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Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 12 - Nº 23 - Jan./Abr. de 2013 97 97 – 136 Ideias e valores: a análise da ação pública a partir das interfaces entre a abordagem cognitiva e a economia das convenções Paulo André Niederle 1 Catia Grisa 2 Resumo O foco diferenciado sobre os interesses, as ideias e as instituições delimita as três principais tradi- ções da análise de políticas públicas. Com efeito, a unidade desses conceitos em um único corpo analítico também define o principal desafio à construção de novas abordagens que deem conta da complexidade da ação pública. O artigo contribui com essa discussão a partir de uma análise das interfaces entre a abordagem cognitiva e a economia das convenções, duas vertentes teóricas fran- cesas que emprestam suas categorias analíticas para a compreensão dos processos de construção e institucionalização de políticas públicas. Esse diálogo permite integrar dispositivos cognitivos e valorativos em uma estrutura institucional que sustenta as redes de política pública. Finalmente, o artigo exemplifica as possibilidades derivadas dessa interface teórica a partir da sugestão de um modelo analítico para o estudo das políticas de desenvolvimento territorial no Brasil. Palavras-chave: Ação pública. Política pública. Ideias. Valores. 1. Introdução A confluência das crises financeira, política e ecológica que configura o contexto internacional, aliada à consolidação das economias emergentes na 1 Doutor em Ciências Sociais pelo Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Uni- versidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) – Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento (PPGMADE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) – Curitiba – Brasil. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Ciências Sociais (CPDA/UFRRJ). Pesquisadora do Observatório de Políticas Públicas para a Agricul- tura (OPPA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) – Brasil. E-mail: [email protected]. KWWSG[GRLRUJYQS

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    Ideias e valores: a anlise da ao

    pblica a partir das interfaces

    entre a abordagem cognitiva e

    a economia das convenes Paulo Andr Niederle1

    Catia Grisa2

    Resumo

    O foco diferenciado sobre os interesses, as ideias e as instituies delimita as trs principais tradi-

    es da anlise de polticas pblicas. Com efeito, a unidade desses conceitos em um nico corpo

    analtico tambm define o principal desafio construo de novas abordagens que deem conta da

    complexidade da ao pblica. O artigo contribui com essa discusso a partir de uma anlise das

    interfaces entre a abordagem cognitiva e a economia das convenes, duas vertentes tericas fran-

    cesas que emprestam suas categorias analticas para a compreenso dos processos de construo

    e institucionalizao de polticas pblicas. Esse dilogo permite integrar dispositivos cognitivos e

    valorativos em uma estrutura institucional que sustenta as redes de poltica pblica. Finalmente,

    o artigo exemplifica as possibilidades derivadas dessa interface terica a partir da sugesto de um

    modelo analtico para o estudo das polticas de desenvolvimento territorial no Brasil.

    Palavras-chave: Ao pblica. Poltica pblica. Ideias. Valores.

    1. Introduo

    A conuncia das crises nanceira, poltica e ecolgica que congura o contexto internacional, aliada consolidao das economias emergentes na

    1 Doutor em Cincias Sociais pelo Curso de Ps-Graduao em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Uni-

    versidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) Brasil. Professor do Programa de Ps-Graduao em

    Meio Ambiente e Desenvolvimento (PPGMADE) da Universidade Federal do Paran (UFPR) Curitiba Brasil.

    E-mail: [email protected]

    2 Doutora em Cincias Sociais (CPDA/UFRRJ). Pesquisadora do Observatrio de Polticas Pblicas para a Agricul-

    tura (OPPA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Brasil. E-mail: [email protected].

    KWWSG[GRLRUJYQS

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    nova geopoltica mundial, tem revitalizado justicativas de re-legitimao da ao estatal em diferentes domnios da vida social. Mesmo que a congurao precisa desse processo ainda seja objeto de intensas controvrsias, um entendi-mento comum tem sido produzido acerca da necessidade de conceber novos referenciais de atuao do Estado em um contexto de crise do neoliberalismo (DUMNIL; LEVY, 2011). Neste sentido, ao mesmo tempo em que diversos pases reconstroem o aparato estatal para dar sustentao a uma nova gerao de polticas pblicas, proliferam teorias que buscam elucidar o novo contexto em que essas polticas so construdas e implementadas.

    No Brasil, uma das mudanas mais signicativas diz respeito s impli-caes do processo de descentralizao da formulao e execuo das polti-cas pblicas. Se na dcada de 1990 esse processo transcorreu como parte de uma estratgia deliberada de reduo da interveno do Estado em diferen-tes setores, atualmente a descentralizao tambm pode congurar-se como um elemento potencializador da sua ao. Face ausncia do poder estatal, a ascenso da sociedade civil foi, outrora, responsvel por estabelecer novos mecanismos de governana participativa, os quais, hoje em dia, mantm-se e ampliam-se com a retomada da capacidade de atuao do Estado. Na realida-de, esses mecanismos tornaram-se os principais responsveis por viabilizar o novo papel conferido tanto ao Estado quanto sociedade civil (DAGNINO, 2002; GOHN, 2004).

    Em oposio ao modelo clssico de poltica pblica concebida por um Estado centralizado, atuando sobre setores bem denidos e delimitados, cres-cem as anlises que buscam acercar-se dos mecanismos da ao pblica, uma denio que acentua o conjunto das interaes entre os vrios atores que participam da construo, implementao, monitoramento e avaliao das polticas pblicas em seus mais variados nveis (MASSARDIER, 2008; LASCOUMES; LE GALS, 2009; HASSENTEUFEL, 2008). Essa concep-o no reduz o papel do Estado, mas o dene em sua interface cada vez mais evidente com outras institucionalidades. De fato, uma nova gerao de polticas pblicas tem demonstrado que a prpria fronteira entre os trs com-ponentes da ontologia de Claus Oe (1999) estado, mercado e sociedade civil torna-se cada vez mais nebulosa.

    Diretamente associadas consolidao dos processos de participao e coconstruo da ao pblica, as mudanas nas redes de polticas pblicas

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    tambm se associam a transformaes mais ou menos radicais nas instituies que orientam os papis e as condutas dos diferentes atores. Assim, alm de redes mais heterogneas, percebe-se um processo de hibridizao dos valores, representaes e princpios normativos que regem a ao pblica. Isso resul-tado da constituio de fruns e arenas no interior dos quais organizaes at ento isoladas e sem expressividade passam a interagir de maneira dinmica. A importncia renovada das instncias de concertao social, como os conselhos e colegiados, faz com que a disputa por recursos envolva cada vez mais lutas por legitimao e reconhecimento (HONNETH, 2003). Essas lutas colocam em evidncia novas ideias, representaes e valores que questionam as insti-tuies estabelecidas e passam a exigir a formao de novos compromissos para orientar a ao do estado e da sociedade civil. Ademais, em face deste contexto, abrem-se novos desaos anlise de poltica pblica, provocando a construo de abordagens inovadoras que integrem os diferentes componen-tes da ao pblica em um nico poliedro conceitual.3

    At hoje o foco diferenciado sobre os interesses, as ideias ou as instituies foi responsvel por delimitar as trs principais tradies de anlise das polticas pblicas (HALL, 1997; GRISA, 2011; FLEXOR; LEITE, 2007). Analisar as polticas a partir dos interesses consiste em identicar os atores concernidos, as lgicas da ao coletiva, os clculos e as estratgias desenvolvidas em funo dos custos e benefcios esperados da ao, assim como as consequncias das antecipaes feitas pelos indivduos ou pelas organizaes envolvidas na ao pblica. Por sua vez, uma leitura centrada nas instituies interroga a in!u-ncia das regras, prticas e quadros mentais do passado no comportamento presente dos atores pblicos e privados. Demanda um investimento histrico para identicar os recursos e os constrangimentos institucionais que regem as interaes no mbito da poltica pblica e para testar a solidez dessas insti-tuies (PALIER; SUREL, 2005). De outro modo, a abordagem cognitiva de anlise das polticas pblicas enfatiza as ideias compartilhadas pelos ato-res na construo da sua relao com o mundo (MULLER, 2008; SUREL, 2000).4 Nessa perspectiva, o foco recai sobre o conjunto de representaes e

    3 Cabe sublinhar a importncia, aludida por vrios autores, de ir alm dos estudos setoriais que caracterizam

    a maior parte da produo brasileira sobre polticas pblicas, os quais expandem-se horizontalmente sem

    necessariamente dinamizar inovaes terico-analticas (ROMANO, 2009; SOUZA, 2003; MELO, 1999).

    4 Abordar o papel das ideias no uma exclusividade da abordagem cognitiva. Sabatier e Schlager (2000)

    demonstram que dimenso cognitiva considerada por diferentes perspectivas de anlise que vo desde a

    escolha racional at os estudos de poltica pblica comparada e o modelo de multiple stream.

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    esquemas de interpretao que sustentam as aes pblicas, ou seja, as pol-ticas pblicas so interpretadas como construdas pelas crenas comuns que denem o modo como os atores (pblicos e privados) percebem os problemas sociais e concebem respostas para os mesmos.

    O principal mrito da abordagem cognitiva, notadamente a perspectiva construda por Bruno Jobert e ve Fouilleux, o modo como pauta as dispu-tas que envolvem a produo de referenciais de polticas pblicas, destacan-do os espaos onde elas acontecem (fruns e arena), assim como a maneira de decifrar como distintos atores criam representaes que sustentam esses referenciais. Ademais, diferentemente de outras abordagens, esta proposta no toma as ideias como dadas. A preocupao central est nos processos de cons-truo das ideias e como elas institucionalizam-se em polticas pblicas.

