequeno pagão para fora do seu berço; e apertou-o deencontro ao seio. Apertou-o, porém, com força excessiva. Omenino começou a chorar; e ela puxou para fora um rico seiorosado e flórido, com veias finas apontando para o mamiloescuro.A zanga do pregador aqueceu-se a um grau inusitado.—Você não deve fazer isso — gritou ele, batendo os pés nochão.—O pequeno está com fome. . .—Mas não na presença de outra gente!Confusa, ela tornou a pôr o seio para dentro da jaqueta,enquanto Poopooliluk entrou a gritar em tons que subiam edesciam; a criança estava realmente sentida.— Agora, saia, Ivaloo. Saia e não volte enquanto não tivertomado outro caminho. Um caminho melhor. E lembre-se deque não terá de se queixar senão de sua loucura, se tiver quesofrer por causa disso!

Ninguém, dentro de tão breve espaço de tempo e de tão curtocaminho do Sol, chegou a cair tanto, tão depressa e tãoprofundamente como Ivaloo.O novo pregador tocou o sino e reuniu a comunidade. Ele nãopareceu interessado nos homens brancos que haviam chegadoem sua companhia, a bordo do navio que emitia rolos defumaça; nem eles se interessavam por ele. O sermão dopregador branco foi feito em idioma esquimó, somente; e,para se assegurar de que todas as nativas se encontrassem

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presentes, ele mandara mensageiros encarregados de puxar asdorminhocas para fora dos seus sacos, bem como de chamarpara a casa da Missão todos os mercadores, todos os caçadores,todos os armadilheiros, todos os remadores de caiaques etodos os caçadores de baleias; todos — com exceção de Ivaloo,que se havia refugiado em casa de Siorakidsok; e também comexceção deste xamã.Uma vez que o pregador foi visto rabiscando num livro, antesde dar começo ao seu sermão, e que os nomes de homensbrancos nada são, mais do que resmungos rudes eimpronunciáveis, para os esquimós, estes logo ocognominaram Tetarartee, ou aquele-que-escreve. E foi isto oque eles ouviram, na Missão, da parte de aquele-que-escreve:"Para terras muito distantes eu viajei, e muitos pecadores,bem como inúmeros pagãos, eu conheci; mas nunca, antes devir para cá, tive notícia de um exemplo em que Deus tenhasido tão gravemente escarnecido e insultado como nestaaldeia. Uma jovem, sem marido, não satisfeita com o fato dehaver pecado pela maneira comum, recorreu à mentira maisextraordinária e mais sacrílega, para justificar o fruto da sualascívia. E agora se recusa a admitir o erro e a arrepender-se.Mas ela não arrastará outras pessoas em sua companhia, para aperdição! A moça em questão não está em condições de entrarna Casa de Deus. As preces são desperdiçadas, quando feitas àseu favor. Vocês, pessoas de mente simples, não são capazesde enfrentar as espertezas e as maquinações dessa mulher;exatamente como vocês não estão preparados para assinalar apresença do diabo. Por isto, vocês precisam aceitar a palavrade alguém que os possa iluminar. Ela é uma impostora; e os

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que a ajudam- no esforço de iludir os outros, como aquelesque prestam atenção a xamãs mentirosos, não são nada maisdo que idólatras, consignados às labaredas eternas! Portanto,livrem-se vocês mesmos dessa mulher, seguindo o conselhodo Bom Livro: "Se o seu olho direito o ofende, arranque-o, eatire-o ara fora, longe de você; porque é vantajoso, para você,que um os seus membros pereça, e não que o seu corpointeiro seja atirado ao inferno". Amém.— Amém — murmurou o auditório atarantado.—Alguém sempre desconfiou de que ela fosse uma grandementirosa — confessou imediatamente Padlock, ao círculomais íntimo das suas amigas, sem sequer inquirir ao menos sea oportunidade dava cabimento aos refrescos. — Desde oprimeiro momento, havia alguma coisa, em torno daquelagravidez, que falava de pecado!—Ela deve ter tido algum capricho fora da aldeia, econservou-o fora das nossas vistas; ou talvez é bem possívelque haja assassinado o infeliz, a fim de ganhar honra para simesma, com aquela fábula do nascimento virginal — disseNeghe, que se ressentira por havererdido a antiga posição de primeira dama da aldeia, embenefício e Ivaloo.—Talvez — sugeriu a velha Tippo, num sussurro — ela sehaja acasalado com um urso. Esses esquimós polares fazemtoda espécie de coisas. Minha mãe me contou que as mulhereslá do norte tem o costume de unir-se aos ursos e às morsas.—Vocês nada mais são do que um par de cadelas invejosas! —gritou Torngek.

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—Você bem que ouviu o pregador dizer! — tornou a falar airmã, com intenção venenosa.—Nós não somos obrigadas a acreditar em tudo que opregador diz — esclareceu Torngek, que era mulher deespírito largo.—A quem, então, deveríamos dar crédito? Os conhecimentosde um sacerdote procedem diretamente de Deus.—Alguém não sabe se esses conhecimentos procedem direta-mente de Deus; mas não há dúvida alguma quanto ao fato dePoopo-oliluk ter procedido diretamente de Deus.—Essa é a voz do Diabo, que vem através de sua boca,Torngek — esganiçou Tippo, erguendo o tom confabulatórioda conversação a uma chave mais aguda. — Você está tãocheia de pecado, com os seus dois maridos, que não há lugarpara Deus dentro de você, sua mulher perversa!A isto, Torgnek vibrou-lhe um soco no ventre; e Tippo caiuao chão, choramingando como uma foca atingida por umgolpe de porrete.—Que é que se está passando? — indagou o pregador,aparecendo ali a toda pressa.—O Diabo tomou conta da irmã de alguém — gritou Neghe.— O Diabo está pondo palavras pecaminosas em sua boca!—Está, sim — gritou Padlock. — Torngek estáendemoninhada, e toma o partido de Ivaloo.—Vocês já estão podendo ver o que acontece quandopermitem que Satã se instale entre vocês — advertiu opregador, com ar triunfante. — Conversas ímpias, violência,uma velha mulher espancada! O meu objetivo é transformaresta aldeia numa comunidade pacífica, a despeito do passado;

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mas, a não ser que se livrem do Diabo que se encontra no seumeio, vocês provocarão e chamarão sempre fúria de Deussobre suas cabeças. . . E saibam que Deus pode ser terrível emsua ira!Ele mesmo, o pregador, afigurou-se terrível em sua ira — comos olhos a fulgurar, tomados por um ardor nunca visto, namoldura do seu rosto estreito e sombrio.

CAPÍTULO XIIIA PROSCRITA

—Você traz desgraça para a nossa casa, e infelicidade para anossa aldeia! — disse Neghe, investindo contra Ivaloo;encontrara-a em sua casa, quando regressara do sermão.—De que é que se trata — regogou Siorakidsok. — Ivaloonada mais tem feito, a não ser chorar, desde quando chegou; enão quer dar respostas às perguntas.Visto como o homem branco passara bem perto dele, na praia,e não lhe pedira que fosse encontrar-se com ele, não foraassistir à declamação do sermão, em represália; e ninguém lhehavia explicado o motivo de toda aquela comoção.— Tetarartee, o novo pregador, não nos admitirá à escola,nem à capela, se nós a tivermos em nossa companhia —gritou-lhe Neghe.— Ele não nos dará casamento cristão, quando os nossoshomens voltarem; também não batizará nossos filhos; e, alémdisso, não nos dará chá, nem bolo.Neghe apontou com o dedo para Ivaloo:

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—Esta moça perversa pecou da maneira mais terrível,mentindo a propósito de sua gravidez! O mar ficará vazio; aterra ficará deserta; as mulheres ficarão estéreis, se nós aconservarmos em nosso meio. Deus pode ser terrível em suaira!—Nesse caso, pois — disse Ivaloo, cautelosa, saindo do seucatre— alguém se retirará também daqui.—Para onde é que você irá? — gritou Siorakidsok, como seela, e não ele, fosse surda.—Vou construir uma casa, para ficar longe daqueles quereceiam ser objeto de grandes males devido à presença deuma moça estúpida.—Essa ê uma boa idéia — concordou Siorakidsok, logo depoisde ela repetir o que havia dito. — Mas quem é que iráalimentar e vestir, a você e ao seu moleque?Ivaloo não pôde deixar de sorrir em face da simplicidade dovelho.— Deus, naturalmente. A criança é Dele; e Ele não deixaráque o menino sofra fome, nem frio.—O quê? — tornou a indagar Siorakidsok.—Deus tomará conta de Foopooliluk — gritou a moça paradentro da orelha do velho.Ao mesmo tempo, Neghe gritava para dentro da outra orelha,do mesmo velho:—Ela está cheia de pecados; e todos nós seremos punidos, senão a expulsarmos do nosso meio. Tetarartee foi quem o disse.Como é que ela ainda ousa proferir o nome de Deus!?—Quieta, Neghe! Se você pecou, Ivaloo, confesse!

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—Alguém deve ter pecado; se assim não fosse, Deus não apuniria. E uma moça se sentiria feliz por confessar qualquerpecado. . . mas, em primeiro lugar, ela gostaria de saber onde,quando e como foi que ela pecou.—E o xamã está pronto a acreditar que você, na sua infinitaignorância, quebrou algum tabu, do qual não tinha a menorconsciência. Cada região tem os seus tabus próprios; e, quemsabe, você não tem conhecimento de todos os tabus destaregião, nem de todos os tabus dos homens brancos?—Mas então como é que se pode saber?—Não é impossível que um xamã empreenda outra viagem àLua — disse ele, em tom de voz cheio de resignação. — Esta éa única maneira de saber alguma coisa a respeito do seupecado.—As suas viagens para a Lua já se acabaram! — interrompeu-o Neghe. — Tetarartee já nos fez sentir que não devemoscuidar de um xamã, se desejarmos tirar proveito dos serviçosreligiosos; e então ninguém mais lhe dará presentes para oEspírito da Lua. E uma mulher pensa que isto e muito bom,pois o Espírito da Lua tem estado a comer demais,ultimamente, das nossas reservas de alimentos.—Saia daqui, Neghe! Saia, sua velha saca cheia de piolhos! —vociferou Siorakidsok, com a boca espumando. — Alguémdeseja falar a sós com Ivaloo.Neghe saiu, relutante; Siorakidsok curvou-se para a frente, edisse, com ar astuto e sorna:—Se um xamã não pode ir à Lua, como pode ele descobrir opecado que você cometeu, e tornar a pôr as coisas em ordem?

