nietzsche e a musicalidade dionisiaca da tragédia Ática

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REVISTA PANDORA BRASIL, n. 37, Dezembro de 2011 ISSN 2175-3318, p. 07-25 Nietzsche e a musicalidade dionisíaca da tragédia ática Renato Nunes Bittencourt 7 NIETZSCHE E A MUSICALIDADE DIONISÍACA DA TRAGÉDIA ÁTICA Renato Nunes Bittencourt ______________________________________ RESUMO: Neste artigo analisamos o estatuto da musicalidade na configuração estética e ontológica atribuída por Nietzsche ao dionisismo no nascimento da tragédia grega, e de que maneira a expressão musical é fundamental para compreendermos adequadamente o espírito da experiência trágica grega. PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche. Música. Trágico. Dionisíaco. ______________________________________ 1 INTRODUÇÃO As intuições musicológicas delineadas por Nietzsche nos seus escritos helenísticos, especialmente em O nascimento da tragédia, retratam a marcante influência recebida das teorias de Schopenhauer (especialmente a partir do § 52 de O mundo como vontade e como representação) e da criação artística e intelectual de Richard Wagner (óperas como Os mestres cantores de Nuremberg e seus ensaios estéticos como A arte e a revolução, A obra de arte do futuro e Beethoven), expandindo-as conforme os seus propósitos estéticos: o estabelecimento de um elo ontológico entre o espírito trágico grego e o projeto moderno de reunificação das artes na ópera de vanguarda. Independentemente das particularidades axiológicas da proposta nietzschiana em fundir a experiência trágica dos gregos com os pretensos arautos modernos da renovação da cultura trágica no período oitocentista Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor do Curso de Comunicação Social da Faculdade CCAA. Contato: [email protected]

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    Nietzsche e a musicalidade dionisaca da tragdia tica

    Renato Nunes Bittencourt

    7

    NIETZSCHE E A MUSICALIDADE DIONISACA DA TRAGDIA TICA

    Renato Nunes Bittencourt

    ______________________________________

    RESUMO: Neste artigo analisamos o estatuto da musicalidade na configurao

    esttica e ontolgica atribuda por Nietzsche ao dionisismo no nascimento da

    tragdia grega, e de que maneira a expresso musical fundamental para

    compreendermos adequadamente o esprito da experincia trgica grega.

    PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche. Msica. Trgico. Dionisaco.

    ______________________________________

    1 INTRODUO

    As intuies musicolgicas delineadas por Nietzsche nos seus escritos

    helensticos, especialmente em O nascimento da tragdia, retratam a

    marcante influncia recebida das teorias de Schopenhauer (especialmente a

    partir do 52 de O mundo como vontade e como representao) e da

    criao artstica e intelectual de Richard Wagner (peras como Os mestres

    cantores de Nuremberg e seus ensaios estticos como A arte e a revoluo,

    A obra de arte do futuro e Beethoven), expandindo-as conforme os seus

    propsitos estticos: o estabelecimento de um elo ontolgico entre o

    esprito trgico grego e o projeto moderno de reunificao das artes na

    pera de vanguarda.

    Independentemente das particularidades axiolgicas da proposta

    nietzschiana em fundir a experincia trgica dos gregos com os pretensos

    arautos modernos da renovao da cultura trgica no perodo oitocentista

    Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor do Curso de Comunicao Social da Faculdade CCAA. Contato: [email protected]

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    europeu, uma questo delineada por Nietzsche permanece vigorosa: o

    estudo da musicalidade na configurao artstica da Tragdia tica e o seu

    inerente substrato ontolgico para a compreenso dionisaca da vida.

    Nessas condies, o presente texto visa comentar o primado da

    musicalidade na experincia trgica de mundo e sua expresso mais potente

    na Tragdia tica, dialogando, na medida do possvel, com a fortuna crtica

    de helenistas e autores dedicados ao mundo grego antigo.

