no clube do filme
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Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes
NO CLUBE DO FILME
Homenagem ao cinema e a metalinguagem de Gilmour
Fernando Carvalho Tabone
São Paulo
Abril/2014
Apresentação
“É um relato sincero sobre como é difícil crescer, como é difícil ver
alguém crescer e como no meio da raiva e da desordem de uma
família não há nada tão bem-vindo quanto um filme.”
The New York Times
Este trabalho consiste em uma breve resenha do livro “O Clube do Filme”,
escrito pelo canadense, crítico de cinema e ex apresentador de tv, David
Gilmour, e publicado em 2007.
Nos próximos parágrafos destacarei dois aspectos presentes na obra: a
homenagem ao cinema e a metalinguagem de Gilmour. Mas antes de
embarcar na discussão, cabe fazer uma breve apresentação da obra.
O livro é um relato real, ligeiramente romanceado, da experiência do
próprio autor no processo de educação do seu filho, um garoto de nome Jesse,
que aos 15 anos se encontrava em total desapego à escola.
Diante desta situação, David, que era crítico de cinema, faz uma
proposta surpreendente: sugere ao filho que este deixe a escola e, em troca do
sustento financeiro e de uma casa para morar, apenas concorde em não se
envolver com drogas e a assistir a três filmes por semana.
O filho aceita a proposta – não sei se tem algum filho no mundo não a
aceitaria - e então passa a se reunir semanalmente com seu pai para sessões
de filmes. O pai, muito conhecedor de cinema, faz de cada filme uma
oportunidade para conversar sobre diversos assuntos com o filho: desde
assuntos históricos, como a guerra no Vietnã; assuntos morais, como traição;
até assuntos técnicos, como os efeitos de suspense criados por Hitchcock.
São mais de 150 filmes citados em toda obra, que nas últimas páginas do livro
estão organizados em um catálogo por ordem alfabética.
No entanto, a obra vai além. O autor não se concentra apenas em falar
de cinema e de como se desenvolveu este curioso processo de educação. Este
é, na verdade, apenas o pretexto da obra. Em boa parte do livro,
paralelamente, o autor nos revela como lidou com problemas e questões
pessoais. Estão presentes assuntos como desemprego, divórcio, desilusões
amorosas durante a vida e problemas decorridos da imaturidade e rebeldia do
seu filho – que, por exemplo, apesar de aceitar a proposta do pai, acaba se
envolvendo com cocaína.
Para quem procura a obra apenas para conhecer mais sobre cinema,
apesar de encontrar bastante informação e inclusive curiosos casos dos
bastidores das produções, que o autor também nos revela, talvez termine a
obra um pouco frustrado ou se canse durante a leitura – já que o autor não se
concentra apenas na temática do cinema, há trechos longos que o autor se
dedica apenas a relatar qual era a situação predominante na sua vida naquele
momento, e não faz qualquer referência à cinema.
Porém, Gilmour demonstra uma grande capacidade discursiva que pode
envolver o leitor em um agradável passeio pelas experiências pessoais do
autor. Gilmour nos revela seus pensamentos e descreve as situações de sua
vida de maneira leve e dinâmica, intermediada com muitos diálogos e
comentários recheados de colocações irônicas. Para quem, então, encarar a
obra de maneira aberta, poderá percorrer agradavelmente as mais de 200
páginas do livro e no final, talvez, saberá mais sobre cinema e terá, também,
participado das curiosas discussões propostas pelo autor.
Homenagem ao cinema
Mostrei a Jesse “Uma Rua Chamada Pecado (1951). Contei a ele
como, em 1948, um ator jovem e relativamente desconhecido,
Marlon Brando, viajou de carona de Nova Yorkaté a casa de
Tennesse Williams, em Provincetown, Massachusetts, para fazer
um teste para uma produção da Broadway. Ele encontrou um
célebra dramaturgo num estado de ansiedade terrível; estavam
sem eletricidade no teatro, e com os banheiros interditados. Não
havia água. Brando acabou com o problema de energia colocando
moedas atrás dos fusíveis, e depois se agachou para resolver a
questão do encanamento. Quando terminou, limpou as mãos e for
para a sala estudar o papel de Stanley Kowaski. Ele leu durante
cerca de trinta segundos, reza a lenda, até que Tennesse,
levemente embriagado, pediu que parasse e disse “Está bem”,
mandando-o de volta para Nova York com o papel.