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Talvez, porém, você possa proporcionar auxílio, mandandoalguém, secretamente, fazer essa viagem.—Pois então você não ouviu? Ninguém quer associar-se auma moça amalucada! — gritou Ivaloo.—Por que é que você fala em voz baixa, sua boba? Não háninguém, na casa, que nos possa ouvir contra a nossa vontade.—Ninguém poderia ouvir ninguém, agora — vociferou ela,para dentro de uma das orelhas dele. — Nem sequer Vivi.Além disto, não é correto atravessar os propósitos deTetarartee, que representa Deus na Terra.— Neste caso, é melhor que você abandone esta aldeia a todapressa. Um xamã não considera pecador o que um sacerdotebranco considera pecador; um xamã só conhece uma espéciede pecado: a espécie que causa dano à comunidade. Assim,neste momento, alguém ve apenas três principaistransgressores: Tetarartee, você e o seu filho. Você eTetarartee, uma vez que ambos espalharam aborrecimentos epreocupações; e seu filho, uma vez que é ele a causa de tudo.E visto que Tetarartee, além de distribuir chá e bolo, aforaoutros doces, se encontra também em intima aliança com oDeus do homem branco, Deus este que deve ser um espíritorealmente muito perigoso, é simplesmente normal ecorriqueiro que você e seu pirralho abandonem a aldeia, emnome da segurança e do bem-estar de todos.Ivaloo pendeu a cabeça:—Nós iremos embora.—Não adianta opor resistência, moça cabeçuda e teimosa!Nós faremos com que você se retire! Primeiro, porém, você

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terá de arranjar um provedor. . . alguém que lhe forneçaalimentos.—Não há necessidade disso, como alguém já lhe disse. Deusprovidenciará.—Aqui está o que você deverá fazer, Ivaloo. Além de você eVivi, só há um punhado de velhas bruxas, na nossa aldeia, nasquais ninguém gostara de tocar sequer, a menos que o sejapara as coíocar nas respectivas sepulturas. Assim, deveria irpara onde se encontram os homens, a fim de indagar se algumdeles quer ficar com você.—Todos eles têm esposas; e, de acordo com as normas maisrecentes, não poderão ter mais do que uma esposa de cadavez. Ou será que você já se esqueceu disto?—Os homens estão sempre prontos para descartar uma esposaidosa, em troca de uma nova. Ninguém lhe fez propostaalguma, ainda?—Naturalmente não. Eles respeitam uma moça, emconseqüência da maneira pela qual ela concebeu Poopooliluk.—Se, entretanto, você os desafiar, verá que alguns delesresolverão aceitá-la, ainda que não fosse, como é, bastantegorda e robusta. Até mesmo um xamã poderia ficar com você,se ele fosse apenas uns dois anos mais moço do que é.Ivaloo cacarejou:—Muito obrigada, Siorakidsok.—Ao melhor caçador, você dirá: "Faça suas trouxas e vamospara o norte; homem: como dote, uma jovem lhe proporcionaum ilho homem; e lhe fará vestimentas, preparará peles quetirará dos animais que você caçar; e rirá com você, durante aslongas noites, até que as lágrimas lhe subam aos olhos.

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— Alguém gostaria de seguir o seu conselho, aliás, excelente,Siorakidsok, se não fosse pelo seu filho. Visto, porém, que omenino é filho de Deus, e que terá de ser o Novo Redentor,alguém deseja dedicar a ele a vida inteira, a fim de lhe ensinara Verdade; por essa forma, ele poderá levar a Verdade aocoração dos homens, inclusive ao seu, Siorakidsok. É umapena que os seus ouvidos sejam tão duros e tornem impossívela entrada, neles, da Verdade.— Venha mais perto, você, sua moça estúpida. Alguémdeseja esbofetear suas orelhas.Ivaloo aproximou-se, respeitosa, e Siorakidsok vibrou-lhesonora bofetada:—Todos os xamãs são dotados de grande luz interior, que lhesrevela a Verdade real!—Então, por que é que você não acredita em Deus, de acordocom os ensinamentos da Boa História? — perguntou-lheIvaloo, passando a mão pelo próprio rosto, como que parasuavizar a dor do tapa.—Um xamã acredita, Ivaloo! Um xamã acredita em todos osespíritos. O mundo é grande; muitas são as tribos que, nomundo, caçam, pescam e pecam; e há necessidade, por isto, degrande quantidade e espíritos.—Torna-se evidente, agora, que você ficava dormindo naEscola, Siorakidsok! Só há um espírito: Aquele que Jesusrevelou.—Não acredite nisso, Ivaloo. Os nomens brancos têminteligência extremamente estreita, e são pessoas muitovaidosas. Esta é a razão pela qual eles ousam dizer que sóexiste, no máximo, um único espírito — o espírito deles,

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naturalmente! — e afirmam que só ele deve ser obedecido,devendo todos os outros ser atirados fora. Não é bem assim.Entretanto, contradizer os homens brancos seria coisa rude;talvez até mesmo perigosa. Se alguém age, ou pensa, de mododiverso do que eles adotam ou aprovam, consideram issocomo sendo pecado. Sabe você por que é que não permitemmais do que uma esposa, ou um marido? Porque nenhum doshomens brancos seria capaz de tratar equitativamente váriasesposas ao mesmo tempo. Quando eles tomam emempréstimo as esposas de outros, fazem-no manhosamente,sem sequer pedir a permissão dos respectivos maridos. Istomostra como os homens brancos são desprezíveis! Agora,Ivaloo, se o Deus dessa gente branca não fizer você feliz — eserá coisa surpreendente se o fizer — e a encher desofrimentos, ao invés de felicidades, isso significará que elenão é o Deus que você deseja. Está compreendendo?Ivaloo franziu o nariz; o que queria dizer não.— Então, ouça, estúpida. Cada tribo tem o deus que merece,porquanto os deuses são feitos à imagem daqueles que nelesacreditam. Portanto, os estúpidos têm um deus estúpido; osinteligentes, um deus inteligente; os bons, um deus bondoso;os perversos, um perverso. O deus dos homens brancos éciumento, egoísta e ambicioso, porque ele são ciumentos,egoístas e ambiciosos. Eles esvaziam de baleias as nossaságuas; esvaziam de focas os nossos mares. Alguém os conhecemuito bem. Muitos, muitos anos atrás, quando ele vivia muitomais para o sul, onde as baleias eram abundantes, porque oshomens brancos eram poucos, alguns baleeiros brancosresolveram tomar a seu serviço seis homens, a fim de exibi-los

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aos olhos do seu povo, que nunca, antes, tinha visto homemnenhum. Alguém se encontrava entre os que então foramescolhidos.— Você esteve, de fato? — indagou Ivaloo, extasiada.— Mas um xamã foi suficientemente esclarecido, de modoque declinou do convite; e esta é a razão pela qual ele aindaestá vivo, hojel Tá tive notícias relativas aos sinistros camposde caça dos homens Drancos, onde as mulheres são ociosas eforçam os respectivos maridos a fazer todos os trabalhos,principalmente os trabalhos mais árduos.— Que vergonha!— As mulheres surram seus filhos homens, quando estes serecusam a trabalhar; assim, todos os filhos homens crescemacostumados a trabalhos duros; crescem, também,terrivelmente receosos das suas mulheres, que andam ao léu,sem coisa alguma, além de mistificação, em suas cabeças.Ivaloo inclinou-se para trás, com olhos esbugalhados eexpressão de pânico no rosto:— Nunca ninguém ouviu uma coisa tão horrorosa!— Não, Ivaloo. Nenhum dos homens voltou de lá. Seispartiram no navio que atirava fumaça ao espaço; e nunca maisse teve notícia deles. Durante muitos anos, toda vez quevíamos um homem branco, perguntávamos pelos homens quetinham ido para os seus campos de caça. Alguns tinhamsabido de sua chegada, mas, nesse caso, ninguém queriacontar; nem dizia que sabia o que acontecera aos esquimósque tinham sido levados. Todos os levados desapareceram,sem deixar vestígio algum.

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Seguiu-se um silêncio; e Siorakidsok saboreou o terror queencheu esse silêncio.— Que foi que você disse? — perguntou ele, porquepercebeu que Ivaloo não estava dizendo nada. — Ouça isto. Areligião dos homens brancos foi concebida para conter aperversidade de pessoas muito perversas — de um povo quevive extremamente apavorado diante da idéia de ter demorrer. O amor dos brancos para com o seu Deus foiconstruído na base do terror que eles têm da morte. Acredite-me. É preciso a alma de um homem branco, para carregar ofardo das suas crenças, e não uma alma como a sua, Ivaloo.Será que você compreendeu algo do que um xamã lhe estevedizendo?— Nem uma palavra — disse a moça, com admiração.— Ouça, mulher. Se esse Deus cristão é realmente essaPotência perigosa e irritável, tal como Neghe e Tetarartee oapresentam, então será melhor que você se esconda dele. Se,porém, ele é bondoso, como Kohartok costumava informar,então você não tem nada a temer da sua parte. Por que razãodeverá o caminho que conduz a alguém, que se pretende nosame, ser tão pedregoso, a ponto de nos ferir os pés — ao invésde ser uma trilha suave, plana, como o oceano? Será queaquele Deus quer que seus filhos sejam felizes, ou que sofram?Que é que você pensa?—Uma moça estúpida não sabe como responder.—Por qual razão deveria ele exigir auto-tortura e renúncia,que são coisas que endurecem o coração da gente? Por quemotivo deve haver mérito na paciência e na abstinência?Você pode responder a isto?

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—Não. Uma moça nem sequer percebe do que é que você estáfalando.—Um xamã não encontrou, nem deseja encontrar, o Deus doshomens brancos. Nós sempre andamos muito bem sem ele.Mas a luz interior de um xamã lhe revela que aquele que nosfaz homens deseja que seus filhos sejam felizes, não infelizes.Ele não gosta de ver caras compridas de tristeza, e sim rostosredondos de felicidade. Ele não quer ouvir queixas, e simrisos; de modo que também possa rir um pouco. E ele querque as criaturas sejam felizes, porque as pessoas felizes sãobondosas, ao passo que as infelizes são maldosas. Compreendevocê isto?Ivaloo franziu outra vez o nariz.— As pessoas felizes se sentem dispostas a distribuirgentilezas a toda a gente. Somente os infelizes roubam,brigam e matam.Siorakidsok descreveu um círculo, com um gesto da mão:—Olhe ao redor! Aqui nós vivemos no luxo, com folga e comrequinte. Este é o conforto do sul. Mas não é o seu modo devida, Ivaloo. Você nunca será feliz entre os cheiros decomidas, de tabaco e de querosene, porque você não estácondicionada para isso; nem o seu espírito esta preparado paraas pregações dos pregadores brancos. O seu corpo, Ivaloo, estáacostumado a outro estilo de vida, como a sua alma está afeitaa outro estilo de pensamentos. Aqui, você não passa de umafoca a quem se tolheu a água, ou de uma mergulheira a quemse tolheu o ar. De outro lado, deixe o Tetarartee em cima dogelo, entregue a si mesmo; e você o verá morrer no espaço detempo de um giro do Sol, apesar de todos os seus hinos e de

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todas as suas preces. Naturalmente, você não está entendendoo sentido disto, não é?—Naturalmente que não.—Se você procurar adequar-se às maneiras dos homensbrancos, estará perdida, Ivaloo; como eles estão perdidos naterra dos homens, se não têm carvão e madeira. O Deus doshomens brancos não tem poder para protegê-los, nem a você,nas vastidões das superfícies de gelo. O grande frio o deixaparalisado, uma vez que ele é feito à imagem dos homensbrancos. Muitos homens brancos sempre tentaram, pornenhuma razão realmente boa e explicada, viajar peloterritório dos homens, com equipamentos enormes, comgrandes quantidades de carvão e de fogões, e também comtrenós, cães e navios vomitadores de fumaça, mas o Deusdeles sempre os deixou ao léu, assim que se exauriram suasreservas de carvão; assim, as viagens dos homens brancossempre tiveram de ser interrompidas a meio caminho, ou,então, se concluíram em desastre. Onde os homens brancosreinam, você, Ivaloo, é uma ignorante; mas, em sua terra, sãoeles os ignorantes. Assim, um xamã é que lhe diz: volte para aterra das sombras compridas, onde você é sabia, porque nãohá pecado tão grande como o da ignorância. E esqueça-se doshomens brancos, e também do deus dos homens brancos, se éque esse deus é feito à própria imagem feia deles: umferrabrás vingativo e ciumento, que estabelece preço para asalvação e acorrenta os seus filhos, ao invés de libertá-los.Fuja de um deus que diz: "Ame-me; do contrário você seráatirado ao fogo devorador”.

