nÃo se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena...
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NÃO SE NASCE ARTISTA, TORNA-SE: DUAS PINTORAS NA CENA CONTEMPORÂNEA BELENENSE
NO ONE IS BORN AS AN ARTIST, BUT BECOMES AN ARTIST: TWO PAINTERS FROM THE CONTEMPORARY SCENE OF BELÉM
Afonso Medeiros / UFPA-PQ / CNPq Mylena Setúbal / UFPA-PIBIC / CNPq
Lucas Negrão / UFPA-PIBIC / CNPq
RESUMO: Este ensaio enfoca a produção pictórica das artistas Rosangela Britto e Nina Matos. Sem deixar de enfatizar características peculiares da poética de cada uma, anota-se alguns pontos de contato entre suas carreiras, de modo a tecer considerações sobre alguns dos fluxos e dos refluxos entre o moderno e o contemporâneo no cenário local e nacional, particularmente aqueles que se encontram às margens das tendências estéticas dominantes. Para tanto, recorre-se indiretamente a proposições historiográficas e estéticas de autores tais como Hans Belting, Linda Nochlin, Georges Didi-Huberman e Hall Foster. PALAVRAS-CHAVE: arte brasileira; arte contemporânea; (sobre)vivências da pintura. ABSTRACT: This essay focuses on Rosangela Britto and Nina Matos's pictorial production. While emphasizing on peculiar features of each one's poetics, some points of contact between their careers are noted, so as to consider some of the fluxes and refluxes between the Modern and the Contemporary aspects in the local and national scene, particularly those ones that are on the margins of dominant aesthetic trends. In this sense, we have recourse indirectly to the historiographic and aesthetic propositions of authors such as Hans Belting, Linda Nochlin, Georges Didi-Huberman and Hall Foster. KEYWORDS: Brazilian art; contemporary art; (about) painting experiences.
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MEDEIROS, Afonso; SETÚBAL, Mylena; NEGRÃO, Lucas. Não se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena contemporânea belenense, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1783-1794.
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A história, a crítica e o ensino de artes como práticas correlacionadas no Brasil do
século XX, sobretudo no âmbito universitário, tem contado com a contribuição
expressiva de paraenses (naturais e adotados) de, pelo menos, quatro gerações.
Dentre os muitos nomes que deixaram rastros importantes, a primeira delas pode
ser representada por Theodoro Braga e José Fléxa Ribeiro. A segunda, por Carlos
Flexa Ribeiro, Quirino Campofiorito e Francisco de Paulo Mendes. A terceira, por
Maria de Lourdes Sobral, Jussara Derenji e Célia Bassalo. Entre a segunda e a
terceira gerações, José Benedito Nunes e João de Jesus Paes Loureiro não
exercitam uma historiografia propriamente dita, mas contribuem decisivamente com
a crítica e a teoria que, de algum modo, permeiam as historiografias posteriores,
além da dedicação de ambos na institucionalização do circuito das artes. A quarta
geração é aquela que cursou a pós-graduação entre a última década do século XX e
a primeira do XXI e que ora encontra-se dedicada também à formação específica da
próxima leva de artistas, historiadores, críticos e educadores.
A primeira geração oscila entre a crítica internacional e a nacional. A segunda, mais
atenta às tensões modernistas, segue os mesmos passos da primeira, mas com
especial predileção pela produção artística nacional. A terceira passeia
preferencialmente entre o nacional e o regional sem deixar de olhar as transações
internacionais, enquanto a quarta está produzindo um mix variado entre o regional, o
nacional, o internacional, o moderno e o contemporâneo sem descurar de questões
outras sobre as quais as gerações anteriores não puderam (ou não quiseram) se
debruçar (exceto tangencialmente), tais como as discussões de gênero, de classe,
de etnia e de (des)colonização – questões estas que estão incidindo na formação da
próxima geração.