    No obstante, dentre os principais limites desta abordagem, em primeiro lugar cita-se o uso despreocupado que alguns autores fazem da noo de ideias, o que leva a perda de sua capacidade heurstica (FAURE; POLLET; WARIN, 1995; SUREL, 2006). Sem uma indicao precisa do que elas con-guram e do modo como apreend-las na realidade social, no raro as ideias abarcam um amplo leque de instrumentos cognitivos, englobando inclusive normas e valores. Alm disso, alguns autores sugerem uma valorizao excessi-va das variveis cognitivas, o que conduziria a utilizaes meramente retricas que desconectam as ideias das lgicas institucionais e dos interesses que condi-cionam as estratgias dos atores (SUREL, 2006; FOUILLEUX, 2003; 2000). Com isso, a abordagem cognitiva, bem como outras vertentes analticas, continuamente desaada a incorporar os trs is da anlise de polticas pbli-cas ideias, interesses e instituies (PALIER; SUREL, 2005; SUREL, 1998).

    Neste artigo buscamos colaborar com essa discusso sugerindo que um quadro terico integrando ideias, instituies e valores pode ser constru-do a partir de uma profcua interlocuo entre a abordagem cognitiva e a economia das convenes (EYMARD-DUVERNAY, 2009; BOLTANSKI; THVENOT, 1991). Embora inicialmente focada nos aspectos cognitivos da ao econmica, a corrente convencionalista dirigiu-se para uma interpreta-o institucionalista que destaca o papel dos valores na construo de justi-cativas que do suporte s representaes, aos interesses e s estratgias dos atores. Como ser analisado ao longo do texto, o artigo sugere que os prin-cpios normativos sublinhados pelos tericos das convenes oferecem uma

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    complementao aos instrumentos cognitivos. Os valores emergem como princpios que legitimam as ideias e os interesses, oferecendo um fundamento moral para os compromissos que fundam a ao pblica em uma ordem negociada por diferentes atores. Por sua vez, a abordagem cognitiva empresta economia das convenes uma leitura dos dispositivos coletivos mais prxi-mos realidade dos atores, que no recorrem necessariamente a valores para construir seus discursos e prticas. Na realidade, esse processo de traduo entre princpios cognitivos (ideias) e quadros normativos (valores) feito por um conjunto de mediadores/porta-vozes que participam de maneira privile-giada da construo da ao pblica.

    O artigo est organizado em cinco sees, alm desta introduo. Pri-meiro, retomamos o debate sociolgico acerca da dualidade entre abordagens interacionistas e institucionalistas. Esta seo introduz o argumento de que tanto a abordagem cognitiva quanto a economia das convenes constituem um complemento institucional s interpretaes que privilegiam o conceito de redes de polticas pblicas. De uso corrente no Brasil, a noo de redes e suas implicaes tericas sero discutidas complementarmente ao longo do artigo. Por sua vez, as duas abordagens francesas que compem o eixo central da reexo terica so pouco conhecidas do pblico brasileiro. Em que pese o crescente apelo que ambas vm recebendo, suas categorias analticas no so de domnio corrente. Assim, a segunda seo dedicada apresentao da economia das convenes, selecionando os conceitos que interessam ao objetivo da anlise da ao pblica. Do mesmo modo, a seo subsequente analisa o desenvolvimento da abordagem cognitiva. A quarta seo explora as interfaces entre as abordagens. Finalmente, o artigo discute as possibilidades de aplicao do modelo analtico poltica brasileira de desenvolvimento ter-ritorial e aponta elementos para uma agenda de pesquisa.

    2. O enraizamento normativo e cognitivo da ao pblica

    Diversos autores analisam a formulao e implementao de polticas pblicas a partir da formao de uma rede social que articula indivduos e organizaes (RHODES, 2006; HASSENTEUFEL, 1995; MARQUES, 2000). Sem negligenciar a importncia das estruturas reticulares anlise da ao pblica, este artigo focaliza elementos que, de modo geral, tm recebido menor ateno nos estudos que adotam o referencial das redes, qual seja, os

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    componentes cognitivos e normativos que denem uma estrutura de senti-do para os atores da rede (MULLER; SUREL, 2004). Em outras palavras, o artigo argumenta que, mesmo tomando a rede como estrutura de anlise da ao pbica, isso no exime o pesquisador de compreender o papel crucial desempenhado pelas representaes e pelos valores.

    Amplamente sublinhada pelas abordagens institucionalistas, essa com-preenso centrada nas estruturas valorativas e cognitivas da ao desaparece em muitas anlises interacionistas que focalizam o funcionamento das redes de polticas pblicas. Por outro lado, naquelas perspectivas onde elas geral-mente so encontradas, muitas vezes essas estruturas encontram-se reicadas. Assume-se a importncia inequvoca das instituies, mas nenhuma expli-cao dada para o modo como elas so efetivamente incorporadas na ao social sem encapsular os atores em explanans que predizem suas condutas retomando a expresso clssica de Hempel e Oppenheim (1948).

    Em primeiro lugar, imperativo reconhecer que as referncias institucio-nais no se formam fora das redes sociais e so fundamentais para a existncia e estabilizao das interaes. Um preceito deste raciocnio que as prprias polticas emergem como resultado de um acordo coletivo que se processa em um ambiente social de disputas normativas. Ao mesmo tempo em que se supera a concepo naturalizada das instituies, destaca-se que as dimenses cognitivas e valorativas tm como origem a interao social. Ideias, crenas e representaes no se formam fora da ao situada, mas enraizadas em di-ferentes contextos sociais. Contudo, como sublinha a tradio dos estudos sobre path dependence (MAHONEY, 2001), as instituies tambm carregam consigo memrias que reduzem as possibilidades dos atores. Sobre a ao so-cialmente situada pesam os constrangimentos de leis, normas, regras e con-venes denidas previamente.

    Dentre os autores que destacaram o componente de enraizamento da ao social, Granovetter (1985) seguramente merece destaque. Buscando afastar-se de vises subsocializadas que atomizam os atores isolando-os do seu contex-to social imediato, mas igualmente rejeitando as leituras sobressocializadas portadas por algumas anlises institucionalistas, as quais priorizam disposi-es e esquemas de percepo que encapsulam os atores por meio de regras e normas generalizadas, o fundador da nova sociologia econmica construiu uma perspectiva que torna as instituies re%exos da conformao de redes

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    interpessoais (NEE; INGRAM, 1998). Disto resulta um conjunto de crticas ao absolutismo socioestrutural das abordagens de redes sociais (ZELIZER, 2003), incapazes de apreender o enraizamento cognitivo, poltico e cultural da ao individual (ZUKIN; DiMAGGIO, 1990).

    Segundo Beckert (2007), o principal equvoco estaria em retirar o com-ponente poltico-institucional da ao social, isolando unicamente o aspecto reticular das relaes entre os atores. Nesse caso, corre-se o risco de negligen-ciar as estruturas institucionais que oferecem sentido ao, de modo que resta ausente da teoria uma explicao para como as redes emergem e para as conguraes especcas que as diferenciam. De outro modo, a econo-mia das convenes sugere que a existncia das redes depende crucialmente da formao de acordos valorativos. Como armam Eymard-Duvernay et al. (2005), a dimenso sociocognitiva associada s abordagens de redes no su-ciente para considerar operaes de julgamento que dependem de uma leitura poltica centrada em valores. Em outras palavras, a anlise da ao pblica no pode desconsiderar as ferramentas cognitivas e valorativas que os atores sociais desenvolvem para estabilizar as interaes, construir compromissos e formular polticas. Ambos, normativo e cognitivo, denem a estrutura e o desenho da rede. Caso contrrio, no h nenhum princpio comum que ordene as relaes sociais, de modo que as mediaes simblicas e valorativas so dissolvidas em um tecido sem costura e sem m (VANDENBERGUE, 2006).

    Desde uma leitura convencionalista, %venot (2001) sustenta que a no-o de rede particularmente atraente porque permite descrever uma ampli-tude de entidades que geralmente so desconsideradas por outras perspec-tivas tericas. Contudo, segundo o autor, esta noo tende a negligenciar a heterogeneidade de laos para o benefcio de uma imagem unicada de entidades interconectadas (THVENOT, 2001, p. 408). Essa crtica tem sido incorporada pelos tericos das redes sociais, os quais esboam modelos alternativos para explicar a estabilizao das mesmas. No modelo proposto por White (2008), o qual, inclusive, tem sido marcado por um crescente intercruzamento com as anlises convencionalistas (veja FAVEREAU, BIENCOURT; EYMARD-DUVERNAY, 2002; LAZEGA; MOUNIER, 2002), so incorporadas noes estruturantes que disciplinam as aes indi-viduais. Assim, instituies e estilos, diferenciados pelo seu nvel de general-idade e formalizao, oferecem signicados ao, bloqueando a livre circu-lao nas redes (WHITE, 2008).

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    Retomando o programa de pesquisa lanado por Lazega e Favereau (2002), a questo fundamental compreender como as lgicas instituciona-lizadas podem operar conectadas heurstica das redes. Nossa perspectiva analtica no , nalmente, to distante do conceito de rede, mas ela destaca muito mais explicitamente o papel das ideias e das controvrsias no processo poltico e na ao pblica (FOULLIEUX, 2003, p. 36). Trata-se de uma perspectiva que sublinha a necessidade de os atores tomarem conscincia do carter normativo que envolve as aes pblicas. Esse carter revela-se, de modo mais ou menos explcito, em diferentes instrumentos institucionais: normas, leis, regras, regulamentos etc. Para a anlise, isso exige um trabalho que envolve desde a cartograa dos atores visando saber quem participa da denio das normas da ao pblica, at a identicao e reconstruo dos objetivos da poltica. Ademais, nesse caso atenta-se para no considerar uma poltica pblica apenas quando suas aes e decises passam a formar um todo coerente, estabilizado em normas e instrumentos. Existe um processo anterior de disputas normativas que interessa, sobretudo, aos estudos sobre formulao de polticas pblicas.