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O velho xamã fez uma pausa, para tomar fôlego, antes decontinuar:— O seu deus, Ivaloo, é um camarada sorridente, alegre,generoso; um grande caçador, que condivide o fruto de suacaça; que ri com todas as mulheres; e que faz nascer criançasem todos os iglus. Eles não mora em casas sufocantes demadeira; mora no gelo descampado. Não se incomoda com ofrio, uma vez que sua barriga está cheia de óleo de baleia. Nãoacredite num deus que se vinga de suas criaturas só porque elepróprio as fez cheias de fraquezas e de erros! Esse é um deusfalso; e os que fazem propaganda de um deus semelhante sãoignorantes ou impostores. Você me compreende?A moça estava emitindo exclamações, franzindo o nariz esacudindo a cabeça:—As orelhas de uma moça estúpida Ouvem as suas belaspalavras, Siorakidsok; mas o coração dela não pode captar-lhes a significação. Há pouco entendimento nesta cabeça, aolado de um enorme desejo de compreensão. Se, ao menos,houvesse um meio de eu adquirir alguma da sua sabedoria!—Há um meio, Ivaloo! Se você apanhar alguns piolhos daminha cabeça, e os puser em seus cabelos, eles passarãoalguma da minha sabedoria para a sua cabeça. Ajude-se a vocêmesma, sua estúpida.E ele, condescendenternente, se inclinou para a frente.— Você é extremamente bondoso, Siorakidsok — exclamouIvaloo, jubilosa, embora já estivesse rouca de tanto emitirexclamações. — Alguém apanhará apenas uns poucos, porquetem cabeça pequena; e um excesso de sabedoria poderá dar-lhe terrível dor de cabeça.

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E, agradecida, ela seguiu o seu conselho.Ivaloo mudou-se para uma casa pequena, feita de pedra eterra, no sopé de um cabeço, não longe da aldeia, mastambém não muito perto; e lá ficou à espera, com cristãresignação, de que algo acontecesse — e ela não sabiaexatamente o quê. Torngek tinha conseguido ajuda para aconstrução da casa. Vivi, entretanto, ciumentamenteguardada por sua mãe, não estivera disponível durante aconstrução.Ivaloo tinha conservado apenas umas poucas coisas, dentre osantigos petrechos domésticos que possuíra. Muito embora osutensílios feitos por uma determinada pessoa fossem as únicascoisas consideradas sua propriedade pessoal, e pudessempassar de pais para filhos, tais utensílios precisavamencontrar-se em uso, para ser respeitados. E Ivaloo não tiveraoportunidade alguma de fazer, ela mesma, uso do que Asiaklhe havia legado; isto porque tanto a casa da Missão como acasa de Siorakidsok estavam abundantemente equipadas comimplementos domésticos. Em conseqüência, os utensílios deIvaloo tinham sido considerados sobras; e os membros dacomunidade se haviam gradativamente apoderado deles, namedida em que a necessidade foi aparecendo.Torngek andou reunindo para ela aquilo de que ela maisprecisava; alem disto, deu-lhe um cachorro para proteção — amesma cadelinha gulosa que havia assistido ao nascimento dofilho de Ivaloo. Tratava-se de cachorrinha valiosa, porque,quando pequenina, a induziram a comer um punhado degarras de ursos, além de um tufo de pêlo de arminho; assim,

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ela adquirira a robustez de uma ursa e a agressividade dafêmea do arminho.Alimentos e vestimentas, Ivaloo possuía-os em abundância,sem ter de pescar, nem preparar armadilhas. Não que osaldeões lhe dessem alguma coisa. Tetarartee, homem deiniciativa e propósitos determinados, tinha conseguido pôr amão sobre a alma daquela gente; e ninguém, na aldeia — nemsequer um bode expiatório como Torngek — teria ousadodesafiar e provocar novas torrentes de ira de Deus, e muitomenos a fúria do pregador, por meio do ato de dar públicoapoio a uma pecadora não arrependida, posta no ostracismopela Igreja. Mas as coisas aconteciam por tal forma, que,quando os caçadores, de regresso às suas casas, passavam peloalpendre de Ivaloo, os tirantes que seguravam os produtos dacaçada se afrouxavam; e alguma coisa sempre caía, sem sernotada pelos transportadores. O Dedo de Deus, pensavaIvaloo. Quando um homem voltava das colinas, com umapenca de tordas mergulheiras às costas, umas poucas dessasaves, abatidas de fresco, sempre deslizavam magicamente parafora dos cordões e dos laços que as prendiam. Ou, então,acontecia que alguém, por descuido, soltava uma sacola deovos congelados; alguma outra pessoa deixava cair um par deluvas; e quando Ivaloo via a luva cair, e chamava a atençãodos que passavam, ninguém dava sinal de estar percebendo afalta daquela peça de indumentária. Ou, então, eram peles deraposas. Ou a peletoanca de um filhote de foca; ou onecessário para a confecção de um par de botas para criança.Às vezes, era o longo tendão macio e comprido, retirado aespinha dorsal do narval; esse tendão dava linha de costura

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melhor do que os de cachorro, ou de foca, que ela costumavausar.Ivaloo carregava os achados para dentro de sua casa; e sorria,com clara consciência do que estava acontecendo, paraconsigo mesma. Como foi que um xamã, sábio e desatinado,pode recear um dia que Deus iria abandoná-la? Se, ao menos,ele pudesse trocar um pouco de sua sabedoria por um poucoda fé que a moça nutria!...Durante todo o verão, Ivaloo teve vida folgada. E não sentiusaudades da aldeia. Não crescera habituada às multidões —nem se havia habituado a elas depois. Tinha um filho e umcachorro, para fazer-lhe companhia; e tanto um como o outroa mantinham bastante ocupada. Fervia raízes e bagas, e com olíquido que daí resultava ela tingia sua linha de costura feitade tendões, como faziam as mulheres da aldeia; as vestimentasficavam muito mais bonitas quando ostentavam costurascoloridas. Quando se cansava com as tarefas de costura, ou decozinha, entalhava pequenas figuras e flores nos cabos de suasfacas. Ainda recentemente, e só recentemente, ela ficarasabendo que os animais preferem ser abatidos por meio dearmas bonitas; quando as armas eram belas, os animaisofereciam menos resistência.Os incômodos mosquitos, pequenos e tenazes, constituíamuma praga; por vezes, forçavam-na a permanecer dentro decasa, para expulsá-los com o emprego de fumaça. As nuvensde mosquitos iam aumentando de tamanho e espessura; de diapara dia, até que uma pancada de neve os liquidava, deixandoo ar outra vez puro e cristalino. Então ela podia sair de casa;contemplava os caçadores que passavam; via os caiaques

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aflorando as ondas; acompanhava com o olhar as moças queiam à cata de bagas e cogumelos; assistia ao ato de os meninosescalarem os penhascos em cujo topo se aninhavam as aves, afim de apanhar pássaros novos; estes eram comidos vivos, ou,às vezes, deixados a decompor-se, com a plumagem e tudo omais, durante um ano ou dois, em tripas de focas estofadas degordura feita com óleo de baleia.O céu andava cheio de aves. As primeiras a chegar tinhamsido as tordas mergulheiras, em suas múltiplas variedades; elasforam seguidas pelas tordas mais idosas, pelas gaivotas, pelasurias e pelos êideres, que são uma espécie de pato dos pólos.Agora, os bandos dessas aves escureciam o Sol; e o ar vibravacom o concerto dos atitos e dos gritos. Ivaloo espalhoupedaços de comida ao redor de um buraco que fizera no tetode sua casa; e quando os pássaros ali pousavam, para dar umabicada, ela os puxava pelas pernas; a seguir, torcia-lhes opescoço — menos quando os comia vivos.Quando ela via um dos pesados umiaques, cheios depescadores de baleias, navegando pelas aguas mais distantes,permanecia dentro de casa, porque as baleias, extremamentesensíveis e cônscias de si mesmas, não gostam de ser vistas pormulheres enquanto estão sendo caçadas e abatidas. Isto elatinha aprendido durante a sua permanência no sul; e oaprendera juntamente com várias coisas mais.Ivaloo sentia que estava amadurecendo, tanto quanto aocorpo como quanto ao espírito; transformava-se em mulherde vasta expe-ência. Ainda estava crescendo um pouco, comolhe revelavam suas vestimentas; mas agora já sabia como

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cuidar de si, como dera provas quando perdera a cadelinhadoméstica.A cadelinha tinha dado combate a dois lobos predadores, atéque alguns homens, procedentes da aldeia, e atraídos peloalarido, mataram um deles e afugentaram o outro. A cadela,contudo, perdera uma orelha na luta; e acabou morrendo unspoucos sonos dormidos depois. Quando o outro lobo voltou,Ivaloo umedeceu a sua faca de neve, untou-lhe a lâmina comgordura de baleia, e enfiou-lhe o cabo no chão, diante doalpendre.Ela contemplou o lobo, enquanto este farejou a lâminatransformada em isca; e lambeu-a. Dali a pouco, o lobo estavasangrando pela língua; mas continuou a lamber a lâmina, atéficar com a língua cortada como que em tiras. Um sonodormido, mais tarde, Ivaloo encontrou o animal de rapinarigidamente esticado no chão. Ela sabia, porém, que os lobosnão morrem de bom grado, e que teria de ser cuidadosa. Poristo, aproximou-se do lobo estendido, em silêncio, com o seumelhor machado; e rachou, como um raio, o crânio doanimal.Dali por diante, ela rodeou a casa com iscas de mola; edisfarçou, cuidadosamente, as armadilhas.Foi de seu pai que ela aprendera a tirar o maior proveito detodos os animais — com a única exceção do carcaju,naturalmente. Não somente ela era capaz de matar um urso,ou um lobo, com lâminas transformadas em iscas; tambémsabia como apanhar os piolhos do seu próprio corpo, por meiode uma raspadeira de peles, transformada em isca comgordura. Ela introduzia a raspadeira em suas vestimentas; e

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depois a puxava para fora, por um cordel. E livrava-se daspulgas fugidias, que no verão pulavam não se sabia de onde.Livrava-se pelo processo de conservar, no chão, um par derabos de raposas, tornadas viscosas por aplicação de sangue egordura; isto atraía as pulgas, e mantinha-as prisioneiras.Sim. Ela estava plenamente capacitada a tomar conta de simesma, com a ajuda de Deus.Algumas vezes, um homem ou uma mulher se detinhaocasionalmente, a fim de trocar duas palavras. Por vezes, Viviou Torngek para ali se dirigiam, às escondidas, levandopequenos presentes: um prato de mexilhões, de mariscos oude ostras frescas, tudo retirado de estômagos de focas; algunsolhos de foca; miúdos de ptármiga, com outras carnes doces;uma agulha de costura; um pequeno animal esculpido empedra-sabão, ou outro brinquedo, para Poopooliluk.Embora aquela não fosse a estação do ano apropriada paraviajar, alguns viajores, procedentes de bem longe, que tinhamtido notícias do nascimento virginal, ainda continuavam achegar àquela terra. Desejavam ver a criança; e Ivaloocontava-lhes o que sabia, sorrindo. Os visitantescorrespondiam aos sorrisos dela, sorrindo por sua vez. Todosse mostravam atenciosos para com Ivaloo. Alguns eramcristãos; mas iam vê-la secretamente, para que Tetarartee nãochegasse à saber da visita que faziam.Ela, entretanto, ficou sabendo de muita coisa a respeito dopregador. Ele estava de ponta com Siorakidsok; e continuavaa advertir a sua congregação, assegurando-lhe que o ato de terqualquer ligação, por qualquer motivo, com o velho xamã,nada mais constituía do que desaforada idolatria. Constituía,