Entre essas gerações, verifica-se uma formação acadêmica que vai da
diversificação predominantemente nas Ciências Humanas e Sociais (na primeira
geração) e chega à especialização preferencialmente na História e/ou nas Artes (na
quarta geração). Entre a primeira e a segunda gerações, a tendência é da diáspora
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MEDEIROS, Afonso; SETÚBAL, Mylena; NEGRÃO, Lucas. Não se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena contemporânea belenense, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1783-1794.
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profissional (Theodoro Braga, José Fléxa Ribeiro, Carlos Flexa Ribeiro e Quirino
Campofiorito, por exemplo), depois de um período de estudos na Europa. Entre a
terceira e a quarta gerações, a tendência se inverte com profissionais que também
navegam pelo Sul e pelo Norte, mas retornam às origens. E não menos importante é
a proeminência de arte-historiadoras na terceira geração.
A conformação relacional entre a história, a crítica e a educação em artes ainda
carece de estudos mais largos e profundos, mas essas tendências de formação e
atuação dos atores dessa trajetória já são suficientemente reveladoras daquilo que
poderíamos chamar apropriadamente de uma história da arte em seu campo
ampliado pela sensibilidade coletiva (Bourriaud, 2009).
No século XX, Belém passou de uma eurofilia de matizes luso-francesas
proporcionada pela economia gomífera para um ufanismo amazônico resumido no
slogan “integrar para não entregar” dos tempos da ditadura militar (1964-1985).
Nesse meio-tempo, a capital do Pará experimentou uma considerável decadência
econômica que só começou a ser revertida com a abertura da Belém-Brasília, da
Transamazônica e com os grandes projetos de extrativismo madeireiro, mineral e
energético que desconsideraram peremptoriamente as características histórico-
sociais locais e que, ao fim e ao cabo, pouco ou nada deixaram (e continuam a não
deixar) de “progresso” econômico – ao contrário, aprofundaram a espoliação
sociocultural dos habitantes da região. Se na primeira metade do século XX a
Amazônia pouco importou efetivamente para o resto do Brasil, na segunda metade
tornou-se a zona de fronteira, o último almoxarifado da cleptomania capitalista
nacional.
A história da pintura na Belém do século XX, par e passo com essa síntese
sociopolítica, pode ser resumida em poucas linhas, com as exceções importantes
que se verificam em toda história da arte que não se limita à ansiedade por uma
contemporaneidade absolutista e negociante do “fracasso da própria História”
(Foster, 2014). De um romantismo com traços nacional-regionalistas no início do
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MEDEIROS, Afonso; SETÚBAL, Mylena; NEGRÃO, Lucas. Não se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena contemporânea belenense, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1783-1794.
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século, dilui-se em práticas pós-impressionistas, passa por espasmos modernistas,
encara timidamente a abstração a partir dos anos 1940/50, desemboca na
“visualidade amazônica” de múltiplas tendências abstratas e figurativas a partir da
década de 1960 e, finalmente, divide com a fotografia o protagonismo dessa
visualidade a partir de meados dos anos 1980.
De permeio, a presença das mulheres na produção pictórica em Belém sempre
sofreu daquela invisibilidade característica de determinadas histórias e críticas das
artes produzidas no século passado. Na contramão da história do modernismo
brasileiro que consagrou Anita Malfatti e Tarsila do Amaral como figuras estelares, a
história da pintura em solo paraense reservou um lugar muito acanhado às
mulheres, com exceção, talvez, de Dina Oliveira. De Antonieta Feio e Estela
Campos à Rosângela Britto e Nina Matos, ainda são parcos os estudos que
consideram a importância da experimentação pictórica feminina.
Nessa perspectiva, a nossa pesquisa, que tem se debruçado no vai-e-vem entre o
moderno e o contemporâneo, tem procurado perceber as entrelinhas dos discursos
verbais e visuais da produção artística e, nesse sentido, temos dedicado atenção à
produção feminina, com o apoio de bolsas (PQ e PIBIC) do CNPq.