    3. A perspectiva convencionalista

    Reivindicada enquanto uma corrente especca do pensamento econ-mico no nal dos anos 1980, a economia das convenes rene um conjunto de estudiosos preocupados em construir uma nova interpretao dos fen-menos econmicos, contrapondo-se aos preceitos utilitaristas da economia neoclssica. Em que pese diferenas conceituais ainda signicativas no interior desta escola, seus autores convergiram em torno de uma agenda de pesquisa que posiciona as convenes como fundamento de uma nova arquitetura terica utilizada para analisar o comportamento dos atores e das organizaes (NIEDERLE, 2011).5

    A origem da noo de conveno comumente atribuda ao lsofo ame-ricano David Lewis, cujo trabalho analisou a natureza estratgica do com-portamento dos indivduos em episdios da vida cotidiana. Baseado em uma

    5 Inicialmente dedicada anlise do funcionamento dos mercados e das organizaes, at recentemente as

    formulaes da economia das convenes eram menos presentes no universo de pesquisas sobre polticas

    pblicas. Suas categorias adentram com maior expressividade nesse debate em trabalhos mais recentes

    (EYMARD-DUVERNAY, 2008; VERDIER, 2006; BATIFOULLIER; GADREAU, 2006).

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    noo de common knowledge, Lewis (1969) construiu uma noo instrumen-tal, completamente desprovida de carter normativo e moral. Para ele, uma conveno o resultado de uma regularidade comportamental que deriva de um saber compartilhado entre os agentes: um re#exo de cada indivduo ao que ele espera ser o comportamento dos demais supondo seu prprio compor-tamento. Fundadora de uma vertente que dialoga com os modelos matem-ticos da teoria dos jogos (BATIFOULIER, 2001), essa perspectiva estratgica das convenes foi objeto de crtica em virtude de carter radicalmente an-tissocial, uma vez que o espelhamento innito dos agentes (cada indivduo sabe que os demais so perfeitamente racionais) levaria a um individualismo metodolgico extremo (DUPUY, 1989).

    De outro modo, a vertente francesa da economia das convenes apro-priou-se do termo, mas acrescentou-lhe um carter pragmtico e interpretati-vo, denindo sua construo a partir de um contexto de comunicao verbal. Nesta perspectiva, uma conveno congura um quadro normativo cuja mo-bilizao pressupe engajamento moral. Trata-se de uma viso compartilhada do mundo que orienta os atores no desenvolvimento de suas prticas. No simplesmente uma rotina ou um hbito, haja vista que ela somente tem sen-tido dentro de um coletivo social. um esquema de interpretao construdo atravs da interao social, mas que se apresenta aos atores de forma objetiva-da e implcita, como um preceito de ordem moral, de modo que ela se impe arbitrariamente aos indivduos sem que eles questionem a possibilidade de comportamentos alternativos.

    Esse entendimento fruto de uma construo recente e ainda no to-talmente estabilizada no seio dos debates convencionalistas. Em que pese polifonia do termo em sua origem, ora descrito como um sistema de conhe-cimentos compartilhado (Salais, 1989), ora como um sistema de represen-taes (Eymard-Duvernay, 1989), o fato que sua primeira acepo esteve mais prxima quela reivindicada por Orlan (1989) e Favereau (1989), que a associa a um dispositivo cognitivo coletivo. Somente aps alguns anos de discusso emerge uma noo mais diretamente vinculada ideia de princpio normativo fundado sobre julgamento de valor moral.

    Segundo Batifoulier e Larquier (2001), a maior diferena entre a peque-na conveno componente da racionalidade dos atores e a grande conven-o normativa que esta comporta um imperativo de justicao. Ou seja,

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    ela precisa ser publicamente legitimada com base em um princpio superior, o que a torna, nalmente, um mundo comum justicado. De fato, a partir de ento que a ideia de mundo ou cit se tornar central nessa acepo valorativa do termo. No por acaso que, doravante, o desenvolvimento da teoria das convenes vai receber um impulso fundamental da sociologia e, em especial, do trabalho seminal de Boltanski e $venot (1991), cujo mo-delo passar a constar nos principais debates convencionalistas at o presente.

    Boltanski e $venot (1991) preocupam-se fundamentalmente com as operaes de classicao levadas a cabo pelos indivduos em suas atividades de julgamento. Essas atividades so responsveis por lhes propiciar um mundo social inteligvel, constituindo uma condio indispensvel para a coordena-o de suas aes. O processo de classicao est na base da formao de acordos e da criao de princpios comuns que permitem aos atores se enten-derem e conduzirem as trocas sociais. A estabilidade das relaes entre os ato-res passa a ser vista como o resultado dos investimentos que eles fazem para criar dispositivos convencionais que lhes rendem certa estabilidade frente a um espao de mltiplas possibilidades (THVENOT, 1986). Por m, a coordenao depende da construo de mecanismos que permitam s pessoas associar as prticas e os discursos a diferentes noes de justia e bem comum.

    Segundo os autores, comumente as interaes sociais transcorrem com base em equivalncias estabelecidas no curso de um processo histrico de construo de quadros normativos. A maior parte da vida segue seu curso sem a necessidade de as pessoas e organizaes estabelecerem um novo acordo a cada instante que precisam interagir. Esse basicamente o papel das insti-tuies enquanto um meio de recursos objetivos e normativos que permite coordenar a vida social. Porm, existem momentos crticos em que as ins-tituies estabelecidas so objeto de contestao (BOLTANSKI, 2009).6 So situaes em que as instituies so questionadas e colocadas prova por uma realidade emergente. Momentos que catalisam a atividade re3exiva dos indi-vduos, os quais so impelidos a encontrar mecanismos que permitam sair da situao transitria de incerteza e con3ito.

    6 De outro modo, nos momentos prticos em que as equivalncias esto estabelecidas, as pessoas buscam se

    distanciar da inquietude provocada pelas crticas, minorando as diferenas e fechando os olhos para elemen-

    tos que podem introduzir incertezas. Nestes momentos reina a tolerncia sobre tudo aquilo que diferente e

    procura-se agir de modo a retardar a disputa tanto quanto possvel (BOLTANSKI, 2009).

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    Nesses momentos estabelece-se um cenrio de disputas em relao de-nio dos meios que sero utilizados para solucionar os problemas e, exceo dos contextos de violncia aberta, exige-se um amplo processo de negociao no qual os atores so obrigados a justicar publicamente seus interesses. Essas justicaes precisam fundar-se em princpios legtimos, caso contrrio as es-colhas operadas sero alvo permanente de novas crticas, at o momento em que um acordo baseado em princpios de ampla generalidade se imponha. Aqui se dene a originalidade da economia das convenes ao sustentar que as justicaes construdas pelos atores devem referir-se a um princpio superior comum e legtimo. Embora cada ator tenha seus prprios interesses, ele no pode extrair da uma justicava para que todos aprovem uma determinada norma ou regra. Os interesses precisam ser justicados sob outras bases que no aquelas do prprio interesse, ou seja, fundados em princpios valorativos que remetem a ordens de grandeza mais amplas, associadas a distintas no-es sobre o que justo.

    O trabalho que se impe, ento, identicar quais so essas ordens de grandeza. Fundamentando-se em diferentes noes de justia buscadas nos escritos clssicos da losoa poltica, Boltanski e venot (1991) propem um modelo fundado em seis cits, ou mundos de justicao, cada um de-les organizado sob diferentes valores: Inspiracional (criatividade); Domstico (lealdade/conana); Opinio (reputao); Cvico (representao); Mercado (competitividade/preo); Industrial (produtividade/ecincia). Cada um desses princpios constitui uma gramtica que estrutura o comportamento dos atores e dotado de sua prpria coerncia e legitimidade. Assim, rompendo com o determinismo econmico e tecnocrtico que marca grande parte do trabalho de formulao e avaliao de polticas pblicas pautado pelos trs es dos manuais de administrao: ecincia, eca e efetividade , estes mundos so vistos de modo no hierrquico, todos representando formas igualmente legtimas de justicao.7 Esse pluralismo sugerido pela economia das convenes oferece uma matriz analtica para compreender polticas cuja

    7 As ordens de grandeza so historicamente construdas e a lista destes princpios no est fechada (BOLTANSKI; THVENOT, 1991, p. 92). De fato, muitos dos debates ocorridos no interior da economia das convenes posteriores ao modelo sugerido em De la Justification deu-se em torno do reconhecimento de novas ordens de grandeza. Um verdadeiro movimento foi iniciado procura da stima cit, retomando os termos de Latour (1995) quando este discute a pertinncia de a ecologia constituir uma ordem prpria em vista da impossibilidade de ela ser dissolvida dentro daquelas seis at ento apresentadas.

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    legitimidade recai sobre uma complexa conjuno de valores, abarcando, por exemplo, desde a gerao de emprego e renda, at a conservao do patrimnio natural e cultural.

    Se, por um lado, o modelo sugere evitar a hierarquizao de modo apriorstico das ordens valorativas (cits), por outro, preciso reconhecer que as formas de justi!cao que elas engendram convivem em estado de tenso permanente, umas resistindo a invaso das outras e tentando impor seu modo de coordenao. As tenses opondo os projetos pessoais e a necessidade de seguir as regras estabelecidas por um coletivo (associao, cooperativa) expres-sam di!culdades de integrao dos mundos domstico e cvico. Por sua vez, o con#ito entre os mundos domstico e industrial amplamente pronunciado quando da emergncia de uma poltica de inovao tecnolgica que incre-menta e!cincia aos processos produtivos mas coloca em risco a reproduo de populaes tradicionais e de seus costumes e prticas. Em cada poltica pblica existe uma composio espec!ca de valores legtimos que de!nem seu modo de coordenao, no interior do qual alguns impem-se perante os demais. Assim, a hierarquizao dos valores no uma decorrncia da teoria (rompendo, por exemplo, com o economicismo utilitarista), mas o resultado do modo como os prprios atores sociais coordenam suas aes.