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pois, um ato que provocava danação perpétua. Siorakidsok,que já tinha perdido o apoio da comunidade quanto às suasviagens a Lua, ficou grandemente alarmado em face desteestado de coisas; e havia tensão, em sua casa, entre ele eTornegk, de um lado, e Neghe e os seguidores dela, do outrolado.Ademais, nem Tetarartee havia levado consigo quaisquerquantidades de alimentos de sua propriedade, nem tratava depescar, e menos ainda de caçar; e também não fazia a suaparte de trabalho em prol da aldeia. Aquilo que Kohartokhavia deixado logo se consumiu e desapareceu; e ele aceitavade bom grado a carne que os aldeões lhe ofereciam, semnunca se mostrar humilhado pelos presentes que recebia.Através de um trabalho infatigável, ele havia inoculado otemor de Deus e o respeito para com o Seu ministro, bemprofundamente, no espírito do seu rebanho; assim, os fiéisespiavam-se e delatavam-se uns aos outros, incessantemente,como que desempenhando o papel de policiais às Portas doCéu. Nada de caçadas aos domingos. Nada de cantares feitosde baladas imorais. Nada de andar nu, de um lado para outro,dentro de casa. Nada de comer além daquilo que a fomeexigia. Nada de risos, isto é, relações sexuais, fora do âmbitoconjugal. Em todo caso, nada de tais risos, pelo menospublicamente. Em vez destas coisas, ele queria preces, hinos,salmos, sermões, batizados, conversões, casamentos,cerimônias rituais — um espetáculo de um homem só,edificando para durar.Os serviços religiosos tinham adquirido dignidade. Ossemblantes dos devotos se punham sérios, pois Tetarartee se

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interrompia e franzia a fronte, quando via alguém sorrir,durante as funções. Os cachorros já não tinham maispermissão para entrar na capela. E, se, ao tempo do regime deIvaloo, e mesmo de Kohartok, as mulheres davam de mamaraos seus bebês durante os sermões, ou lhes davam alimentostirando-os de panelas, que levavam consigo, precisamentepara esse fim, agora, assim que uma criança começava achorar, ou a fazer traquinices, a mãe respectiva logo dali saíacom ela, seguida pelo olhar de severa censura de Tetarartee.Uma mulher de meia-idade, moradora na aldeia, chamadaMeneek, estava com criança de um dos nômades que tinhamarmado suas tendas na enseada, na primavera, e querecentemente se havia convertido ao cristianismo. Tetararteedeu, aos dois, uma espécie de surra de língua, na capela; eexigiu que eles se casassem adequadamente. Meneek nãogostou da idéia, por já ser esposa de um Kookiak, que tinhapartido com a expedição; e o que é que aconteceria quandoele voltasse? O pregador, porém, garantiu-lhe que nadaaconteceria, uma vez que a sua união com Kookiak, baseadano pecado, era ilegal. A ilegalidade da união não lhe davamais do que o simples direito de ir sentar-se no inferno; aopasso que Deus sorriria, vendo-a casada de acordo com amaneira correta.Tetarartee insistiu, até que pudesse parecer estúpida rudezarecusar-se a mulher, por mais tempo, a aceder à suasolicitação. E, a título de delicadeza para com o homembranco, o casal concordou — mas com um sentimento debastante inquietação.

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CAPÍTULO XIVO REGRESSO

O inverno trouxe a escuridão e o regresso dos homens, quechegaram viajando por cima da superficie congelada dooceano.Os homens tinham caminhado, com a expedição, para tãolonge, ao norte, por cima do Oceano Glacial e da grandecalota de gelo, que se haviam visto de novo no sul, onde omar também degela, e onde existem outros homens brancos eoutros navios que vomitam rolos de fumaça. Ali eles sesepararam dos exploradores, e regressaram por sua conta à suaaldeia.Os que voltaram levaram de regresso suas espingardas, suasmunições, suas facas e muitas histórias para contar. Duasmulheres e várias cadelas tinham procriado, durante ajornada; uma criança nascera morta; e muitos cachorrinhostinham sido devorados pela matilha. Um homem branco,atingido por efeitos de congelamento, tinha sofrido gangrena,e sua perna tivera de ser amputada à sua chegada ao porto queficava mais ao sul: O filho mais velho de Neghe, que tinhacaminhado de volta boa parte do caminho, a fim de ir buscaruma faca que esquecera, nunca mais fora visto outra vez. Estafoi a primeira notícia que se espalhou pela aldeia, por entrecenas barulhentas de boas-vindas.Ivaloo foi a última a ouvir as novidades. Ela estava ocupada,tratando de arpoar peixes, num buraco que tinha aberto nooceano, a pouca distância do seu iglú, onde o gelo era menos

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espesso. Ultimamente, suas reservas se haviam tornadoescassas, devido à circunstância de a caça se dirigir mais parao sul, todos os homens conseqüentemente caçarem menos, etoda a gente dormir muito mais. O vento continuou soprandoe apagando-lhe a lâmpada; a Lua mostrava-se baixa. À luz daspoucas estrelas disponíveis, fazia-se difícil iludir os peixes einduzi-los a subir à superfície; ainda mais difícil se tornavaavistá-los, quando apareciam.Ela estivera ajoelhada junto ao buraco de peixes durante tantotempo, com Poopooliluk às costas, e sem sucesso algum, que oamortecimento dos membros a impediu de ser erguer quando,no lusco fusco, a figura esbelta e inconfundível de Milak sedelineou, alta, diante de si. Ela não lhe havia ouvido os passos;e sentiu-se tomada de terror ao pensamento de que elepoderia estar morto e de que aquilo fosse o seu fantasma,disposto a fazer-lhe das suas.—Alguém está de volta de uma viagem — disse Milak, comoque por acaso, como convinha a um homem de verdade; e avoz tranqüila do homem lhe dissipou os temores.—Milak.Ela se aproximou dos seus pés, fazendo grande esforço; e osdois trocaram um aperto de mão, sustentando as mãos bemalto, acima das respectivas cabeças; ao mesmo tempo, ficaramfazendo repetidas reverências e rindo. Quando Milak tentouesfregar o seu nariz contra o dela, ela o afastou de si. Ivaloosentia-se ansiosa de saber coisas a respeito de seu irmão,Papik; entretanto, se ele houvesse morrido na viagem, e elalhe perturbasse o espírito mencionando-lhe o nome, as

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conseqüências poderiam ser desastrosas. Por isto, ela engoliua pergunta; e, em substituição, disse:—Você não diz nada a respeito da criança que está vendo nascostas de alguém. Eles devem ter-lhe contado coisas arespeito, lá na aldeia.—Não houve tempo para ouvir tanto falatório. Nós apenasacabamos de chegar. É fácil ver que tem uma criança. Masvocê tem um marido?—Não — sorriu ela. — Não tenho marido.—Naturalmente que não tem. . . ou, do contrário não estariapescando! E será que, nesse entretempo, você não descobriucomo é inconveniente que se curve por cima de um buraco depeixes, com uma criança em seu ventre, ou mesmo às costas,como alguém já lhe preveniu?—Não há inconveniente algum. Só uma vez a criança caiufora do berço das costas; caiu na água; e isto porque alguém seinclinou excessivamente para a frente. A queda deu, à moça,um pequeno susto e uma grande risada. Milak, será que vocêjá ouviu falar do Deus cristão?—Sim ouvi. Em viagens anteriores. Por quê?—A criança é menino; é filho Dele. Uma moça concebeu-o,sem a interferência de homem algum; e também sem sequerdar a Verdade ao coração dos homens. Milak olhou para ela,assustado:— Será que um espírito do Mal entrou em sua cabeça? Vocêestá falando como se estivesse louca. Por que é que não tratade rir com alguém, em vez de estar aí falando coisasinsensatas?Ela franziu o cenho:

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— Durante longo tempo, o corpo de uma moça andou comfome do seu, Milak. Ela chamou por você, durante a suaausência; mas havia enorme quantidade de gelo de permeio.O calor, no meu ventre, era de tal ordem, que teria bastadopara degelar a calota polar. O ventre dava-me a impressão deque se estava abrindo um buraco, por meio de fogo, dentro demim. Nessa altura, alguma coisa aconteceu e apareceu paraacalmar a fome de alguém, e também para lhe apagar ocalor... ela estava com bebê.—Mas o calor vai voltar. Esse calor sempre volta.—Mas a gente não deve permitir que ele volte.O olhar dela correu de um lado para outro e por toda a. figurade Milak, por meio de movimentos rápidos, como faz o ventoà frente da tempestade. Os dois precisavam ficar muito perto,para se verem nos olhos um do outro, na escuridão. Como elagostava das tristezas cambiantes que se manifestavam atravésdos lineamentos dele! Aquelas linhas finas, que sedesenhavam no seu rosto, deviam ser cinzeladas pelopensamento, pela preocupação; pois não podiam decorrer daidade aquela fronte carregada e aquela boca desdenhosa!Tornava-se difícil acreditar que aquela compleição de aspectofranzino e aquelas faces nervosas tinham acabado deenfrentar as saraivadas e intempéries, vendo sangue econtemplando mortes violentas.—Você vê — acrescentou ela, antes que ele pudesseresponder — o filho de alguém é tudo, ao passo que o alguémnão é nada; porque ele é filho de Deus, e a Semente é maisimportante do que o solo. Uma moça não quer outros bebês,

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para que possa dar a sua vida inteira a este filho; ela precisarávigiá-lo, cuidá-lo; precisará ensiná-lo, assim como ampará-lo.—O seu cérebro está envenenado pelo calor que há em seuventre; a tal ponto, que você lhe nega a existência. Você nempercebe que somente o calor do homem pode ser apagado. Ageada pode ser combatida com gelo, minha pequena; e o fogotem de ser combatido com fogo!Ele a abraçou, apertando Poopooliluk, que começou achoramingar.—Alguém não teve o desejo de machucá-lo — disse Milak,constrangido.—É fácil fazê-lo deixar de chorar — esclareceu Ivaloo,sentando-se na neve.—O filho de Deus berra como qualquer outro pirralho —escarneceu Milak.Agora, porém, vendo Ivaloo pôr para fora um dos seios e darde mamar ao filho, tratou de se manter em silêncio.—Alguém se esqueceu — disse ela, sorrindo, ao notar o olhardo homem. — Ninguém deve ficar olhando.—Alguém lhe mostrará o que é que preciso fazer! —exclamou ele, mostrando-se zangado desta vez.Arrancou a criança do colo dela, com mãos trêmulas, epousou-a na neve, sem se incomodar com os seus berros. Osolhos de Ivaloo ficaram esbugalhados; mas os seus lábios semantiveram fechados. A seguir, Milak pôs a mão dentro dajaqueta da moça, passando-a rudemente por cima dos seiosregurgitantes, um dos quais ainda pingando leite; e fezpressão simultânea, tanto aos seios como às costas da moça.

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— Uma pecadora magnífica é o que alguém logo fará devocê! Ela deveria ter dado pontapés e mordidas; deveria terarranhado e cuspido, como as boas maneiras da sua raçaexigiam. Mas não houve sequer sombra de luta dentro dela:Ivaloo deitou-se ali, hesitante, sem ouvir coisa alguma,meneando a cabeça na neve, já quase no ponto de cair empranto. Isto arrefeceu o ardor do moço, que então se afastoudela e foi acocorar-se a um canto; e ali ficou a pentear opróprio cabelo, com os dedos trêmulos.Ela se sentou no chão, e tomou Poopooliluk outra vez em seusbraços; fez como se os braços servissem de berço à criança;então sorriu para Milak. A tempestade tinha passado.—No seu sono, uma jovem por vezes tem sonhado que vocêesteve rindo em companhia dela; porque não há pecadoalgum, no sonho.—Você deveria mudar-se para longe daqui; deveria ir-seembora em companhia de alguém, Ivaloo!—Será que nós poderemos algum dia ajustar-nos um ao outro,meu pequeno?—Por que não?—Nós somos desiguais!... Uma moça é estúpida, você éhabilidoso; ela é vagarosa, você é veloz; ela é do norte, você édo sul — e isto faz com que você prefira peixe, ao passo queela dá sua preferência à carne. E isto se não se disser nadaquanto ao fato dela ser mulher, sendo você homem.—Nós nos ajudaríamos como o arco e sua flecha, minhapequena! Papik também tem certeza quanto a isto.—Papik! — exclamou ela. — Ele está de volta?—Você deverá vê-lo logo.