Claro está que essa produção deve ser posta em relevo não porque, simplória e
supostamente, exporia “características femininas” ausentes na produção masculina
(questão muito relativa) ou porque a atividade artística profissional ainda estaria
vetada às mulheres (questão bem pertinente) numa sociedade patriarcal já
acossada pelo feminismo, conforme nos assegura, dentre outras, Linda Nochlin
(2016). Nessa perspectiva, nos interessa não só uma história da arte centrada na
história do artista e/ou da obra, mas, além disso, numa história da arte estendida e
entendida como história da cultura nas quais as questões de gênero, de classe e de
etnia, todas atravessadas pela subjetividade, não são de pouca monta. Tal produção
importa, enfim, porque sua relevância foi minimizada tanto pela misoginia discursiva
quanto pela falta de percepção (ou ignorância) dos condicionamentos sociais e
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MEDEIROS, Afonso; SETÚBAL, Mylena; NEGRÃO, Lucas. Não se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena contemporânea belenense, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1783-1794.
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históricos incidentes sobre esse mesmo discurso. Mais do que uma “reescrita da
história”, portanto, trata-se de colocar em relevo uma produção olvidada que as
condições de visibilidade do presente nos incita.
De imediato, deve-se assinalar que em solo paraense a relativa invisibilidade das
pintoras não tem nada a ver com o descredenciamento da pintura promovido pelas
chamadas artes conceituais, visto que a pintura praticada por aqui foi uma das
pontas de lança no afã de aggiornamento da arte contemporânea. Em Belém, a
pintura nunca saiu de cena nas cheias e vazantes entre o moderno e o
contemporâneo, mas, diferentemente da produção fotográfica desde os anos 1980,
na qual a presença feminina tem sido posta em relevo, o mesmo não acontecia com
nossas pintoras até muito recentemente.
Rosangela Britto é, reconhecidamente, uma senhora inquieta. Há 33 anos vem
construindo uma carreira peculiar com intensa produção entre os anos 1986-1993,
intermitente na primeira década deste século e retomada a partir de 2011. Nesse
ínterim, foi figura decisiva no cenário contemporâneo da arte paraense, assumindo a
primeira direção do recém-criado Museu de Arte de Belém (MABE), a
superintendência do Sistema Integrado de Museus (SIM) e coordenando a
implantação do novo curso de Museologia da FAV/UFPA, além do exercício na
educação superior em artes. A inquietude de Rosangela Britto se verifica inclusive
em sua formação: graduada em Arquitetura pela UFPA (celeiro de vários dos artistas
consagrados de sua geração), fez mestrados em Educação e em Museologia e
doutorado em Antropologia, sempre tendo as artes plástico-visuais como eixo
investigativo. Além da carreira acadêmica, sua atuação foi decisiva para a
modernização e a dinamização do cenário museológico e para a criação da Casa
das Onze Janelas, até hoje a única instituição voltada exclusivamente para a arte
contemporânea em toda a região amazônica.
Arquiteta de formação, os museus que Rosangela ajudou a implantar (MABE,
MHEP, de Arte Sacra e as Onze Janelas) encararam os próprios prédios como parte
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MEDEIROS, Afonso; SETÚBAL, Mylena; NEGRÃO, Lucas. Não se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena contemporânea belenense, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1783-1794.
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do acervo e da estratégia museológica e, nesse sentido, tornou-se singular a
escolha de um prédio que serviu de epicentro da repressão aos opositores do
regime ditatorial de 64 como sede de um acervo de arte contemporânea brasileira. A
Casa das Onze Janelas tornou-se, então, um museu que alia simbolicamente a arte
contemporânea com o universo repressivo que lhe serviu de contexto histórico. E é
uma pena que essa relação histórica entre o acervo e o prédio que lhe abriga (que
também é parte do acervo) seja raramente percebida e explorada na atualidade – ao
contrário, corre o risco de desmantelamento.
