neurociência e filosofia

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NEUROCIÊNCIA E FILOSOFIA João de Fernandes Teixeira é professor titular de filosofia na Universidade Federal de São Carlos e autor de 13 livros, entre eles Filosofia do Cérebro (Paulus, 2012). Em um de seus mais famosos contos, o Aleph, publicado em 1949, o escritor argentino Jorge Luís Borges narra uma situação bizarra. Ele nos relata a angústia de seu personagem, Carlos Daneri, ao saber que sua casa, em cujo porão havia um Aleph, seria demolida. Inconformado, ele procura o melhor advogado de Buenos Aires para tentar demover seus parentes de por em prática algo que para ele seria inadmissível. Mas, o que é um Aleph? Segundo Carlos Daneri, o Aleph é o mundo, um lugar onde estão todos os lugares do planeta, vistos de todos os ângulos. Ele tem apenas dois ou três centímetros de diâmetro, mas a partir dele seria possível ver o espaço cósmico e tudo o que ocorre no universo, comprimidos em um só instante, com um sabor de eternidade. Ora, será que existe algo parecido com esse objeto ficcional de Borges? Algo que, pelo menos, se aproxime de um Aleph? Será que não poderíamos comparar o Aleph com o cérebro humano? Não é a partir do que ocorre no cérebro que se descortina todo o universo? O cérebro humano é o órgão mais complexo de nosso corpo. Ele contém a complexidade do universo condensada em um espaço tão pequeno quanto a caixa craniana. Calcula-se, por exemplo, que o número de sinapses seja parecido com o número de partículas existentes no universo desde o Big-Bang (cada um dos neurônios, cujo número chega a cem bilhões, ou seja, 10 11 ,tem, em média, 7.000 conexões sinápticas com outros.). O maior enigma do cérebro é conter e estar contido no universo ao mesmo tempo. E, talvez ele seja mesmo um Aleph, pois é a partir dele que podemos contemplar todo o universo. Todo conhecimento que temos do mundo é produzido pelo cérebro. Se um dia decifrarmos como ele o produz, ou seja, como percebemos o mundo, como raciocinamos e como a consciência se instalou nele, teremos chegado a uma verdadeira pedra filosofal. A possibilidade de observar o cérebro vivo, em funcionamento, é algo recente na história da neurociência. Só nos anos 1990, a chamada década do cérebro, que novas tecnologias de observação do cérebro surgiram. A mais famosa delas, a neuroimagem obtida pelo fMRI (a ressonância magnética funcional), levou a neurociência a uma revolução sem precedentes. As imagens obtidas pelo fMRI detectam a atividade

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Artigo que explora as implicações filosóficas da neurociência, passando pelo problema mente-cérebro, consciência, livre-arbítrio. Explica como a neurociência está questionando o ordenamento jurídico das sociedades.

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NEUROCINCIA E FILOSOFIA

Joo de Fernandes Teixeira professor titular de filosofia na Universidade Federal de So Carlos e autor de 13 livros, entre eles Filosofia do Crebro (Paulus, 2012).