    2 O FUNDAMENTO DIONISACO DA TRAGDIA TICA

    Nietzsche, nos seus escritos helensticos de juventude, especialmente

    em O nascimento da tragdia, fundamenta o surgimento da Tragdia tica

    ao canto coral, expresso por excelncia da comunho do povo grego na sua

    experincia esttica e religiosa de participao da encenao trgica, ao

    mesmo tempo culto sagrado e cerimnia teatral. Para Nietzsche, o principio

    originrio da Tragdia tica no se encontra no drama, mas sim em sua

    musicalidade, circunstncia que representa assim a sua filiao ao arcaico

    culto dionisaco; conforme as investigaes nietzschianas, a tragdia grega

    nasce do coro de celebradores dionisacos e progressivamente adquire

    conotaes dramticas mediante a assimilao das festividades dionisacas

    pelo Estado Grego, sustentado religiosamente pela celebrao dos deuses

    olmpicos, destacando-se dentre estes a figura de Apolo, o patrono da

    harmonia interior, do autoconhecimento, da moderao tica e do discurso

    potico. Quando ocorre a convergncia axiolgica entre as disposies

    apolneas e dionisacas possibilitou-se, para maior glria da arte, a

    reconfigurao esttica da tragdia grega, incorporando-se

    harmoniosamente elementos apolneos (a discursividade dramtica) e

    dionisacos (o coro, o canto e a msica):

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    Assim, a difcil relao entre o apolneo e o dionisaco na tragdia poderia realmente ser simbolizada atravs de uma aliana fraterna entre as duas divindades. Dionsio fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dionsio com o que fica alcanada a meta suprema da tragdia em geral (NIETZSCHE, 1996, p. 129-130).

    Todavia, um dos aspectos mais dignos de nota da investigao

    histrica, filolgica e filosfica de Nietzsche sobre a configurao esttica e

    religiosa da Tragdia tica consiste no postulado de que, mesmo atravs da

    assimilao de elementos dramticos na experincia trgica grega, as

    diversas modulaes da musicalidade permaneciam como o cerne desse

    acontecimento especial. Nessas condies, podemos versar seguramente

    sobre uma postulada musicalidade dionisaca na Tragdia tica e no

    apenas acerca de uma pura dramaticidade da mesma.

    Uma vez que o propsito da encenao trgica originalmente

    consistia na celebrao da paixo do deus Dionsio, quando ocorre a

    intercesso entre os elementos apolneos e dionisacos na transformao da

    Tragdia tica, a figura do heri representado na cena encarnava

    simbolicamente a essncia de Dionsio, atuando ento como uma espcie de

    avatar do deus. Por conseguinte, o pblico que assistia ao espetculo

    trgico no participava de uma mera encenao teatral, mas de um genuno

    culto religioso revestido com caracteres estticos. A funo da msica, na

    Tragdia tica, consistia em despertar no espectador a disposio sagrada

    para a comunho com o divino, atravs de uma relao exttica.

    3 O ARREBATAMENTO DA MUSICALIDADE DIONISACA NA TRAGDIA TICA

    Enquanto os adeptos de Apolo mantinham a sua identidade pessoal

    nos seus louvores, os epoptas dionisacos perdiam a sua identidade

    subjetiva, seu prprio eu, nas celebraes bquicas. Enquanto a ordem

    apolnea estabelecia o rgido controle das aes individuais, atravs da

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    manuteno inexorvel dos preceitos da justa medida, os ritos dionisacos

    celebravam uma violenta ruptura com essa instituio social, pois que,

    nessa concepo bquica, atravs da hybris, da desmedida, do excesso e

    da supresso das normas que se poderia alcanar o estado mximo de

    alegria1. Para tanto, era necessrio o uso de alguns recursos especiais, que

    garantissem a eficcia dessas experincias rituais. A bebida, mais

    precisamente o vinho, e as danas frenticas, executadas ao som dos

    tambores e das flautas rsticas, proporcionavam aos participantes dessas

    celebraes os efeitos mgicos almejados, o frenesi que permitia ao epopta

    buscar a interao com os demais membros da confraria, ocasionando

    assim justamente o desentrave das suas foras instintivas, que se tornavam

    ento plenamente atuantes nas celebraes rituais2. A natureza dionisaca

    quer a embriaguez e, para tanto, o contato, enquanto que o apolneo quer a

    forma, isto , a distncia (SANTIAGO-GUERVS, 2004, p. 221).

    A cultura apolnea preteriu o uso da flauta em favor da lira, pois

    havia o preconceito de que aquele instrumento deformava as feies da face

    humana, prejudicando assim a manuteno do ideal de beleza to especial

    para os antigos gregos. Aristteles comenta a questo do vituprio em

    relao ao uso da flauta por esta ser considerada, pelo imaginrio grego,

    como a responsvel por deformar as feies faciais daquele que a utiliza.