Quando surgiu no cenário especializado das artes em Belém obtendo o prêmio do
Centro Cultural Brasil-Estados Unidos em 1986 (seguido de sua primeira individual
em 1987), as questões sobre a “visualidade amazônica” já encontravam-se em
ponto de fervura não só no circuito profissional propriamente dito, como também nos
dispositivos institucionais públicos e privados que de diversas maneiras serviram de
suporte e ressonância a essa discussão. Na contra mão de sua atividade pública, a
pintura de Rosangela parecia apontar para o privado, para uma espécie de poesia
melancólica da intimidade da persona que, mesmo exposta em grupos, parece
expressar aquele viés de incomunicabilidade das relações humanas. Havia então
em sua pintura uma zona de indeterminação entre as representações do real e do
onírico, de modo que o espectador se veja envolvido entre penumbras de memórias
factíveis e (re)inventáveis.
Exercitando a pintura em tinta acrílica com pincel e espátula (às vezes associada à
colagem e à assemblagem), cenários e figuras humanas eram deformadas em meio
a uma paleta e textura que raramente privilegiavam os tons quentes e luminosos. Ao
contrário, os tons frios parecem acentuar a necessidade de aconchego na sombra,
no meio tom desdobrado em infindáveis camadas de outros meios tons, como se a
penumbra interior dos casarões antigos (cada vez mais raros no cenário urbano de
Belém) fossem o contraponto necessário para a luminosidade acachapante das
praças e logradouros dessa mesma cidade.
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MEDEIROS, Afonso; SETÚBAL, Mylena; NEGRÃO, Lucas. Não se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena contemporânea belenense, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1783-1794.
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Figura 1: Rosângela Britto, Animais amestrados, 1989. Acrílica sobre tela, 100x80cm. Acervo fotográfico da artista.
Na pintura de Rosangela, a cor e sua materialização nunca são símbolos de
transcendência, dado que se atém ao (talvez demasiado) humano da intenção e do
gesto do pintor. De índices da intimidade velada na sombra, cor e pincelada tornam-
se índices da intimidade flagrada na luz da rua quando, em 2016, inicia a produção
dos “Diários do Cotidiano”. A paleta adquire uma luminosidade até então inusitada.
Ainda estão lá a textura expressionista a serviço da solidão humana, mas as
dimensões são reduzidas privilegiando o close – uma espécie de série em polaroid
se comparada à produção dos primeiros tempos. É neste momento, também, que a
pesquisa pictórica de Rosangela deixa-se infectar pela etnografia que balizou seus
estudos acadêmicos e que, de algum modo, atestam sua extensividade em direção
a uma antropologia da imagem (Belting, 2014).
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MEDEIROS, Afonso; SETÚBAL, Mylena; NEGRÃO, Lucas. Não se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena contemporânea belenense, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1783-1794.
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Nina Matos é, reconhecidamente, uma senhora tímida. Há 29 anos vem tecendo
continuamente um bordado de seus perceptos e afectos sem fazer alarde e sem
ceder às artimanhas do self promotion, tão velho quanto a própria história da arte
rascunhada por Giorgio Vasari.
Figura 2: Nina Matos, As garotas do sr petrus mañach, 1999. 40cm de diâmetro. Acervo fotográfico da artista.
Nina iniciou sua carreira em 1990 com o prêmio aquisição do IX Salão Arte Pará e
acumula em seu currículo 48 exposições coletivas e 6 individuais, além de duas
bolsas de intercâmbio – para a Argentina em 2003 e para a Espanha em 2005.
Graduou-se em Educação Artística/Artes Plásticas na UFPA num momento em que
esse curso começava a angariar também a atenção daqueles que queriam
consolidar e/ou projetar uma trajetória como artista visual. Também assumiu a
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MEDEIROS, Afonso; SETÚBAL, Mylena; NEGRÃO, Lucas. Não se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena contemporânea belenense, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1783-1794.