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—Por que é que ele não veio direto para cá?—Ele foi ver uma mulher que, para ele, é mais importante doque a sua irmã.—Como é que pode ser isso?—Não pode ser assim, lá?—Nós crescemos lado a lado. Brincamos com a mesmasbonecas. A nossa carne é a mesma, procedendo da mesmasemente e da mesma terra, sendo alimentados pelas mesmastetas e nutridos pelos mesmos alimentos. Uma foca? Alguémapanhava-lhe a nadadeira esquerda, e ele a direita. Um urso?Alguém apanhava-lhe o olho direito, e ele o esquerdo. Comopoderia haver jamais mulher mais importante para ele?— Porque o tempo passa e as crianças se fazem adultas, demodo que, então, já não querem mais brincar com bonecas dechifre e pele e animais, e sim com bonecas de carne e osso.Assim, Papik foi primeiro ver Vivi, da mesma maneira pelaqual alguém veio ver você.Ela olhou para as próprias botas; e houve, então, silêncio, quefoi interrompido, de súbito, pelo latir furioso do seu novocachorro que estava no iglu.— Alguém está chegando!Ivaloo ergueu-se, rápida, e apressou-se a caminho de suamoradia, com o filho nos braços, seguida por Milak.Ela encontrou o seu cachorro, que fora surrado, achoramingar à entrada do iglu; dentro, a lâmpada já tinha sidoacesa; e, em cima do catre feito de neve, havia uma grandefigura: tinha um rosto muito amplo, com um sorriso de dentesenormes, de dentes comedores de carne crua; e lá estava a

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perfeita imagem de Ernenek, exatamente como Asiak o haviavisto, uma geração antes.— Papik, meu querido pequeno! — exclamou Ivaloo; ecorreu a abraçá-lo.Tão pequeno era ele, que, embora curvasse a cabeça, a pontados seus cabelos em desalinho roçava pelo gelo da cúpula. Erauma grande massa de músculos, mais largo e mais alto do quequando partiu; e, ademais, havia aquele vinco arrogante porbaixo do lábio inferior; havia aquele avanço do queixo; eaqueles movimentos bruscos do peito, que tinham sidomovimentos de seu pai, Ernenek.Ela esfregou o rosto contra o dele; bateu com a ponta do nariznas suas faces; e farejou-o. Seus olhos encheram-se delágrimas, mas não de tristeza. Aquele era Papik, sua carne, seusangue; aquele era Ernenek ridivivo; e esta era Asiak,continuada. No cheiro do seu rosto, na mistura da respiraçãodele com a sua, ela cheirou, outra vez, o ar da sua meninice edos primeiros iglus em que ambos haviam vivido.E ela sabia, também, que ele não tinha aparecido ali para fazertagarelices, nem para comer e descansar, e sim para pedir;sabia que se tratava de assunto urgente; sabia que ele estavazangado.Ela reconhecera o cheiro de zanga na pele do irmão.— Aconteceu que alguém regressou — disse Papik,afastando-se e caindo pesadamente, outra vez, no catre deneve.— Aconteceu que alguém ganhou um bebê, em sua ausência.Ela se aproximou novamente dele, farejando e esfregando.Rostos amplos facilmente se esfregam uns aos outros.

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Papik ergueu a criança no ar, e riu para ela, como quem ri napresença de uma excelente piada. O homem já se haviaesquecido das suas preocupações. Uma coisa de cada vez.— Que criança de aspecto estranho!... Cabelos e olhos comoaqueles que os homens brancos têm.— Isso aconteceu porque Foopooliluk procede do Deus doshomens brancos. Alguém lhe explicará o caso, em outraoportunidade. Em primeiro lugar, conte a uma sua irmã que éque está acontecendo com você, Papik. Há preocupações emseu espírito.Ele pousou a criança, e retomou suas preocupações.—Ivaloo — disse ele, fazendo uma carranca — alguém estevepensando.—E o que é que resultou do pensamento?—Uma dor de cabeça, principalmente, e, por fim, umaconclusão. Depois de dois anos de vida em companhia doshomens brancos, alguém os compreende menos do que daprimeira vez em que com eles se encontrou. O modo de viverdeles não é, de jeito nenhum, o modo de viver dos homens,Ivaloo. O seu irmão não conseguiu habituar-se a ele; masalguns esquimós se habituaram. E, agora, viemos à saber queTetarartee expulsou você da aldeia. Por isto, alguém resolveuviver em lugar em que não haja homens brancos; resolveulevar você de volta para onde o Sol é baixo, e onde há animaisque nunca viram seres humanos.— Talvez seja uma boa conclusão, meu querido pequeno.Milak riu amargamente e disse:—Não se pode fugir aos homens brancos só pela circunstânciade se ir para o norte! Pelo menos, não se pode mais. Você sabe

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disto. Papik. Não. Não. Será melhor travar amizade com eles;será melhor aprender as maneiras deles; será melhor atéaprender as leis que eles põem em vigor.—Por que é que não se pode fugir deles, indo para o norte? —indagou Ivaloo.—Porque estão indo também para o norte. Foi o que eles nosdisseram. Não foi o que disseram, Papik?Papik acenou com a cabeça, afirmando:—É verdade. Mas deixemos que eles venham! Alguém faráfacas mais pontudas e cortantes; fará flechas mais velozes; farálanças mais compridas; preparará grande quantidade de iscasde mola. E quando eles, os homens brancos, vierem, serãomortos, como se fossem lobos!—Mas por que é que eles virão para o norte, se não gostam dofrio, nem das longas noites? E, se quiserem petróleo, eles oconseguirão mais facilmente nas regiões em que o mar degela.—Há duas coisas que eles querem, alem do petróleo —começou a explicar Milak; e então se fez grande silêncio noiglu. — Primeiro, um certo metal que se supõe esteja ocultopor baixo da calota polar do norte. Por isto, eles estãopreparando-se para vir com grande quantidade de explosivos;os explosivos são as coisas com que as balas são feitas. Queremfazer saltar a calota de gelo; em seguida, cavarão o solo, embusca do metal que esperam encontrar, dentro da terra que seacha por baixo do gelo.—Mas o que será que eles querem fazer com esse metal? Seráque já não possuem enorme quantidade de metal?—Este é um metal especial, de que eles precisam para fazeroutro explosivo, muito poderoso; com este outro explosivo,

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será fácil matar uma grande massa de gente de uma só vez.Esse metal é escasso nas terras deles; mas, de acordo com oque informam os seus xamãs, eles o encontrarão por baixo donosso gelo — e em grande quantidade.—Explosivos para matar gente?—Os homens brancos matam-se uns aos outros,regularmente, com bastante freqüência, a pequenosintervalos. Não foi isto o que eles nos contaram, Papik?Papik fez com a cabeça sinal afirmativo, com o cenhocarregado; e Ivaloo olhou ora para um, ora para outro, tomadade estupefação.—Parece — disse Milak — que um grande nervosismo osataca a intervalos de determinado número de anos; então,grandes tribos se unem para destruir outras grandes tribos.Nessas ocasiões, os homens brancos matam mais gente do queos homens matam caribus.—Mas por quê?—Parece que isso tem o que ver com os negócios deles. Mas ocaso parece que era excessivamente complicado, de modo queos homens brancos não conseguiram explicar; e também nãopuderam concordar com as várias explicações. Só asexplicações diferentes quase provocaram lutas entre eles.—Tudo isto é muito confuso. Você não está explicandodireito.—Eles também não conseguiram explicar direito. Mastornaram bem claro que muitos homens brancos vêm cá parao norte; arrebentam os gelos por meio de explosões; procurammetais no fundo da terra; e costumam ficar nas regiões para as

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quais se dirigem, quer encontrem, quer não encontrem osmetais procurados.—Por quê?—Essa é a segunda razão da vinda deles: querem impedir queoutras tribos de homens brancos se radiquem nos mesmoslugares. Parece que os primeiros que se estabelecem devemter uma vantagem sobre os que chegam depois, no decorrerdo nervosismo assassino que se seguir.Ivaloo estava como que a cair, de surpresa em surpresa.—Mas será que eles nunca ouviram falar dos ensinamentos deJesus Cristo? Não terão eles pregadores nas suas povoações?—Talvez que os seus pregadores andem excessivamenteocupados, viajando pelas terras dos homens — comentouMilak. — Em todo caso, os homens brancos estão planejandorumar para o norte. Em primeiro lugar, mandam pregadores;depois, mercadores; depois, homens com explosivos. Pareceque é sempre assim que eles fazem.—Por enquanto, o norte está livre deles; e um homempretende voltar para lá — afirmou Papik, obstinadamente. —Mas acontece que alguém acha fatigante estar sempre nanecessidade de pedir a outros homens que lhe emprestemuma das esposas. Os outros, a quem se pedem os empréstimos,se sentem excessivamente importantes, ainda quando sãogenerosamente retribuídos com um bom pedaço de uma caça.Milak concordou, com energia.— Isso constitui verdadeira perda de cara. Alguém tambémestaria mais disposto a dar em empréstimo, do que a pedir, emempréstimo, uma esposa.—As duas coisas estão erradas — afirmou Ivaloo.

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—Por quê?— Ninguém sabe por quê; mas é assim. O homem brancoafirma que é assim; e ele sabe com exatidão o que é direito e oque é errado.—Como é que você sabe que ele sabe? — indagou Papik.—Ele diz que é assim.—Oh! Nesse meio tempo, como conseqüência do seu própriopensamento, alguém decidiu tomai esposa para si mesmo,antes de voltar para o norte.—Aí está a Vivi — assinalou Ivaloo, como que por acaso. —Ela é uma boa alinhavadora de vestimentas.—Um homem teve notícia disso, em sua viagem. Por isto,dirigiu-se aos pais dela, e ofereceu-lhes uma nova faca de aço,em troca da moça. Antes, porém, alguém pediu para ver osalinhavos dela.Papik desejava tornar claro que era somente a conveniênciaque determinava a sua tomada de iniciativa; e isto porque, nocaso, nenhum outro sentimento interferia; porque, seinterferisse, o ato seria indigno de um homem.— Alguém viu grande quantidade dos trabalhos de agulhadela — esclareceu Ivaloo. — Ela dará uma boa esposa.— Entretanto, a mãe dela, Padlock, não somente se recusou apermitir que eu visse os trabalhos de agulha dela, mastambém repetiu de todo a minha proposta; e repeliu poralgumas razões, ao que parece, ligadas aos desejos deTetarartee. Ora; tudo isto se me afigura muito estranho.— Você percebe. Tetarartee, que sabe, sobre pecados, muitomais do que qualquer pessoa que jamais tenhamos conhecido,

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é quem nos diz o que deve ser feito, e o que não deve serfeito, de acordo com o desejo de Deus.— Que Deus?— O espírito mais poderoso de todos; mais poderoso do quetodas as outras forças e todos os outros espíritos reunidos; emuito corajoso. Esse Deus nem sequer tem medo dos mortos;ao contrário: assa-os em cima de uma grande fogueira, se elesquebram tabus que Ele mesmo, esse Deus, estabeleceu.Papik franziu a fronte:— Durante a nossa ausência, as nossas mulheres foramensinadas a dizer e a fazer grande quantidade de coisas que oshomens não conseguem entender. Assim, Kookiak nãoconsegue explicar por que é que a sua esposa, Meneek, estáescondendo-se dele. Parece que o homem branco encorajoualgum outro homem a roubar-lhe a mulher. E Argo está debriga com Neghe. E Padlock declarou que, antes que seumarido, Hiatallak, possa rir em companhia dela, os' dois, ele eela, precisam ir ver o pregador e obter sua permissão.Nenhum homem pode engolir semelhante humilhação! Asmulheres da aldeia e todos aqueles forasteiros que aquichegaram recentemente estão falando de pecado, e tambémde tabus próprios dos homens brancos. Os homens brancos,com os quais nós viajamos, não ensinaram apenas um tabu:nós não tínhamos permissão nem sequer de tocar nospertences deles. Entretanto, alguém foi informado, pela mãede Vivi, de que você pode explicar o que é que o homembranco deseja, antes de nos dar permissão para que bulamosnas coisas deles. Alguém está disposto a fazer o que fornecessário, desde que não se trate de algo muito humilhante.