    A partir dessa construo fundada em princpios valorativos, a economia das convenes prope uma abordagem institucional que permite exami-nar a substncia dos laos sociais que unem os atores em redes (BIGGART; BEAMISH, 2003). Trata-se de uma perspectiva que exige a anlise de um movimento de generalizao em direo a estruturas ideais que integrem os ele-mentos valorativos que do sentido ao. Para que a ao pblica constitua-se de modo perene, preciso que os atores entrem em acordo sobre um conjunto de normas que de!nem como os instrumentos sero desenhados. Normas e regras so necessrias porque elas de!nem uma orientao cognitiva e moral.

    Contudo, enquanto para os interacionistas as normas e regras so o pro-duto (a posteriori) da ao situada, de modo que a coordenao se estabelece no nvel mais elementar da associao entre atores no interior da rede social, a economia das convenes acrescenta que as regras precisam ser interpretadas, de onde advm a necessidade de ascender s estruturas institucionais mais am-plas que conformam um quadro valorativo onde os atores buscam ferramentas para interpret-las (POSTEL; SOBEL, 2006). A construo do modelo de

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    mundos de justicao pressupe esse movimento de monte en gnralit que visa reconhecer ordens de grandeza comuns a partir das quais pode-se estabelecer parmetros mnimos de coordenao. Neste caso, a prpria for-mao de uma rede, frum ou arena de poltica pblica, depende da possibilidade de os atores entrarem em acordo sobre o que os une (e construir sistemas de classicao).

    Nesses termos a questo fundamental passa a ser: como construir uma abordagem institucional sem ser excessivamente globalizante perdendo de vista os atores sociais? Como ascender s alturas ideais dos mundos sem desconsiderar os mecanismos cognitivos menos diretamente constrangidos por justicaes generalizantes? A resposta a essas questes desenvolve-se a partir do reconhecimento de um segundo tipo de pluralismo relacionado aos mltiplos nveis convencionais existentes entre as formas generalizantes de coordenao fundadas em valores morais (os mundos) e aqueles mecanismos mais localizados e personalizados (os dispositivos cognitivos). Resultado de um aprofundamento analtico mais recente no interior da abordagem con-vencionalista, esse pluralismo vertical (os diferentes mundos sendo o hori-zontal) acena necessidade de reconhecer diferentes graus de generalidade ou publicidade das convenes. uma tentativa de diferenciar a noo genrica de conveno, enquanto mundo comum justicado, de formatos locais de coordenao (THVENOT, 2001).

    Aqui busca-se reconhecer que, s formas de coordenao repousando so-bre princpios gerais de ao, necessrio adicionar formas de coordenao mais locais, que mobilizam os atores sociais e encontram-se mais prximas das pessoas (EYMARD-DUVERNAY, 2006). A questo precisamente articular os dois nveis da coordenao, descendo at os dispositivos de coordenao particulares a cada contexto ou grupo social, buscando acercar-se dos aspec-tos mais tcitos ou informais, e reascender a um plano macro que permita construir uma abordagem unicada dos dispositivos de coordenao da ao pblica. Este movimento de circulao entre diferentes nveis de governana traz para o primeiro plano da anlise uma discusso sobre o papel dos inter-medirios ou mediadores (BOLTANSKI; CHIAPELO, 1999). So atores que se encontram de modo cada vez mais evidente em distintos espaos pbli-cos e os responsveis pelo processo de traduo que deve existir entre os dispositivos cognitivos e valorativos. Por um lado, eles trabalham para denir

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    uma legitimidade moral s ideias e representaes construdas pelos atores; por outro, eles conectam os dispositivos valorativos ao discurso e s prticas efetivamente pronunciados pelas pessoas, as quais no recorrem necessaria-mente a princpios morais para justicar condutas e interesses.

    4. A abordagem cognitiva de anlise da ao pblica

    Diferentemente da economia das convenes, mas no mesmo perodo histrico, a abordagem cognitiva nasce diretamente associada ao debate sobre o papel das ideias na construo das polticas pblicas, as quais, por sua vez, so compreendidas como o resultado de interaes sociais que do lugar produo de representaes comuns. Como arma Surel (2000), as polticas pblicas so analisadas como um constructo derivado das crenas compar-tilhadas por um conjunto de atores pblicos e privados, as quais denem a maneira como estes interpretam e concebem respostas para os problemas pblicos.

    Atualmente, a abordagem cognitiva vem sendo discutida com maior n-fase em pases como Frana, Estados Unidos e Inglaterra, mas a partir de noes distintas. Tal qual a economia das convenes, longe de con$uir para uma perspectiva unicada, a abordagem cognitiva comporta diferentes in-terpretaes. A unidade terica provm da centralidade conferida s ideias, mas, para alm disso, o que se nota uma proliferao de noes e categorias analticas que incluem distintas terminologias: referencial, frum, arena, pa-radigma, sistema de crenas, narrativas, discursos etc.

    No seio deste conjunto heterodoxo, a perspectiva que enfatiza a noo de referencial ganhou certo destaque. Desenvolvida por Jobert e Muller (1987), ela dene as polticas pblicas como processos por meio dos quais so elaboradas representaes coletivas para compreender e agir sobre o real. Em outras palavras, a elaborao de uma poltica pblica envolve a construo de uma representao da realidade sobre a qual se intervm e, por meio desta imagem denominada referencial de poltica pblica, os atores interpretam os problemas, confrontam possveis solues e denem suas aes.8

    8 Para Jobert e Muller (1987), o referencial de uma poltica pblica pode decompor-se em dois elementos:

    referencial global e referencial setorial. O referencial global refere-se a um quadro geral de interpretao do

    mundo, superando os limites de um setor, de um domnio ou de uma poltica. Trata-se da [...] representao

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    Jobert (1992) concebe os referenciais a partir de trs dimenses: cogniti-va fornece os elementos de interpretao causal dos problemas; normativa de$ne os valores que so necessrios respeitar para o tratamento do proble-ma; e instrumental de$ne os princpios de ao. Por sua vez, Muller (2008) de$ne a construo de um referencial a partir da articulao de quatro nveis integrados de percepo do mundo: a) os valores, vistos como representaes mais amplas e fundamentais sobre o que bom ou mau; b) as normas esta-belecidas entre o real observado e o real desejado, de$nindo os princpios de ao mais que os valores; c) os algoritmos concernentes s relaes causais que exprimem uma teoria da ao e; d) as imagens, que so elementos cognitivos que fazem sentido imediatamente e representam simpli$cadamente os vetores dos valores, normas e algoritmos. Para ambos os autores, nota-se que o papel conferido aos valores transparece em um nvel superior de composio dos referenciais.

    Os referenciais construdos pelos atores em um jogo de dominao e dis-putas tomam a forma de verdades, mais difceis de serem contestadas na medida em que se revelam e$cazes para dar sentido ao mundo vivido pelos agentes (MULLER, 2005). Essas matrizes cognitivas e valorativas tendem a autonomizar-se em relao ao seu processo de construo e a impor-se aos atores como modelos dominantes de interpretao do mundo. Os referencias so, simultaneamente, constrangimentos estruturais e o resultado do trabalho sobre os sentidos efetuados pelos atores.

    Em estreita relao com a perspectiva dos referenciais, mais recentemen-te outra vertente vem discutindo o papel das ideias a partir das noes de frum e arena de polticas pblicas. Inicialmente proposta pelo prprio Jobert (1995; 1994; 1992) em resposta s crticas dirigidas ao livro Ltat en

    que uma sociedade faz da sua relao com o mundo em um momento dado (MULLER, 2008, p. 65) e em

    torno desta representao geral que sero hierarquizadas as diferentes representaes setoriais. O referencial

    setorial diz respeito s representaes de um setor, entendido, segundo Muller (2005), como uma estrutura

    vertical de papis sociais que congrega regras de funcionamento, elabora normas e valores especficos e de-

    limita suas fronteiras. De modo simplificado, um setor formado por um conjunto de problemas associados

    de maneira mais ou menos institucionalizadas a certas populaes. Ambos, referencial setorial e referencial

    global, encontram-se articulados ou tensionados para que assim seja. Para os autores desta perspectiva, as

    mudanas ou a construo de uma nova poltica pblica so resultados de alteraes no referencial setorial

    no sentido de ajust-lo ao referencial global. Realizando as operaes de confluncia global/setorial e me-

    diando as relaes de poder encontram-se mediadores que conectam dois espaos de ao e de produo de

    sentidos para construir o referencial da poltica pblica (MULLER, 2005).

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    action (obra anterior escrita com Pierre Muller), e, mais recentemente, capi-taneada por ve Fouilleux (2011; 2003; 2000), essa vertente passa a integrar um conjunto de novos desenvolvimentos analticos no interior da abordagem cognitiva.