(P. 84)
Jesse estava completamente desestimulado com a escola. Diante desta
situação, buscando uma solução conciliadora, David sugere para o filho que ele
desista da escola. Certamente, uma opção inusitada. Que pai sugeriria ao filho
sair da escola?
Claro que David não propôs somente isso. Na verdade, David buscou
uma solução diplomática. Ele antecipou o que era praticamente inevitável, que
seu filho, devido aos contínuos insucessos, mais cedo ou mais tarde desistiria
da escola. Então ele mesmo traz essa ideia, caminha ao encontro do anseio do
filho, aceita o insucesso parcial e propõem que o filho deixe a escola, mas
aceite ver na companhia do pai, três filmes por semana. Dessa maneira, ele
evitaria uma futura crise ainda maior e manteria o filho por perto, com, ao
menos, varias oportunidades de conversar com o filho sobre os filmes que eles
viessem a assistir.
Juntos os dois assistem a muitos filmes. Este processo, que o pai
apelidou de “Clube do Filme” – poderia chamar de “Escola do Filme”, mas claro
que qualquer referência à escola não seria adequada” – revela ao filho e ao
leitor da obra o largo conhecimento de cinematografia do pai. São quase 150
filmes diferentes citados por David – e há de se dizer que, boa parte deles, são
filmes das décadas de 50, 60 e 70, que relembram a origem e popularização do
cinema no mundo. Para praticamente cada um dos filmes, David faz
comentários específicos de diversos tipos. Ele cita aspectos sociais da época
em que os filmes foram produzidos, conta detalhes da produção, dos diretores,
roteiros, atores, além de histórias de bastidores do cinema.
Dessa maneira, David estendia a capacidade do filme de envolver e
criava para o filho uma oportunidade maior de interesse e entendimento do
filme. Por quase 4 anos, dos 15 aos 19 anos de Jesse, David manteve o “Clube
do Filme” funcionando e seu filho próximo, até que este atingisse a maturidade
e “independência” - e, inclusive, decidisse por conta própria se matricular em
um curso supletivo.
Citar tantos filmes dentro de uma obra é ressaltar a importância do
cinema, e neste caso em especial, é ressaltar ainda a importância do cinema
na família. Claro que é um caso único, quem antes já teria tomado a mesma
atitude de tirar o filho da escola para educa-lo através de filmes? Mas, apesar
da excentricidade, revela a importância do cinema na família. Neste caso, no
relacionamento direto entre pai e filho. Mas quantas histórias não existem de
pessoas que ligam ao cinema, direta ou indiretamente, parte do relacionamento
com a namorada(o), a esposa(o), os pais e os amigos.
Neste aspecto, o livro relembra uma obra do cinema, vencedora do
Oscar de melhor filme estrangeiro em 1990: o filme italiano chamado Cinema
Paradiso, dirigido por Giuseppe Tornatore, que apresenta a história de uma
garoto, chamado Totó, que torna-se amigo de Alfredo – interpretado por Noiret
-, um senhor, projecionista, que cuida de uma sala de cinema, principal atração
de uma pequena cidade no interior da Sicília. O filme retrata a terna e
inesperada amizade que se desenvolve entre os dois, enquanto assistiam a
dezenas de filmes dos primórdios do cinema.
A metalinguagem de Gilmour
Alguns dias, ele me fazia pergunta sobre pessoas que eu tinha
entrevistado. Como era George Harrison (Um cara legal, mas
quando eu ouvia aquele sotaque de Liverpool era difícil não pular
e gritar: “Você era um dos Beatles! Deve ter pegado milhares de
garotas!”); Ziggy Marley (filho de Bob, um pequeno cretino mal-
humorado);
(P. 108)
Amor à Queima-roupa tem uma cena de oito ou nove minutos que
mostra um encontro entre Dennis Hopper e Christopher Walken,
que eu considero a melhor sequência do cinema (e eu sei que só
se pode dizer isso uma vez, portanto, guardei para esta ocasião).