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Ivaloo meneou a cabeça.— O homem branco quer que todos se tornem cristãos. Ora,a mãe de Vivi é muito boa cristã; e também Vivi o é; e entãoVivi não pode casar-se com ninguém que não seja tambémcristão. Isto está em claro?—Não — disse Papik.—Sim — disse Milak. — Alguém já ouviu muita coisa a talrespeito, em viagens anteriores.—Qualquer mulher se casará com um bom caçador —esclareceu Papik, impaciente. — Alguém pode caçar. Vivipode costurar. Que é que o homem branco tem que ver comisto? Será que é o homem branco que irá caçar para ela?—Não parece que você esteja compreendendo, Papik. Nósprocuramos respeitar os tabus que o homem brancoestabeleceu.—Será que eles respeitam os nossos?—Não. O homem branco não acredita nos nossos tabus.—Então por que é você acredita nos dele?—Alguém acredita em todos os tabus, pequeno Papik.Pessoalmente, uma moça gosta muito de tabus. Para ela,quanto mais tabus, tanto melhor.—E qual é a solução?—Uma boa solução é a de você tornar-se cristão.—E como é que se faz para isso?—Você precisa ter fé.—E onde é que se encontra isso? Nas montanhas, no gelo, ouna água? A gente caça isso, ou apanha na armadilha? Ou seráque pesca?

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—A fé acontece no seu coração, depois de você haverrecebido as lições. Você precisa prestar atenção à BoaHistória; precisa aprender a amar toda a gente, até mesmo osseus inimigos; você tem de fazer o bem a todos, inclusiveàqueles que você odeia; e tem de perdoar àqueles que lhefazem mal. Estes são os ensinamentos.—Tudo isto soa como coisa muito estúpida aos ouvidos de umhomem.—Não soará mais assim, depois de você deixar que Cristoentre no seu coração, como alguém já fez.—Doeu?—O quê?—Quando essa coisa entra no seu coração. Deve doer.—Não, Papik. Isso enche o seu coração de doçura.— Assim, se você não se vinga, e ama os seus inimigos, vocêé um cristão.—Desde que o pregador diga que o é.—E ele é cristão?—Naturalmente que é.—Mas então por que é que ele não perdoa a você, por tudo oque fez para ele?—É possível que se presuma que devamos perdoar somente osnossos inimigos, não os nossos amigos.— Mas o que foi que você fez?Ivaloo franziu a fronte:—Uma moça é ignorante demais, e não consegue saber,Papik. É provável que ela deva penitenciar-se por não ter idoà capela durante todos os anos anteriores a seu encontro comKohartok. Ou, então, talvez seja porque seus pais eram

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pecadores. Algum dia, a moça descobrirá a razão, talvez. Vocêpercebe; nós somos estúpidos; ele é inteligente.—Mas por que é que ele não ama você? Pois ele não diz quenós devemos amar toda gente? E ele não a ama, Ivaloo?Padlock tornou isso bem claro.—Oh, Papik, não me faça tantas perguntas assim! Você nuncase fará um bom cristão, se continuar a fazer tantas perguntascomo está fazendo. Alguém esteve pensando, pensando, arespeito de todas estas coisas, até que a cabeça começou adoer-lhe. Nós vivemos num mundo misterioso! Uma moçanunca soube como o mundo era misterioso, antes dos homensbrancos começarem a explicá-lo.—Oh, Ivaloo! Seu irmão foi informado de que você estálouca; e ele começa a acreditar nisso! Não há sequer umapalavra que faça sentido, em tudo o que você está dizendo.Você não deveria nunca ter sido deixada sozinha!E o silêncio que se seguiu foi todo cheio do pensamento deAsiak, de cuja morte Papik só muito recentemente poderia tertido notícia. Depois de ficar sentado algum tempo, emsilêncio, ele disse:— Mamãe costumava dizer-nos: "O homem branco é como apraga; e somente onde faz um frio muito intenso demais é quea gente se livra dele". Esta é a razão pela qual nós devemos iro mais onge possível, para o norte; tão para o norte que, sejapara onde for que olhemos, olharemos sempre para o sul;então mataremos seja la quem for que chegar depois de nós.A zanga de Papik ia aquecendo-se, estimulada por suaspróprias palavras:

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—Ivaloo — disse ele, pulando e pondo-se de pé. — Há gostode sangue em minha boca! Padlock disse que Vivi nem sequerfalará comigo, antes de conseguir permissão do homembranco para isso. Ivaloo, alguém está disposto a ir pedir estapermissão; e será melhor que o homem branco a dê!—Também Milak pulou, pondo-se igualmente de pé:—Alguém irá em sua companhia. Ele também tem umascoisas para dizer ao homem branco!Chegou então a vez de Ivaloo pôr-se de pé:—Desculpem a uma moça estúpida, o fato dela se adiantar —disse Ivaloo, cobrindo com seu corpo a saída do iglu. — Masalguém irá falar com ele, antes de vocês. Nenhum benefíciopode resultar da raiva. Tomem chá, nesse intervalo.—Então vá depressa — ordenou Papik. — Um homem não sesente com disposição para tomar chá. Um homem estáenfurecido; e não pode deter a própria fúria, da mesma formaque não pode deter o crescimento dos seus cabelos.As mãos de Papik tremiam; e o calor de sua fúria tambéminflamou o espírito de Milak.—Nos esperaremos por breve tempo — esclareceu Milak. —Depois, iremos. . . com as espingardas.—Mas tomem chá, primeiro.A toda pressa, Ivaloo pôs neve para se derreter em cima dalâmpada, amarrou a criança às suas costas, e saiu de lácorrendo.Uma luz brilhava através da janela da casa da Missão; mas aporta estava aferrolhada. Kohartok nunca aferrolhara aquelaporta.

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—Bata, e a porta lhe será aberta — disse Ivaloo de si para si,recordando-se da promessa bíblica, à guisa de encorajamento;e bateu.—Quem é?—Ivaloo.Ela ouviu o tique do cadeado; e Tetarartee deixou-a entrar.Um livro estava aberto em cima de sua cadeira, por baixo dalâmpada de querosene.— De que é que se trata?O rosto do sacerdote tinha expressão de ansiedade e fadiga; eIvaloo sentiu pena dele. O pregador devia estar sofrendo. Masos seus olhos esbraseados repeliam todo sentimento depiedade ou comiseração.— Há alguma coisa de que você deverá tomar conhecimento— disse Ivaloo. — Coisas espantosas estão acontecendo nestemundo. Uma moça acaba de saber que, entre os homensbrancos, um grande nervosismo assassino irrompefreqüentemente, a breves intervalos. Matam-se uns aosoutros, em grandes quantidades, em tais ocasiões. E logo oshomens brancos virão aqui para o norte, à procura de algummetal que lhes servirá para matar mais gente.Tetarartee escarneceu:—Foi para isto que você veio visitar-me?—Uma estúpida moça pensou que você deveria saber disso, afim de que evite que o fato aconteça, ou lhe suspenda acontinuidade, se estiver acontecendo.Tetarartee bateu no assoalho, com os pés:—Você foi muito atenciosa, comunicando-me esse fato.—Oh, uma moça fez isso com o maior prazer.

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—Há mais alguma coisa que você acha que um pregador igno-rante deva conhecer?—Sim. Que o irmão de alguém, Papik, que acaba de voltar,deseja regressar ao norte em companhia dela.—Será que você vai querer falar de novo dessa história da suagravidez virginal, antes de partir? — indagou Tetarartee,malicioso.—E amontoar o pecado de mentir em cima de todos os outrospecados de uma moça? Por certo que não, Tetarartee.—Então, vá. Vá. Volte para o norte em companhia de seuirmão, Ivaloo; e que Deus tenha piedade de sua alma!—Muito obrigada, Tetarartee. É esta a primeira vez que vocêdiz uma palavra amável a uma jovem aloucada. Nóspartiremos imediatamente. Mas acontece que Papik planejalevar consigo Vivi, uma vez que as mulheres são escassas lá nonorte. Você quer casá-los, pela lei de Deus, antes que elespartam?—Já fui informado a respeito daqueles que voltaram para cá, ede quem eles são. Seu irmão, ao que parece, se encontra tãolonge do cristianismo como você. Mas estou disposto a falarcom ele, na esperança de que as minhas palavras venham acair em solo mais fecundo e mais receptivo do que meaconteceu com você.—Você sempre fala muito lindamente, Tetarartee. Agora,porém, uma moça estúpida gostaria de saber o que foi quevocê disse.—Papik terá de receber muitas lições, antes que eu o possadeclarar cristão, e também antes que eu lhe concedacasamento cristão.

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—Mas não há tempo para lição nenhuma! Se você os casaragora, alguém lhe ensinará tudo quanto ele precisa aprender.Ela conhece bem a Boa História; e conhece também oscaminhos que conduzem ao coração dele.—Uma mentirosa como você, tentando iluminar alguém coma Verdade? Pobre moça! Será que você não vai parar nunca defalar estupidezes?—Acontece — disse Ivaloo, com um fio de voz — que Papikvai partir com Vivi, de qualquer maneira; e se você não mesconceder casamento cristão, eles partirão sem esse casamento;e viverão em pecado.—Então, essa é a espécie de irmão que você tem! Um irmãodigno de sua irmã, com efeito! Como poderia eu considerarcristão um sujeito semelhante?—Por favor, oh, por favor! Vamos evitar violências e contra-tempos!— As ameaças do Diabo de nada valem na Casa de Deus.Agora, Tetarartee começou a falar com frieza; mas comfulgurante intensidade por baixo das cinzas. E continuou:— Leve o seu irmão e o seu filho em sua companhia; e nãovolte mais para cá, enquanto Deus não lhe mostrar o caminhoda graça, penetrando em seu coração! Vá, agora. Você jáprovocou bastantes aborrecimentos em nosso meio.Ivaloo franziu a testa:— Uma moça pediu tanto, a Deus, que lhe desse orientação;e acontece que Deus agora está mostrando-lhe o caminhocerto. Se uma moça quiser algum dia perceber a presença deDeus, outra vez, ela não deverá dar-lhe ouvidos, porque tudoo que você pôs no coração dela é ódio e amargura. Siorakidsok

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estava com a razão: há muitos deuses; e o seu deus não é oDeus de Kohartok. Alguém não sentiu a presença do seu Deusno próprio coração, desde que você, Tetarartee, chegou a estaaldeia. Porque Deus jamais estará onde for que você esteja.Agora, porém, uma moça sabe onde é que poderá achá-Lo!— Saia daqui, você, sua monstruosa blasfema! — gritou opadre, apontando-lhe a porta.Ela, todavia, já lhe tinha dado as costas, e já se havia posto acaminho, correndo.