    Neste caso, as pesquisas voltam-se compreenso das modalidades de produo das ideias e sua emergncia no debate como receitas de ao p-blica (FOUILLEUX, 2000). As ideias sero entendidas como designando um conjunto de representaes, grades de anlise e esquemas de interpreta-o diversos que fazem sentido atravs da sua encarnao em comunidades de atores especcos (FOUILLEUX, 2000, p. 278). Ao centrar-se nas ideias encarnadas em comunidades de atores9, essa perspectiva busca uma articu-lao entre ideias, instituies e interesses, dimenses at ento analisadas se-paradamente e pouco integradas abordagem cognitiva. Compreende-se que os interesses so construes sociais que mobilizam crenas e representaes acerca do mundo, de modo que para defend-los necessrio criar represen-taes sobre o objeto, executar operaes intelectuais de decodicao e recodi-cao da realidade, acionando ideias e sistemas de cognio (JOBERT, 2004; FOUILLEUX, 2003). Por sua vez, as instituies so apreendidas como qua-dros normativos que enquadram as interaes sociais. Isso inclui desde o arranjo formal que dene o sistema poltico (constituio, leis, ministrios) at os pr-prios instrumentos da poltica pblica (normas, manuais, formas de conduta).

    No que tange ao conceito que conforma a pedra fundamental dessa ar-ticulao analtica, frum denido como um espao mais ou menos insti-tucionalizado e especializado, regidos por regras e dinmicas especcas, no qual um grupo de atores debate diferentes vises de mundo (FOUILLEUX, 2009). Existem duas categorias de frum: frum de produo de ideias e frum de comunidades de poltica pblica.

    O primeiro so espaos onde so conformadas diferentes representaes sobre as polticas, as quais variam segundo interesses, identidades, relaes

    9 A noo de comunidade de poltica pblica compreendida aqui de modo distinto daquele como alguns auto-

    res a empregam na abordagem de redes de poltica pblica. Para esses atores, a comunidade caracteriza-se por

    um nmero limitado de participantes que partilham a mesma ideologia, valores e preferncias. Ademais, essa

    perspectiva pressupe uma interao frequente e intensa entre todos os membros da comunidade, os quais

    possuem recursos similares, ocasionando um equilbrio de foras (ROMANO, 2009; MULLER, 2007). De outro

    modo, para Fouilleux (2003), a noo de frum sugere uma composio mais hbrida em que os interesses, as

    representaes e os valores no so necessariamente similares.

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    de poder e institucionalidades especcos. Alm das ideias manipuladas e produzidas sobre uma mesma poltica diferirem nesses espaos, tambm so distintos os critrios de aceitabilidade e coerncia dos discursos, bem como a evoluo das controvrsias e disputas. Para ilustrar, cita-se o trabalho de Jobert (1994) que identicou a inuncia de dois fruns de produo de ideias (o frum cientco e o frum da comunicao poltica) na expanso do neo-liberalismo na Europa.J Fouilleux (2003), estudando as reformas da Poltica Agrcola Comum no contexto europeu, evidenciou a inuncia de quatro fruns de produo de ideias: frum cientco, frum da comunicao poltica, frum dos prossionais agrcolas e frum ambiental. Por sua vez, Grisa (2012) observou a inuncia de cinco fruns de produo de ideias na construo de um conjunto de polticas para a agricultura familiar no Brasil: frum da comunicao poltica, frum cientco, frum da segurana alimentar e nu-tricional, frum da agricultura familiar e frum agroecolgico. Cada frum de produo de ideias agrega atores que atuam mais ou menos no mesmo campo de atividades, como, por exemplo, no governo ou em organizaes de agricultores, ou ainda em centros de pesquisa e ensino.

    Os fruns de produo de ideias seguem dinmicas diferenciadas e apre-sentam referenciais centrais distintos. Referencial central diz respeito ao conjunto de ideias e representaes especcas que so dominantes em um dado frum de produo de ideias, o qual dene os objetivos, enquadra os de-bates, assegura uma relativa estabilidade nas trocas e permite aos atores situa-rem-se e identicarem-se (FOUILLEUX, 2000). Todavia, a construo de um referencial central no impede a existncia de vozes dissidentes que o recusam e o desaam, de modo que uma dinmica de crtica e contestao pode levar desestabilizao das ideias institucionalizadas.10 Esses momentos crticos podem vir tona em uma eleio governamental, na escolha de um novo representante da categoria sindical ou em uma revoluo paradigmtica no frum cientco. Cabe notar, contudo, que a controvrsia presente nos fruns de produo de ideias somente ameaa a estabilidade do referencial central

    10 Fouilleux (2000) alude que a dinmica de construo do referencial central nos fruns de produo de ideias

    do tipo traducional, conforme prope a sociologia de Michel Callon. Neste processo, h a designao

    de um grupo de atores como porta-vozes legtimos do frum e a imposio de suas ideias como referencial

    dominante. Os porta-vozes so legitimados para emitirem suas prprias vises de mundo ao exterior como se

    fossem aquelas do prprio frum.

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    quando os atores dissidentes, antes marginais, adquirirem condies que lhes permitam colocar em questo o referencial dominante (alianas no interior e exterior do frum de produo de ideias, reconhecimento e apoio da opinio pblica, relao com o governo, apoio de organizaes da sociedade civil etc.).

    Por sua vez, o frum de comunidades de poltica pblica espao de encon-tro e discusso dos porta-vozes dos diferentes fruns de produo de ideias, onde h a reutilizao, seleo e institucionalizao das ideias produzidas por estes, convertendo-as em instrumentos de poltica pblica. Enquanto nos f-runs de produo de ideias os atores so relativamente homogneos em ter-mos de campo de atividade em que atuam e as representaes convergem com maior facilidade, no frum de comunidades de poltica pblica a heteroge-neidade torna-se a marca mais expressiva (polticos, intelectuais, pro%ssionais, administradores pblicos, cientistas etc.), tornando inteligvel a heterogenei-dade das representaes em torno de uma poltica pblica (FOUILLEUX, 2000). Assim, existe um processo de circulao de ideias dos diferentes fruns de produo de ideias para o frum de comunidades de poltica pblica, consti-tuindo etapas sucessivas em presena de atores distintos.

    Uma vez institucionalizadas em polticas, as ideias passam a repercutir nos fruns de produo de ideias, in&uenciando e reorientando o debate. Desse modo, os instrumentos da poltica pblica so dispositivos sociotcnicos que organizam as relaes sociais entre o poder pblico e os bene%cirios da po-ltica em funo das representaes e signi%cados que portam, in&uenciando as ideias e interesses (LASCOUMES; LE GALS, 2004). Esses instrumentos no so neutros. Eles portam valores alimentados por interpretaes do social e concepes precisas do problema visado, enquadrando e nutrindo as inte-raes sociais. Trata-se do efeito feedback das polticas pblicas (PIERSON, 2006).

    A in&uncia de cada frum de produo de ideias na construo de uma poltica pblica depende de sua dinmica de funcionamento e dos recursos que ele possui para impor suas ideias. Por exemplo, a ligao entre o frum da comunicao poltica e o frum de comunidades de poltica pblica for-temente institucionalizada. Uma vez que um partido ou coalizo domine o processo de traduo no frum da comunicao poltica (eleio), ele com-pe automaticamente o frum de comunidades de poltica pblica e passa a ser responsvel (juntamente com os gestores e tcnicos administrativos) por

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    construir um compromisso entre os atores que participam deste espao. As-sim, as ideias contidas nos programas eleitorais so diretamente importadas para o frum de comunidades de poltica pblica (no dependem de trocas polticas como nos demais fruns).11

    A atividade principal do frum de comunidades de poltica pblica a produo de suas prprias instituies, especialmente a poltica pblica (FOUILLEUX, 2000). A produo de uma poltica pblica envolve a constru-o de um referencial que a materializao das ideias (e valores) em instrumen-tos de poltica. Este referencial tambm pode ser considerado um referencial central, como aludido acima, todavia, neste caso, trata-se de um referencial hbrido, cujos sistemas de representao que o constituem so oriundos de diferentes fruns de produo de ideias. Nas palavras de Fouilleux (2000, p. 289), o referencial central da poltica pblica de#nido como resultante de uma controvrsia que empresta e reutiliza as ideias oriundas dos deba-tes travados por referenciais de natureza diferentes. Longe de uma coerncia perfeita, o referencial permite explicar a heterogeneidade e as contradies internas que sero encontradas em uma poltica pblica.

    No frum de comunidades de poltica pblica, a dinmica segue a pro-cura por um modo de de#nio da realidade social no qual seja possvel obter um compromisso entre as partes envolvidas para a elaborao da poltica pblica. Enquanto os atores aderirem ao compromisso formado, a poltica pblica segue seu curso normal (Surel,1995), no sendo questionada ou al-terada em grandes propores. Todavia, quando esse compromisso ameaa-do, o frum muda de con#gurao e ingressa em uma fase instvel de renego-ciao do compromisso institucionalizado (momento crtico) onde o debate torna-se visvel ao grande pblico, ainda que no seja facilmente inteligvel (FOUILLEUX, 2000).

    11 Todavia, isso no significa a institucionalizao direta destas ideias, o que depende dos acordos estabelecidos

    com os porta-vozes dos demais fruns de produo de ideias em busca da construo de um compromisso

    entre interesses e concepes heterogneas. A interface entre o frum da agricultura familiar e o frum de

    comunidades de poltica pblica permeada por trocas polticas e negociaes tensas entre a manuteno

    da ordem social, reconhecimento de porta-voz e a elaborao de polticas pblicas, sobretudo distributivas

    e redistributivas. J a ligao do frum de comunidades de poltica pblica com o frum cientfico, outro

    exemplo, envolve demandas de anlises cientficas concernentes relao entre Estado, sociedade e polticas

    pblicas, em troca de retribuies financeiras e simblicas aos experts.