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direção do MABE e da Casa das Onze Janelas, dando continuidade a uma sucessão
de mulheres à frente de instituições culturais: de Dina Oliveira no comando da
Fundação Curro Velho e da Fundação Cultural do Pará (até recentemente) à Janice
Lima na atual direção do MABE, já são três décadas de notória presença feminina
nos dispositivos culturais do Estado.
Mas Nina, diferentemente de Rosangela, Dina, Janice e várias outras profissionais
da área, não se envolveu direta e longamente com o ensino de arte. É
essencialmente uma artista que, eventualmente, assumiu responsabilidades
curatoriais e administrativas. Sua produção artística, se vista numa perspectiva
temporal, é como uma sucessão de crônicas e contos sobre uma sociedade
engolfada em suas próprias idiossincrasias. Mais ou menos visíveis em sua obra, os
modos de amar, de desejar, de consumir, de enganar, de seduzir, de objetificar, de
subjetivar, de lembrar e de esquecer são todos sintomas de uma sociedade flagrada
entre o sonho e o pesadelo.
Nesses flagras ou nesse modo de velar a memória de si e do alheio, se utiliza de
uma série de suportes e técnicas, incluindo as pequenas dimensões de uma caixa
de cd. A experimentação neste tipo de suporte lhe forneceu, inclusive, um mote
compositivo: um circulo centralizado que comporta os devaneios da memória
envolvido por um quadrado que funciona ora de moldura, ora de extensão
iconográfica da cena central. Algumas colagens e assemblagens se envolvem na
pictografia como se a artista quisesse nos indicar uma vez mais a materialidade da
pintura ou como se ela quisesse nos remeter ao “brincar de casinha” de nossas
infâncias passadas sem brinquedos industrializados, mas plenas de manuseios
imaginativos.
Uma pegada pop, tanto no sentido estético como no sentido popular, atravessa a
produção de Nina Matos e, nesse sentido, a fotografia de família e a propaganda de
revistas dos anos 1960-70 constituem-se como referencias de um mundo démodé,
signos de um apagamento que nunca se conclui ou que, antes, são fantasmagorias
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MEDEIROS, Afonso; SETÚBAL, Mylena; NEGRÃO, Lucas. Não se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena contemporânea belenense, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1783-1794.
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(Didi-Huberman, 2013) de uma indústria cultural que não cessa de produzir
reciclagens do não vivido e do não partilhado.
Além do fato de terem assumido a direção de instituições culturais importantes no
cenário belenense, as carreiras artísticas de Nina e de Rosangela, se vistas na
perspectiva das três últimas décadas, apontam para algumas coincidências: ambas
figurativas, não cederam à abstração pictórica que serviu de abertura para a arte
contemporânea em Belém (Vieira Costa, 2019); não se envolveram – pelo menos,
não diretamente – com a propalada “visualidade amazônica” que deu o tom da
produção nacionalizável e internacionalizável das três últimas décadas do século 20
e da qual Valdir Sarubbi, Emmanuel Nassar e Luiz Braga tornaram-se os ícones
mais celebrados; e insistiram na pintura num momento em que a performance, a
instalação, o vídeo e a fotografia começavam a vincar as formas prediletas de
expressão do contemporâneo, sobretudo a partir dos Salões Paraenses de Arte
Contemporânea na primeira metade dos anos 1990.
Na pintura de ambas, não se vislumbra a exuberância da floresta, mas a intimidade
do urbano. Não o personagem ribeirinho, mas a persona burguesa tratada com não
poucos matizes de ironia. Não a humidade do emaranhado de igarapés, mas a
humidade do cipoal das relações humanas. Não a poesia erudita inoculada no
popular, mas a prosa cadenciada do cotidiano. Em poucas palavras, trata-se de
resistência da pintura que não faz concessões a uma suposta identidade consumida
por estrangeiros apressados.