Ivaloo correu para dentro do iglu de Padlock. Ali, Padlock erarainha; e Hiatallak, seu marido, nada mais era do que umservidor, muito embora os dois sempre houvessem procuradoocultar o fato, aos olhos da comunidade. Os dois não pareciamum casal há muito tempo separado e satisfeito por seencontrar de novo. Estavam tão afastados quanto possível umdo outro; os semblantes dos dois pareciam expressões detempestade. Vivi encontrava-se entre marido e mulher. Seusolhos, avermelhados pelas lágrimas que havia chorado, comoque se iluminaram, à vista de Ivaloo.— Perdoem a uma moça precipitada, por ela entrar neste iglusem ser convidada, e também por falar sem ser solicitada —disse Ivaloo, a toda pressa. — Mas o fato é que há um irmãoque está disposto a dar a vocês, pais de Vivi, tudo o que vocêsquiserem, em troca da Vivi. Ele é usualmente muito bemsucedido como caçador.—Que foi que Tetarartee lhe disse a tal respeito? —perguntou-lhe Padlock, em tom severo.

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—Ele quer que se passe tempo, para tornar Papik cristão, ePapik já não dispõe de mais tempo. Assim, se uma moçaimpertinente pode adiantar a sua opinião, será melhor deixarque Papik leve Vivi, de qualquer maneira; depois, quandoPapik tiver aprendido a Boa Palavra, poderá tornar-se cristão.—Você está maluca, menina?—Oh, toda gente chama toda gente de maluca; logo, épossível que uma moça o seja. Mas alguns dizem que estamoça é maluca, e o dizem por uma razão; e outros assegurama mesma coisa, mas por outra razão. Entretanto, uma coisa écerta: Papik está vindo para cá, para levar a Vivi; e haveráaborrecimentos, a menos que vocês deixem que ela parta comele.—Ele que venha — declarou Padlock, transformada numamuralha de desafios. — Pela salvação da alma de nossa filha,nós lutaremos contra ele até ao nosso último suspiro. Nãolutaremos, então, Hiatallak?Hiatallak fez com a cabeça um sinal afirmativo, com umsorriso acarneirado. Coçou a cabeça, e ficou como que aindagar do que é que se tratava. Vivi conservou sua cabeçaerecta; e manteve o olhar como que ancorado no rosto deIvaloo.— Será que você irá com Papik, se ele quiser que você vá,minha querida pequena? — perguntou-lhe Ivaloo.Vivi ruborizou. Seus olhos se dirigiram ao rosto de sua mãe;recuaram; a seguir, ela disse, às pressas, com um fio de voz:— Irei.Padlock vibrou um soco em sua filha, atirando-a ao chão,onde Vivi se pôs a choramingar. Ivaloo, que nunca tinha visto

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pais baterem em filhos, sentiu-se horrorizada. Padlock virou-se contra ela, como uma fúria:— Vá embora daqui, e nunca mais me apareça! Sua perversa!Sua maldita! Alguém acredita, com efeito, que não foi senão oDiabo, em pessoa, quem lhe fez esse menino que você agoraestá carregando às costas!Ivaloo, porém, não a estava ouvindo. A zanga de Padlockrecordava-lhe a zanga que acabara de deixar fervendo no seupróprio iglu. Ela correu para fora, e rumou a toda pressa paraa sua moradia. Depois, começou a ficar cansada de correr.Poopooliluk passara a pesar-lhe nas costas. Em certa altura, omenino acordou, e começou a chorar.

O iglu de Ivaloo estava vazio; o pavio da lâmpada crepitava eestalava, encontrando-se a luz prestes a extinguir-se. A água,que pusera em cima da lâmpada, lá estava, intacta.Novamente do lado de fora, em pleno ar livre, os seus joelhoscederam; cederam devido ao medo, e também devido ao fatode ela não saber mais que rumo tomar. Tudo lhe voltava àmemória, daquilo que Asiak costumava dizer-lhe; e isto aenchia de raiva e angustia. os homens estavamencaminhando-se para a violência; os homens brancos pôr-se-iam no encalço deles, durante anos e anos a fio; envenenar-lhes-iam a vida com a ameaça e o terror do seu poderio; osbrancos escreveriam os nomes dos homens em grandes livros;em livros que duravam mais do que a memória dos seresvivos.Ivaloo caminhou pesadamente, de volta, por cima do marcongelado, em direção ao povoado. Por várias vezes ela teve

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de parar, para retomar fôlego. Todos os iglus estavamiluminados, rutilando no seio da noite. Toda a gente estava depé, comemorando o regresso. Mas alguma coisa parecia estarna iminência de acontecer. O povoado estava em plenobulício; havia labaredas de grandes tochas de sebo, a mover-sede um lado para outro, projetando grandes sombras trêmulas.E então ela estugou o passo.Argo passou correndo por Ivaloo, levando uma tocha delabareda grande numa das mãos, e uma espingarda na outra.—Que é que está acontecendo, Argo? Por que é que você nãoestá em casa, em companhia de Neghe, depois de tão longaausência? — indagou Ivaloo, procurando acompanhá-lo compassos rápidos.—Sangue está correndo; mas haverá mais! Kookiak acaba dematar o homem que lhe havia roubado a esposa, Meneek; e aesposa de alguém, Neghe, foi enfeitiçada pelo homem branco,de modo que não permite a ele que permaneça perto dela, àdistância necessária para que riam juntos! Ela foi para a casade madeira, procurando proteger-se. E ela precisa deproteção, aquela cadela sem rabo! Um marido tem o propósitode surrá-la com um porrete, até que ela se sinta disposta a rirde novo com ele.— Espere! Espere! — continuou Ivaloo gritando, mas emvão. Ouviu-se o barulho de mais botas caminhando sobre ogelo; ePapik e Milak surgiram ao lado dela, Ivaloo. Os dois tinhamespingardas nas mãos; e encontravam-se a caminho daMissão.

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— Papik! Para onde é que você está indo?Havia fúria de batalha na voz de Papik:— Visto que você não voltava, nós fomos buscar nossasespingardas; no caminho, ficamos sabendo que Padlock sehavia refugiado na casa do homem branco, arrastando Viviconsigo. Agora, alguém está indo buscar Vivi; está indoarrancá-la de lá.Ivaloo mal conseguia acompanhar os passos apressados doirmão. Labaredas, passadas e vozerio, tudo se cruzava e serecruzava no ar, procedendo de todos os lados. Argo estava nafrente; e os maridos de Torngek apareceram, carregandoSiorakidsok em seu tapete.— Empurrem o diabo branco de novo para o lugar de ondeele veio! — ia gritando Siorakidsok. — Este é o fim da suamaléfica influência!Na praia, diante do alpendre da Missão, a sombra da velhaTippo de súbito se ergueu:— Voltem, retirem-se! Vocês, seus perversos!Ela também estava brandindo no ar uma espingarda. A aldeiaparecia estar cheia de espingardas, a contar do momento doregresso da expedição.—Não se atrevam a profanar a Casa de Deus!—Feche essa boca enorme; do contrário, nós veremos por elaos seus pés, sua foca sem dentes — gritou Siorakidsok.—Atire fora essa espingarda, Tippo — ordenou Argo,esbarrando no corpo da mulher — ela pode deflagrar; nãopercebe, sua velha estúpida?—Pode deflagrar às suas costas, se você não virarimediatamente!

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Argo, porém, continuou caminhando para a frente. Papikalcançou-o e pulou para o alpendre da Missão:—Saia com Vivi, homem branco! Do contrário, você podecontar que já viveu todos os seus dias! — rugiu ele,martelando a porta com a coronha de sua espingarda.—Alguém deseja ver a cor do seu fígado, Tetarartee! —clamou Milak, com aquela sua voz alta, nítida, clara.—Faça-lhe um favor, e empurre-o para o céu — disse a vozde falsete, muito aguda, de Siorakidsok.Um tiro foi deflagrado; e Argo, que já estava com um pédentro do alpendre da Missão, mudou de idéia. Pôs uma dasmãos à cintura, deixou-se cair no chão, sentado, e ali ficou,imóvel, com a sua sanha a degelar-se sob a neve.—Conservem-se a distância, vocês, seus pagãos! — gritouTippo, brandindo a espingarda que fumegava, como se aquelaarma fosse uma bandeira.—Matem a velha cadela maluca! — ganiu Siorakidsok. —Matem-na como a um carcaju! Arranquem-lhe as tripas parafora!—Socorro! — soou a voz de Tetarartee, lá do lado de dentroda Missão. — Todos os bons cristãos e todos os homens deboa vontade precisam juntar-se na luta contra o Diabo!Ivaloo colocou-se ao lado de seu irmão, e procurou puxá-lopara longe dali. Tiros espocavam. Papik, com as veiasinchando-se à sua garganta, continuou a martelar a porta,enquanto Ivaloo se lhe dependurava ao braço; mas a portaresistia a tudo.A seguir, do lado de baixo, Milak irrompeu. Correu para afrente como se fora um feixe de luz; pulou para dentro do

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alpendre- e a toda velocidade, foi cair de chofre de encontro àporta. A porta cedeu, como neve, ao impacto daquelaviolência; e ele foi cair lá adiante, ao comprido, arrastandoPapik consigo. Ivaloo seguiu-o sem perda de tempo.Com uma espingarda nas mãos, o pregador lá estava, no cantooposto da sala; estava pálido, porém ereto e desafiador,protegendo vivi e Neghe; ao seu lado se encontravam Padlocke Hiatallak. Padlock tinha nas mãos uma lança.— Vá para trás, Satã! — trovejou Tetarartee, dando um passopara a frente, e movimentando a sua espingarda.Papik era orgulhoso demais, e não tomou nota da suaadvertência. Atirou a própria espingarda e a sua faca ao chão,aos pés de Padlock.— Você. Tome isto, Padlock — disse ele, procurando fazercom que sua voz soasse tranqüila — e alguém levará consigoVivi, em troca disto que aqui esta.E, exatamente como se fora Ernenek redivivo, caminhou,desarmado, em direção a uma espingarda apontada para ele, eàs garras de uma mulher.— Vá para trás, Satã! — gritou Padlock, atirando a lança.Papik viu tudo, com clareza; entretanto, curvar-se, diante deuma mulher, seria ato abaixo de sua dignidade; e então elenão fez movimento algum para evitar ser atingido. A lançaabriu um ferimento numa de suas faces, e foi bater, com umgolpe seco, na parede atrás dele. Papik prosseguiu para afrente, com o sangue a escorrer pelo rosto.Tetarartee pareceu, afinal, estar com sua arma pronta para odisparo; mas, antes que pudesse puxar o gatilho, Padlock jáhavia caído, com seus punhos, em cima de Papik, porém ao