Em um de seus mais famosos contos, o Aleph, publicado em 1949, o escritor argentino Jorge Lus Borges narra uma situao bizarra. Ele nos relata a angstia de seu personagem, Carlos Daneri, ao saber que sua casa, em cujo poro havia um Aleph, seria demolida. Inconformado, ele procura o melhor advogado de Buenos Aires para tentar demover seus parentes de por em prtica algo que para ele seria inadmissvel.Mas, o que um Aleph? Segundo Carlos Daneri, o Aleph o mundo, um lugar onde esto todos os lugares do planeta, vistos de todos os ngulos. Ele tem apenas dois ou trs centmetros de dimetro, mas a partir dele seria possvel ver o espao csmico e tudo o que ocorre no universo, comprimidos em um s instante, com um sabor de eternidade.Ora, ser que existe algo parecido com esse objeto ficcional de Borges? Algo que, pelo menos, se aproxime de um Aleph? Ser que no poderamos comparar o Aleph com o crebro humano? No a partir do que ocorre no crebro que se descortina todo o universo?O crebro humano o rgo mais complexo de nosso corpo. Ele contm a complexidade do universo condensada em um espao to pequeno quanto a caixa craniana. Calcula-se, por exemplo, que o nmero de sinapses seja parecido com o nmero de partculas existentes no universo desde o Big-Bang (cada um dos neurnios, cujo nmero chega a cem bilhes, ou seja, 10 11 ,tem, em mdia, 7.000 conexes sinpticas com outros.). O maior enigma do crebro conter e estar contido no universo ao mesmo tempo. E, talvez ele seja mesmo um Aleph, pois a partir dele que podemos contemplar todo o universo. Todo conhecimento que temos do mundo produzido pelo crebro. Se um dia decifrarmos como ele o produz, ou seja, como percebemos o mundo, como raciocinamos e como a conscincia se instalou nele, teremos chegado a uma verdadeira pedra filosofal.A possibilidade de observar o crebro vivo, em funcionamento, algo recente na histria da neurocincia. S nos anos 1990, a chamada dcada do crebro, que novas tecnologias de observao do crebro surgiram. A mais famosa delas, a neuroimagem obtida pelo fMRI (a ressonncia magntica funcional), levou a neurocincia a uma revoluo sem precedentes. As imagens obtidas pelo fMRI detectam a atividade neural atravs das variaes metablicas que ocorrem no crebro. Eventos neurais aumentam o afluxo sanguneo pela concentrao de oxignio ou de glicose, e, a partir dessas variaes metablicas, possvel derivar imagens da atividade do crebro, que so correlacionadas com comportamentos e atividades cognitivas. Nos ltimos anos, imagens do crebro obtidas por fMRI se tornaram populares na mdia que, com muito exagero, as tem divulgado como se elas fossem fotografias do pensamento. J se fala at na possibilidade de ler as mentes de outras pessoas observando o funcionamento do crebro, e at mesmo de utilizar sua atividade eltrica para interagir com alguns tipos de mquinas.Essas tcnicas esto abrindo novas perspectivas na medicina, e levaro, em um futuro breve, cura de doenas neurolgicas, como o Parkinson e o Alzheimer. Alm disso, elas contriburam para a descoberta de novas medicaes para transtornos psiquitricos.Mas, qual a relao entre a neurocincia e a filosofia? Um dos maiores impactos que a filosofia vem vivendo o fato de a neurocincia estar, gradualmente, efetuando uma modificao radical na imagem que o ser humano tem de si mesmo. A herana socrtica, que nos v como uma alma aprisionada no corpo, tende a acabar. Ser, ento, que somos apenas nossos crebros? Um punhado de genes em interao com o meio ambiente produzindo a iluso de que temos um eu? Como todas as cincias nos ltimos anos, a neurocincia transbordou em direo a questes filosficas. As religies e as filosofias sempre enfrentaram o milenar problema mente-crebro, que consiste em indagar se a mente um produto do metabolismo cerebral ou se, ao contrrio, o crebro apenas um hospedeiro biolgico da nossa vida mental. Parece que agora estamos chegando a uma resposta final para esse problema. Pelo menos, assim que pensam muitos neurocientistas contemporneos. Um impacto ainda maior da neurocincia sobre a filosofia se torna cada vez mais ntido nas questes ticas e jurdicas tradicionais. A disseminao de neurotecnologias, seja atravs do uso de novos neurofrmacos ou atravs do implante de chips no crebro, forou o aparecimento de um novo ramo da biotica, a neurotica. Se somos apenas nossos crebros, qual a nossa parcela de responsabilidade moral e legal nos nossos atos? nessa hora que a neurocincia toca em um dos mais complexos problemas da filosofia, ou seja, saber se somos criaturas dotadas de um livre-arbtrio pleno ou, se no, criaturas cujos atos so determinados por leis maiores da qumica e da fsica, que regem o universo. Ser que um assassino passional deve ter o mesmo tratamento que um matador que, por causa de um tumor cerebral, dispara aleatoriamente contra crianas em uma escola? Ser que a funo da justia, aps as descobertas da neurocincia, continuar sendo a tradicional, ou seja, a de punir para compensar danos morais dos parentes de algum que foi assassinado, uma espcie de redistribuio burocrtica da violncia? E se descobrirmos, no futuro, que todos os assassinos tm algo errado em seus crebros? Nesse caso, ser que a justia no deveria se tornar mais tcnica e apenas tirar de circulao indivduos cujos crebros os tornam uma ameaa pblica?Paradoxalmente, em uma sociedade na qual os transtornos mentais se tornaram epidmicos, a angstia se tornou uma inconvenincia social inaceitvel. H uma tendncia de se tratar qualquer tristeza como se fosse, necessariamente, o sintoma de uma depresso. As plulas de felicidade so prescritas em abundncia. Ser feliz se tornou uma conquista farmacolgica, da mesma maneira que ser bonita depende apenas de poder pagar um bom cirurgio plstico. A neurocincia pe em xeque nosso conceito habitual de pessoa. Mas, ser que estamos preparados para viver em uma sociedade na qual h um desencantamento total em relao ao eu?Apesar de todo alarde da mdia, ainda sabemos muito pouco sobre o crebro humano. Ser que um dia a neurocincia desvendar o mistrio da conscincia? Um dos ltimos basties da reflexo filosfica? Atualmente, a neurocincia aposta em dois grandes projetos. Um o BLUE BRAIN, que est sendo realizado conjuntamente pela IBM e pelo Brain Mind Institute, na Suia. Ele busca replicar artificialmente partes do crebro. O outro o CONECTOMA, uma tentativa ambiciosa de mapear todas as redes neurais, compostas pelos 70 bilhes de neurnios do crebro humano, da mesma forma que o genoma mapeou nossos genes. esperar para ver. Por enquanto, o crebro continua ainda o Aleph de que nos fala Borges.