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    A vida de um frum de comunidades de poltica pblica ritmada pela alternncia entre fases de estabilidade e conjunturas crticas, constituindo dois tipos de dinmicas: a) uma congurao frum quando a controvrsia colo-cada em latncia e h a produo rotineira da poltica pblica, com mudanas marginais e incrementais que no questionam a economia geral do compro-misso e; b) uma congurao arena quando o compromisso colocado em xeque e as controvrsias so expostas (conjuntura crtica do frum). Nesse caso, a instabilidade institucional mais suscetvel de traduzir-se em mudan-as de magnitudes maiores ou na criao de uma nova poltica pblica. A estabilidade retomada somente quando h a renovao ou a criao de um novo compromisso.

    A crise no frum de comunidades de poltica pblica pode ter origem seja na tentativa de um ator aumentar seu poder e/ou sua legitimidade modi-cando o compromisso (estratgia ofensiva); seja na vontade de um ator mo-dicar o compromisso para conservar sua legitimidade (estratgia defensiva); ou ainda com a chegada de um ator reivindicando o direito de participar da elaborao da poltica pblica (outro caso ofensivo). Se o compromisso entre os atores no pode ser renovado em decorrncia da crise, as trocas polticas e a legitimidade dos atores detentores de poder cam ameaadas. A crise termina quando se estabelece uma nova situao de estabilidade satisfatria do ponto de vista da repartio dos recursos e da legitimidade de cada um dos atores em funo das relaes de fora existentes.

    5. Integrando ideias e valores anlise da ao pblica

    Como visto acima, o programa fundador da teoria convencionalista for-mou-se em torno de uma noo de conveno concebida como dispositivo cognitivo coletivo. Contudo, o desdobramento das discusses incitou um afastamento dessa compreenso que imputava uma referncia ao indivi-dualismo metodolgico para armar o papel determinante dos valores na congurao de racionalidades cada vez mais interpretativas do que cognitivas (CAILL, 2006).12 Esse deslocamento do cognitivo em direo ao valorativo

    12 imprescindvel referir aqui o vnculo estreito que essa mudana de enfoque da escola convencionalista de um individualismo metodolgico para uma compreenso da ao socialmente situada possui com os des-dobramentos tericos do interacionismo simblico e da etnometodologia, os quais estiveram na base da pers-pectiva pragmatista assumida pela sociologia das convenes (JOAS, 1993). A defesa de uma racionalidade

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    foi analisado por Boyer (2006), para quem a priorizao da esfera dos julga-mentos de valor torna o ator social da economia das convenes um sujeito moral que busca nos valores a legitimao dos mecanismos de coordenao (normas, regras, leis e instrumentos). De fato, parte considervel da contri-buio aportada economia das convenes pelo Grupo de Sociologia Poltica e Moral (GSPM-EHESS) insere-se neste esforo de compreender como os valores medeiam e justicam representaes cognitivas.

    No entanto, esse movimento de generalizao em direo aos valores pode tornar ininteligveis as formas de coordenao mais prximas aos atores. Como armam Bessy e Favereau (2003, p. 131), h uma preocupao de ascenso em generalidade e publicidade na argumentao ao nvel das ci-ts que no se reencontrar necessariamente ao nvel das convenes que permitiro administrar um problema local. Em outras palavras, frequente-mente a priorizao dos componentes valorativos e interpretativos desvia a preocupao da economia convencionalista dos dispositivos cognitivos (ideias e representaes) que estruturam sentidos mais prximos realidade dos in-divduos implicados na ao pblica.

    De outro modo, a abordagem cognitiva procura integrar as ideias a um conjunto de princpios gerais que constituem uma estrutura de referncia para a ao pblica. Ademais, a anlise da dinmica dos fruns tambm busca des-velar a interconexo entre ideias e interesses, denindo uma dinmica de con-%ito social diferente daquela que focaliza a economia das convenes. Aqui necessrio um parntese para tratar especicamente da questo dos interesses e do con%ito concernente ao pblica.

    Para muitos crticos, a concepo de sujeito moral defendida pela econo-mia das convenes retrata sua incapacidade de analisar as relaes de fora e os diferenciais de poder entre os agentes, o que, enm, expressaria uma espcie de preferncia pelo consenso vis--vis a lgica do con%ito (AMABLE; PALOMBARINI, 2005; LIVIAN; HERREROS, 1994; RAMAUX, 1996; PERIN, 2005). De fato, o tipo de con%ito abordado pela economia das con-venes no diz respeito aos interesses dos atores e grupos sociais em luta dentro de um determinado frum ou arena. Trata-se de um tipo especco de

    situada (THVENOT, 1989) e interpretativa (BATIFOULIER; LARQUIER, 2001) particularmente subsidiria dos estudos de Herbert Blumer acerca da racionalidade contextual do ator social.

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    disputa que diz respeito s formas de justicao utilizadas pelos atores para legitimar suas aes. Um conito que se processa em um ambiente institucio-nal que no de guerra e, portanto, que deve ser negociado. Em ltima anli-se, um conito que se desenvolve com vistas produo de compromissos, ou seja, de um tipo especco de acordo valorativo.13

    Isso no signica negligenciar a existncia de outras formas de conito, mas reconhecer a possibilidade de analisar uma categoria especca. Para Bessis (2007, p. 3), essa compreenso no exclui a busca do agente por seu interesse pessoal, mas lhe acrescenta um senso de justia. De acordo com o autor, no se trata de subsituir o interesse pela procura altrusta do bem comum, mas in-tegr-lo dentro de uma explicao mais abrangente que reconhece outras lgi-cas de ao. A inovao radical da proposta convencionalista o imperativo de interpretao e justicao dos interesses. Ainda que os atores persigam seus interesses, a constituio de um acordo obriga-os a justicar suas prticas com base em princpios valorativos. No lugar de seres transparentes ou de seres re-duzidos aos interesses, dos quais eles eram julgados ser a expresso transgurada, os valores morais voltam diante da cena sociolgica como motivos das aes desenvolvidas pelas pessoas (BOLTANSKI, 2002, p. 282).

    Compreender os conitos entre diferentes princpios normativos no ex-clui, todavia, a tarefa de interpretar as disputas que se processam em outros nveis, como aquele das ideias e representaes. Como sugere a Fig. 01, as interfaces analticas entre as abordagens convencionalista e cognitiva possibili-tam uma complementaridade entre nveis de coordenao. Esta permite uma aproximao s lgicas de ao mais prximas aos atores, acercando-se das re-presentaes sociais que estes desenvolvem para dar sentido aos seus discursos e prticas. Aquela revela que as representaes socialmente situadas necessitam de uma estrutura mais ampla que lhes d sentido, os valores. Com isso a teoria das convenes confere um suporte normativo que, apesar de reconhecido

    13 preciso aludir que, aqui, o foco direciona-se aos regimes de justificao, os quais requerem um espao pblico de contestao e crtica. No entanto, existem mundos de ao (CORCUFF, 2001) onde a lgica distinta, podendo constiturem-se estados de amor (regimes de violncia ou agpe) ou formas de coordenao baseados em convenincias pessoais ou utilizao convencional (THVENOT, 2001). Nestes casos, no existe uma dinmica de crtica que d acesso aos valores morais que as pessoas reclamam para justificar suas aes com base em princpios comuns. Particularmente em regimes de extrema violncia, onde a crtica pra-ticamente impossvel, as justificaes desaparecem, assim como a dinmica da construo de compromissos (BOLTANSKI, 2002).

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    pelos autores da abordagem cognitiva, raramente incorporado de maneira efetiva anlise. Por m, interligando os dois nveis existe um conjunto de mediadores responsveis pelos processos de traduo. Esses mediadores de-sempenham um papel fundamental na denio das normas, regras, leis e instrumentos, associando-os s estruturas cognitivas e valorativas.

    Figura 1 - Nveis de coordenao da ao pblica

    Fonte: Elaborada pelos autores.

    A formao desse corpo analtico incorre na necessidade de ajustes con-ceituais de categorias que parecem caminhar umas de encontro s outras. A primeira referncia neste sentido diz respeito ao modo como a proposta de Fouilleux (2003) concebe as ideias como representaes encarnadas nos atores, ao passo que a economia das convenes assume que os indivduos movem-se entre diferentes valores. No primeiro caso, as ideias pertencem aos atores de modo que h uma identidade mais ou menos estvel entre as repre-sentaes e os interesses. No segundo, assume-se que o mesmo ator, em difer-entes circunstncias, pode mobilizar valores distintos para justicar o mesmo interesse. Assim, para a economia das convenes, observando o encadea-mento de sequncias de ao que se pode observar a passagem de um regime de justicao para outro (DODIER, 1991).

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    A nosso ver, contudo, alguns constrangimentos devem pesar sobre essa mo-vimentao dos atores. O mesmo ator no pode circular ininterruptamente en-tre os mais diferentes princpios de justicao sem que isso lhe acarrete algum custo, fragilizando sua posio e legitimidade perante os demais sobretudo se considerarmos a presena simultnea do mesmo ator em diferentes fruns de produo de polticas, inclusive cruzando as fronteiras entre estado e sociedade civil. Aqui a noo de frum, que ambas as abordagens compartilham com a sociologia do ator-rede de Callon, congura uma categoria fundamental porque tambm dene as rotas pelas quais os atores podem se movimentar. Cada frum composto por uma institucionalidade prpria que estabelece condies mni-mas para a circulao dos atores (FOUILLEUX, 2009).

    A noo de frum delimita com mais clareza a posio dos atores na rede de poltica pblica. Os diferentes princpios cognitivos e normativos que regem a formao dos fruns podem ser considerados a substncia que dene o formato das redes, explicando a formao de comunidades (cliques) no interior desta, assim como a presena de buracos estruturais que isolam certos atores (BURT, 1992). O frum a ferramenta analtica que permite es-tabilizar uma determinada conformao da rede para que o pesquisador possa observ-la. Eles denem uma espcie de entrave livre circulao dos atores, reclamando certo engajamento, mesmo que parcial e temporrio.