    Pelo fato das objees do filsofo representar de forma ntida o temor grego

    diante das foras bquicas, a citao a seguir extremamente pertinente:

    1 digno de nota que Henri Jeanmaire, no seu Dionysus, p. 207, afirma que a alegria um dos mais marcantes traos da personalidade de Dionsio, e que contribui para lhe comunicar esse dinamismo ao qual preciso sempre regressar para conceber o poder de expanso do seu culto. 2 Acerca dessa questo apresentada, de grande valor a leitura de A morte em Veneza de Thomas Mann, mais precisamente p. 102-104, nas quais o clebre romancista, permeado pela viso de mundo nietzschiana, apresenta em detalhes riqussimos o delrio bquico que toma posse do protagonista do romance, Gustav von Aschenbach, as referncias aos cnticos, aos instrumentos de percusso, a sensualidade latente nos corpos, o objeto flico ritual e a presena mstica do Deus Estrangeiro.

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    No devem ser admitidas na educao as flautas ou quaisquer outros instrumentos que requerem grande preparo tcnico, bem como a ctara e outros do mesmo gnero, e sim os instrumentos que permitem aos alunos dedicar mais ateno sua educao musical e aos outros ramos da educao. Ademais, a flauta no exerce influncia moralizante, mas apenas excitante; deve-se us-la, portanto, somente nas ocasies em que a execuo visa catarse e no instruo. A flauta, com vista educao, tem assim contra ela o fato de impedir o uso da fala; por isso seu uso foi acentuadamente interditado por nossos antepassados aos jovens e aos homens livres, embora em poca mais recentes estes tenham passado a utiliz-la (ARISTTELES, Poltica, 1341b).

    A flauta guerreira, a flauta das possesses iniciticas, o instrumento

    do delrio, de um delrio que pode ser fatal (PLATO. Leis, VII, 790c-791b).

    Conforme o autor do clebre tratado Do Sublime expe, o som da flauta

    produz paixes nos ouvintes e torna-os loucos e possudos pelos delrios dos

    coribantes; e, tendo dado um ritmo, ela fora o ouvinte a andar nesse ritmo

    e a assimilar-se melodia (LONGINO, Do sublime, XXXIX, 2).

    A sonoridade dionisaca atentava contra a serenidade axiolgica do

    apolinismo, pois motivava uma srie de movimentos corporais que

    superavam as prprias limitaes naturais de cada celebrador, sendo ento

    uma musicalidade que clamava ao mago da singularidade do participante

    do ritual. Tanto a msica apolnea como a msica dionisaca expressavam

    qualidades encantatrias, mas os seus efeitos psicofisiolgicos eram

    distintos, ainda que, de todo modo, plenamente saudveis para o ouvinte: o

    toque da lira apolnea serenava o nimo, enquanto o flautear rompia com os

    parmetros da representao, fazendo assim irromper a vitalidade

    intrnseca do indivduo, atravs de uma extasiante alegria que contagiava os

    membros da confraria dionisaca. A msica da flauta no tem um carter

    tico, mas orgistico, de modo que esse instrumento assim, por

    excelncia, o propiciador do transe, do orgiasmo, do delrio, dos ritos e das

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    danas de possesso3. O carter da msica dionisaca se expressa pela

    violncia estremecedora do som, a corrente unitria da melodia, e isso um

    artifcio completamente anti-apolneo (NIETZSCHE, 1996, p. 34-35).

    Conforme comenta Santiago-Guervs, a msica nasce de um fundo informe,

    indeterminado, onde no existe a imagem. E em relao s demais artes,

    expressa desse modo a forma fenomnica mais geral da vontade, ao mesmo

    tempo em que constitui o primeiro passo de simbolizao (SANTIAGO-

    GUERVS, 2004, p. 46)

    A tradio mitolgica grega estabelece o duelo artstico entre Apolo,

    tocador de ctara, e o stiro Mrsias, detentor da tcnica da flauta, como o

    parmetro avaliativo entre as duas qualidades musicais. A vitria do belo

    deus perante o ser da natureza significa a o projeto de se conceder a

    hegemonia do som suave da ctara sobre a musicalidade exttica da flauta.

    Mrsias, ao encontrar a flauta dispensada por Atena, pelo fato de que a

    deusa considerava-a como um instrumento deformador das feies,

    recolhe-a e dela se torna um exmio intrprete. Por sua hybris, o stiro

    desafia o melhor musicista grego, justamente Apolo, numa competio para

    que se pudesse estabelecer quem de fato era o melhor musicista e qual

    instrumento produz o melhor som. Apolo aceita, tendo as Musas como

    juzas. O prmio da disputa seria que o ganhador poderia fazer o que bem

    entendesse com o perdedor. Mrsias faz soar sua flauta de forma magistral.