Essas percepções sobre os fluxos e os refluxos verificáveis entre as trajetórias das
duas artistas só pôde ser reformulada quando Armando Sobral fez a curadoria da
exposição A pintura vai bem, obrigado na sala Valdir Sarubbi na Casa das Onze
Janelas (março-abril de 2017), tendo Rosangela Britto e Nina Matos entre os
expositores, e configurando um panorama da produção atual de pelo menos duas
gerações de pintores envolvidas entre a figuração e a abstração. A curadoria
(conscientemente ou não), apontou para um cenário atravessado pela história na
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MEDEIROS, Afonso; SETÚBAL, Mylena; NEGRÃO, Lucas. Não se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena contemporânea belenense, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1783-1794.
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medida em que optou por representar a produção atual tanto da geração surgida nos
anos 1970-80 quanto daquela que vem emergindo (ou reemergindo) desde os anos
2000. Mas não só. O foco na pintura pareceu querer enfatizar o fato de que esta não
só nunca saiu da cena artística, como também tem recobrado um inusitado vigor na
contemporaneidade. Em Belém, a pintura nunca sofreu daquela decantada
desmaterialização produzida entre o moderno e o contemporâneo.
Em meio à assimetria da produção exposta naquela ocasião, as obras de Rosangela
e de Nina apareceram como alguns dos índices mais notórios e equilibrados da
aliança entre o histórico e o hodierno, entre a ancestralidade técnica e a
contemporaneidade discursiva, entre o já dito e o ainda inaudito de uma estética que
reinventa-se e resiste através da figuratividade. Apesar do evidente protagonismo
das duas pintoras no cenário artístico paraense, espanta o fato de que ambas, com
três décadas de carreira, ainda não tenham usufruído suficientemente das luzes da
ribalta do sistema acadêmico. A que se deve essa relativa penumbra que envolve
uma produção tão vigorosa?
De fato, não deve ter sido fácil debutar num momento (1990) em que a “visualidade
amazônica” estava em disputa nas artes visuais produzidas em Belém, optando por
uma iconicidade em tudo estranha às presumidas peculiaridades do olhar local. A
Amazônia captada por Nina e Rosângela é mais sutil, mais entranhada na intimidade
de uma urbe abduzida entre o apagamento do passado e a invisibilidade do
presente e facilmente confundível com tantas outras urbes espalhadas pelo mundo.
Uma, senhora inquieta. A outra, senhora tímida. Mas não nos enganemos:
Rosangela e Nina passeiam pelas intimidades de uma pintura desavergonhada do
(ser) pictórico.
Referências
BELTING, Hans. Antropologia da imagem: para uma ciência da imagem. Lisboa: Kkym + Eaum, 2014.
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MEDEIROS, Afonso; SETÚBAL, Mylena; NEGRÃO, Lucas. Não se nasce artista, torna-se: duas pintoras na cena contemporânea belenense, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1783-1794.
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BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
FOSTER, Hall. O retorno do real: A vanguarda no final do século XX. São Paulo: Ubu Editora, 2014.
NOCHLIN, Linda. Por que não existem grande mulheres na arte? São Paulo: Edições Aurora, 2016.
VIEIRA COSTA, Gil. Arte em Belém, do abstracionismo à visualidade amazônica (1957-1985): transições movediças e tensões globais. Tese de doutoramento do Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará, 2019.
José Afonso Medeiros Souza
Professor Titular de Estética e História da Arte da Universidade Federal do Pará e Bolsista Produtividade do CNPq.
Lucas da Silva Negrão
Graduando em Artes Visuais da UFPA e Bolsista Pibic/CNPq.
Mylena Monteiro Setúbal
Graduanda em Artes Visuais da UFPA e Bolsista Pibic/CNPq.