    Entretanto, a abordagem cognitiva ainda tem conferido poucas explica-es para as conexes entre os diferentes fruns de produo de ideias e ao pro-cesso de traduo que pode haver diretamente de um frum para outro, sem a intermediao do frum de comunidades de poltica pblica, onde todos os mediadores relevantes encontram-se. A rede til nesse caso para dinamizar a circulao de atores, ideias e valores entre os fruns de produo de ideias. Por sua vez, o conceito de arena sublinha uma dinmica especca de crtica e contestao que, em determinados momentos, emerge no interior do frum de comunidades de poltica pblica. A congurao de arena assume, portan-to, um sentido muito prximo quele de momento crtico sublinhado por Boltanski (2009), mas aplicado especicamente dinmica deste frum.

    Uma segunda questo analtica diz respeito formao do referencial central nos fruns de produo de ideias. Anal, o que faz com que uma ideia seja prevalecente dentro de um frum de produo de ideias? O foco da abordagem cognitiva volta-se fundamentalmente aos diferenciais de recurso e

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    poder entre os atores. Uma representao impe-se face s demais e conforma o referencial central da poltica pblica porque os atores (ou coalizo de ato-res) que a sustentam possuem maior acesso a recursos materiais e discursivos. Sem negar a importncia desse diferencial, a economia das convenes acres-centa outro argumento: em que pese importncia dos recursos mobilizados para fazer prevalecer uma representao, ela somente pode estabilizar-se se for considerada legtima pelo conjunto dos atores que participam do frum. Essa legitimidade depende de sua inscrio em um princpio de justia.

    Finalmente, aqui reside uma contribuio fundamental para pensar a l-gica dos compromissos, termo invocado pelas duas abordagens. Na aborda-gem cognitiva, um compromisso sugere um acordo no curso de um processo de trocas polticas entre atores sociais com interesses e representaes disso-nantes. Esse compromisso a pea angular para a estabilizao de normas e regras e, portanto, para a institucionalizao das ideias em polticas pblicas. No entanto, essa abordagem pouco diz sobre as condies para que esse com-promisso seja formado, exceto que ele envolve trocas polticas entre os fruns de produo de ideias e o frum de comunidades de poltica pblica, em que os atores, para fazer prevalecer determinada ideia, tambm precisam ceder face aos interesses dos demais.

    De outro modo, para a economia das convenes, compromissos so composies especcas que emergem do encontro de diferentes ordens de grandeza valorativas. Trata-se de uma chave de leitura que permite interpretar a formao de arranjos convencionais hbridos, nos quais valores, interesses e atores aparentemente irreconciliveis so dispostos de maneira relativamen-te ordenada. Dois tipos de compromissos podem ser distinguidos. Primeiro, uma espcie de compromisso proibitivo que designa um tipo de composio entre diferentes ordens de grandeza que procura suspender as controvrsias sem resolv-las. Os atores buscam um acordo que lhes permita evitar os ob-jetos que postulam diferena (determinados artigos de uma lei ou condies para acesso a recursos pblico). Nesse caso, contudo, no se trata exatamente de um dilogo entre percepes heterclitas, mas da suspenso temporria do elemento de conito.

    O segundo tipo de compromisso diz respeito construo de um arranjo em que o objeto se referencia a um novo princpio comum at ento no espe-cicado. Nesse caso, o compromisso sugere a eventualidade de um princpio

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    capaz de tornar compatvel julgamentos que se apoiam em objetos prove-nientes de mundos diferentes (BOLTANSKI; THVENOT, 1991, p. 338). A construo de um novo programa ou poltica pblica somente possvel na medida em que concilie, por exemplo, gerao de renda (cit mercantil) e conservao dos recursos naturais (cit ecolgica). Caso a poltica no esteja em conformidade com ambos os valores, desencadeia-se um movimento de crtica que pode levar sua reformulao ou extino.

    Contudo, uma vez que esse tipo de compromisso constitutivo no se vincula a nenhum valor espec#co, ele mais facilmente passvel de de-nunciao. Para que ele se estabilize necessrio dot-lo de uma identidade prpria, de modo que sua forma no seja mais reconhecvel se substrarmos dele um ou outro dos elementos de origem diferentes dos quais ele se consti-tuiu (BOLTANSKI; THVENOT, 1991, p. 339). Seja como for, esse tipo de compromisso fundamental para compor uma dinmica de formao de projetos (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999), os quais emergem como uma composio espec#ca unindo atores, interesses e valores diferentes em torno de um objetivo comum. O projeto uni#ca os atores dentro dos fruns e confere maior capacidade para estes liderarem a construo dos referenciais hegemnicos que nortearo a poltica.

    6. Um modelo analtico para a poltica de desenvolvimento territorial: apontamentos para uma agenda de pesquisa

    A partir dos elementos tericos acima elencados, esta seo #naliza o ar-tigo discutindo a construo de um modelo para anlise da poltica de de-senvolvimento territorial no Brasil. A escolha desta poltica deriva tanto das caractersticas inerentes mesma as quais fazem dela um dos principais exemplos do novo formato intersetorial e descentralizado de ao pblica , quanto do acmulo emprico proveniente de pesquisas que esto sendo con-duzidas pelos autores em diferentes territrios rurais. Neste artigo d-se prefe-rncia a uma anlise integrada do modelo analtico que orienta uma agenda de pesquisa voltada no apenas para a poltica territorial, mas para um leque mais amplo de polticas pblicas, apontando para elementos que ainda devero ser cotejados luz dos estudos de caso.

    Dentre o conjunto de mudanas que o Brasil experimenta no modo de conduo das polticas pblicas, pode-se destacar que, cada vez mais, essas

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    so o resultado de um processo complexo, fragmentado e policntrico de

    ao pblica, envolvendo uma ampla pluralidade de atores (GRISA, 2012;

    MASSARDIER, 2011). Este o caso do processo de implementao das po-

    lticas de desenvolvimento territorial, particularmente do Programa Nacio-

    nal de Desenvolvimento Sustentvel dos Territrios Rurais (PRONAT) e do

    Programa Territrios da Cidadania (PTC), os quais representam as principais

    experincias brasileiras de ao pblica sustentadas por um enfoque territorial

    de desenvolvimento.

    Criado em 2003, o PRONAT tem sua origem relacionada s limitaes

    do PRONAF Infraestrutura como catalisador de estratgias de desenvolvi-

    mento dos espaos rurais, uma vez que este se restringia aos recortes admi-

    nistrativos municipais. Direcionado a agricultores familiares, povos e comu-

    nidades tradicionais, o PRONAT incita esses atores a estruturar projetos com

    enfoque territorial. Coordenado pelo Ministrio do Desenvolvimento Agr-

    rio, o programa visa elaborao de projetos coletivos a partir da mobilizao

    e da formao de acordos entre atores locais situados em diferentes fruns.

    Alm da construo de compromissos entre distintas representaes do terri-

    trio e do processo de desenvolvimento, os projetos pautam-se pela formao

    de novas institucionalidades e espaos pblicos, os quais devem promover a

    participao cidad (colegiados territoriais, regras de participao dos repre-

    sentantes da sociedade civil e atores governamentais, regimento interno dos

    colegiados, normas para o acesso aos recursos etc.).

    Por sua vez, o PTC foi criado em 2008 como um desdobramento da ex-

    perincia do PRONAT. O Programa articula um amplo conjunto de polticas

    pblicas, articulando e concentrando aes de 22 ministrios nos 120 Territ-

    rios da Cidadania distribudos entre as diferentes regies brasileiras. Trata-se

    de um dispositivo objetivando a concentrao e articulao de polticas p-

    blicas setoriais em determinados recortes territoriais (BONNAL; KATO,

    2011, p. 71). Mesmo apresentando uma dinmica mais top-down que seu pre-

    decessor, o PTC organiza-se a partir de institucionalidades similares quelas

    do PRONAT, exigindo, contudo, um exerccio mais evidente de multidimen-

    sionalidade e intersetorialidade. Isso particularmente evidente na ampliao

    dos espaos de negociao, que passam a abarcar outros fruns de produo

    de ideias presentes nas instncias territoriais (BONNAL; KATO, 2011).

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    A poltica de desenvolvimento territorial sugere a emergncia de uma nova forma de governana condizente com a necessidade de ampliao da interlo-cuo entre atores de diferentes fruns de produo e institucionalizao de ideias (LEITE et al., 2010; FAVARETO, 2010; ARAJO, 2010; DELGADO; LEITE, 2011). O modelo de governana pressuposto expresso paradigm-tica do modo como as aes pblicas passam a integrar e corresponsabilizar Estado e sociedade civil na gesto dos problemas pblicos, envolvendo trs aspectos principais: a formao e estabilizao de redes heterogneas de atores sociais (gestores, agricultores, tcnicos, pesquisadores, prefeitos, vereadores, pequenos empresrios etc.); a constituio de espaos pblicos onde esses atores confrontam ideias e valores com vistas a formar novos compromissos (sobretudo nos Colegiados Territoriais); uma nova institucionalidade que re-gula as formas emergentes de relaes polticas (normas para transferncia de recursos pblicos aos territrios; recomendao de paridade entre governo e sociedade civil nos colegiados territoriais).