    Apolo somente conquista a vitria no duelo com Mrsias por um artifcio: o

    deus consegue tocar sua ctara virando-a de cabea para baixo, o que

    impossvel para a flauta. Como punio pela afronta do stiro, Apolo o

    esfola vivo.

    3 Para mais detalhes dessa questo, a leitura de A Morte nos olhos, de Jean-Pierre Vernant, especialmente as pginas 71-75, de grande pertinncia, pois o helenista disserta sobre o efeito terrfico que as danas extticas motivavam na coletividade grega, assim como a repulsa pela flauta.

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    O canto dionisaco se expressava atravs do modo frgio, inverso do

    efeito acalentador e disciplinador da musicalidade drica, e a sonoridade da

    flauta, estigmatizada definitivamente pelo ideal normativo da racionalidade

    apolnea, tambm se encaixava nesse mbito tonal, pois ambos so

    excitantes e emocionantes, o que no era considerado benfico para o

    aprimoramento do cidado grego4.

    Destarte, podemos constatar no dionisismo uma nova expressividade

    da msica, pois que essa arte sagrada no utilizada entre os seus adeptos

    em prol da manuteno da ordem instituda, mediante a instaurao do

    equilbrio interno de cada indivduo, estado psquico que impede o af de

    subverter os padres normativos. Ao contrrio, uma reviravolta no uso

    ritual da msica proporcionar ao culto bquico a aquisio de meios de

    suprimir os padres sociais estabelecidos, pois que a intensidade mgica da

    msica supera os limites formais do discurso retrico, proporcionando

    assim a associao entre os celebrantes atravs da profuso da alegria

    divina. Wagner, em A Obra de Arte do Futuro, expe uma importante

    reflexo sobre o poder transfigurador da msica, perspectiva essa que seria

    muito cara para o desenvolvimento das ideias de Nietzsche:

    A msica o completo e efervescente amor do corao, que confere nobreza voluptuosidade dos sentidos e humanidade ausncia de sensibilidade dos pensamentos. Por intermdio da msica, a dana e a poesia podem entender-se mutuamente: nela tocam-se e interpenetram-se num lao de amor as leis de acordo com as quais cada uma destas se manifesta segundo a natureza que lhe prpria; nela, a vontade de no-arbitrrio de cada uma das outras duas artes, o metro, prprio da poesia, e o compasso, prprio da dana, transformam-se no necessrio ritmo do pulsar do corao (WAGNER, 2003, p. 73-74).

    4 Para mais detalhes da relao estabelecida entre o cntico dionisaco e o uso das flautas com o modo frgio, ver Aristteles, Poltica, 1342b.

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    digno de nota que as sagradas danas desenfreadas dionisacas, ao

    invs de motivarem a eminente extenuao das foras do corpo, tal como

    ocorreria em condies normais, ampliavam, pelo contrrio, ainda mais a

    sua energia constituinte, como se o celebrante se tornasse um novo ente,

    decuplicado na sua vitalidade. Dionsio o deus frentico, e por ele danam

    frenticas as mnades (OTTO, 2006, p.101)5. A dana exttica de Dionsio

    pressupe que o adepto se encontre em um estado de embriaguez, seja

    atravs da bebida ou da prpria alegria intrnseca que se extravasa, gerando

    assim a libertao mental das amarras da conscincia6. A sagrada tarefa de

    Dionsio consiste em nos tornar mais leves, em nos ensinar a danar, em

    nos dar o instinto do jogo (DELEUZE, 2001, p. 30). Pela msica e pela

    dana, o homem encontra a possibilidade de unio com os ritmos e

    pulsaes do universo (ARAJO, 1985, p. 120). A dana, como toda arte,

    comunicao do xtase, uma pedagogia do entusiasmo, no sentido original

    da palavra: sentimento da presena divina e participao no ser divino

    (GARAUDY, 1980, p. 24). Contato dionisaco com as foras do universo e da

    histria, a dana no arte de evadir-se da realidade, mas, ao contrrio, a

    de identificar-se com ela, de crucificar-se nela, para alcanar uma vida mais

    elevada (GARAUDY, 1980, p. 102). Na dana o corpo completamente ele

    mesmo, e no se dirige com sua postura e movimentos a nenhum efeito

    exterior, seno s a si mesmo. O ritmo que o possui o desenlaa das

    ataduras com as quais as coisas o enredam e enfadam, liberando-o e o

    devolvendo completamente a si mesmo (OTTO, 2005, p. 74). Conforme os

    comentrios de Scarlett Marton,

    Cadncia, a dana pe em xeque a aparente imobilidade das coisas, a rigidez imposta ao pensamento, a fixidez forjada pelas palavras. Com o

    5 Ressaltemos que Walter Burkert, em A religio grega na poca clssica e arcaica, p. 227, tambm trata da ideia de uma dana frentica no dionisismo. 6 Para mais detalhes dessa questo, de grande importncia a leitura de Psique de Erwin Rohde, p. 220-221.