(P. 204)
Como encaixar um pensamento do autor no meio do texto? Como
conversar com o leitor? Qual recurso utilizar? Percebe-se em vários momentos,
como nos dois trechos destacados acima, que Gilmour fez opção da utilização
dos parênteses como recurso para evidenciar seus comentários sobre o que
escrevia ou para alongar uma narrativa.
Gilmour fez a opção da utilização dos parênteses, mas percebemos na
literatura que há outras maneiras de se conseguir a mesma finalidade, que
varia conforme a estilística e habilidade do autor em lidar o texto ou conforme
os objetivos do próprio autor com a obra em si, podendo variar de obra para
obra do mesmo autor.
João Carrazcosa na obra “Aquela água toda”, por exemplo, apresenta-
nos um estilo diferente do de Gilmour em “O Clube do filme”. Vejamos:
E, como o filme ia terminar – a gente percebe o fim chegando –,
tomei coragem e deslizei a mão pelo braço da poltrona até
encontrar sua mão. Cristina estremeceu, virou-se para mim – e
me salvou.
(2012, P. 15)
Percebe-se, neste trecho, que Carrascoza fez preferência pela utilização
de hifens para separar da narrativa os comentários do eu lírico.
Em ambos os casos, apesar das diferenças, vemos a intenção
metalinguística dos autores. Cada autor a evidenciou de uma maneira
diferente, o primeiro através de parênteses e o segundo através de hifens. As
diferenças criam no leitor uma percepção também diversa. É evidente que
Gilmour a faz de um modo mais enfático, enquanto Carroscoza com mais
sutileza e discrição.
Machado de Assis é um autor que ficou conhecido pelo largo uso do
recurso metalinguístico em sua literatura. As suas obras Dom Casmurro e Bras
Cubas destacam-se neste aspecto. A seguir um pequeno trecho de Dom
Casmurro no qual este estilo se evidencia:
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que
eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e
metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de
fidalgo. Tudo por estar cochilando!
(1994, P.1)
Percebe-se, neste trecho de Dom Casmurro, que Machado busca
estabelecer uma conversa com o leitor, porém não evidencia esta intenção
através de parênteses ou hifens. Mas fica bastante claro que esta intenção
existe, principalmente, no uso do imperativo, como em “não consultes”, e em
exclamações em meio a narrativa, como em “Tudo por estar cochilando!”.
Não cabe aqui distinguir quem, dos três autores, faz a melhor opção
para atingir o efeito de conversar com o leitor, mas apenas destacar que para
atingir um mesmo efeito há diversas opções e recursos.
Conclusão
- O que tornava um filme bom, segundo Howard Hawks?
- Três cenas boas e nenhuma ruim.
(P. 210)
David Gilmour traz em “O Clube do filme” um relato pessoal, quase um
desabafo, das experiências que enfrentou para educar adequadamente seu
filho. O tema “cinema”, impermeado nas narrativas, alivia o peso provocado
pela seriedade dos assuntos abordados na obra: como desemprego,
dificuldades com o filho, desilusões amorosas, etc. E a grande presença de
diálogos, a separação de assuntos dentro de um mesmo capítulo e a constante
intenção do autor em se aproximar do leitor através de comentários, facilita a
leitura, que corre agradável, apesar do longo e detalhado relato que Gilmour
propõem: são cantadas no texto experiências de praticamente 5 anos corridos.
Referências
David Gilmour, O Clube do Filme, 2009.
Giuseppe Tornatore, Cinema Paradiso, 1988.
João Anzanello Carrascoza, Aquela Água Toda, 2012.
Machado de Assis, Obras Completas de Machado de Assis (Dom Casmurro),
1994.