    Os inmeros estudos realizados sobre a poltica territorial no Brasil (MIRANDA; TIBRCIO, 2011; PERICO, 2009; BONNAL; MALUF, 2009; FAVARETO, 2010; ARAJO, 2010; DELGADO; LEITE, 2011) permitem propor uma sntese preliminar correspondente ao formato de ao pblica en-contrado nos territrios, ainda que inmeras variaes apresentem-se em cada contexto especco (organizao das redes; nmero e composio dos fruns de produo de ideias; participao e a atuao diferenciada entre esses fruns; mecanismos de interao entre os mesmos etc.). Representada pelo modelo pro-posto na Fig. 2, essa sntese sugere a existncia de, pelo menos, cinco fruns principais envolvidos no processo de produo de ideias: a) Frum da Comuni-cao Poltica, formado pelos representantes dos poderes pblicos municipais, estaduais e federal (prefeitos, vereadores, secretrios etc.); b) Frum da Agroeco-logia, formado por representantes de movimentos e entidades que participam da discusso e propem novos modelos de agricultura de base ecolgica; c) Frum da Agricultura Familiar, composto pelos membros dos sindicatos e movimentos representativos dos distintos segmentos que compem essa categoria social; d) Frum da Segurana Alimentar, conformado por organizaes partcipes dos debates sobre os temas da fome e segurana alimentar e nutricional; e) Frum Cientco, formado por pesquisadores e professores que contribuem formu-lao das polticas territoriais. A presena, o nmero, os limites e a composio destes fruns variam de um territrio para o outro, assim como novos fruns podem surgir aglutinando outros atores.

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    Figura 2 Um modelo de ao pblica na poltica de desenvolvimento territorial.

    De modo geral, nota-se uma participao preponderante dos represen-tantes do frum da agricultura familiar e da comunicao poltica nas dis-cusses territoriais, o que confere um vis rural e agrcola aos projetos de desenvolvimento (TECCHIO, 2012; BONNAL, DELGADO, CAZELLA, 2011; DELGADO E LEITE, 2011). Em vrias situaes, isso decorrncia de constrangimentos institucionais que criam obstculos expanso da rede social, limitando a participao de atores que poderiam desestabilizar os com-promissos j constitudos no interior dos fruns. Com isso, ao mesmo tempo que se garante estabilidade para a rede social, coloca-se em xeque a participa-o efetiva de novos atores e, mesmo aps a criao do PTC, a estrutura de governana muito prxima quela encontrada no PRONAT, limitando o nmero de fruns e perpetuando o vis agrcola das estratgias de desenvolvi-mento (BRASIL, 2010). verdade que, em alguns territrios, a emergncia do PTC provocou mudanas na gesto social dos territrios e proporcionou maior visibilidade e participao a atores outrora invisveis, como os ind-genas, quilombolas, mulheres e jovens. Todavia, a multidimensionalidade e a articulao e institucionalizao de ideias setoriais constituem ainda desaos importantes.

    Figura 2 Um modelo de ao pblica na poltica de desenvolvimento territorial.

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    No que tange construo de uma agenda de pesquisa sobre a poltica territorial, uma anlise dessas estruturas de governana conectada dinmica dos territrios deve atentar a um conjunto de questes basilares compreen-so das interfaces entre atores e instituies. O foco volta-se evoluo tem-poral dos elementos constituintes da ao pblica: Quais atores ou fruns de produo de ideias participam da construo da poltica territorial? Como eles interagem? Quais ideias e valores so prevalecentes no interior desses fruns? Como essas ideias e valores evoluram ao longo do tempo? Como os fruns dialogam entre si? Quais atores capitaneiam os processos de traduo exis-tentes entre os fruns? Quem so os porta-vozes que participam do frum de comunidades de polticas pblicas? Como esses mediadores traduzem as ideias entre os fruns de produo de ideias e o frum de comunidades de poltica pblica? Qual institucionalidade (normas, regras, convenes, cdigos) regula o funcionamento desses diferentes fruns de produo de ideias? Quais com-promissos so formados entre os atores? Quais ideias so institucionalizadas e tornam-se instrumentos de poltica territorial? Por que essas ideias lograram xito ao passo que outras foram excludas? Analisadas desde uma perspectiva histrica, essas questes podem constituir uma espcie de chave analtica para compreender e avaliar as mudanas na ao pblica em nvel territorial.

    Tal qual empregada neste artigo, a noo de frum identica constran-gimentos cognitivos e normativos s redes sociais e, portanto, movimenta-o dos atores. Cada frum dene uma composio mais ou menos estvel de regras e valores institucionalizados que regulam as interaes, denem as posies relevantes e excluem comportamentos desviantes. Um frum consti-tui uma gramtica estruturando a ao dos atores. No entanto, respeitando as regras inerentes a cada frum, em momentos distintos um ator pode estar pre-sente ou circular em diferentes fruns de produo de ideias (a noo conven-cionalista de racionalidade situada), tornando-se responsvel por um pro-cesso de traduo de ideias e valores. No caso dos territrios, recorrente um agricultor, como representante de sindicato ou movimento social, circular em dois ou mais fruns de produo de ideias (agricultura familiar, agroecologia, segurana alimentar), mas respeitando as regras e os valores que regem a di-nmica e organizao de cada um deles. Do mesmo modo, ele pode tornar-se parte do frum da comunicao poltica (elegendo-se prefeito ou vereador) ou, ainda, ingressar s elites administrativas, raticando a crescente permeabi-lidade entre governo e movimentos sociais (DAGNINO, 2002).

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    Um ator circulando entre vrios fruns de produo de ideias carrega consigo representaes sobre o modo como as polticas pblicas devem ser operadas. No entanto, como destaca a economia das convenes, essas ideias so necessariamente objeto de interpretao em contextos sociais diferen-ciados (BATIFOULIER; LARQUIER, 2001). Quando transportadas para o interior de diferentes fruns de produo de ideias, as representaes so reinterpretadas, traduzidas para um espao diferente daquele no qual elas fo-ram originalmente produzidas. Esse o caso, por exemplo, quando um o agricultor dirigente sindical adentra a esfera governamental. Suas ideias sobre a agricultura so expressas e ressignicadas no interior de um frum regido por novos princpios normativos. As ideias so reinterpretadas e podem dar subsdio a projetos diferentes daqueles que originalmente sustentavam.

    A identicao das redes dos laos fracos e fortes14 e da posio e mo-vimentao dos atores no interior e entre diferentes fruns, permite a anlise dos processos de troca que levam um ator a constituir-se como porta-voz. Isso tambm possibilita compreender a atuao diferenciada dos fruns de pro-duo de ideias no frum de comunidades de poltica pblicas, identicando distintas relaes de poder no processo de institucionalizao da poltica e denio dos projetos apoiados. Ademais, importante notar que a presena dos atores nos fruns no se constitui necessariamente em uma participao ativa na denio das polticas. Alguns atores podem estar completamente isolados (buracos estruturais) ou com relaes muito restritas para se tornarem porta-vozes das ideias produzidas nos fruns. Uma abordagem histrica que identique as mudanas ao longo do tempo permite identicar a alterao nos mediadores. A emergncia de novas ideias e valores conecta-se, assim, s lutas por reconhecimento e legitimao e ao empoderamento de novos atores que podem substituir os antigos porta-vozes (no caso do Frum da Agricul-tura Familiar, por exemplo, vrios territrios revelam uma ascenso de novos movimentos sociais e sindicais e passam a disputar a representao por ideias hegemnicas).

    14 A distino entre laos fracos e fortes segue a definio de Granovetter (1973). Enquanto os laos fortes

    constituem-se de interaes entre atores com vnculos sociais recorrentes e, portanto, com valores e ideias mais

    prximos, laos fracos referem-se a interaes espordicas atravs das quais pode ser facilitada a circulao

    de informaes no redundantes dentro da rede, isto , ideias relativamente inditas provenientes de outros

    fruns capazes de catalisar processos de mudana na poltica pblica.

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    No modelo analtico proposto acima (Fig. 2), nfase especial conferida ao lugar das Elites Administrativas no processo de formulao das polticas. Trata-se de um espao especco conformado pela burocracia estatal (gestores da poltica territorial em diferentes nveis de governo) que se reproduz de maneira mais ou menos duradoura, evidenciando a fora das instituies que regulam o modo de operacionalizao das polticas (eg. as normas para trans-ferncia e aplicao de recursos, as modalidades de empenho, as exigibilidades relacionadas responsabilidade scal). Enquanto os fruns de produo de ideias possuem maior rotatividade dos seus porta-vozes, as Elites Administra-tivas tendem a se reproduzir no interior do frum de comunidades de poltica pblica. A ttulo de exemplo, enquanto a mudana de governadores e pre-feitos altera a composio do Frum da Comunicao Poltica a cada quatro anos, os gestores da poltica territorial (e das polticas ans implementadas nos territrios) podem reproduzir-se em seus cargos e, junto com eles, determina-das ideias e valores sobre a construo das polticas pblicas. Obviamente, isso no lhes confere uma posio intocvel e as prprias representaes oriundas dos gestores so alteradas ao longo do tempo.

    Finalmente, cabe destacar os efeitos de feedback da poltica pblica. A partir do momento em que ideias e valores so institucionalizados e passam a operar atravs de diferentes instrumentos de poltica (normas, manuais, re-gulamentos, regimentos, planos), necessrio considerar como esses instru-mentos condicionam o comportamento dos atores e a conformao das redes e fruns. So mecanismos de path dependence da poltica pblica que denem um espao de manobra relativamente limitado para a governana territorial. Por outro lado, trata-se igualmente do modo como as polticas pblicas po-dem intervir sobre o funcionamento das redes e fruns alterando o poder dos atores e, consequemente, interferindo sobre as lutas por reconhecimento. Em muitos casos, os instrumentos da poltica pblica conseguem favorecer o enfraquecimento de formas tradicionais de dominao perpetuadas nos terri-trios para promover o empoderamento de atores antes subordinados e invi-sveis perante o Estado.

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