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    ritmo, o mundo deixa de ser estvel; com os gestos, a linguagem deixa de ser unvoca. E as ideias ganham leveza (MARTON, 2001, p. 60).

    Aps tais colocaes sobre a expresso sagrada da dana como

    mecanismo de ampliao da sade do corpo e dos estados potentes de

    alegrias, creio que possamos realizar um salto textual para Assim falou

    Zaratustra, relacionando tais ideias com um discurso que manifesta plenas

    convergncias valorativas com o tema aqui estudado: trata-se de

    aproveitarmos a apologia da dana divina que Nietzsche coloca na boca de

    Zaratustra, quando este afirma que s acreditaria num deus que soubesse

    danar (NIETZSCHE, 1998, p. 47). O que o pensador andarilho pretende

    enunciar atravs dessa sentena? Que a crena em uma divindade isolada

    do universo, longe da alegria, da intensidade da existncia, no pode ser

    considerada eticamente legtima, pois mesmo os deuses tambm danam,

    tambm expressam o jbilo pela existncia. Um deus danarino encontra a

    sua significao na prpria imanncia, e convida todos os seus adoradores a

    participarem da ciranda de alegria que envolve o seu culto. Zaratustra

    pretende demonstrar que plenamente possvel pensarmos na figura de

    uma divindade vitalizada, envolvida com a energia pulsante da dana, pois

    tal envolvimento no diminuiria de maneira alguma a grandiosidade de tal

    entidade.

    Um dos exemplos que podemos utilizar nessa circunstncia seria o

    dos deuses olmpicos, eles prprios belssimos e adeptos da sensualidade e

    da alegria, alm, obviamente, do prprio Dionsio, o jubiloso danarino, que

    trouxe aos gregos antigos a sua efervescncia divina, que contagia todos os

    corpos nos passos da sua dana. Talvez seja em homenagem a ele que

    Zaratustra dirija este discurso:

    E quando vi o meu demnio, achei-o srio, consciencioso, profundo, solene: era o esprito de gravidade graas a ele, todas as coisas caem. No com a clera, mas com o riso que se mata. Vamos,

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    matemos o esprito de gravidade! Aprendi a andar: desde ento, corro vontade. Aprendi a voar: desde ento, no quero que me empurrem primeiro, para me pr em movimento. Agora, estou leve; agora, vo; agora, um deus dana por meu intermdio (NIETZSCHE, 1998, p. 47).

    Zaratustra proclama a sua alegre vitria sobre a tristeza e ao excessivo

    carter hiertico vigente na tradio moral imposta pela religiosidade

    normativa, uma poderosa expresso do esprito de gravidade, que castra as

    aspiraes criativas dos indivduos subjugados pelo seu poderio

    homogeneizador das caractersticas humanas. Para tanto, o corpo de

    importncia capital para a realizao das aes singulares dos indivduos,

    pois o meio de expresso por excelncia da potncia criativa de um centro

    de foras. A dana da vida dionisaca e permite a transfigurao da

    existncia e dos parmetros morais em vigor, mediante a elevao da alegria

    trgica ao patamar maior de todas as valoraes humanas.

    A vivncia dionisaca devolve ao homem grego a sua mais recndita

    alegria, similar quela usufruda na tenra infncia, na qual no existe a

    culpa moral e o medo por se afrontar as regras impostas. Dessa maneira, o

    dionisismo proporciona o florescimento de um estado de alegria distinto do

    bem-estar da ordem apolnea, que controla mesmo os excessos de alegria

    dos seus indivduos, levando-os a uma espcie de ataraxia dos afetos7. Ora,

    a alegria dionisaca no quer ser represada de forma alguma pela

    normatividade social, ela anseia acima de tudo pela contnua efuso de sua

    fora expansiva que agrega numa grande unidade de celebrantes do prazer

    7 O Estoicismo, na sua acepo tica, de alguma maneira, um grande devedor desse apaziguamento apolneo, pois a ataraxia um estado psicofsico que proporciona ao filsofo a vivncia de uma genuna quietude no seu mago, liberto de toda influncia discordante do mundo exterior, pois todo mpeto de violncia j fora previamente suprimido na sua prpria afetividade. Nuno Nabais, na sua Metafsica do Trgico, dedica valiosas reflexes sobre as divergncias e aproximaes entre o estoicismo e o pensamento nietzschiano, principalmente na gnese do conceito de Amor Fati.