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mesmo tempo servindo-lhe de escudo; ao tempo em quePapik a prostrou no chão, com um soco, Milak já tinhaentrado outra vez em ação.Rápido como um raio, mas silencioso como a luz, ele seesgueirou por entre aquelas pessoas que se agitavam e seaglomeravam; arrancou a espingarda das mãos do sacerdote; evibrou, com ela, golpes violentos, vezes e vezes seguidas, nacabeça de Tetarartee; e continuou a bater, mesmo depois dehavê-lo prostrado ao chão — até que a própria Ivaloo seatirou por baixo dos seus golpes. Então, Milak virou-se, pálidoe trêmulo; e começou a vibrar golpes de coronha contra tudoque se lhe apresentava à vista.Nesse entretempo, Papik também ficou com a sua ira a ferver.Ele apanhou a faca que tinha atirado ao chão; e começou avibrar golpes de faca contra os livros, os quadros, os jarros, osutensílios de cozinha, as garrafas. Depois, cortou o cordão doqual pendia do teto a lâmpada. A lâmpada veio ao chão, comestrondo; e a escuridão se fez na sala, durante um momento— até que, aceso por um fio agonizante na mecha, oquerosene derramado pegou fogo.As labaredas agiram como recurso mágico sobre Papik eMilak, fazendo-lhe cessar o tremor e atenuando-lhes a sedede vingança. Eles não tinham visto nunca um fogo daquelasproporções; e o fogo os imobilizou, fascinados, tomados deêxtase. De Hiatallak, porém, irrompeu um rugido enorme depavor; ele pulou para fora, seguido por Padlock e Neghe.Através da porta aberta, soprou uma rajada de vento; aslabaredas silvaram e se espalharam mais, em turbilhão; ondassucessivas de calor derreteram a gordura que havia nas faces

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dos esquimós, chamuscando-lhes a pele; então, Papik voltou àrealidade.— Venha, Vivi. O trenó de alguém está pronto, e oscachorros de alguém são magros e velozes. Vamos, Ivaloo.Vamos, Milak. Tratemos de correr daqui. Há troca de tiros láfora; e eles podem atingir-nos, porque está muito escuro, e amira não pode ser muito precisa.Papik estava realmente sereno, agora; não tinha mais fúriaalguma. Com calma, ele tomou a mão de Vivi, e puxou-a parafora da casa.— Alguém está indo à frente, a fim de colocar o trenó,pronto, perto do seu iglu — disse Milak a Ivaloo. — Seuscachorros também são velozes e magros.Dizendo isto, ele saiu.O fogo já tinha tomado metade do assoalho de madeira, econtinuava ainda ganhando expansão; e enchia a sala defumaça. Ivaloo ajoelhou-se junto de Tetarartee, e sacudiu-lheo corpo.— Você pode levantar-se? — perguntou ela, tossindo.Ele olhou para ela, batendo as pálpebras e gemendo; um fio desangue lhe corria da cabeça para dentro da barba.— Você é o Satã encarnado — disse ele, com dificuldade. —Sem você, esta seria uma comunidade, pacífica. Nós temos deagradecer, a você e à sua gente, pelo que está acontecendo.—Mas nós não queremos agradecimento nenhum.—Volte para a terra a que você pertencei— Sim. É para lá que nos estamos encaminhando! — disseIvaloo, alegre. — Mas você precisa sair daqui. As labaredas jáestão muito perto do seu corpo.

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Ela o ajudou a pôr-se de pé; e correu para fora.Lá embaixo, no alpendre, ela tropeçou e caiu por cima docorpo de Argo, que jazia numa poça de sangue. Neghe estavano chão, ao lado dele, chorando, agitando a cabeça echamando-o pelo nome.

Mais adiante, Tippo, com o rosto metido na neve, estavapondo em evidência os seus últimos tremores. Quanto aomais, toda a extensão que se desenrolava diante da Missão seencontrava deserta. Umas poucas labaredas, abandonadasporque se tornavam alvos excessivamente fáceis, aindachiavam em cima da neve; e o cheiro de pólvora, acre, com oqual aquela gente não se achava ainda familiarizada, saturavadensamente o ar irrespirável.A fúria espalhara-se como uma praga. A guerra santa estavaem curso. Do lado de trás dos iglus, tiros e gritos irrompiam.Mas tanto os cristãos como os pagãos estavam atirandoprincipalmente com o propósito de manter aquecidas as suasluvas, porquanto já estava muito escuro e não era possívelfazer pontaria.Ivaloo caminhou a toda pressa na direção do seu iglu. Umaspoucas balas assobiaram passando por ela; mas nem por ummomento ela se sentiu com medo de ser ferida. Sentia-sesatisfeita porque seu filho, às suas costas, se mantinha quieto.— Abatam-nos, arranquem-nos com suas raízes, a todos essespecadores, a todos esses pagãos, a todos esses ladrões! —trovejava a voz de Tetarartee.

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E, olhando para trás, por cima dos próprios ombros, Ivalooviu o xamã, alto e negro, parado no vão da porta da Missão,contra um fundo de labaredas.— Amarrem-nos e expulsem-nos daqui, esses assassinos,essas crias do Diabo, essa escumalha do inferno!Ivaloo encontrava-se ao fim de suas forças, mas manteve opasso estugado, até quando o barulho daquela batalha sedissipou no passado. Fazia algum calor; o vento amainara; asestrelas tinham desaparecido; e, no ar, havia uma alusão aneve; e esta era a razão pela qual o barulho não lhe chegavaaté àquela distância.Lá em cima, o céu encoberto sangrava com os reflexos doincêndio.Milak estava afagando os cães mal-humorados que se haviamposto em franca revolta; e estavam em franca revolta porqueviam o chicote; ao invés do alimento que tinham estado aesperar.— Papik e Vivi já partiram — disse ele. — Nós seguiremos atrilha deles.—Você tirou os petrechos domésticos do meu iglu?—Já retirei, minha pequena.— Você atrelou as cadelas no cio com os tirantes maislongos, para que os cachorros que se colocarem atrás possampuxar com o máximo das forças que tiverem?— Isso já foi feito, minha pequena — gritou ele, jubilante.— E as cadelas prenhes foram postas nos tirantes mais curtos,para evitar que os companheiros lhes devorem os filhotes?Nós vamos precisar de novos cachorros.

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— Naturalmente, Ivaloo! Agora, monte no trenó; e umhomem tratará de lhe desembaraçar as trelas da matilha!Ela, porém, não obedeceu. A matilha encontrava-se agitada;todos os cães estavam como que amontoados, mordendo,imprimindo arrancos e ganindo; os cães atiravam-se contra ascadelas; as cadelas combatiam-se umas às outras; e, sob asvistas admirativas de Milak — porque poucas mulheressabiam como lidar com as matilhas — Ivaloo arrancou opesado bastão das suas mãos e desceu-o várias vezes por cimados animais; a gente poderia até ouvir o penoso ressoar dosossos, no ato de serem atingidos pelos golpes; e o ressoar eraouvido entre um latido e outro. Depois de os animais sealinharem de novo, ela tornou a surrá-los outra vez, enquantodava a ordem de partida. Então os cães partiram, dando oarranco inicial com tamanha força que, se o trenó nãoavançasse, o mar é que recuaria. Então, Ivaloo pulou para otrenó, em frente a Milak; agarrou o chicote, munido de cabocurto de madeira, de uma longa tira de couro feita de pele defoca; ela queria verificar se ainda sabia como era que se faziapara brandir aquilo de encontro ao vento, ao longo docomprimento todo da matilha, para atingir até ao cachorro-líder.Ela ainda o sabia.Na medida em que os olhos dos dois — Ivaloo e Milak —foram ajustando-se às trevas, a paisagem foi emergindo contrao fundo da noite. Eles estavam rumando a caminho dohorizonte escuro dos campos marinhos, na trilha de Papik.Ivaloo, acalorada devido a tanto exercício, pousou o chicote, erespirou, aspirando o ar profundamente; saboreou aquele ar

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fragrante, que continha uma promessa de neve. Com umadúzia de aspirações profundas, ela recuperou todas asenergias.—Milak — gritou ela, cheia de alegria, como que a beber ovento — por que foi que uma moça ficou longe dos trenós portanto tempo? Ela está respirando outra vez; e sente-se cheiade bondade; sente-se absolutamente sem sequer uma gotadessa amargura de que houve tamanha quantidadeultimamente. Alguém está feliz, Milak; alguém olha páradiante, para o iglu que vamos construir quando estivermoscansados. E, dentro desse iglu, ela será previdente; tomaráconta das coisas a vir; pensará na atrelagem da matilhaquando a gente se despertar. Mas será que você será feliznesse iglu, Milak?—Um homem pode sempre voltar para o sul, se não se sentirfeliz.—Não, Milak; você não poderá voltar!—E por que não?Ela fez uma pausa, ao longo de determinado espaço dopercurso, antes de tornar a falar.— Você matou Tetarartee, meu pequeno. . . E você sabe queos homens brancos nunca mais lhe perdoarão; e sabe tambémque o seu nome estará nos livros, para sempre.— Você está certa de que Tetarartee está morto? — indagouMilak, sem o menor indício de preocupação.— Morto e assado. Uma moça o viu com seus próprios olhos.E ela fez outra pausa, refletindo que também, afinal, haviaaprendido a mentir.

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—Muito bem. Nesse caso — disse Milak, com um acento dedesprezo na voz — estaremos livres do incômodo de algumdia voltar ao sul. Mas você está ainda resolvida a não rir?Porque alguém está resolvido a rir com você, ainda que paraisso tenha de surrá-la e pô-la de todas as cores do crepúsculo!—Eu já lhe expliquei a razão, junto ao buraco de peixe, Milak,meu pequeno. Em noites longas e solitárias, uma moça pediua Deus que lhe desse um sinal; e Deus respondeu com estacriança que agora está dormindo tão tranqüilamente. É umsinal absolutamente claro e inegável! Assim, se nosencontrarmos, lá em cima, no norte, um lugar a que oshomens brancos não possam chegar nunca, ali alguém criaráeste filho na Verdade; e dali, se o Pai dele o quiser, ele algumdia partirá "a fim de preparar o caminho que conduz a Deus, ede tornar plano e reto esse caminho".—Por vezes, parece que não é você que está falando, Ivaloo;parece que é algum estranho espírito, tomado de loucura, queentrou em seu corpo!Ivaloo riu.— Por vezes, uma moça estúpida precisa usar as palavras doBom Livro, a fim de expressar os seus pensamentos. Algumdia, porém, Poopooliluk conseguirá pôr em palavras o que asua mãe ignorante pode apenas sentir. Ele será o salvador deque os homens brancos, como alguém bem o sabe, estãoprecisando angustiosamente.Milak não deu resposta; e Ivaloo estalou o chicote no ar, paraquebrar o silêncio com alguma coisa mais do que a simplesrespiração ofegante dos cães que puxavam o trenó.

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—Se Deus não quiser que Poopooliluk Lhe siga a trilha, nema trilha do Seu outro Filho, como nós estamos seguindo atrilha de Papik; se Deus pensar que as pessoas são indignas deum novo salvador, porque desconhecem os ensinamentos doprimeiro. . . bem, Deus dará outro sinal, dizendo isso. Estápercebendo?—Oh, Ivaloo, minha pequena — exclamou Milak, dentro desi mesmo, desconfortado, porque já tinha visto o sinal: oberço de rodízios, que Ivaloo trazia às costas, estavatransformado numa enorme faixa de sangue; por cima dabeirada desse berço ensangüentado, a cabeça de Poopoolilukpendia, em total abandono — com os lábios semi-abertos, asnarinas arrancadas, e os céus dos olhos inteiramentenublados.A voz feliz de Ivaloo tirou Milak da sua meditação:— Já começou a nevar! O sangue. O sangue dos mortos estácomeçando a cair. Agora, ninguém poderá vir no nossoencalço.— Mas a neve cobrirá também a trilha de Papik; e então nóso perderemos, se ele não houver parado.— Não é impossível que Papik saiba o que deve fazer.Os dois aguçaram a vista, para ver na escuridão. A matilha decães estava farejando o ar, e gania. Em certo momento, o latirde outros cachorros lhes deu resposta, através das trevas danoite.—Aconteceu, entretanto, que eles pararam — gritou Milak,exultante.

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—E a neve está caindo pesadamente — disse Ivaloo, abrindo aboca para cima, na direção dos céus, para receber o sanguedos mortos.A neve estava caindo e cobrindo-lhes as pegadas.