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    da existncia a coletividade dos indivduos. Conforme comenta Snchez

    Meca,

    Com a experincia dionisaca, que possvel fazer atravs da arte e da msica, o indivduo deixa se reconhecer-se como tal, supera a mera aparncia de sua individuao e participa diretamente da energia transbordante do fundo natural, uno e indestrutvel, do mundo (SNCHEZ MECA, 2006, p. 256-257).

    A expresso jubilosa encarnada no taso dionisaco ocorria no por

    uma necessidade de se preencher o tempo disponvel com o movimento

    livre dos corpos nas danas, mas por um desejo divino de gratido a vida,

    naquilo que ela oferta a cada pessoa continuamente. Devemos destacar que

    o helenista Christian August Lobeck, no seu Aglaophamus sive de theologie

    mysticae graecorum, pretendia explicar a religiosidade dionisaca como um

    mero preenchimento do tempo ocioso, de modo que o taso dionisaco, sem

    mais nada de til ou valoroso a fazer, se unira em celebraes nas quais os

    atos de danar, cantar e se agitar, desprovidos de qualquer significao

    maior, seriam imitados por uma massa coletiva de pessoas, efetivando

    assim o culto dionisaco que ns conhecemos:

    Os gregos, se no tinham outras coisas a fazer, riam, pulavam, corriam, ou, como o ser humano tambm se inclina a isso, sentavam-se, choravam, lamentavam. Vieram outros, depois, e buscaram algum motivo para o estranho modo de ser; e assim surgiram, para explicao desses costumes, inmeras lendas festivas e mitos. Por outro lado, acreditou-se que a burlesca atividade que ocorria durante as festas pertencia necessariamente celebrao, e ela foi mantida como parte indispensvel do culto religioso (LOBECK, 1829, p. 672)8.

    8 Essa perspectiva absurda e redutora da vivncia dionisaca objetada por Nietzsche em Crepsculo dos dolos, na seo o O que devo aos antigos, 4, e tambm por Walter Burkert na sua portentosa Religio grega na poca clssica e arcaica, p. 23.

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    Empolgados pelo canto e pela dana, os adeptos do culto dionisaco se

    integravam numa grande celebrao onde no havia mais a valorizao da

    hierarquia social estabelecida imperiosamente pela lei do Estado apolneo.

    O indivduo, alienado dos seus limites pessoais e da sua regrada medida,

    caa no esquecimento de si caracterstico dos estados dionisacos e perdia

    completamente a memria dos preceitos apolneos (MACHADO, 2001, p.

    21). A partir de ento, reinava na afetividade de todos os envolvidos no rito

    dionisaco o sentimento de fuso entre o humano e a natureza. O modo

    mais intenso de ocorrer essa conexo era atravs da possesso do esprito

    dionisaco, que seria uma comunho plena com o divino, uma experincia

    afetiva aflorada no mstico, vivida no prprio corpo do celebrante. A

    possesso dionisaca motiva a fuga para a montanha, a oribasia bquica,

    em prol de um distanciamento dos problemas da cidade, da vida urbana

    trivial, dos seus problemas corriqueiros, circunstncias que encontram um

    importante correlato no prprio projeto de se distanciar de si mesmo, ou

    seja, da prpria personalidade cotidiana. Conforme os versos de Eurpides

    acerca dos poderosos cantos bquicos,

    /Feliz quem por bom nume/ mistrios de deuses viu,/ santifica a sua vida,/ pe no taso a sua alma,/ nas montanhas um Baco/ em santas purificaes/ e trabalhos da grande Me/Cibele so a sua lei,/ e brande alto o tirso/ e coroado com heras o cultor de Dioniso/ Eia, Bacas! Eia, Bacas! (EURPIDES. As bacantes, vs. 73-83).

    Uma vez que a disposio dionisaca no reconhece a pertinncia dos

    preceitos normativos de Apolo, a necessidade de se voltar a esse estado de

    controle interpessoal sempre uma situao dolorosa para aquele que

    conhece na carne a experincia da fuso do seu eu com os demais.

    Nietzsche afirma que

    O arrebatamento do estado dionisaco, com a sua aniquilao das barreiras de limites habituais da existncia, contm, enquanto dom,

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    um elemento letrgico no qual mergulha tudo o que foi vivenciado no passado. Assim se separava, por meio desse abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o mundo da realidade dionisaca (NIETZSCHE, 2005, p. 24).

    A experincia religiosa do culto dionisaco, em vez de integrar

    passivamente as pessoas nos seus supostos devidos lugares, visa projet-las

    para fora desse mbito normativo e homogeneizador atravs do xtase,

    associando-se ao divino na interao sagrada que suprime a diferena de

    identidade entre ambos. Conduzida pelo poder dionisaco, a natureza

    fornece os seus encantos para aqueles que aceitam as suas ddivas ao se

    integrarem amorosamente aos seus braos, tal como Nietzsche a apresenta:

    Cantando e danando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e est a ponto de, danando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra d leite e mel, do interior do homem tambm soa algo de sobrenatural: ele se sente como um deus, ele prprio caminha agora to extasiado e enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem no mais artista, tornou-se obra de arte: a fora artstica de toda a natureza, para a deliciosa satisfao do Uno-primordial, revela-se aqui sob o frmito da embriaguez (NIETZSCHE, 1996, p. 31).

    Podemos constatar que, neste trecho, Nietzsche se utiliza de uma

    brilhante imagem euripidiana, tal como expressada pelo Mensageiro nas

    Bacantes, que narra para o altivo Penteu os prodgios realizados pelas

    mnades, pois que estas, conhecedoras dos mistrios de fertilidade da vida,

    so capazes de retirar da terra os seus maravilhosos benefcios maternos:

    Todas elas ornavam cuidadosamente / a fronte com coroas de folhas de hera / ou com belas flores silvestres; uma delas / bateu com o tirso numa rocha a fez jorrar / da mesma, num instante, um jato de gua lmpida; / outra, ferindo o cho com a sua varinha / viu esguichar da terra por obra do deus / uma fonte de vinho. As que sentiam falta / do alvo leite, esfregavam no solo os dedos / e o recolhiam de repente em abundncia. / Do tirso recoberto de folhas de hera / pingava o mel

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    mais doce. Ah! Meu senhor e rei! / Por que no estavas presente para ver o espetculo? Gostarias sem dvida de dirigir tu mesmo preces fervorosas ao deus que aqui blasfemas! (EURPIDES, As bacantes, vs. 922-937).

    J destacamos nas linhas precedentes que a arte trgica dos gregos

    surge a partir do coro dos celebrantes dos prodgios de Dionsio, que

    entoavam os ditirambos em sua homenagem: A tragdia teve incio com

    aqueles que iniciaram o ditirambo (ARISTTELES. Potica, 1449a)9. No

    entanto, h que ressaltar que neste primeiro momento da experincia

    trgica dos gregos no havia ainda qualquer expresso dramtica

    convencional, pois que a cerimnia dionisaca era constituda apenas pelo

    coro, o verdadeiro ator, pois no h outro heri10. Por conseguinte, atravs

    do esprito da msica sagrada dedicada ao amado Dionsio que se

    desenvolve a Tragdia tica, inicialmente como um coro de transformados,

    em que todo o passado civil e as posies sociais so esquecidos; esse coro

    se converte em servidor intemporal do deus, vivendo fora de todas as

    esferas sociais (NIETZSCHE, 1996, p. 62-63).

    A sabedoria alcanada com a identificao com Dionsio a do

    permanente devir das coisas e do jogo, aparentemente sem sentido, do

    desfazer de todo o existente (VAZ PINTO, 1989, p. 36). Nietzsche considera

    que o prazer que o mito trgico gera tem sua ptria idntica sensao

    prazerosa da dissonncia na msica. O dionisaco, com o seu prazer

    primordial percebido inclusive na dor, a matriz comum da msica e do

    mito trgico (NIETZSCHE, 1996, p. 141). A viso trgica de mundo nos faz

    9 Para uma compreenso historiogrfica da formao do local onde se representaram as primeiras encenaes trgicas, bem como o contexto poltico que favoreceu a ocorrncia das mesmas, pertinente a leitura de Jacqueline de Romilly, A Tragdia grega, p. 18, e Pierre Grimal, O teatro antigo, p. 14. Alm disso, Daisi Malhadas, em Tragdia grega: o mito em cena, apresenta nesse livro um apndice sobre As Dionisacas Urbanas e as representaes teatrais em Atenas, p. 81-93. 10 Werner Jaeger, na Paidia, p. 312, corrobora abertamente a tese nietzschiana acerca da gnese da tragdia grega a partir do coro, e de que modo ele preponderava na encenao.

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    compreender intimamente que o valor da existncia se encontra presente

    em si mesmo, no seu prprio matiz ontolgico, descartando-se ento a

    pertinncia de qualquer especulao transcendente de mundo, na qual se

    creria na existncia de outra dimenso da realidade, esta sim proclamada

    como a autntica no sentido pleno da palavra. Essa compreenso da

    natureza trgica do existir, destituda de conotaes moralistas, enfatizava a

    necessidade da integrao mtua entre as diversas formas de vida

    singularizadas. Santiago-Guervs comenta que se a arte trgica reflete ou

    representa a vida trgica do mundo, e se o jogo do artista trgico reflete a

    natureza ldica essencial da existncia, ambos, natureza e artista, se

    entregam a criao e destruio mais alm de bem e de mal (SANTIAGO-

    GUERVS, 2004, p. 213.) Conforme Nietzsche expe no ensaio O drama

    musical grego,

    No estado de estar fora de si, do xtase, somente um passo ainda necessrio: que no voltemos a ns mesmos novamente, mas entremos em um outro ser, de modo que nos portemos como encantados. Por isso, o profundo espanto diante do espetculo do drama toca a ltima profundeza: vacila o solo, a crena na indissolubilidade e na fixidez do indivduo (NIETZSCHE, 2005, p. 55-56).

    Alm das figuras fenomnicas, separadas individualmente pelas

    categorias do espao e do tempo, se encontra a grande unidade csmica da

    vida, que rompe as cadeias limitadoras da extensividade material e da

    prpria individualidade. Para explicar essa experincia sagrada, Nietzsche

    enuncia a ideia do consolo metafsico, que seria uma espcie de apangio

    obtido pelo espectador capaz de perceber intuitivamente a condio unitria

    da existncia, cuja fonte vital jamais se esgota, mesmo diante da supresso

    das suas inmeras formas individualizadas:

    O consolo metafsico com que, como j indiquei aqui, toda a verdadeira tragdia nos deixa de que a vida, no fundo das coisas,

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    apesar de toda a mudana das aparncias fenomenais, indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria, esse consolo aparece com nitidez corprea como coro satrico, como coro de seres naturais, que vivem, por assim dizer, indestrutveis, por trs de toda civilizao, e que, a despeito de toda mudana de geraes e das vicissitudes da historia dos povos, permanecem sempre os mesmos (NIETZSCHE, 1996, p. 55).

    Tratava-se, portanto, de uma experincia mstica na qual o carter

    sagrado da vida se revelava ao ntimo do indivduo, sem que houvesse

    qualquer mediao da racionalidade lgica nessa vivncia. Nietzsche

    destaca que

    O stiro, enquanto coreuta dionisaco, vive numa realidade reconhecida em termos religiosos e sob a sano do mito e do culto. Que com ele comece a tragdia, que de sua boca fale a sabedoria dionisaca da tragdia, para ns um fenmeno to desconcertante como, em geral, o a formao da tragdia a partir do coro. Talvez conquistemos um ponto de partida para a nossa indagao, se eu introduzir a afirmao de que o stiro, esse ser natural fictcio, est para o homem civilizado na mesma relao que a msica dionisaca est para a civilizao [...] Da mesma maneira, creio eu, o homem civilizado grego sente-se suspenso em presena do coro satrico; e o efeito mais imediato da tragdia dionisaca que o estado e a sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e outro, do lugar a um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao corao da natureza (NIETZSCHE, 1996, p. 54-55).

    Esse miraculoso prazer esttico decorrente da percepo trgica da

    existncia representa a manifestao insupervel da alegria dionisaca, a

    qual, mesmo ciente da iminncia da morte para todas as formas viventes,

    supera qualquer influncia deletria do pessimismo prtico e faz

    compreender ao homem imerso na experincia dionisaca a unidade

    fundamental que associa morte e vida como instncias indissociveis.

    4 CONSIDERAES FINAIS

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    No decorrer do presente artigo analisamos algumas questes centrais

    da investigao nietzschiana sobre a musicalidade dionisaca presente na

    configurao esttica da Tragdia tica; ressaltando a importncia da

    msica como instrumento transfigurador das representaes existenciais

    cotidianas, torna-se claro que o estado dionisaco se associa imediatamente

    ao esprito da msica, que intensifica e tonifica a existncia humana.

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